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ATUALiDADES Mateus Godoi CRiSE DA REPRESENTATiViDADE POLÍTiCA NO MUNDO E NO BRASiL2 33 Hoje, a crise da representação política tem sido caracterizada como um fenômeno mundial, colocando em dúvida a legi-timidade dos partidos políticos. Num contexto marcado pela emergência de novas formas alternativas de participação política, além de mudanças estruturais nas economias capitalistas, o aumento do descrédito dos cidadãos para com as instituições representativas se tornou uma realidade tanto em Estados periféricos como em democracias recentes. Segundo Mauro Luis Iasi, professor-adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, as manifestações que estouraram há poucos anos, na Turquia, no Brasil, na Grécia e na Espanha, têm como cenário comum uma crise nos modelos de representação política das sociedades democráticas modernas – “É a crise de uma afirmação que foi vendida como autoevidente de que não há outra forma de representação, a não ser eleger bancadas de deputados, senadores e representantes do Poder Executivo. Como se a eleição fosse o único ato em que a população participa do processo político“. O ex-presidente do Uruguai, José Mujica, na 72ª Assembleia Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), realizada na Cidade do México, afirmou que existe uma brutal crise política no mundo provocada pela falta de liderança e encorajou os jovens universitários a refletir sobre os problemas da sociedade. JOSÉ MUJICA DISCURSANDO SOBRE A CRISE DA REPRESENTAÇÃO (2015) Segundo Mujica, “no mundo, há uma brutal crise política porque esta é uma civilização cada vez mais global, mas não tem direção política. Está funcionando sob o impulso do mercado, e isso é trágico”. A relação entre eleitores e partidos políticos constitui um dos aspectos centrais do ideal democrático. Porém, desde as últimas décadas do século XX, vem se ampliando cada vez mais a compreensão de que a representação política se encontra diante de uma grave crise, demonstrada pelo aumento no número de eleitores que não se identificam com os partidos, altas taxas de volatilidade eleitoral, além da queda nos índices de participação eleitoral e a emergência de formas alternativas de ativismo político. 44 Nos EUA e na Europa ocidental (onde os partidos políticos exerceram forte influência na consolidação democrática no decorrer do século XX), existem várias teses que apontam para o declínio na relação entre os cidadãos e os partidos políticos; essas teses foram amplamente disseminadas e debatidas por diversos especialistas. Brancos, nulos e abstenções % votos 25 Brancos 18,1 19,4 5,8 3,82,6 4,5 Nulos Abstenções 20 15 10 5 0 1989 1994 1998 2002 2006 2010 2014 FONTE: TSE O cientista político francês Bernard Manin argumen- tou que, por muito tempo, num passado não muito distante, “a representação parecia baseada numa poderosa e estável relação de confiança entre eleitores e partidos políticos, com uma vasta maioria de eleitores identificados e fiéis a alguns dos partidos”. Obviamente, relevantes transformações ocor- reram, observando-se, atualmente, uma diversificação nas formas de participação política outrora intimamente ligadas à relação entre os cidadãos e as agremiações partidárias, ou seja, os partidos políticos. Foi a partir do século XIX, que o ideário da democra- cia representativa se espalhou pelo Ocidente, e os partidos políticos, até então identificados desde a Renascença como facções, passaram a ser vistos como instituições vitais para a representação parlamentar. No período pós-Segunda Guerra Mundial, consolidaram-se os canais tradicionais de represen- tação política por intermédio de organizações de trabalhado- res, movimentos sociais e associações civis, na qual os par- tidos exerceram papel fundamental para a estabilidade dos regimes democráticos. Segundo a cientista