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1 Como as Travestis eram vistas nos filmes da boca do lixo: o caso de “O Sexo dos Anormais” Dionys Melo dos Santos 1 Esse artigo toma por base o projeto de iniciação científica homônimo, orientado pelo Profº Dr. Jorge Leite Junior - membro do Programa de Pós Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Esse artigo buscará problematizar através da interpretação sociológica a representação das travestis e transexuais no ciclo cinematográfico da Boca do Lixo partindo da análise das imagens que compõe o enredo do filme Sexo dos Anormais. ENTRANDO PELA BOCA Sentada no divã do Doutor Daniel, um psiquiatra, Jéssica começa a recordar sua história - a moça sentada antes era Zezinho, menino que cresceu sem pai no meio rural acompanhado da mãe e de seu irmão mais velho. A bela se encontrava internada na clínica do Doutor e sua esposa Cleide, na companhia de Mirian (personagem feminina com traços de ninfomania), aconselhada a experimentar os cuidados e métodos de tratamento ali ofertado por sua amiga Tônia (ex-paciente que protagoniza algumas cenas de voyeurismo junto ao seu cônjuge durante a película). O breve parágrafo acima sobre a personagem Jéssica – interpretada pela artista assumidamente travesti Claudia Wonder, ícone da cena “underground” paulistana dos anos 80, faz parte do roteiro de Sexo dos Anormais, filme gravado em 1984 e lançado no eixo Rio-São Paulo durante o emblemático ano de 1985 2 , dentro daquilo que ficou conhecido como uma fase distinta dentro do ciclo boca do lixo (ABREU ,2002), como dispõe Nuno César Abreu em relação ao cinema paulista produzido nas décadas de 70/80, popularmente denominado “pornochanchada”. Reconhecendo os limites de pensar essas categorizações, que buscam delimitar um tempo/espaço específico, de forma muito rígida, ressalto que o fundamental é a 1 Graduando em Ciências Sociais (UFSCar), estudante Erasmus no Departamento de Ciências Sociais, Politicas e do Território da Universidade de Aveiro (UA-PT) 2 Em 8 de março de 1985 o Congresso Nacional do Brasil aprova a emenda constitucional que estabelece eleições diretas pra Presidente, Governador e Prefeitos das capitais em dois turnos 2 caracterização entre os autores que fizeram da boca objeto de reflexão 3 , dos anos 80 como um momento especial dentro do cinema “pornográfico” 4 nacional, diferenciação esta em muito marcada pela introdução/produção de cenas de sexo explícito. O início da década de 80 é um momento de transição para o país, a lei de anistia promulgada em 1979 deu indícios mais claros sobre o cansaço do regime ditatorial militar, vigente desde 1964. Momento de transição para a pátria, momento de transição para o próprio cinema produzido na Boca, o qual começa a perder território com a gradual abertura e a presença cada vez mais forte de filmes estrangeiros dentro do mercado nacional 5 . Segundo os relatos coletados no trabalho riquíssimo de Denise Godinho e Hugo Moura (2006), foi ainda numa tarde do verão do ano de 1979 que motivado por uma reportagem na famosa (pelo menos até aquele momento) revista Manchete sobre um filme nipônico com cenas de sexo explícito que chegaria ao Brasil em breve que serviu de motor, Raffaele Rossi 6 foi impulsionado a inserir uma cena pornô em Boneca Cobiçada (valendo-se de um truque de luz que disfarça a penetração do ator Oásias Minniti em Vânia Bonier). A filmagem, feita à contraluz, pouco mostrava e deixava a cena subentendida. Apesar de implícita, essa pode ser considerada a primeira cena de sexo explicito do cinema brasileiro. Para alivio de Rossi, Boneca cobiçada estreou em junho de 1980, oito meses depois do filme japonês entrar no país (GODINHO, D; MOURA, H, 2012:17) 7 3 Ver também Díaz- Benítez (2010) e Seligman(2003). 4 Adoto nesse artigo uma perspectiva critica em relação à dicotomia erotismo/pornografia, no sentido das preposições colocadas em Leite Jr (2006): se realmente for possível distinguir o erótico do pornográfico, no limite, para que/quem servira essa distinção de certo modo tão subjetiva? 