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1º Ed. / Setembro / 2013 Impressão em São Paulo - SP SANDRA FÁTIMA REIGOTA LINGUAGEM E AQUISIÇÃO DA ESCRITA Editora Catalogação elaborada por Glaucy dos Santos Silva - CRB8/6353 Coordenação Geral Nelson Boni Coordenação de Projetos Leandro Lousada Professora Responsável Sandra Fátima Reigota Projeto Gráfico, Diagramação e Capa Priscila Wu Temer Revisão Marcela Aparecida de Oliveira Coordenadora Pedagógica de Cursos EaD Profª. Me. Maria Rita Trombini Garcia 1a Edição: Setembro de 2013 Impressão em São Paulo/SP Linguagem e Aquisição da Escrita Copyright © EaD Know How 2009 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição. R361L Reigota, Sandra Fátima. Linguagem e aquisição da escrita. / Sandra Fátima Reigota. - São Paulo : Know How, 2010. 165 p. : 21 cm. Inclui bibliografia ISBN : 978-85-63092-44-1 1. Linguagem. 2. Aprendizagem. 3. Aquisição da escrita. I. Título. CDD - 410 “A escrita deve ter significado para as crianças, uma necessidade intrínseca deve ser despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a tarefa necessária e relevante para a vida. Só então poderemos estar certos de que se desenvolverá, não como hábito de mão e dedos, mas como uma forma nova e complexa de linguagem.” (Vygotsky) A maneira como escrevemos é um reflexo de nossas leituras, de nossa intimidade com a linguagem, dos valores que abraçamos, dos conceitos de vida que defendemos. O estilo é individual e reflete nossas vivências, porém criamos hábitos linguísticos em razão da uniformização provocada, principalmente, pelos meios de comunicação e pelas expressões típicas da linguagem oral. Quando escrevemos devemos jogar fora as regrinhas complicadas e guardar o essencial, que é a nossa bagagem como ser humano. Se nossa bagagem está meio vazia, não adianta ler todos os dias uma gramática de 500 páginas ou um dicionário com um milhão de verbetes – eles são úteis, mas só para quem já tem conteúdo e sabe usá-los. Apresentação O saber linguístico mais apurado reside numa preparação individual e coletiva, em que lemos artigos e livros sobre nossas especialidades, mas também buscamos informações que nos tornem menos especialistas e mais especiais. Saber ler é uma arte - compreender e penetrar em um texto bem escrito nos remete a outros mundos. No entanto, isso tem um sentido maior se pudermos retransmitir essas ideias. Dessa forma, saber escrever é transmitir ideias consistentes com a agilidade que as infovias impõem. Saber escrever bem é ser um artista das palavras e as palavras abrem as portas para o mundo. O mundo não é estático, portanto sua leitura também não o é. A leitura é um processo dinâmico em que interagimos com o autor e o completamos de acordo com nossa vivência. A observação do mundo, a leitura do mundo e a leitura da palavra são processos concomitantes – um não existe sem o outro e na leitura de cada palavra o presente, o passado e o futuro se articulam e se fundem. Assim, o processo de linguagem e aquisição da escrita passa, obrigatoriamente, pelo processo de leitura de tudo que cerca o ser humano. Passa pelo processo do conhecimento e pelo aprimoramento de todos os sentidos. Por isso é preciso absorver, com qualidade, o vasto mundo das palavras. Elas devem ser cheiradas, vistas, ouvidas, degustadas e, acima de tudo, sentidas pelo tato invisível de nossa essência, de nosso ser, pois a compreensão do mundo e do mundo das palavras é privilégio dos seres humanos. Essa leitura de mundo é dinâmica, é fantástica, é assustadoramente infinita. Por essa razão a história de cada palavra está relacionada a vida de cada ser humano e, mais que leitores todos nós, seres humanos, somos recriadores de pensamentos e ideias, nós reconhecemos e compreendemos as palavras em seus diversos contextos. Portanto, cabe também a nós, educadores, auxiliarmos as crianças a interagirem nesse vasto mundo de palavras e desenvolvam a sensibilidade crítica para o que lhes interesse, para o que lhes enriqueça e para que possam produzir bons frutos para o seu crescimento tanto físico como intelectual, psicológico e social. Sumário 13 49 UNIDADE 01 Aquisição da escrita: evolução, aspectos linguísticos e congnitivos 1.1 Linguagem escrita 1.2 História e natureza da escrita do português Tupi guarani e outras línguas Influência das línguas da África 1.3 Evolução da escrita na criança 1.4 As linguagens da língua - a língua falada e a língua escrita Prática social da leitura Prática social da escrita 1.5 O desenvolvimento da língua escrita na infância 1.6 Aspectos linguísticos e cognitivos Aspectos cognitivos Aspectos linguísticos UNIDADE 02 Construtivismo e aquisição da linguagem escrita 2.1 Objeto do conhecimento: a escrita como sistema de representação 2.2 As concepções das crianças a respeito do sistema de escrita 2.3 As concepções sobre a língua subjacente à prática docente 2.4 Algumas concepções subjacentes às práticas 2.5 Alguns aspectos aos quais os profissionais ligados à educação devem estar alerta 2.6 Algumas implicações pedagógicas UNIDADE 03 Problemas básicos na área da aprendizagem da linguagem escrita 3.1 Maturidade do aluno para alfabetização 3.2 Desenvolvimento das inteligências múltiplas 3.3 Condições físicas da criança Causas emocionais Causas sensoriais Causas neurológicas Causas intelectuais ou cognitivas Causas educacionais Causas socioeconômicas 3.4 Distúrbios que afetam a leitura e a escrita Mudez Atraso na linguagem Afasia Articulação das palavras Déficit de atenção Hiperatividade Hipoatividade Dislexia UNIDADE 04 Perspectivas para o desenvolvimento da inteligência 4.1 Educação no ar 4.2 Educação e ensino na escola 4.3 Desenvolvimento da inteligência Fases do desenvolvimento Jean Piaget Slgmund Freud 71 87 107 123 148 Henri Wallon Eric Erikson Teorias de aprendizagem UNIDADE 05 Alfabetização e letramento 5.1 Ambiente alfabetização e letrado UNIDADE 06 Produção e compreensão de textos 6.1 Algumas questões 6.2 Avaliação do texto escrito 6.3 Produção de textos com base nos gêneros textuais Gêneros da ordem narrar Gêneros da ordem relatar Gêneros da ordem argumentar Gêneros da ordem expor Gêneros da ordem do instruir e do prescrever 6.4 Desenvolvimento de atividades Gestos Desenhos Símbolos Organização de ideias Pontuação Ortografia Alfabeto Leituras Rótulos Trava-línguas Trabalhando com textos Jornal Referências UNIDADE 1 Aquisição da escrita: evolução, aspectos linguísticos e cognitivos UNIDADE 1 Aquisição da escrita: evolução, aspectos linguísticos e cognitivos 15 Para que o ser humano possa apropriar-se de diversos conhecimentos, ele precisa, primeiramente, apropriar-se da escrita e da leitura. A escrita é um sistema organizado com regras e estruturas definidas e, embora tenhamos contato com a língua desde antes de nascermos, a aquisição da escrita e o desenvolvimento da leitura, são conhecimentos muito complexos. A alfabetização faz parte do desenvolvimento da cidadania, assim, a aquisição da escrita e da leitura, fazem parte do aprimoramento do ser humano e, embora estejamos falando de leitura e escrita, podemos considerar as diversas formas de “leitura” e “escrita”. Explicando: as pessoas com necessidades especiais tem seus próprios códigos de leitura e escrita, ou seja, LIBRAS e Braile que também estão ligados ao desenvolvimento dos aspectos cognitivos do ser humano. Assim, para entrar em contato com as pessoas, para que a comunicação realmente ocorra é preciso considerar as diversas formas de “escrever”e “ler”. Assim, ao considerarmos a importância da dimensão formadora da educação e do ensino, percebemos o quanto a questão da leitura e da escrita são fundamentais no processo de formação do ser humano. 1.1 Linguagem escrita 16 Quem hoje critica a aquisição de palavras advindas de outras línguas, esquece que a língua portuguesa, como hoje a conhecemos, é a compilação, mistura e miscegenação de diversas línguas. Na realidade, o português falado no Brasil sofreu influências ainda maiores do que o português falado em Portugal. Isso aconteceu porque, o língua falada no Brasil tem vocábulos de origem indígena e africana – o que não ocorre com o português falado em Portugal. Aliado a isso, temos ainda as diferenciações de ordem gramatical que, agora, foram uniformizadas pelo acordo, contudo, até 2008 as regras gramaticais eram diferentes nos diversos países em que a língua portuguesa é a língua oficial. Além, é claro, de países em que a língua é falada, mas não é a oficial, como é o caso de Macau, na China, onde o idioma oficial é o chinês mandarim. A título de conhecimento, os países em que o português é a língua oficial são: Portugal, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Ao todo, são oito paises que fazem parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e que, a partir de janeiro de 2009, tiveram a gramática uniformizada. 