política Pippa Norris, da Universi- dade de Harvard, a estrutura conceitual para o entendimento das formas de participação política, que foram desenvolvidas nos anos 1950 e 1960, ainda dá forma às nossas acepções, tendo em vista termos ainda o velho partido de massas como modelo de organização partidária. Em que pese o declínio da representação partidária nas sociedades pós-industriais, observa-se maior oportunidade para a diversificação do en- gajamento político, que concilia a atividade eleitoral com os protestos políticos. As novas gerações se beneficiam também com uma vasta oferta de mecanismos, como o uso de no- vas tecnologias, por intermédio da internet, que possibilitam maiores condições de participação e redução dos custos da ação coletiva. Um terreno comum entre todas as manifestações re- gistradas desde 2009 é o uso intenso de mídias sociais – Fa- cebook, YouTube, Twitter – como divulgadoras e catalisadoras dos protestos. DEMOCRACIA ILIBERAL O conceito de democracia iliberal é relativamente novo e indica países que possuem democracias não conso- lidadas ou ainda parcialmente consolidadas. Trata-se de um conceito complexo, pois um país pode ser mais ou menos de- mocrático conforme a solidez de suas instituições de Estado e dos interesses político-ideológicos de seus governos. Grosso modo, indica uma forma de democracia em que os líderes do Poder Executivo se aproveitam de brechas nas instituições de- mocráticas para garantir seus interesses políticos imediatos. Por exemplo, o sufrágio universal (eleições livres e diretas) ocorre nesses países, mas, ao mesmo tempo, os direitos dos cidadãos, sobretudo de minorias das mais diversas, são limi- tados ou mesmo retirados. Alguns exemplos de decisões políticas iliberais são: candidaturas seguidas do mesmo governante com alteração de legislação via plebiscito; decisões que reduzem direitos in- dividuais baseadas em convicções religiosas, não existentes em constituição laica; criação ou redirecionamento de órgãos de Estado a serviço do governo iliberal para perseguir oposi- tores políticos; manipulação de dados fornecidos pelo Estado para garantir seus interesses; entre outros. 55 VIKTOR ORBAN (HUNGRIA) E VLADIMIR PUTIN (RÚSSIA), LÍDERES CONSIDERADOS DEMOCRATAS ILIBERAIS Como descreve Fareed Zakaria, a democracia “liberal“ não pressupõe apenas eleições livres e justas, mas também a proteção constitucional dos direitos dos cidadãos; democracia “iliberal“ ocorre quando eleições livres e justas associam-se à refutação sistemática de garantias constitucionais. Observando o mundo no final dos anos 1990, Zakaria percebeu um fenô- meno que se espalhava: “Regimes democraticamente eleitos, com fre-quência aqueles que foram reeleitos ou confirmados no poder por meio de referendos, têm ignorado rotineiramente os limites constitucionais a seus poderes e destituído seus cidadãos de garantias e direitos fundamentais. Do Peru à Autoridade Palestina, de Serra Leoa à Eslováquia, vemos a emergência de um fenômeno preocupante na cena internacional – a de- mocracia iliberal.“ (ZAKARIA, 1997; SCHEDLER, 2002, 2006) Como colocado por Zakaria, as democracias iliberais aparecem a partir dos anos de 1990 e ressurgem de períodos em períodos, desde então durante ou após crises político- -econômicas profundas locais, regionais ou globais. Portanto, da Venezuela e Bolívia, com governos à esquerda, à Rússia, Hungria e Polônia, com governos à direita, diversas demo- cracias iliberais grassam no mundo atual, em que a lógica da representação partidária é substituída pelo culto à figura personalista de líderes que negam a política tradicional, sem, na verdade, confrontá-la de fato. AS CONSEQUÊNCIAS DA CRISE DE 2009 PARA AS DEMOCRACIAS A crise econômica global, iniciada no final de 2008 nos EUA, produziu uma série de problemas de ordem social, econômica e política, em todos os