5 Gostaria de apontar que a criação em 1964 através do Decreto- lei nº 43 do Instituto Nacional de Cinema (INC) e sua politicas protecionistas que visavam o fomento do cinema nacional foi um importante ponto de apoio para o cinema da boca prosperar, como por exemplo na questão de reservas de certa quantidade de salas à filmes nacionais: no inicio dos anos 70 os cinemas brasileiros encontraram-se obrigados a respeitar uma espécie de cota de filmes brasileiros tendo as salas por obrigação exibir 140 filmes nacionais por ano. Não atoa que a partir do fechamento do INC em 1975 é possível perceber uma perda de força gradativa do cinema produzido na Boca do lixo. 6 Imigrante italiano e importante diretor que chega ao Brasil em 1954 com 16 anos 7 Importante ressaltar que o cenário brasileiro dos anos 70 é marcado pela forte atuação da censura que produzia alguns fenômenos, como no caso do Brasil: a diferença de quase dez anos 3 O famigerado filme japonês que chega ao país, ainda no ano de 1979, anunciado na programação da Mostra Internacional de Cinema se tratava do clássico, e para muitas vozes uma obra de arte do diretor Nagisa Oshima: O império dos sentidos. 8 O próprio Raffaele esteve em uma dessas sessões da qual apesar de ressaltar a importância da iniciativa corajosa cinematográfica chegou a conclusão de que não era o que ele esperava, disposto a produzir um filme em que o sexo apareça como um elemento excitante. Os elementos até aqui apontados vão caracterizando esse momento ímpar da sociedade brasileira, mas também do cinema erótico nacional onde se começa a perceber uma alteração na linguagem visual daquele tipo de cinema que ficou conhecido como “pornochanchada”- onde por muitas vezes a insinuação acompanhada da nudez eram o fio condutor, no limite um soft core genuinamente brasileiro. A intensificação dos instantes de ato sexual, os closes mais fechados nas partes genitais e o protagonismo final dos momentos de ejaculação masculina fazem-se sentir cada vez mais nas películas lançadas sob o termo guarda-chuva que pode ser considerada a palavra pornochanchada. Coisas Eróticas de Raffaele Rossi, lançado em 1982, é uma espécie de consenso quando buscamos um ponto inicial de uma fase mais hard core, utilizando termos mais próximos da oposição soft/hard utilizada por Seligman (2003). ADULTÉRIO À BRASILEIRA: NOTAS SOBRE A PORNOCHANCHADA. Em seu artigo “Um certo ar de sensualidade: o caso da pornochanchada no cinema brasileiro”, Flávia Seligman ressalta a ascensão da pornochanchada nos anos 70 ( atingindo o seu momento de apogeu) em relação ao contexto mundial como uma adequação às demandas oriundas da revolução sexual, adequando-se assim ao mercado na exibição de cenas de sexo explicito nas salas de cinema nacionais, o icônico Garganta profunda, de 1972, revolucionou o cinema estadunidense impulsionando outras produções nessa direção durante a década. Durante o mesmo período no Brasil qualquer musica, jornal, peça teatral ou filme que incitasse um interpretação politica sobre o cenário nacional, caía no corte impiedoso da censura. “ A nudez, por sua vez, servia como uma via de escape. Enquanto as pessoas estivessem se masturbando nos cinemas, não explodiriam bombas pelas cidades. Embora antirrevolucionário, o nu ainda era o guardião dos maus costumes e por isso deveria ser castigado.” (GODINHO, D; MOURA, H, 2012: 16). 8 Ambientado em 1936, o filme conta a historia de um amor possessivo deuma ex- prostituta que vai trabalhar como empregada numa casa onde vive um homem solitário e sexualmente atormentado. Enredo esse baseado em um fato real acontecido pouco antes de o Japão entrar na II Guerra Mundial. 4 de consumo, explorando a nova vertente do erotismo e da sexualidade que ganhava espaço no mundo ocidental muito a partir das torções inseridas pela geração beat (mas não só), num primeiro instante ainda durante a década de 50, e os movimentos de contracultura dos anos 60 9 . Entretanto é preciso atentar para a especificidade do cenário social brasileiro nesse período. Apenas como fato ilustrativo dessas nuances e da tenaz censura moral que pairava, é durante a década de 60 que ocorre a Marcha da Família com Deus pela Liberdade , especificamente em 1964. Entendendo a pornochanchada como um ciclo a autora subdivide este em dois: a) um primeiro momento caracterizado pela dissimulação