1.2 HISTÓRIA E NATUREZA DA ESCRITA DO PORTUGUÊS 17 Para se compreender a língua falada no Brasil, alguns dados são importantes. É preciso lembrar, em primeiro lugar, que os povos que habitavam o Brasil, embora ágrafos, tinham sua própria língua. Naquela época, a língua mais falada em nosso país era o tupi que, a partir da segunda metade do século XVII, essa língua já bastante modificada pelo uso corrente e denominada de “brasílica” ficou conhecida como língua geral. Nesse contexto, os jesuítas, que tinha contato direto com os índios tornaram-se bilíngues e incorporaram essa língua como instrumento para catequização dos índios. Em 1758, com o objetivo de diminuir o poder dos jesuítas em nosso território, o marquês de Pombal proibiu o ensino e o uso do tupi em todo o território nacional e instituiu o português como única língua a ser falada no país. Infelizmente, tal fato foi devastador em termos de cultura pois em lugar de aprimorarmos nossa língua, acabamos por perder muito da cultura indígena que hoje se tenta resgatar. Embora os crescentes esforços de Pombal fossem para que a língua desaparecesse do território nacional, ainda herdamos cerca de dez mil vocábulos tupis incorporados ao português. Tais vocábulos referem-se, especialmente, para nomear pontos geográficos (Ibirapuera); morros (Jaraguá); rios (Tietê); lugares (Paraná, Pará, Jacupiranga); pessoas (Jacira, Juçara); animais (jaguatirica, tucano, arara, jacaré) e plantas (mandioca). TUPI GUARANI E OUTRAS LÍNGUAS 18 Contudo, é preciso ainda acrescentar que nem só de tupi viviam os habitantes do Brasil, havia outros ramos. Essa língua à qual nos referimos era falada na região hoje conhecida como São Paulo e, por intermédio dos bandeirantes é que essa língua acabou adentrando regiões jamais alcançadas pelos índios tupi-guaranis. Nesse mesmo tempo, uma outra língua foi difundida principalmente na região do Maranhão e Pará, a partir do tupinambá. Essa língua ficou conhecida como nheengatu (ie’engatú), que significa “língua boa”. Apesar de inúmeras transformações, o nheengatu continua, ainda hoje, sendo falada por populações da bacia do rio Negro e se constitui num instrumento étnico de povos que perderam suas línguas como os arapaços, bares dentre outros. Além da influência indígena, o português incorporou muitos vocábulos daqueles povos que para cá vieram em regime de escravidão. Assim foi que, entre 1538 e 1855 quase vinte milhões de africanos foram trazidos para o Brasil, a fim de servirem de mão de obra para o corte da cana-de-açúcar no Nordeste, extração de ouro em Minas e plantação de café em São Paulo. Com a finalidade de se formar um contato mais direto entre senhores e escravos, era necessário “aprender” um pouco da língua desse povo. No entanto, esse trabalho não foi fácil, pois vieram para o Brasil diferentes grupos étnicos, havia, portanto, uma grande variedade de línguas. Isso interessava, em parte, os senhores I NFLUÊNCIA DAS LÍNGUAS DA ÁFRICA 19 pois era uma estratégia para mantê-los separados e submissos. Segundo pesquisas, os falantes de banto vieram de Angola, Congo, Moçambique e Tanganika e se estabeleceram em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Alagoas e Maranhão. Os falantes da cultura sudanesa (etnias mandinga, nagô, ioruba, fanti-ashanti), provenientes de Guiné, Nigéria, Sudão, Daomé, Senegal estabeleceram-se na Bahia e nos legaram muitas palavras ligadas ao candomblé. As línguas banto e ioruba acabaram sendo escolhidas para facilitar a comunicação entre as pessoas e cerca de trezentos vocábulos foram incorporados ao português falado no Brasil como: angu, fubá, dengo, bunda, caçula, quiabo, samba entre outras. Encerramos esta parte com a frase de John Lyons: “À medida que se modificam as necessidades de comunicação de uma sociedade, também se modificará a língua por ela falada, para atender às novas exigências. O vocabulário será ampliado, seja tomando emprestadas palavras estrangeiras, seja criando-as a partir de seus próprios vocábulos já existentes.” 1.3 EVOLUÇÃO DA ESCRITA NA CRIANÇA 20 A partir do estudo de alguns autores como Piaget, Vygotsky, Emilia Ferreiro e Teberosky, passou-se a compreender que à medida que as crianças crescem, elas adquirem movimentos motores mais aprimorados. Entretanto, a evolução da escrita (grafismo) varia de criança para criança, sem que haja, necessariamente, treinamento. Cada qual, a seu modo, 21 desenvolve a capacidade motora sem ser forçada para isso, fazendo traços cada vez mais complexos e significativos. De maneira geral, aos dois anos a criança tem pouco controle sobre o traçado e não costuma tirar o lápis do papel; aos três anos, ela já é capaz de retirar o lápis e traçar formas verticais e círculos; aos quatro, já traça algumas letras e apresenta algumas tentativas de escrita; aos cinco, desenha algumas formas fechadas como retângulos, quadrados e formas ovais; aos seis, consegue fazer linhas onduladas e inclinadas que exigem maior controle motor. Nessa última fase, a criança inicia o Ensino Fundamental e passa a ter um contato mais constante com o mundo das letras. Assim, a capacidade de reconhecer e traçar letras se estabelece nessa época e se a criança consegue traçar linhas verticais e círculos, tem facilidade em traçar letra bastão, que é composta por esses elementos geométricos simples. Há três motivos básicos para a letra bastão ser mais fácil de escrever: 1. ela é sempre uniforme – todas as letras têm o mesmo tamanho (a letra cursiva em maiúsculas e minúsculas); 2. a letra bastão fica sempre sobre a linha e nunca a atravessa (como ocorre com o f e o j, por exemplo); 3. com apenas cinco elementos geométricos é possível construir todo o alfabeto: circunferências, semicircunferências, retas horizontais, retas verticais e retas inclinadas. Já a letra cursiva é composta apenas por linhas onduladas o que requer maior desenvolvimento do grafismo. Em suas primeiras tentativas, é comum as crianças fazerem 22 apenas cópias e quando tem de escrever seus próprios trabalhos, optam pela letra bastão pois se sentem mais seguras em relação a sua capacidade de escrita. Como ainda não reconhecem e dominam a letra cursiva, escolhem a outra por acreditarem que fica mais fácil de o professor entender o que escreveram. Nessa etapa é possível que utilizem letras cursivas maiúsculas na mesma palavra e misturem com letra bastão. Além disso, confundem, por vezes, algumas letras cursivas como D e O e F e J. Entre as letrascursivas mais difíceis de escrever estão: b, d e v minúsculos e o H maiúsculo. Com retas verticais e horizontais Uma reta I Duas retas L T Três retas F H Quatro retas E Com circunferências O Q Com semicircunferências Uma semicircunferência C Duas semicircunferências S Com retas inclinadas V X Com uma semicircunferência e uma reta horizontal G Com retas verticais e inclinadas M N W K Y Com semicircunferências e retas verticais B D J P U Com retas horizontais e inclinadas A Z Com uma semicircunferência e uma reta vertical e uma reta inclinada R 23 Para que a transição possa ser facilitada é importante que tanto os professores como os pais auxiliem na transição. Assim, é necessário que todos tenham paciência, pois essa mudança não ocorre de repente, ela acontece paulatinamente. Nesse contexto, é preciso considerar: ■ Para auxiliar a criança, é preciso que não se proíba o uso de nenhuma letra, assim sendo, a criança escreve como quer e da forma como acredita que possa expressar-se melhor; ■ Normalmente, a criança deseja escrever seu próprio nome e das pessoas de seu entorno, incentive-a mas não critique os enganos; ■ Não se deve corrigir a mistura que fazem ao utilizar a cursiva; ■ É preciso observar como a criança segura o lápis e sua postura ao sentar-se – dificuldades motoras prejudicam a escrita; ■ Verifique se a criança tem problemas motores ou problemas na questão do conhecimento; ■ Desenvolva atividades individuais para aquelas crianças que têm dificuldades com a letra cursiva; ■ Escreva um texto (poesia, história curta) com letra bastão e transforme em o texto em letra cursiva; ■ Mostre às crianças que, na letra cursiva, as letras ficam sempre unidas e, na letra bastão, elas ficam separadas; ■ Para que desenvolvam a escrita, proponha que escrevam um diário, relacionem as brincadeiras de 24 que gostam, os alimentos que costumam comer ou algum acontecimento importante em sua vida. A letra bastão traz algumas facilidades no momento de escrever pois é constituída de elementos geométricos simples e, basicamente, do mesmo tamanho. Já a letra cursiva requer um pouco mais de habilidade pois tem traços mais elaborados. Para estabelecermos a relação entre língua falada e língua escrita, é preciso deixar bem clara a distinção entre língua, linguagem e fala. Língua é a forma de expressão de uma determinada comunidade, ou seja, todos que fazem parte de uma comunidade falam a mesma língua. A língua é composta de um léxico (conjunto de palavras) e de normas gramaticais (regras que fundamentam o uso da língua. Devemos considerar, ainda, que não existe uma língua mais difícil que a outra, cada qual tem sua história e seu desenvolvimento próprio e se constitui em um sistema de comunicação que distingue um grupo. Dessa maneira, cada qual tem suas características gráficas e fonéticas e suas regras de funcionamento. Cabe lembrar, ainda, que ainda existem línguas que não possuem sinais gráficos e são utilizadas por comunidades ágrafas (sem escrita). 