países do mundo. Desem- prego e retração econômica, ao longo dos últimos, anos aju- daram a colocar em cheque governos que foram obrigados a lidar com o problema. Em todos os espectros políticos, o que se viu foi uma mudança de ordem político-ideológica no votodas populações como forma de mostrar a insatisfação com uma crise que nunca foi somente local. É comum,ao longo desses anos de crise mundial, observar países com go- vernantes progressistas sendo substituídos por governantes conservadores, e o inverso também ocorrendo; comum, tam- bém, perceber movimentos e manifestações populares por democracia, em países onde as ditaduras ainda são a regra – caso dos países do norte da África e do Oriente Médio, com a Primavera Árabe, a partir de 2010. Nos países democráticos, as manifestações foram por mais participação do Estado no controle e fiscalização do sistema financeiro e na exigência de mais auxílio social às pessoas, graças a economias comba- lidas e fragilizadas. PRINCIPAIS PROTESTOS AO REDOR DO MUNDO DESDE 2009 Protestos pós-eleitorais, no Irã Onde: Teerã, Mashhad, Isfahan, Karaj, Tabriz e outras cidades Quando: junho de 2009 Motivação: as eleições do Irã foram extremamente disputadas entre o então presidente, o conservador Mahmouhd Ahmadinejad, e o ex-premiê moderado Mir Hossei Mousavi. Quando Ahmadinejad foi reeleito com 62,6% dos votos, Mousavi alegou fraude nas eleições e pediu para que uma nova votação fosse realizada. Milhares de manifestantes que contestaram os resul- tados nas urnas saíram às ruas, fato sem precedentes no país persa, desde a Revolução Islâmica, em 1979. TERCEIRO DIA DE PROTESTOS REÚNE MILHARES NAS RUAS DE TEERÃ, IRÃ (2009). Reivindicações: anulação dos resultados eleitorais e liberdade de expressão. Repressão: a violenta repressão do governo aos protestos deixou dezenas de mortos e centenas de fe- ridos. Em uma das manifestações mais emblemáticas – que ficou conhecida como ”Sábado Negro” –, ao menos dez manifestantes morreram em 20 de junho, incluindo Neda Agha-Soltan, uma estudante iraniana que virou símbolo da oposição. 66 Desfecho do movimento: desde 2011, Mousavi e sua mulher estão em prisão domiciliar. Os protestos, conhecidos como ”Movimento Verde”, foram conside- rados um dos precursores da ”Primavera Árabe”, mas perderam a força dentro do Irã, sufocados com a vio- lenta repressão. Nas eleições presidenciais de 2013, a oposição foi enfraquecida pelos clérigos, que, liderados pelo aiatolá Ali Khamenei, mantêm a supremacia de seu poder sobre o presidente. Ocupe Wall Street Onde: inicialmente, em Nova Iorque (EUA) e, depois, em cidades em cerca de 80 países Quando: setembro de 2011 Motivação: a Adbusters, uma revista canadense que prega o anticonsumismo, publicou um artigo afirmando que os estadunidenses, inspirados na revolta na Praça Tahrir, no Egito, deveriam realizar uma ocupação pacífica em Wall Street para condenar a influência das grandes corporações financeiras no governo dos EUA. No dia 17 de setembro, centenas de manifestantes ocuparam o Parque Zuccotti em oposição à ganância das corpora- ções de Wall Street e à corrupção. O protesto, depois, ganhou o apoio de sindicatos e movimentos civis, es- palhando-se pelo país e por outras cidades do mundo. Reivindicações: com o slogan ”Somos os 99%”, em referência à concentração de renda nos EUA, mani- festantes pediram o fim da influência das corporações financeiras no governo, do favorecimento dos ricos e melhoras no sistema de saúde e de educação. Repressão: desde que as manifestações tiveram início, milhares de participantes foram detidos pela polícia, em várias cidades estadunidenses e no resto do mundo. Houve uso de gás lacrimogêneo por algumas polícias e alguns manifestantes criticaram a brutalidade dos agen- tes durante as prisões. Desfecho do movimento: hoje, o movimento ”Ocu- pe” se tornou um conjunto de