presente já mesmo nos títulos dos filmes, geralmente compostos por jogos de palavras como, por exemplo, Cada um dá o que tem lançado em 1975. A insinuação é um dos elementos centrais nesse momento. Seligman (2003) nomeia esse primeiro instante com o termo “soft core”, tendo esse período por início localizado na transição da década de 1960 para os anos 70 se estendendo até o inicio dos anos 80. b) num segundo momento a presença do sexo explícito já é sentida, a dissimulação se ausenta até mesmo dos títulos, tornando-os mais claros e diretos, como por exemplo, Gozo Alucinante de 1985. Esse segundo momento nomeado pela autora como “Hard Core” inicia-se com os primeiros anos da década de 80 prosseguindo até o seu final. Seligman (2004) ressalta que na metade dos anos sessenta, após o inicio da ditadura militar brasileira surge um gênero de comedias cinematográficas que se tornariam grandes sucessos de publico no Brasil, influenciadas pela tradição das comedias eróticas italianas (NASCIMENTO 2013) A comédia erótica é um subgênero da comédia. Comercialmente, foi um casamento que deu certo. Parece ter sido na Itália onde esse tipo de filme se destacou, a partir de 1965/1967. Provavelmente suas fontes tenham sido as comédias de costumes da década de 1950 e meados de 1960, de grande sucesso popular. Na Itália, a comédia foi um gênero muito forte, durante e logo após a efervescência do neorrealismo. Esse movimento projetou a Itália no cenário mundial, a partir de 1945, com filmes rodados em locações naturais (fora de estúdio), que tematizavam questões políticas e sociais e protagonizados por atores e atrizes não profissionais (em boa parte dos filmes).(NASCIMENTO, 2013:3) 9 Para mais ver Adelman (2009) 5 Adulterio all’italiana 10 , comédia produzida em 1966 por Pasquele Festa Campanile, foi lançado no Brasil em 15 de janeiro de 1967. Interessante retomar essa data quando temos em mente que em 1969 seriam realizados dois dos principais títulos do que se popularizaria como pornochanchada: Adultério à Brasileira, de Pedro Carlos Rovai, e Os paqueras, de Reginaldo Farias que segundo Fernão Ramos: “são típicos exemplares das primeiras comedias eróticas, caracterizadas por certos cuidados na elaboração(...) São também êxitos comercias, superando a marca de um milhão de espectadores.”(FERNÃO RAMOS apud SELIGMAN, 2004:2). Algumas características dessas comedias eróticas italianas penso que também podem ser verificadas nas produções de pornochanchada brasileira da década de 70, como por exemplo, a divisão dos filmes em episódios dando maior dinamismo a trama e que no aspecto comercial não cansava o publico, outro aspecto diz respeito aos cartazes de divulgação dos filmes que continham um padrão detectável : elaborado pela técnica do desenho trazia em primeiro plano mulheres seminuas rodeadas por uma situação cômica na maioria das vezes, além da diversidade de temas que essas películas abordam. As comédias eróticas inspiraram produtores brasileiros a seguir esse modelo de histórias picantes recheadas de erotismo(SIMÕES, 1984: 8-11). Essa influência, aliada a outros fatores, como o legado da chanchada, resultaria na produção do gênero Pornochanchada. A pornochanchada, que “bebeu muita água na fonte” da comédia erótica italiana, com a mesma receita de unir humor e erotismo, dominou o cenário do cinema brasileiro na década de 1970 com centenas de filmes de sucesso, com milhões de espectadores. Sirvam de exemplos: Como é boa a nossa empregada (1973), de Victor di Mello e Ismar Porto, e O bem dotado homem de Itu (1978), de José Miziara. Surgindo com a produção do Rio de Janeiro, na transição da década de 1960 para 1970, em filmes como Os paqueras (1969), de Reginaldo Farias, a pornochanchada se consolidou em São Paulo, na Boca do Lixo, onde se desenvolveu uma verdadeira indústria de cinema erótico no Brasil (ABREU, 2006).