1.4 AS LINGUAGENS DA LÍNGUA – A LÍNGUA FALADA E A LÍNGUA ESCRITA 25 Diferenças entre a língua falada e a língua escrita Língua falada Língua escrita Palavra sonora Palavra grafada Recursos: signos acústicos e extralinguísticos, gestos, entorno físico e expressões faciais Pobreza de recursos não- linguísticos; uso de letras, sinais de pontuação Requer a presença dos interlocutores e ganha em vivacidade Não requer a presença de interlocutores visto que a comunicação é unilateral Comunicação ao vivo e em tempo real Comunicação permanente, extrapola tempo e espaço Espontânea e imediata pode se utilizar de frases feitas, utilização de repetições, cacoetes e vulgarismos Linguagem precisa e elaborada A expressividade permite prescindir de certas regras e está presente a improvisação Mais correção na elaboração de frases pois evita a improvisação É repetitiva e redundante Linguagem sintética e a redundância pode ser usada como recurso estilístico A informação é permeada de subjetividade e influenciada pela presença do interlocutor A informação é mais objetiva e a linguagem deve ser clara e precisa. O contexto extralinguístico é importante O contexto extralinguístico tem menos influência (Fonte:adaptado de http://www.klickeducacao.com.br/2006/materia/21/ display/0,5912,POR-21-98-852-5175,00.html) 26 A língua falada difere substancialmente da língua escrita, além disso, é preciso considerar as diversas possibilidades de registro da língua. Exemplificamos a seguir: Conversa simples em um mesmo país: ■ Tás atucanado, Bagual? ■ Não! Tô aperreado, bichinho! ■ Eu acho é que você está é chateado! Além das variações linguísticas de ordem geográfica, chamadas de regionalismos ou dialetos (quando as diferenças são muito acentuadas), existem as diferenças motivadas pelos níveis de linguagem. Essas diferenças são: Registro Características Clássico (ou rebuscado) – nível elevado - Extrema correção gramatical; - Construções sintáticas raras; - Vocabulário rebuscado; - Utiliza-se em ocasiões formais; Culto – nível médio - Correção gramatical; -Construções sintáticas elaboradas; -Linguagem padrão; 27 - Vocabulário conhecido; - Utiliza-se em ocasiões semiformais; Coloquial – nível familliar - Permite uma comunicação mais livre; - Não se preocupa com a correção gramatical; - Construções sintáticas simples; - Vocabulário conhecido, com palavras de uso mais popular, incluindo gírias; - Utiliza-se em ocasiões informais. Há também as denominadas línguas especiais, pertencentes a grupos restritos de indivíduos que compartilham um mesmo conhecimento técnico ou interesses comuns. No primeiro caso, temos as línguas técnicas; no segundo, as gírias. Para concluir, é importante refletir sobre o conceito de erro na língua, visto que existem vários níveis de fala. Na verdade, deve-se falar em linguagem adequada. Tome como parâmetro a vestimenta. Qual seria a roupa certa: terno e gravata ou camiseta, bermuda e sandália? Tudo depende da situação. Numa festa de gala o adequado é terno e gravata, já andando pela praia, num dia de sol, utiliza-se camiseta bermuda e sandália. Para cada ocasião existe o traje adequado. Na linguagem não é diferente. Não se deve pensar a língua como algo que se polariza entre o “certo” e o “errado”, mas sob o prisma do que é adequado a cada situação. Numa situação de caráter informal, é adequado que se utilize a língua de maneira espontânea, em seu nível coloquial. Numa reunião empresarial, por exemplo, não seria adequado utilizar-se a língua em sua forma coloquial. Tal situação exige uma linguagem mais formal que a primeira, mas que não precisa chegar a um nível rebuscado. 28 A escola privilegia o nível culto, por isso, encara como “erro” tudo aquilo que se desvia da norma padrão (ou norma culta). Se a norma estabelece que não se deve usar o verbo ter no sentido de existir, substituindo o verbo haver, construções como: Tem duas pessoas na sala, Tinha uma mulher na biblioteca, são consideradas erradas, pela maioria dos professores, em qualquer contexto. É praxe que corrijam para: Há duas pessoas na sala, Havia uma mulher na biblioteca. Tal correção, como muitas outras, por vezes soa estranha, porque o julgamento de certo e errado baseia-se no que ouvimos constantemente. No entanto, bons autores, utilizam esse tipo de construção. Vejamos as seguintes construções: “No meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho Tinha uma pedra No meio do caminho tinha uma pedra.” (ANDRADE, C.D. “No meio do caminho”. In: Alguma Poesia) “Tem dias que a gente se sente Como quem partiu ou morreu A gente estancou de repente Ou foi o mundo então que cresceu” (Chico Buarque – Roda Viva)A pergunta é inevitável: Se eles podem, por que nós não podemos? Nem essa pergunta nos é respondida com exatidão e são comumente usadas respostas evasivas como: “trata-se de licença poética”. Porém, há desvios intencionais, ou seja, com a intenção deliberada de reforçar uma mensagem. O erro deve ser considerado quando se dá por ignorância da norma, ou seja, 29 o usuário da língua desconhece a norma padrão. Esses desvios são considerados como vícios de linguagem e constituirão erro. Já os desvios da norma quando utilizado como reforço de uma mensagem, não constituirão erro e serão classificados como figuras de linguagem. Portanto, o que confere ao desvio a qualidade de figura e não de vício é, necessariamente, a originalidade e eficácia da mensagem. 30 A fala, por sua vez, é uma ação individual, quando um indivíduo utiliza a língua com uma determinada intenção, em um determinado momento e em um determinado lugar. As pessoas não nascem falando, elas desenvolvem essa capacidade ouvindo outras pessoas falarem. Assim, cada indivíduo irá expressar-se na sua língua natal, embora cada qual incorpore alterações, faça criações, adaptações, ampliações e modificações durante a vida e à medida que aprende cria sua própria forma de se comunicar. É importante lembrar que a língua é um fenômeno mutável e as mudanças que ocorrem, por vezes, iniciam-se na fala, na incorporação de palavras e adaptação de palavras ao cotidiano do falante. 31 Linguagem é a capacidade de o ser humano expressar representações, sejam seres, objetos, ideias ou emoções. Para expressarem-se as pessoas podem utilizar a linguagem verbal e a linguagem não verbal. A linguagem verbal é aquela que usa palavras, escritas ou faladas. A linguagem não verbal é a forma de comunicação que não utiliza palavras mas gestos, sons, músicas e imagens. Muitas vezes, as duas linguagens se complementam, ou seja, quando conversamos pessoalmente, utilizamos gestos e expressões aliados às palavras. Até mesmo quando enviamos e-mails podemos utilizar os “emoticons”, símbolos que ajudam a indicar emoções como alegria, tristeza ou surpresa. Durante muito tempo, o conhecimento era passado de pessoa para pessoa apenas de forma oral, tanto o emissor como o receptor deveriam estar presentes para que a comunicação se processasse. A esse processo denominamos tradição oral. Cada cultura de cada civilização, de cada sociedade possui um acervo de conhecimentos que foram transmitidos de pai para filhos: cantigas, adivinhas, provérbios, mitos, entre outros. Para que esse processo pudesse se concretizar as pessoas utilizavam técnicas como rimas, ritmo e repetições, pois os textos em forma de versos eram mais fáceis de serem lembrados. Quando a criança tem a possibilidade de ouvir diferentes falantes, de ter acesso a diferentes repertórios lingüísticos, isso amplia cada vez mais as possibilidades discursivas da criança. Nesse contexto, o entorno social em que a criança vive pode proporcionar-lhe diferentes formar de ter contato com a escrita, quer seja por meio da leitura de rótulos, revistas, jornais ou livros. PRÁTICA SOCIAL DA LEITURA 32 Como vimos, a tradição oral transmite um grande acervo de conhecimentos na construção da estrutura de escrita das crianças. Entretanto, para que ela chegue ao processo de escrita, é preciso que o adulto leia para ela, ou seja, em primeiro lugar a leitura deve estar a cargo dos familiares (pais, irmãos, avós, tios etc) e, posteriormente, na escola, é preciso que os professores leiam para elas. Durante muito tempo, os métodos de alfabetização baseados em leitura de materiais que, por vezes, não eram significativos para as crianças acabavam por desperdiçar o tempo das crianças e fazer com que pensassem em leitura como uma atividade obrigatória da escola e não como uma atividade prazerosa. Dessa maneira, é preciso repensar a prática de leitura dentro da escola, como aponta Lerner (2002): “mostrar por que se lê, quais são os testos a que é pertinente recorrer para responder a certa necessidade ou interesse, e quais são mais úteis em relação a outros objetivos, mostrar qual é a modalidade de leitura mais adequada quando se persegue uma finalidade determinada, ou