grupos com objetivos semelhantes que usam um mesmo nome, mas não têm como função de fato ocupar espaços publicamen- te, como no início. Foi fundado, por exemplo, o Occupy Sandy Recovery, que organizou uma rede de voluntários para ajudar os atingidos pelo furacão que atingiu a costa leste dos EUA. GRUPO OCCUPY WALL STREET CRITICA SISTEMA FINANCEIRO DOS EUA (2011). Protestos em defesa do Parque Gezi, na Turquia Onde: Istambul, Ancara, entre outras cidades Quando: junho de 2013 Motivação: manifestantes se reuniram pacificamente no Parque Gezi, na Praça Taksim, em Istambul, para pro- testar contra planos do governo de construir uma réplica de quartéis militares otomanos do século XVIII e um sho- pping-center no local. A dura repressão policial contra a mobilização provocou fúria entre a população, desatando em protestos que se tornaram um dos maiores desafios ao premiê Recep Tayyip Erdogan, acusado de autoritaris- mo pelos manifestantes. Reivindicações: manutenção do Parque Gezi, direitos humanos e saída de Erdogan do poder. Repressão: a polícia na Turquia reprimiu com violência as manifestações, com uso de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e canhões de água. Cinco mortes (incluindo a de um policial) foram registradas, desde o início dos confron- tos, e milhares de participantes ficaram feridos. A Praça Taksim chegou a ser ocupada pelos manifestantes, retira- dos sob violenta força policial. Futuro do movimento: a manifestação teve início pa- cífico e, logo, se tornou o maior protesto contra o governo Erdogan, em seus dez anos no poder. Por causa da violen- ta repressão policial, manifestantes que queriam apenas preservar as árvores do Parque Gezi abraçaram novas causas, como o direto à liberdade de expressão. MANIFESTANTE JOGA UMA LATA DE GÁS LACRIMOGÊNEO, DURANTE CONFRONTOS COM A POLÍCIA NA PRAÇA TAKSIM, EM ISTAMBUL (2013). Protestos contra o aumento das passagens de ônibus no Brasil Onde: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, entre outras cidades Quando: junho de 2013 Motivação: o aumento da tarifa do transporte públi- co, nas principais capitais brasileiras, provocou protestos tímidos desde janeiro de 2013, mas as manifestações, paralelamente à agenda turca, intensificaram-se des- de maio. Diversas reivindicações foram agregadas aos protestos, principalmente após a forte repressão policial contra as manifestações em São Paulo, em 13 de junho. 77 Reivindicações: redução da tarifa das passagens de ônibus e melhora na qualidade do serviço de transporte público. Repressão: a polícia usou gás lacrimogêneo, balas de borracha e cassetetes contra os manifestantes, nas principais cida- des do País. Em São Paulo, mais de 200 ficaram feridos, em 13 de junho, após a violenta ação policial contra os protestos. Centenas foram detidos durante as manifestações, incluindo jornalistas que realizavam a cobertura do ato. O ESTOPIM DAS MANIFESTAÇÕES FOI OS AUMENTOS DAS TARIFAS NO TRANSPORTE PÚBLICO. O BRASIL EM FOCO O sistema político partidário brasileiro vivenciou pelo menos oito experiências distintas, desde o Império aos nossos dias, representando, atualmente, a mais longeva e estável da história brasileira. Apesar das frequentes propostas de reforma política a partir da redemocratização, além das inúmeras críticas, sobretudo no tocante à capacidade de enraizamento social das agremiações partidárias e à alta fragmentação no Congresso Nacional, o sistema partidário, nascido com a abertura de- mocrática em 1985, apresentava índices razoáveis (para não dizer elevados) de institucionalização. Desde 1994, a competição eleitoral nas eleições presidenciais se concentra em dois grupos ideológicos: um de centro- -esquerda e outro de centro-direita (essas são as classificações mais adotadas para designar tais partidos), liderados por PT e PSDB, respectivamente. A inconstância eleitoral