(NASCIMENTO, 2013: 13-14) Segundo Seligman (2004) e Vasconcellos (1986), a comedia seria uma das principais formas do drama , que foca na critica e a correção através da deformação e do ridículo cujo efeito principal é provocar o riso, considerada algo menor, popularesco quando comparada a tragédia, enquanto gênero, pelo senso comum e boa parte da academia. “O riso consiste também em uma certa catarse e implica em reconhecer o ridículo. Mas ainda, em reconhecer-se no ridículo, achando graça das situações que, 10 Filme que narra a historia de uma mulher que inventa um amante, após ver seu cônjuge nos bracos de sua amiga, apenas para deixa-lo mais apaixonado por ela. 6 vistas sem a sátira ou a paródia poderiam ser trágicas.”(SELIGMAN, 2004:3) assim comedia seria o equivalente a rir da falha, da desgraca, própria ou de outrem, rir da incapacidade, necessitando do publico para realizar-se em sua plenitude. Aristóteles, apontava na Poética para a questão da comedia trabalhar com a imitação de homens inferiores, ou seja aqueles que não fossem bravos guerreiros ou sábios letrados. Na comedia o enredo vai ser construído a partir de eventos cômicos que se ajustem a probabilidade, podendo ser também as impossibilidades e as ilogicidades, como fontes geradoras do riso. Levando em conta os elementos destacados do gênero comédia, todos se aplicam ao estudo da pornochanchada. Estes filmes se constituíam de histórias curtas, de fácil compreensão com personagens que beiravam o ridículo sendo este ridículo componente do cotidiano social da época. A apresentação do ridículo e os personagens cômicos faziam coisas consideradas moral e socialmente erradas, mostrando falhas e defeitos. O riso que nasce da constatação destas falhas e defeitos é chamado de “riso da zombaria”. A definição destas falhas e defeitos depende da estratificação moral de cada sociedade e também de um desajustamento em relação às proporções consideradas corretas, do ponto de vista da natureza humana. Porém, para provocar apenas o riso, e não só a comiseração e a tristeza, estes defeitos devem ser pequenos e sem conseqüências graves para seu protagonista ou para o grupo no qual ele está inserido. Quem ri considera-se superior àquele de quem está rindo, pois vê no outro um defeito que não possui.(SELIGMAN, 2004:4) Dentro da dramaturgia brasileira podemos observar a tradição da comédia e da comédia de costumes datadas a partir do trabalho de Martins Pena(1815-1848) que produziu vinte comedias em sua carreira seguindo a tradição da comedia brasileira na abordagem do cotidiano. A comedia de costumes ridiculariza os modos, costumes de um determinado grupo social ou de uma determinada sociedade. Além da prevalência dos elementos da comédia, Seligman (2004) ira identificar na pornochanchada a presença da farsa, enquanto gênero dramatúrgico. Genêro este caracterizado pela situação cômica exagerada baseada principalmenteem equívocos, ou seja, no limite é a atribuição de certa naturalidade a situações inverossímeis. A comedia de costumes, crítica humorística do cotidiano, aparece em quase todas as manifestações artísticas populares brasileiras. Dentro do cinema nacional, o movimento mais próximo a pornochanchada seria as chanchadas dos anos cinquenta 11 . Escapando a dicotomia “a favor/contra” ditadura militar, a pornochanchada é fruto de 11 As chanchadas formaram um momento impar no cine nacional, atigindo públicos excelentes, foram produzidas trezentas obras entre 1950 e 1960(DIAS, 1993:13) 7 uma confluência de fatores que permitiram ocupar uma faixa de mercado que estava descoberto. Encarada como um subgênero da comedia, a pornochanchada trouxe para os anos 60 e principalmente 70 os malandros 12 eternizados nas chanchadas populares dos anos 40 e 50. Preconceituosa com o sexo, utilizado apenas de forma jocosa, a pornochanchada não permitia desvios de forma nenhuma. O mais claro dos seus atos moralistas foi à caracterização dos personagens gays. Sempre eram estereotipados de forma a assumirem o papel do bobo na história. Ridicularizados, os filmes deixavam bem clara a sua postura rígida de não se confrontar com o código de ética pregado pela classe média. Personagens que não tivessem uma conduta moral aceita nos preceitos da sociedade não se davam bem no final. A insinuação ao sexo e as piadas de duplo sentido, chamadas como baixo corporal tinham também êxito absoluto junto ao público de classe média. Tanto é a prova que deu e dá certo que esta mesma fórmula utilizada na chanchada e na pornochanchada passou para os programas populares de televisão vistos até hoje com os mesmos ingredientes.