como pode contribuir para a compreensão de um texto o que já se sabe acerca de seu autor, ou do tema tratado... Ao ler para as crianças, o professor ‘ensina’ como se faz para ler.” Com base no que diz a autora, ao ler textos para as crianças, o professor orienta a leitura das histórias, no entanto, essa é uma atividade muito preocupante, pois, dependendo da forma e importância que o professor dá à ação determinará o futuro da leitura para as crianças e para o próprio professor. Como reforça a mesma autora: 33 “A leitura do professor é de particular importância (...) quando as crianças ainda não leem eficazmente por si mesmas. Durante esse período, o professor cria muitas e variadas situações nas quais lê diferentes tipos de texto. Quando se trata de uma história, por exemplo, cria um clima propício para desfrutar dele: propõe às crianças que se sentem a seu redor para que todos possam ver as imagens e o texto se assim o desejam; lê tentando criar emoção, intriga, suspensa, ou diversão (conforme o tipo de história escolhida); evita as interrupções que poderiam cortar o fio da história e, portanto, não faz perguntas para verificar se as crianças entendem, nem explica palavras supostamente difíceis; incentiva as crianças a seguir o fio do relato (sem se deter no significado particular de certos termos) e a apreciar a beleza daquelas passagens cuja forma foi especialmente cuidada pelo autor. Quando termina a historia, em vez de interrogar os alunos para saber o que compreenderam, prefere comentar suas próprias impressões – como faria qualquer leitor – e é a partir de seus comentários que se desencadeia uma animada conversa com as crianças sobre a mensagem que se pode inferir a partir do texto, sobre o que mais impressionou cada um sobre os personagens com que identificam ou os que lhes são estranhos, sobre o que elas teriam feito se houvessem tido que enfrentar uma situação similar ao conflito apresentado na história...” (LERNER, p. 95 e 96) Todas as crianças devem ter contato diário com momentos de leitura compartilhada e experimentar o encantamento diante do texto. É por meio da leitura compartilhada que ela irá desenvolver seus conhecimentos literários e ter contato com outras culturas, com histórias tradicionais e com as mais diversas formas de textos escritos. 34 Se a leitura diária é uma importante oportunidade de a criança participar do mundo que está a sua volta, a escrita é a representação dessa fala, tanto do professor quanto dos diversos materiais escolhidos por ele para ler. Assim, é possível verificar o que as crianças pensam a respeito da leitura e, agora, da escrita. Ao pensar nessas considerações sobre a escrita, vejamos o que diz Vygotsky (2002): “Até agora, a escrita ocupou um lugar muito estreito na prática escolar, em relação ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da criança. Ensina-se as crianças a desenhar letras e construir palavras com elas, mas não se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal modo a mecânica de ler o que está escrito, que acaba-se obscurecendo a linguagem escrita como tal.” (VYGOTSKY, p. 139) Tanto na leitura como na escrita cabe ao adulto introduzir tais práticas sociais no mundo das crianças. Diversos contextos criam oportunidades para que as crianças possam compartilhar, junto com os adultos, as possibilidades de leitura e escrita significativas. Assim, é importante pensar em atividades que permitam às crianças vivenciarem experiências as mais diversas com a leitura e a produção de textos, pois tanto uma como outra são formas de linguagem nas mais diversas práticas culturais presentes em todas as sociedades. PRÁTICA SOCIAL DA ESCRITA 35 É precisogarantir que a criança se aproprie da escrita e da leitura mas que isso tenha sentido e significado para sua vida, lembrando que a leitura não é só uma decodificação de sinais gráficos e nem a escrita é apenas a representação mecânica das palavras. Tanto uma quanto outra atividade se constituem na solidificação da cultura de um povo, de uma civilização. As duas é que compõem a verdadeira Literatura de um povo e só podemos falar em literatura quando possuímos documentos escritos ou impressos, o que equivale a dizer que a tradição oral acabará por se constituir em um elemento a parte da Literatura, como a concebemos e conhecemos. Além disso, tudo é folclore, ou material antropológico, ou conhecimentos esparsos, mas não se constitui em literatura. Portanto, a arte literária é a representação da cultura e da história de um povo e não em uma forma banal de entretenimento. Ela se constitui em uma forma de conhecer o mundo e os homens e tem a séria missão de transmitir a realidade a outras gerações e transformar o mundo. Assim, a palavra escrita e, posteriormente, a prática da leitura colaboram fundamentalmente para o desvendamento daquilo que o ser humano, conscientemente ou não, persegue durante toda a existência – a essência do ser. Se a vida de cada um corresponde a um continuo esforço de conhecimento e superação é por meio da leitura e da escrita que o ser humano irá se constituir naquilo que ele é, primordialmente. Para Marcuschi (2001): “o contínuo dos gêneros textuais distingue e correlaciona os 36 textos de cada modalidade (fala e escrita) quanto às estratégias de formulação que determinam o contínuo das características que produzem as variações das estruturas textuais-discursivas, seleções lexicais, estilo, grau de formalidade etc., que se dão num contínuo de variações, surgindo daí semelhanças e diferenças ao longo de contínuos sobrepostos” (p. 42) Assim, sendo, os gêneros textuais estabelecem uma relação entre fala e escrita pelas formulações textuais e discursivas e pelo escolha lexical, pelo estilo de cada autor e pelo grau de formalidade com que cada um escreve. Como representado na figura a seguir: 37 (M ar cu sc hi , 2 00 1, p .4 1) 38 Como vimos, durante muitos anos as sociedades foram regidas pela tradição oral, a escrita, na verdade, é algo relativamente novo para o ser humano. Entretanto, ela se constitui como elemento fundamental para que se preservem os textos. Para que se garanta o direito à educação, o desenvolvimento da língua escrita é fundamental, é ela que define o conhecimento contextualizado do aluno e suas interações entre os participantes do grupo. No dia a dia, é preciso que os professores descubram novas formas de criar, recriar, pesquisar, experimentar e avaliar constantemente seu trabalho, repensando seu fazer pedagógico. Segundo Almeida (2006): Há, na alfabetização, uma apropriação mais verdadeira no que se refere à posse das linguagens do mundo. O legítimo aqui é apoderar-se das mais diversas formas de linguagens para que, ao necessitar de uma ou mais delas, tem o escritor a oportunidade de resolver seus problemas. Quanto maior forem a intensidade e a frequência em relação àquilo que aqui estamos denominando linguagens, maiores serão as possibilidades de confluências, de sínteses, de conexões em torno do processo de escrita. A compreensão da alfabetização, enquanto processo de apropriação de diferentes linguagens: escrita, matemática, das ciências, das artes (plásticas) e do movimento (teatro e dança), sem esquecer 1.5 O DESENVOLVIMENTO DA LÍNGUA ESCRITA NA INFÂNCIA 39 as mídias interativas, terá como fundamento as concepções de conhecimento, da aprendizagem e do desenvolvimento pelo qual a criança segue rumo às conquistas. Assim, a alfabetização aborda, além da capacidade de ler e escrever, o domínio da arte e da ciência da escrita para o desenvolvimento biopsicossocial, visto que muitos elementos mecânicos entram nesse processo formal para o desenvolvimento motor que irá preparar a criança para o domínio da coordenação motora global e fina dentre outras características fundamentais para o registro das letras. Nesse contexto, é importante falarmos em letramento que aborda as capacidades de ler e escrever para informar, informar-se, compartilhar e ampliar o conhecimento, desenvolver a capacidade de interpretar e produzir diferentes textos. Por essa razão, a capacidade de apreender a leitura não se resume em apenas descobrir isto ou aquilo, mas conseguir utilizar-se das informações que recebe todos os dias para satisfazer suas dúvidas e inquietações. Para fundamentar nossas informações e amenizar nossas inquietações, vejamos o que quatro autores tem a dizer a respeito de escrita: Rosa Maria Torres: Há diferentes maneiras de ser piagetiano: desde os que propõem visões externas – alguns colocam você nessa posição – até os que têm posições mais diretivas quanto à educação da criança. Emilia Ferreiro: Discussões muito parecidas também aconteceram com a teoria de Piaget. Alguns correm 40 para os livros dele para buscar os estágios e, portanto, também procuram os estágios em meus livros: se a criança está em tal estágio posso fazer tal coisa; se está nesse outro, posso fazer outras e, antes que chegue nesse estágio, não posso fazer nada. E fazem a mesma coisa com a língua escrita: se está neste nível, posso introduzir texto; se não, não posso introduzi- lo. Em outras palavras, os estágios de Piaget também foram utilizados como indicadores de maturidade cognitiva para estabelecer o que a criança pode ou não aprender em certo momento. Aproveitaram muito os estágios para criar proibições, algo que Piaget nunca tentou fazer. Uma coisa é que a criança não possa fazer certo tipo de trabalho intelectual até certo momento, e outra que se proíba que entre em contato com objetos e problemas que desafiem suas possibilidades atuais. Levantei algumas proibições que a escola costumava fazer, como a proibição de abordar a língua escrita até que a criança “amadurecesse” (em termos de coordenação visuomotora, por exemplo). Então, interpretam-me: “Ah, você quer que aprendam antes”. Não, porque o que exponho tem a ver com a língua escrita como objeto e com os múltiplos objetos culturais nos quais e dentro dos quais existe a língua escrita. Um ambiente em que se possa aprender, que não proíba aprender, deve ter livros, deve deixar circular a informação sobre a língua escrita, mas é evidente que o ambiente por si mesmo não é o que alfabetiza. 