apresenta queda constante, o comparecimento nas eleições é de aproxima- damente 80%, os índices de filiação partidária representam cerca de 10% do eleitorado – um dos maiores do mundo – e o número efetivo de partidos na Câmara dos Deputados, em 2010, residia em torno de 11 legendas (atualmente, temos 35 legendas). Pesquisa naquele mesmo ano apontava que 46% dos eleitores se identificavam com os partidos políticos, dos quais 23% tinham preferência pelo PT,seguido pelo PMDB e PSDB com 6% cada um. Partidos políticos brasileiros na web (2015) Sigla Filiados ”analógicos” Fãs e/ou curtidas no Facebook Seguidores no Twitter Inscritos no canal do YouTube Visualizações do canal do YouTube 1 PMDB 2.357.021 9.205 9.481 62 8.001 2 PT 1.589.941 79.796 57.600 2.379 781.390 3 PP 1.416.214 3.297 704 45 11.721 4 PSDB 1.352.107 35.100 42.600 572 272.060 5 PDT 1.209.740 3.688 1.877 — — 6 PTB 1.186.443 — 3.210 — — 7 DEM 1.089.092 9.389 4.435 — — 8 PR 766.899 1.696 1.272 23 24.417 9 PSB 583.678 52.793 6.292 320 124.558 10 PPS 465.739 1.175 3.011 — — 11 PSC 371.313 22.476 4.595 625 294.808 12 PCB 353.465 15.934 2.690 — — 88 Partidos políticos brasileiros na web (2015) Sigla Filiados ”analógicos” Fãs e/ou curtidas no Facebook Seguidores no Twitter Inscritos no canal do YouTube Visualizações do canal do YouTube 13 PV 340.494 23.893 15.600 338 58.986 14 PRB 302.389 12.014 5.583 149 34.116 15 PRP 222.613 — 210 — — 16 PMN 211.414 924 523 31 21.356 17 PSL 200.681 1.063 234 — — 18 PSD 191.934 11.841 3.084 101 16.105 19 PTC 176.558 67 — — — 20 PT do B 167.926 794 599 — — 21 PSDC 167.143 2.180 228 4 1.102 22 PHS 145.230 3.466 4.106 — — 23 PTN 129.461 1.473 329 15 3.679 24 PRTB 115.596 3.013 1.640 — 74.863 25 Psol 89.151 6.157 1.601 — — 26 PPL 17.232 53 114 — — 27 PSTU 16.774 16.074 7.858 1.621 1.663.085 28 PC do B 15.280 — 10.800 — — 29 PEN 7.538 103.000 53.900 5 6.839 30 SDD 4.647 1.141 658 — — 31 PROS 4.258 3.233 313 — — 32 PCO 2.263 3.169 483 615 344.070 FONTE: BITES <WWW.BITES.COM.BR> Desde 2013, os partidos políticos têm se apropriado das redes sociais para transmitir mensagens de ódio contra os seus oponentes e manipular os eleitores, quando podiam legalmente usá-las para captar os sentimentos dos grupos mais afins dos partidos e formar sua nova agenda. As “jornadas de junho” de 2013, as manifestações de rua “contra a corrup- ção” de 2016 e o apoio maciço dos grandes veículos de imprensa e de setores do judiciário, como a Operação Lava-jato, garantiram que o governo da presidenta Dilma Rousseff fosse interrompido, em agosto de 2016, com a consolidação do processo de impeachment por crime de responsabilidade, sendo acusada de “dar pedaladas fiscais” (movimentar verbas públicas para destinos diferentes do estabelecido, sem a autorização do senado). É importante lembrar de que o processo de impedimento de um presidente não é somente jurídico, mas também político (o Congresso Nacional vota essa decisão), e o Brasil enfrentava uma crise política (Operação Lava-jato) e econômica (queda do PIB) agravada pela tentativa do Estado brasileiro de manter renda e emprego a partir de gastos públicos vultosos em infraestrutura e habitação, desde 2009. Quando a conta dessa escolha chegou, água, energia elétrica, gás e combustí- veis sofreram fortes aumentos, o que aumentou a inflação e atingiu a renda geral da população, sobretudo dos mais pobres. Esse “caldo” político, econômico e social garantiu que o Partido dos Trabalhadores (PT) deixasse o poder, depois de treze anos comandando o País na esfera federal. Com a saída de Dilma Rousseff, o seu vice Michel Temer assumiu a presidência e iniciou uma série de reformas econômicas que contrariava a política desenvolvimentista do PT e reduzia a influência de mecanismos multilaterais, como BRICS, Mercosul, ALBA e Unasul, reaproximando-se politicamente dos EUA e reimplantando o modelo de austeridade