(SELIGMAN, 2004:11) Seguindo o que Freitas (2004) aponta, não é objetivo desse texto discutir a qualidade desses filmes, em especial O sexo dos anormais, esse texto fornece uma visão sócio-historica dessas produções que dominaram as salas de cinema nacionais durante a década de 1970 e primeira metade dos anos 80. “Até mesmo o machismo, o racismo e outros ‘ismos’ de que são acusadas tais fitas(geralmente com razão) são indícios históricos para se refletir a mentalidade coletiva da época”(FREITAS, 2004:3). Creio ser importante introduzir, antes de prosseguirmos pela boca, a questão que para autores como Nuno Cesar Abreu e Inimá Simões: a introdução de cenas de sexo explicito descaracterizariam o que seria a pornochanchada em sua forma pura. Dentro dessa perspectiva o momento no qual o filme O sexo dos anormais , objeto central dessa analise se aloca, já caracterizaria uma fase distinta do que seria a pornochanchada, mas dentro do ciclo cinematográfico da boca do lixo paulistana. Assim esclareço o motivo pelo qual opto já no titulo por utilizar o termo “boca do lixo” em detrimento de “pornochanchada”. A boca do lixo pode ser encarada como uma metáfora geográfica relacionada ao que seria o “Quadrilátero do Pecado”, um ponto de encontro dos diretores brasileiros na 12 Personagem do malandro, oposta aquela do “País que vai pra frente” e do “Brasil feito por nós” do anos 70, não foi pensado para bater de frente com a politica de marketing dos militares. A figura do malandro é uma constante na sociedade brasileiro desde Oscarito, Grande Otelo, Moreira da Silva a Zé Carioca. No caso da pornochanchada esse malandro desse o morro e passa a habitar a zona sul do rio de janeiro tendo por essência a mesma: o charme e a aversão ao trabalho. Para mais ver Seligman (2004). 8 época, formado pela avenida Duque de Caxias, rua dos Timbiras, avenida São João e rua dos Protestantes, essa região localizada no conhecido bairro de Santa Ifigênia, no coração da cidade de São Paulo. Abrigava também as imediações como a rua do Triumpho. Denise Godinho e Hugo Moura (2012:26) ressaltam que “os filmes eram produzidos e exibidos na região por causa da proximidade com a linha ferroviária.” Facilitando o fluxo da parafernália cinematográfica, além do fato de que as distribuidoras Fox e Paramount se localizavam também no centro da cidade de São Paulo. Fazendo com que aos poucos aquele espaço geográfico se se transforma num polo mercadológico do ramo, a “Holywood paulistana”. Acredito que a presença de uma lógica econômica, a lógica de mercado, seja uma característica fundamental do cinema produzido na boca e que reflete na própria heterogeneidade tão característica desse ciclo cinematográfico. O depoimento de Ozualdo Candeias (cineasta brasileiro considerado um dos pioneiros do cinema marginal brasileiro 13 ), à publicação “30 Anos de Cinema Paulista”, em 1980, ensaia uma definição sobre o que seria o dito “cinema da boca”: Cinema da Boca não existe. O que existe é um cinema paulista que se estruturou dentro de uma realidade e dentro de uma necessidade de mercado, que tem uma característica perfeitamente diferente da do Rio. [...] A chamada Boca, rua do Triunfo, nada tem a ver com o nível das produções. A rua, esse local, esse quarteirão, tem uma função que pode ser profissional ou social, e cada um faz a fita que quer. A fita do Massaini não tem muito a ver com a fita, por exemplo, de um Custódio Gomes ou de um Wilson Rodrigues. E, no entanto, se diz que tudo é Boca. O Galante fazendo uma fita, se ele faz com Khouri é uma coisa, se ele vai fazer com um tal de Agenor é outra [...] Aqui há uma produção ligada às necessidades de mercado e mais ou menos assim dentro de uma linha industrial, que não depende do dinheiro do governo.