41 Goldin: Não se trata simplesmente das letras postas em uma parede. Ferreiro: Tenho dito com frequência algo de que estou plenamente convencida: “A simples presença do objeto não garante conhecimento, mas a ausência do objeto garante desconhecimento”. Se eu quero que a criança comece a construir conhecimento sobre a língua escrita, esta tem de existir; se eu a proíbo, garanto que a criança não possa se fazer perguntas sobre esse objeto, porque o fiz desaparecer, pelo menos dentro da sala de aula. Se proíbo a língua escrita, crio um ambiente escolar no qual a escrita não tem nenhum lugar, ao passo que no ambiente urbano a escrita tem seu lugar; imponho que as educadoras funcionem como se não fossem pessoas alfabetizadas. Em outras palavras, crio uma situação completamente anômala. (Cultura escrita e educação.Conversas de Emília Ferreiro com José Antonio Castorina, Daniel Goldin e Rosa Maria Torres, Porto Alegre: Artmed, 2001. pág. 147-148) O desenvolvimento infantil está pautado nas condições de interação da criança com o meio, particularmente nos estudos desenvolvidos na perspectiva sociohistórica elaborada tendo como base os trabalhos de Vygotsky e Wallon, e ampliados, posteriormente, com o trabalho de Jorge Visca. 1.6 ASPECTOS LINGUÍSTICOS E COGNITIVOS 42 A criança nasce em condições de interagir com o meio e ela mesma éprodutora de conhecimento, de cultura e desenvolve sua própria identidade. Assim, é preciso considerar os aspectos linguísticos e cognitivos a fim de propiciar um ambiente que proporcione uma aprendizagem significativa. Quando pensamos no aspecto cognitivo do desenvolvimento da leitura e da escrita, temos que compreender a estrutura cognitiva que acompanha o ser humano. Desde que nasce, o ser humano passa a perceber o mundo no qual vive e, através das informações que recebe e com as quais interage, vai construindo os conhecimentos necessários para sua inter-relação com o mundo. Assim, o ato de educar, que começa a se processar no meio familiar, é a mediação que a criança faz para direcionar as informações adquiridas. Enquanto a psicologia se preocupa com o processo de compreensão, transformação e armazenamento das informações recebidas pelas crianças, a pedagogia estuda os processos de aprendizagem. Tal processo busca operar, agir, direcionar para um caminho a ser tomado pelo educando e se processa por meio da ação cognitiva, ou seja, pela busca do conhecimento pela interpretação, compreensão e intelecção das informações recebidas. A aprendizagem pode se processar de forma mecânica, isto é, as novas informações não estão concatenadas às já existentes, ou de forma significativa, ou seja, o novo conteúdo relaciona-se com as informações que a criança já possui. Esse processo cognitivo está relacionado ao conhecimento e às formas de conhecimento (inato/ natural, lúdico, familiar, escolar, religioso). ASPECTOS COGNITIVOS 43 No início do processo de alfabetização, o trabalho com a leitura e escrita deve ser realizado por meio de atividades orais como comentários, relatos, orientações, explicações e o acompanhamento do professor já que as crianças, nesse momento, apresentam noções diferenciadas sobre escrita. Pelo fato de alguns saberem mais sobre a escrita, é necessário retomar por meio de noções básicas, as várias situações em que a escrita é utilizada, os sinais próprios dessa linguagem, assim como o fato de que a escrita representa a fala. Depois de trabalhar as noções básicas é importante apresentar e sistematizar os elementos menores da escrita: as letras. É possível, ainda, apresentar as diferentes formas de escrita, maiúsculas, minúsculas, bastão e cursiva para que as crianças percebam que há diferentes formas de expressar o pensamento. Ao longo do tempo, elas irão estabelecer relações entre os tipos de alfabeto utilizados no dia a dia. É importante, ainda, apresentar diferentes materiais escritos: nome das crianças, revistas, embalagens, jornais, entre outros. A partir desses materiais escritos, a criança passa a “ler” os símbolos que as palavras representam. É muito comum as crianças conseguirem identificar diversos símbolos presentes no cotidiano como os logotipos e logomarcas. Ao tentar “ler” uma palavra, a criança usa de todos os conhecimentos que adquiriu em seu entorno. Com base nessas atividades de leitura é que a criança vai incorporando uma série de informações indispensáveis para decifrar, posteriormente, as palavras em seus diversos contextos. ASPECTOS LINGUÍSTICOS 44 Entretanto, é sempre bom lembrar às crianças que o segredo da alfabetização é a leitura. Logo, o trabalho do professor consiste em ajudar o aluno a decifrar a escrita, isto é, SABER LER. Saber escrever pode ser muito útil porém não determina a alfabetização de alguém, pois a pessoa pode reproduzir, de memória, uma série de palavras, sem saber lê-las. É nesse contexto que surge o analfabeto funcional, ou seja, aquela pessoa que consegue decodificar as letras sem compreender e interpretar o texto. O caso de Fabiana Fabiana, que se identifica como negra, tem 25 anos e está concluindo o curso de pedagogia em uma universidade federal, nasceu e ainda mora na periferia de uma cidade da região metropolitana de Recife. Hoje, a leitura e a escrita fazem parte de seu cotidiano: lê textos e faz trabalhos para as disciplinas do curso e, como bolsista de iniciação científica, precisa ler textos teóricos, coletar dados em arquivos e preparar textos para apresentação de trabalhos em eventos acadêmicos. Nessa atividade, também utiliza com frequência, o computador. Além disso, nas horas de lazer, gosta de ler revistas e histórias em quadrinhos. Embora de maneira esporádica, também lê romances. Em suas práticas de leitura, mesmo quando se trata de ler para o lazer, compreende melhor o que está escrito quando lê em voz alta. Para escrever, que considera uma prática difícil, segue em geral o ritmo da fala, esquecendo-se das vírgulas e pontos. Percebe-se, portanto, a presença de certa tensão – como é comum aos “novos leitores” – em sua relação com a cultura escrita. Exercícios 45 Como se deu, em sua trajetória familiar e de vida, a construção de sua relação com a leitura e a escrita? (...) Sua mãe, que a criou praticamente sozinha, é empregada doméstica, tem 55 anos e só frequentou a escola em um único período (uma aula para adultos) durante dois meses, quando tinha 18 anos. Na infância, nunca foi à escola, impedida por seu pai que, mesmo com uma escolaridade até a “admissão”, leitor de jornais e livros e dando aulas em sua própria casa, (...) no interior do Estado, não queria que as filhas mulheres aprendessem a ler e a escrever – poderiam usar a habilidade para se comunicar com os namorados. Sua mãe, por outro lado, não lia nem escrevia. Hoje, com muito esforço e dificuldade Drª. Maria José consegue, às vezes, escrever seu próprio nome – considera-se analfabeta. Não queria o mesmo “destino natural” para Fabiana e, obsessivamente, sempre disse que, quando tivesse um filho, ia colocá-lo na escola para que ele tivesse um futuro melhor. Fabiana cresceu ouvindo de sua mãe que um dia ela faria faculdade e, depois da faculdade prosseguiria; sabia que ainda existiam outras modalidades de estudo – embora não soubesse nomeá-las: já tinha ouvido falar em pessoas que foram estudar no exterior. Fabiana teve vários percalços em sua trajetória de escolarização. Com o esforço de sua mãe, que muitas vezes conseguia bolsa de estudos ou “pagava com sacrifício” as escolas, frequentou diversas pequenas instituições particulares (a exceção foi a frequência a uma escola confessional, de maior porte, onde foi alfabetizada) e teve uma única experiência em escola pública estadual que considera traumática: a falta de organização da escola, a ausência de professores a fez fazer novamente a mesma série quando voltou à rede particular. Nos dois últimos anos do 2º grau, um dos filhos dos ex-patrões de sua mãe, reconhecendo a potencialidade