fiscal pautado em propor reformas estruturais, como a trabalhista, da previdência, fiscal e administrativa. Dessas, Michel Temer conseguiu aprovar a reforma trabalhista, que reduziu direitos dos trabalhadores e reduziu as responsabilidades dos empre- gadores, usando como justificativa que tal reforma ampliaria as contratações no território nacional. Com essas medidas, o mandato de dois anos de Temer também foi marcado por baixa popularidade entre a população e por crises de corrupção que afetavam diretamente o presidente da República. Nesse cenário – em que o desemprego atingiu mais de 12% da população brasileira, somado às críticas aos gover- nos da esquerda e da direita tradicional –, é que começou a desenhar-se a candidatura de alguém que pudesse descolar-se dessas duas esferas políticas, posicionando-se como um político outsider, que não fazia parte dos acordos escusos em nenhum espectro político. Esse alguém era Jair Messias Bolsonaro. 99 O Governo Bolsonaro Jair Bolsonaro é um capitão reformado (compulsoriamente aposentado, em 1988, por atitude terrorista dentro das Forças Armadas) que seguiu carreira política, colocando-se como representante das polícias e dos militares de baixa patente. Apesar de ter nascido em Eldorado-SP, no Vale do Ribeira, foi eleito vereador no Rio de Janeiro (1988-1990) e deputado federal pelo RJ (1991-2018) por sete mandatos consecutivos, quando se candidatou à presidência da República. É importante salientar que a eleição de Bolsonaro é a representação, demonstrada anteriormente nesse texto, da crise de representatividade da democracia atual. A frustração nacional com a política tradicional permitiu que um deputado federal há 30 anos na política, pertencente ao chamado “baixo clero” da Câmara, fosse eleito por um partido pequeno (PSL) e elegesse centenas de outras pessoas sem carreira política que seguiam o discurso e as propostas de Bolsonaro. Com intenso uso das redes sociais, Twitter e grupos de WhatsApp, os apoios de empresários de setores diversos e de setores evangélicos de linha pentecostal, além de uma conjuntura política e econômica favorável a mudanças, o discurso político que mistura propostas liberais na economia e propostas bastante conservadoras nos costumes atraiu um eleitor que se sentia traído por todos os setores políticos tradicionais, sendo facilmente seduzido pelas propostas de soluções fáceis (muitas populistas) do então candidato. Resumo das propostas de Jair Bolsonaro para a presidência 1010 Análise das propostas Como se pode observar no quadro anterior, as propostas do então candidato Jair Bolsonaro possuem forte conotação conservadora, o que atende à demanda de uma parcela considerável da população brasileira. Apesar de pouco factíveis, pois dependem de aprovação dos outros Poderes da República, tais propostas se tornaram a base da campanha presidencial de Bolsonaro. Suas propostas mais polêmicas são: implantação de escolas militares; barrar ideologia de gênero (não existe tal lei no País); contra a liberação de drogas e do aborto; castração química para estupradores; redução de maioridade penal; revogar o estatuto do armamento, dando direito à posse de armas pelo cidadão; e fim do foro privilegiado para todos os políticos. Com dois anos de mandato, uma forte crise econômica e uma pandemia mundial (Covid-19), o governo Bolsonaro apresenta dificuldades em implantar suas medidas propostas antes das eleições. O Congresso Nacional e o Superior Tri- bunal de Justiça (STF) tentam fazer os contrapesos das decisões do Executivo e impõem algumas derrotas ao presidente. Com poucos ministros realmente preparados para os cargos, o Brasil de Bolsonaro varia de incompetente a assumidamente negacionista em diversos setores políticos, econômicos e sociais. Vários exemplos podem ser citados, tais como as formas de tratamento à pandemia, incentivando