(CANDEIAS apud ABREU, 2002:46) O QUE É TRANSEXUALIDADE? OU, BREVE DIALOGO COM BERENICE BENTO. Paralelamente, como aponta Berenice Bento (2008) em sua análise sobre o dispositivo transexual, é durante as décadas de 60 e 70 que começam a desenvolver estudos mais sistemáticos sobre a especificidade do “fenômeno transexual” expressão 13 É comum pensarmos o cinema produzido no Brasil durante a década de 60 e inicio dos anos 70 em termos de Cinema Novo (CN) e Cinema Marginal (CM). Não adentrarei na caracterização dessa dicotomia que apresentará muitos pontos de contato entre as duas correntes de cinema. O titulo do filme de Ozualdo Candeias “A Margem” foi importante na classificação desse movimento como “cinema marginal”. Para uma caracterização mais rica sobre o CM ver o trabalho de Ângela José (2007) sobre o cinema marginal, a estética do grotesco e globalização da miséria. 9 que dá nome ao livro do endocrinologista Harry Benjamin, publicado em 1966, e que fornecera as primeiras bases para se diagnosticar o “verdadeiro transexual”. Em 1969 ocorre em Londres o primeiro encontro da Associação Harry Benjamin que passaria a se chamar Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association (HBIGDA) em 1977. Cabe apontar que a transexualidade passa a ser considerada uma “disforia de gênero”, termo cunhado por John Money em 1973. É a HBIGDA que ira se legitimar nessa área produzindo um dos mais importantes documentos responsáveis pela normatização dos tratamentos: o State of Care (SOC). Além do SOC, outros dois documentos são reconhecidos como oficias na orientação do diagnostico: a) o Manual de Diagnostico e Estatística de Distúrbios Mentais (DSM) produzido pela Associação Psiquiátrica Americana (APA). b) o Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS). Nesses documentos há o pressuposto de que a transexualidade, por se tratar de uma doença, tem basicamente os mesmo sintomas em todas as partes do mundo. A patologização caminha de mãos dadas com a universalização. O desejo em produzir um diagnóstico diferenciado para transexuais anunciado precariamente na década de 1960, ganha concretude nos anos de1980. A sua inclusão no Código Internacional de Doenças, em 1980, foi um marco no processo de definição da transexualidade enquanto doença.(BENTO 2008:98) Há algumas diferenças entre esses três documentos , muito em função da matriz de pensamento operacionalizada neles. Berenice Bento (2008) aponta duas grandes influencias teóricas nesses documentos: o endocrinologista Harry Benjamin e o psicanalista freudiano Robert Stoller cujo seu livro “A experiência transexual” tornou- se referencia obrigatória para psicanalistas que buscam se aproximar da transexualidade. A ênfase da cirurgia como recurso terapêutico diferencia principalmente o SOC do DSM-IV 14 . Se o DSM-IV nos traz a operacionalização do pensamento de Robert Stoller, o SOC tem por fonte de inspiração Harry Benjamin, não fugindo em suas diversas atualizações do ponto inicial formulado por Benjamin de a transexualidade como tendo sua origem em alguma parte do corpo onde as cirurgias de transgenitalização são as únicas terapias possíveis. O CID-10 consiste num documento mais pratico e objetivo, no limite, um protocolo que apresenta as características gerais e 14 Encontra-se disponível o DSM-V, atualizado em 2013, não irei mobiliza-lo nesse paper. Pois o foco aqui é o trabalho de Berenice Bento (2008). 10 o código que deve estar presente em todos os diagnósticos. Entretanto como frisa Bento (2008:98-99): Nesses três documentos (DSM-IV, CID-10 e SOC) as pessoas transexuais são construídas como portadoras de um conjunto de indicadores comuns que as posicionam como transtornadas, independente das variáveis culturais, sociais e econômicas. Há algumas diferenças entre estes documentos. Para o SOC, “o transexual de verdade” tem como única alternativa para resolver seus “transtornos” ou “disforias”, as cirurgias de transgenitalização. Já no DSM-IV, a questão da cirurgia é apenas tangenciada, visto que sua preocupação principal está em apontar as manifestações do “transtorno” na infância, adolescência e fase adulta. O CID-10 é o documento mais objetivo: apresenta as características gerais e o código que deve estar presente em todos os diagnósticos referentes ao “transexualismo”. Na perspectiva de Bento (2008), a transexualidade revelaria as convenções sociais sobre o feminino e o masculino, das definições do que seria um “homem” ou “mulher” de verdade. Defendendo a tese de que a concepção que atrela gênero à genitália geraria necessariamente esses trânsitos identitários. Nessa