da menina e “querendo 46 ajudar”, matriculou-a em uma escola particular de grande porte e de reconhecida qualidade, principalmente para aprovar no vestibular. Recorda-se do sofrimento que marcou seu ingresso nessa escola: havia sido sempre considerada uma boa aluna nas etapas anteriores de escolarização nas pequenas escolas particulares que havia frequentado. Dessa vez, no entanto, passava o dia na escola, estudava muito, mas não conseguia acompanhar a turma. No 3º ano, fez cursinho ao mesmo tempo em que cursava o ensino regular, mas não passou no vestibular da Federal para o curso de jornalismo. No ano seguinte, depois de conversar com o professor de história e um dos sócios do cursinho, com quem tinha uma relação mais próxima, conseguiu permanecer na escola pagando uma taxa mínima. Dessa vez, passou no vestibular para jornalismo na Universidade Católica. Chegou a frequentar o curso durante dois meses, mas não pode continuar em razão da mensalidade. Na terceira vez em que tentou o vestibular, não fez cursinho, mas foi incentivada pelo mesmo professor a ver outras opções de curso e procurar novamente a Federal. Dessa vez, optou por um curso menos concorrido – pedagogia – e, finalmente, ingressou no ensino superior. Como se situa sua formação como leitora em sua históriade vida? Fabiana lembra-se, com bastante nitidez, de sua mãe pedindo, da cozinha, que lesse em voz alta as tarefas da escola – até os 7 anos, morou com sua mãe na casa dos patrões. Talvez por isso, ainda hoje prefira ler em voz alta: a prática da mãe a fez tornar a oralidade a principal mediação que a leva a se apropriar da escrita. Nesse ambiente, lembra-se de ter sempre visto muitos livros. Depois, em sua própria casa, onde morou o restante da infância, lembra-se da presença de poucos materiais de leitura. Até pelo menos o final da 4ª série, sua mãe também olhava, todos os dias, seu caderno, observando se estava limpo e se a letra estava “bonita”. Como o “mestre ignorante”, podia 47 não entender o significado exato daquilo que a filha aprendia, mas sabia que cumpria um papel importante. (...) Fabiana se lembra também de que, quando tinha aproximadamente 12 anos, um amigo da família trabalhava em uma biblioteca da prefeitura no distrito em que morava, facilitando o empréstimo de livros do acervo e também emprestando livros de sua própria coleção, em geral de clássicos da literatura brasileira. Lembra-se, ainda, de que quando estudava no cursinho, auxiliava algumas amigas, que não eram boas alunas, nas disciplinas em que tinha facilidade. Em troca, ganhava livros (romances e paradidáticos). Em toda a sua trajetória, atribui à escola apenas um papel indireto em sua formação como leitora. Apesar de ter lido muitos paradidáticos, recomendados pelos professores, não situa na escola a principal instância formadora do hábito de ler. Na sua experiência de escolarização, ler e prazer pareciam distintos. (GALVÃO, A. M. Leitura: algo que se transmite entre as gerações? In RIBEIRO, V.M.(org). Letramento no Brasil. São Paulo: Global, 2003, p. 143-145), Tendo lido a trajetória de Fabiana, responda: a) Quais os elementos da história de Fabiana que você considera que poderiam ter colaborado para o fracasso ou a exclusão escolar e para um menor envolvimento com os letramentos valorizados (leitura de clássicos)? b) Quais você acha que foram os fatores preponderantes para o sucesso final e a não exclusão de Fabiana? Você conhece outros casos assim? Comente. c) Quais os aspectos linguísticos e cognitivos que podem ser considerados nessa história? UNIDADE 2 Construtivismo e aquisição da linguagem escrita UNIDADE 2 Construtivismo e aquisição da linguagem escrita 51 “Somente o conhecimento de nossa natureza individual com suas limitações, como com seus recursos é que aumentamos a capacidade De sair de nós mesmos e colaborar com outra natureza individual. Consciência do eu individual é, por isso, um produto e uma condição de cooperação. J.Piaget Com base nas teorias piagetianas, Ferreiro e Teberosky, iniciaram, em 1974, um processo de investigação sobre a aquisição da língua escrita, dentro e fora do contexto escolar. A bibliografia existente sobre alfabetização, centrada na preocupação com o método, deixa de lado o objeto do conhecimento e sua natureza. Para abordar o tema “alfabetização”, utilizaram-se de uma relação triática que pode ser assim esquematizada: INTRODUÇÃO Quem ensina Quem aprende Objeto Do Conhecimento 52 Assim, temos de um lado o sistema de representação da linguagem com suas características específicas; de outro lado as concepções que tem acerca do objeto de quem ensina e, de um terceiro lado, as concepções sobre o objeto de quem aprende. Esclareceremos esses três pontos: Há duas formas diferentes de considerar a escrita: como código de transcrição gráfica de unidades sonoras ou como uma representação da linguagem. Dentro dos estudos linguísticos, e parte da consideração da escrita como representação da linguagem, as autoras afirmam que a criança, ao apropriar- se da escrita, reconstrói o sistema e reinventa os sistemas de números e letras para compreender-lhe a natureza e as regras de produção. Para chegar à escrita, a criança precisa responder a duas perguntas básicas: 1. O que a escrita representa? 2. Qual a estrutura dessa representação? Para quem ensina, é importante também a resposta que o professor dá a essas perguntas, porque a maneira como o professor encara a alfabetização e a escrita determina sua prática pedagógica. É imprescindível, para quem ensina, a compreensão da natureza da relação entre o real e a sua representação. Assim, 2.1 OBJETO DO CONHECIMENTO: A ESCRITA COMO SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO 53 em relação à linguagem escrita, depois de Saussure, estamos acostumados a pensar o signo linguístico como a união entre significante e significado. Mas o que a escrita representa: o significante? O significado? ambos? A diferença entre eles? A escrita do tipo alfabético busca representar as diferenças de significantes e as do tipo ideográfico marcam as diferenças de significado. No entanto, nenhum sistema é puro, da mesma forma como nenhuma escrita conseguiu representar, de forma completa, a natureza bifásica do signo. Nossa forma de encarar a escrita vai marcar nossa concepção de aprendizagem. Se virmos a escrita como transcrição, simples conversão das unidades sonoras em unidades gráficas, privilegiamos o significante, colocamos em primeiro lugar a discriminação viso-auditivo-motora e a preparação para a leitura será um trino de discriminações. A linguagem se 54 empobrece, é reduzida a uma série de sons e o pressuposto pedagógico será o seguinte: se não há dificuldade para discriminar formas auditivas e visuais, nem para desenha-las, não haverá dificuldade para ler. Entretanto, se virmos a escrita como compreensão do modo de construção, o falar adequadamente e o fazer discriminações perceptivas não significam compreender a natureza do sistema de representação. Assim, esta compreensão implica saber que, por exemplo, alguns elementos essenciais da língua oral não são expressos na escrita; que, na escrita alfabética, privilegiam-se semelhanças sonoras e não semelhanças de significado; que se introduzem diferenças na representação por conta das semelhanças conceituais. Aprendizagem – além de uma técnica é a apropriação de um novo objeto de conhecimento Ao se analisarem as práticas escolares, o que se percebe é que o processo de aprendizagem precisa ser controlado e a escola é a instituição social criada para exercer esse controle, portanto, a aprendizagem deve realizar-se nela. No entanto, a criança não precisa de permissão para começar a apreender pois ela constrói objetos complexos de conhecimento e a escrita é um deles. A construção de um objeto de conhecimento é muito mais do que mera coleta de informações, ela implica a construção de um esquema conceitual que permita interpretar dados prévios e novos, que permite processos de inteferências 55 de propriedades não observadas de um determinado objeto e a construção de novos objetos, há base do que se antecipou e foi verificado. O propósito de controlar a aprendizagem leva à determinação dos passos na progressão da aprendizagem, partindo do pressuposto de que “tudo que esta dentro da mente, esteve antes fora dela” e, a partir daí, as respostas são vistas como corretas e incorretas e algumas podem ser analisadas como estranhas ou diferentes. Piaget, por sua vez, fala em abandonar o ponto de vista adultocêntrico, o controle e deixar-se levar pela visão da criança, em termos de escrita isto representa aprender a compreender a produção escrita da criança e as concepções que esta escrita revela. Vejamos, então, o que Ferreiro (1992) tem a dizer a respeito: “O problema é que as crianças tendem espontaneamente a pensar, e toda proposta pedagógica que as obrigue a renunciar a compreender dificulta a aprendizagem. O problema é que a escrita é antes de tudo representação da linguagem, e tudo o que a afaste da linguagem, convertendo-a