a população a sair às ruas sem máscara ou declarando que medicamentos sem eficácia comprovada fossem usados no famigerado “tratamento precoce”. Também pode-se citar o descaso com a compra de vacinas, quando o governo se negou, ainda na metade de 2020, a integrar grupos de países que investiriam em desen- volvimento de vacinas em troca de obter primeiro milhões de doses (COVAX facility). E podemos encerrar com as declara- ções, no mínimo polêmicas, do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que provocam rupturas diplomáticas com importantes parceiros comerciais, como a União Europeia e a China. APLICANDO PARA APRENDER1. O líder húngaro Viktor Orbán conseguiu o terceiro mandato consecutivo, na eleição de 8/4/2018. O triunfo de seu partido, o Fidesz, é o termômetro que mostra o tipo de discurso em alta na União Europeia (UE). Exultante, Orbán compareceu ante milhares de seguidores num evento organizado por seu partido em Budapeste. Sob aplausos, entoou uma canção tradicional húngara e agradeceu aos eleitores. Orbán, o líder estudantil que lutou contra a ditadura comunista húngara, o político que foi durante um tempo a grande promessa liberal das recentes democracias da Europa Oriental, transformou-se numa das vozes mais conservadoras da União Europeia. (https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/08) O reeleito primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán e o seu partido Fidesz refletem um discurso atualmente em alta na União Europeia: a) uma agenda favorável ao aprofundamento da democracia liberal. b) uma maior aproximação com as políticas de maior integração sugeridas por Bruxelas. c) rejeição da política de imigração, postura xenófoba e primazia dos valores cristãos e nacionalistas. d) uma agenda de rejeição ao patrimônio cristão da comunidade. e) um estreitamento de colaboração com ONGs e incentivo à participação da sociedade civil. Gabarito 1. C SUGESTÕES DE FILMES E DOCUMENTÁRIOS The Square (2013) – direção: Jehane Noujaim – duração: 108 minutos Tahrir: Liberation Square (2012) – direção: Stefano Savona – duração: 91 minutos 1/2 Revolution (2011) – direção: Omar Shargawi e Karim Rl Hakim – duração: 72 minutos Mr. Schneider goes to Washington (2007) – direção: Jonathan Neil Schneider – duração: 75 minutos Michael Moore in Trumpland (2016) – direção: Michael Moore – duração: 73 minutos Batalha de Seattle (2008) – direção: Stuart Townsend – duração: 111 minutos Slacker uprising (2008) – direção: Michael Moore – duração: 102 minutos A sombra de um homem (2011) – direção: Hanan Abdalla – duração: 15 minutos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS http://politica.estadao.com.br/blogs/legis-ativo/sobre-a-crise-da-representacao-politica/ http://exame.abril.com.br/mundo/mundo-vive-crise-politica-por-falta-de-lideranca-diz-mujica/ http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2013-08-02/protestos-mundiais-refletem-crise-de-representacao-politica-dizem-especialistas.html http://www.brasil-economia-governo.org.br/2016/02/22/como-explicar-a-atual-crise-de-representatividade/ http://www.huffpostbrasil.com/sam-jovana/a-crise-de-representatividade-pelo-pluripartidarismo_b_6235680.html http://www.ocafezinho.com/2016/12/09/fim-do-mundo-diz-wanderley-guilherme-sobre-crise-politica-no-brasil/ http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/crise-de-representacao-partidaria-e-um-problema-historico-c52qr5g4p5pif3xc63jksanv2 https://lh3.googleusercontent.com/proxy/af2HgcsES0tUa9b4rtCKXNsrITrzsrKTCsvWevVaY8ts16nXpEIuIQzR8S2_Opj150qvEFu5zzp_912L5gnKtuYbjueQ1942Hh 3wO5LEH6DTLbwmy_inH9VbBhQYeHxYaHkhk8A22y9_dHAoQ https://scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-62762009000200004 ZAKARIA, F. "The Rise of Illiberal Democracy". Foreign Affairs, v.76, nº 6 nov./dez, 199 ATUALIDADES
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