em uma sequência gráfica sem significado, de forma até a caracturalizá-la. Em última instância, não se está apresentandoà criança o real objeto de sua aprendizagem, mas um substituto caricaturesco. Por mais bem intencionados que sejam os manuais ou cartilhas, eles introduzem sempre um elemento de rigidez na aprendizagem, que dificulta a necessária adaptação às exigências individuais e grupais. Pelo simples fato de apresentar as folhas ordenadas, sugere uma ordem de apresentação (ainda que não o recomende), e como são produzidos em centros urbanos com capacidade econômica para fazê-los, é difícil que levem em conta variantes dialetais e regionais dentro de um mesmo país. (FERREIRO, p. 34 -35) 56 Na escrita como na leitura, cabe ao adulto orientar as crianças nessa prática social. Nesse contexto, os adultos podem e devem compartilhar a leitura e a escrita com as crianças solidificando a aprendizagem e destacando as diferenças presentes nas diversas regiões do país. Analisando produções espontâneas de crianças, na Argentina, Ferreiro e Teberosky descobriram que as crianças desenvolvem hipóteses acerca do código escrito e que seguem uma lógica coerente com seu desenvolvimento cognitivo. Assim, confirmaram o que se supunha sobre o desenvolvimento psicogenético: a. há uma série de passos ordenados para que se chegue à compreensão do sistema alfabético de escrita; b. cada passo caracteriza-se por esquemas conceituais específicos; c. esses esquemas implicam um processo construtivo, por assimilação; d. o resultado são construções originais, mas estranhas e até caóticas, aos nossos olhos; e. o desenvolvimento psicogenético preocupa-se com aspectos construtivos e não com aspectos gráficos da escrita infantil; 2.2 AS CONCEPÇÕES DAS CRIANÇAS A RESPEITO DO SISTEMA DE ESCRITA 57 f. tais aspectos construtivos tem a ver com o que a criança deseja representar e os meios que utiliza para criar a diferenciação entre as representações; g. esse processo de aquisição da escrita precede e excede os limites dos muros escolares; h. a ordem de progressão de condutas depende dos ritmos individuais e estes ritmos estão relacionados à quantidade de conhecimentos e contatos estabelecidos sobre a escrita e sua função social; i. o meio social em que a criança se insere é importante nesse aspecto; j. a criança desenvolve, no entanto, uma série de concepções que não podem ser atribuídas à influência direta do meio, mas a outras informações, relativas às convenções, cuja aquisição depende de informantes e que são socialmente transmitidas. Neste contexto, cabe questionar: como são essas construções originais das crianças? Como elas se processam? A que estão relacionadas? É necessário, em primeiro lugar, ter claro que as crianças elaboram ideias próprias a respeito do código escrito, como: há um mínimo necessário de letras para se ler (geralmente três); não é possível ler letras que se repetem e uma figura não pode ser lida (leem-se outras marcas). Para por em prática tais ideias em seus escritos, as crianças: 58 ■ fazem distinção entre desenhar e escrever; entre o figurativo (iconográfico) e o não-figurativo (escrita alfabético) e concebe a escrita como objeto substituto reconhecendo sua arbitrariedade, embora, muitas vezes, não cheguem ao convencional. ■ descobrem a relação som/grafia e, nesse contexto, estabelecem a fonetização da escrita. Atenta às propriedades sonoras, descobrem que as letras podem correspondem às sílabas e chegam até a descoberta dos fonemas e grafemas. É o grande salto qualitativo, quando conseguem resposta para sua primeira pergunta: o que a escrita representa? ■ dedicando-se a tarefa de grande esforço intelectual, elas fazem: I. diferenciação interfiguras: criação de modos sistemáticos de diferenciação entre uma escrita e a seguinte para garantir a diferenciação de interpretação. Use critérios qualitativos e quantitativos e a coordenação entre estes dois eixos é tão difícil quanto em qualquer atividade cognitiva; II. Diferenciação intrafiguras: estabelecimento de propriedades que um texto deve possuir para ser interpretável. Os critérios usados se expressam sobre o eixo quantitativo (mínimo de letras) e eixo qualitativo (variação de caracteres). 59 Analisando a evolução da escrita infantil, as pesquisadoras detectaram quatro estágios que marcam o curso do desenvolvimento da criança no processo de aquisição da lectoescrita. O resultado dessas pesquisas influenciaram a maneira de se enxergar a criança no processo de aquisição da leitura e da escrita e, por consequência, no processo de alfabetização. Os quatro estágios ou períodos estão assim divididos: 1o Estágio pré-silábico Não há, ainda, a vinculação entre a representação escrita e a parte sonora da palavra emitida. A criança relaciona a escrita com o objeto (referente), por exemplo: coloca mais letras na palavra elefante do que na palavra borboleta, porque o elefante é maior que a borboleta. Também supõe que cada pessoa tenha um nome escrito diferente, mesmo que sejam oralmente iguais, já que se trata de pessoas diferentes. Em contrapartida, se a criança identifica e escreve o nome da mãe “LUCIA”, e lhe for solicitado que escreva a palavra “MÃE”, provavelmente ela escreverá “LÚCIA” pois representam a mesma pessoa. A criança não compreende, ainda, que a escrita representa a fala, o som das palavras e não o objeto a que ela se refere. Por essa razão, antes mesmo de supor a escrita como representação da fala, a criança fará várias tentativas de construir um sistema que seja semelhante à forma como o adulto registra a escrita. Assim, busca registrar as diferenças entre as palavras por meio de diferenças na quantidade, na posição e na variação dos caracteres empregados para poder escrevê-las. Ao ter contato com materiais escritos (livros, jornais, revistas, embalagens) a criança busca encontrar respostas que 60 satisfaçam suas perguntas principais: “o que a escrita representa?” e “qual a estrutura do modo de representação da escrita?”. Nesse contexto, a criança continua pensando e tentando adequar suas hipóteses às informações que recebe do mundo. Essas ideias levam a criança a formular uma nova hipótese, ao mesmo tempo falsa e necessária: a hipótese silábica. 2o Estágio Silábico Esta hipótese silábica é importante porque permite à criança obter um critério geral para regular as variações na quantidade de letras que devem ser escrita e, também, porque centra a atenção da criança nas variações sonoras entre as palavras. É nela que se dá a descoberta de que as representações escritas têm um vínculo preciso com a pauta sonora da palavra. Inicialmente essa correspondência se faz entre letra e sílaba. Nesse mesmo período, mas não forçosamente ao mesmo tempo, as letras passam a ter valores sonoros silábicos relativamente estáveis o que leva a estabelecer correspondência entre as partes semelhantes que se escrevem de forma semelhante. Exemplificando: para a palavra “GATO”, a criança registra “TO”, para a palavra “BORBOLETA” a criança escreve “OOTA”, pois, para ela, cada letra representa uma emissão sonora, ou seja, uma sílaba oral. Por essa razão, Ferreiro e Teberosky denominam esse tipo de escrita como “sílaba estrita”. Essa hipótese, como dissemos, é ao mesmo tempo falsa e necessária, portanto, cria suas contradições: a) entre o controle silábico e a quantidade mínima de letras necessárias para se “poder ler” (como fazer com monossílabos e dissílabos?) 61 b) entre a interpretação silábica e a escrita dos adultos, que tem sempre maior quantidade de letras. Assim, temos a questão da falsidade com relação à concepção adulta da escrita ou convenção social da língua. Supõe-se que cada letra representa uma sílaba, o que não chega a ser verdadeiro, mas não há dúvida que essa hipótese é muito mais verdadeira que as anteriores. Ela responde à primeira questão: o que a escrita representa? Isso representa o salto qualitativo dessa etapa: a descoberta de que a escrita representaos sons da fala. Essa compreensão de que há uma correspondência entre escrita e som, leva a estabelecer um critério. A criança não pode mais atribuir globalmente a palavra falada a uma escrita, o que impõem a necessidade de, tanto da fala quanto da escrita, fazer corresponder as duas séries de fragmentos. Nessa correlação, a criança supõe que a menor unidade da língua é a sílaba – um “erro” muito lógico se imaginarmos na impossibilidade de emitir o fonema isolado. Portanto, a hipótese silábica pode ser considerada falsa, mas necessária, pois os erros construtivos são o caminho em direção ao conhecimento objetivo. Em 1982, Emília Ferreiro fez uma pesquisa com 900 crianças que cursavam, pela primeira vez, a primeira série da escola pública em algumas cidades do México. Tal pesquisa mostrou que, aproximadamente, 85% da crianças estudadas aprenderam a ler utilizando-se da hipótese silábica, ou seja, a maioria das crianças precisou desse “erro construtivo” para chegar ao sistema alfabético. Com esses dados percebemos que é impossível chegar à compreensão do sistema alfabético da escrita sem descobrir que a escrita representa a fala. 62 No mesmo período, mas não necessariamente ao mesmo tempo, as letras podem começar a adquirir valores sonoros (silábicos). Isso leva a uma correspondência com o eixo qualitativo, isto é, as partes sonoras semelhantes entre as palavras começas a se exprimir por letras semelhantes. Isso, segundo Ferreira, gera suas formas particulares de conflito. Para entender esse conflito para as crianças, é preciso pensar o quanto é conflitante para ela confrontar-se com o fato de que ao escrever “PATO” (AO) a palavra ficou igual a “GATO”. Das pesquisas de Ferreiro e Teberosky, podemos ver uma criança que: a) passa a esforçar-se para compreender a escrita e relacioná-la com sons; b) começa a diferenciar o sistema de representação do desenho (iconográfico) do sistema de representação da escrita (alfabético); c) procura abordagens globais a fim de encontrar uma lógica do sistema, o que implica uma mudança de critérios visto que a escrita não representa o objeto a que se refere mas o desenho sonoro de seu nome; d) passa a atribuir a cada letra escrita uma sílaba oral; e) tal hipótese gera conflitos cognitivos tanto com as informações que recebe como das hipóteses em quantidade e variedade mínima de caracteres construídos pela criança. 63 3o Estágio Silábico-alfabético Os conflitos da hipótese silábica vão desestabilizando-a e o período silábico-alfabético reflete essa desestabilização. Ele marca a transição entre os esquemas abandonados e os novos a serem construídos. Na escola, geralmente se fala em crianças que “comem letras”, quando estão escrevendo de forma silábico- alfabética, no entanto, na visão psicogenética, elas ao contrário, estão acrescentando letras à escrita anterior que era silábica. Por essa razão as escritas silábica e silábico-alfabética tem sido consideradas pelos professores como patológicas visto que não dispunham de conhecimento para perceber seu caráter evolutivo. Dessa forma, foi necessária uma concepção dialética do processo de aprendizagem para que se pudesse compreender a ação da criança construindo seu conhecimento. Nesse contexto de aprendizagem, o professor é o mediador entre o conteúdo a ser aprendido e aquele que aprende. Com base nesse novo referencial o professor passa a perceber que a criança já possui um potencial criativo e que estabelece relações com o contexto de escrita. 4o Estágio Alfabético Quando a criança percebe que a sílaba pode ser reanalisável em elementos menores e ingressa na compreensão do sistema socialmente estabelecido, ela descobre novos problemas: a) quantitativo: não se obtém regularidade duplicando a quantidade de letras por sílaba, pois há sílabas com 1, 2, 3 e até 4 letras; 64 b) qualitativo: dificuldades ortográficas – letra que representam vários sons e mesmo som representado por letras diferentes. O professor precisa entender a hipótese com que a criança está trabalhando e, assim, pode ser possível problematiza- la por meio de informações adequadas que gerarão os avanços necessários para a compreensão do sistema alfabético. A criança tem um conhecimento prévio acerca da língua escrita antes mesmo de entrar na escola. 2.3 AS CONCEPÇÕES SOBRE A LÍNGUA SUBJACENTE À PRÁTICA DOCENTE A nossa compreensão dos problemas que as crianças se colocam e da sequência de soluções que elas consideram aceitáveis é, sem dúvida, essencial para poder ao menos imaginar um tipo de intervenção necessária e adequada à natureza do processo real de aprendizagem. Reduzir essa intervenção ao “método” utilizado é empobrecer nossa indagação e nosso papel. Assim, vale o questionamento: através de que práticas a criança é introduzida na língua escrita? Há práticas que levam a criança a supor que: 1. o conhecimento é algo que todos possuem; 65 2. o que há para conhecer faz parte de um universo fechado, estabelecido; 3. ela recebe o conhecimento de fora, passivamente. Convém refletirmos que nenhuma prática pedagógica é neutra e que, conforme se coloca a relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento e, conforme se caracterize a ambos, certas práticas aparecerão como normais ou aberrantes. Em relação à alfabetização, três dificuldade principais decorrem de nossas concepções: 1. nossa visão adultocêntrica (adulto alfabetizado); 2. nossa confusão entre desenhar letras e escrever; 3. redução que fazemos ao encarar a leitura como decodificação, centrando-nos nas letras e seu valor sonoro convencional. 2.4 ALGUMAS CONCEPÇÕES SUBJACENTES ÀS PRÁTICAS Há uma polêmica sobre a ordem da introdução da leitura e da escrita – o que se introduz primeiro, a leitura ou a escrita? As duas ao mesmo tempo? Tal polêmica carece de sentido quando se sabe que a alfabetização é um trabalho de compreensão da estrutura do sistema de escrita e que, para 66 chegar a compreender a criança realiza tanto atividades de interpretação quanto de produção. Outra polêmica que surge diz respeito a ordem de apresentação das letras ou palavras – isso implica uma gradação do “fácil” para o “difícil”, mas, na realidade, tal gradação não existe. A criança, no ambiente em que vive, está sujeita a todo tipo de escritura e com multiplicidade de informantes e informações. Dessa forma, ela utiliza esta variedade de informações, às vezes desordenadas, de forma semelhante à que utilizou para aprender a falar. As práticas pedagógicas escolares afastam-se das ideias subjacentes de que artigos, monossílabos e dissílabos, por exemplo, são fáceis de aprender. Quando nos referimos aos profissionais, estamos relacionando todas as pessoas com quem a criança mantém contato dentro do ambiente no qual se processa a educação. É importante lembrar que “educação” vai além dos muros da escola, ela abrange todos os espaços nos quais as crianças atuam e das quais participam. Aspectos a considerar: a) o professor não é o único que sabe ler e escrever na classe – cada um o faz a seu nível; 2.5 ALGUNS ASPECTOS AOS QUAIS OS PROFISSIONAIS LIGADOS À EDUCAÇÃO DEVEM ESTAR ALERTA 67 b) não supervalorizar a capacidade da criança, supondo que, para ela, a escrita remete, de forma óbvia e natural à linguagem – a criança está, às vezes, longe de descobrir sua natureza fonética; c) não subestimar a capacidade da criança de compreender e de seus conhecimentos, empobrecendo o trabalho com cópia e sonorização de grafemas em prejuízo do significado; d) não desvalorize seus esforços para compreender a lei do sistema de escrita, tratando suas produções como “rabiscos”; e) avaliar os processos tendo em vista as intenções e não apenas como certo ou errado do ponto de vista da gramática; f) os problemas que a criança enfrenta são mais do que a classificação de simples/complexo faz supor,mas são, também, problemas que ela resolvede forma coerente e não aleatória; g) procurar utilizar a língua escrita em contextos sociais de uso e não de forma descontextualizada como tem sido feito nas escolas; h) deixar entrar e sair para buscar informações extraescolares disponíveis, com todas as consequências disso; i) as crianças não alfabetizadas contribuem na própria alfabetização e na dos companheiros, quando a discussão 68 a respeito da representação escrita da linguagem se torna prática escolar; j) é preciso fazer distinção entre o que é aprendido (dentro e fora da escola) e o que é ensinado; k) ao nos dirigirmos somente às crianças que compartilham nossos conhecimentos, estamos deixando de lado, ou condenando ao fracasso, grande parte da população infantil estacionada em nível anterior a esta evolução. 2.6 ALGUMAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS A mudança que se faz necessária não depende de novos métodos, testes, técnicas ou materiais. É preciso reanalisar as práticas de introdução da língua escrita, tratando de ver os pressupostos subjacentes a elas e até que ponto são seletivas e/ ou deformantes de qualquer proposta inovadora. O professor é importante e insubstituível e seu papel é o de criar condições para que a criança descubra por si mesma o sistema alfabético, mas para isso, terá que adaptar seu ponto de vista de adulto alfabetizado ao ponto de vista da criança. A transformação dessas práticas é realmente difícil, já que obriga a redefinir o papel do professor e a dinâmica das relações sociais dentro e fora da sala de aula. Contudo, não se pode concluir que o professor seja mero espectador de um processo espontâneo, seu papel é fundamental na construção do conhecimento da criança. a) Como criar uma forma de escutar, regularmente, a leitura de cada criança, de um texto escolhido e preparado para ela, para investigar sobre o seu processo e mapear as questões que fazem parte do mesmo? b) Quais as interrelações entre os processos de leitura e de escrita depois que a criança já está lendo e escrevendo? c)Que ligações (conexões) a criança usa para estruturar seu texto, sua fala? Qual o fio que estrutura o discurso da criança? A partir dessa estrutura, como se estabelece a aquisição da escrita? Exercícios
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