perspectiva queer o foco de explicação sai do indivíduo e se atenta em especial às estruturas sociais, relações de poder. AS TRAVESTIS NA BOCA DO LIXO: CLOSE EM CLAUDIA WONDER Nesse contexto de várias mudanças dentro da experiência cinematográfica nacional, alterações na dinâmica política do país e modificações nas formas de encarar a experiência trans- intensificando a medicalização/patologização dessa- coincidentemente, ou não, observamos no cinema brasileiro da boca o acentuar de personagens trans( especialmente travestis) atuando em destaque nos filmes. Talvez a história de Jéssica, retratada em Sexo dos Anormais, seja a primeira dentro dessa nova tendência do cinema erótico nacional a apresentar a história de uma travesti (como é referida dentro do próprio filme) vivida por uma artista, ativista, travesti e com certo reconhecimento: Claudia Wonder 15 . 15 Ícone da cena paulistana dos anos 80, que se assumiu travesti em plena ditadura militar, prostituindo-se em Paris, onde, segundo relato dela em entrevista a professora Larissa Pelúcio (2006), foi a nona trans brasileira a atuar, é durante os anos da década de 80 que consolidou-se como artista “underground”, fazendo shows em boates paulistana e tendo na plateia artistas. Claudia Wonder faleceu em 2007 deixando muitos escritos, um livro publicado, varias entrevistas e um premiado documentário dirigido por Dácio Pinheiro. “Ressalto esses registros, porque Cláudia, lamentava o vazio de historia e memoria que existe entre e sobre as travestis, apontando a tragédia da aids como responsável por essa lacuna”(Pelucio 2006) 11 Segunda a própria Claudia Wonder em entrevista concedida a professora Larissa Pelúcio disponível no endereço eletrônico 16 do Núcleo de Pesquisa em Diferenças, Gênero e Sociedade (Quereres) foi a arte um dos caminhos terapêuticos para conseguir organizar sua sanidade e sexualidade: No meu caso foi a arte. Foi o modo que eu encontrei de mostrar que eu sou alguém, que eu existo, que eu sou uma pessoa. Um modo de eu me afirmar e de eu ser querido. Desde criança eu quis ser artista. Desde criança… porque desde criança que eu ouço assim “toma vergonha”, “Toma jeito de homem”. Então eu acho que assim, o aplauso era onde eu me sentia querido(...)Era meu modo de me mostrar que eu sabia fazer alguma coisa, da minha capacidade. “Olha, vocês me marginalizam, vocês me maltratam, vocês me destroem, mas eu faço isso. Eu se fazer isso”. Além disso, como justificativa pela escolha de Sexo dos Anormais como fio condutor, Alfredo Sternheim( diretor e roteirista) em sua biografia, lançada em 2009, deixa claro que o filme fora encomendado por Alfred Cohen, fundador da Paris Filmes e dono da distribuidora Brasil Filmes, empolgado pela farta mídia em cima de outra importante figura trans dos anos 80: Roberta Close, que no ano de 1984 estrelaria um histórico ensaio capa para a revista Playboy 17 . Para se ter noção do impacto desse primeiro ensaio, na edição de julho de 1984 que trazia Claudia Lucia na capa, no canto inferior esquerdo havia uma chamada anunciando fotos extras de Roberta Close atendendo a pedidos do publico, nesse mesmo ano na edição de outubro que continha Betty Faria na capa foi a vez de Thelma Lipp 18 debutar em um ensaio fotográfico.. Já em 1990, Roberta sairia na edição de março da mesma revista que tinha Luma de Oliveira no ensaio capa, que anunciava a exclusividade das fotos sobre o “novo corpo” de Roberta Close, após passar pelo processo de “redesignação sexual”. Acredito ter aqui um importante motor de arranque, um fato que pode nos ajudar a entender o que impulsionou o cinema da boca do lixo a produzir filmes com 16 Para mais acessar http://www.ufscar.br/cis/2010/11/entrevista-de-claudia-wonder-a-larissa- pelucio/. 17 Friso que é em maio de 1984 que sai o primeiro ensaio de Roberta Close na Playboy atingindo uma boa repercussão, vendendo milhares de revistas e esgotando-as em seus primeiros dias. Esse primeiro ensaio não continha fotos da genitália de Roberta, que passaria pelo processo atualmente chamado por “redesignação” no final da década de 80. 18 No começo dos anos de 1980, Thelma Lipp surgiu como uma resposta paulista a outro fenômeno do gênero: a linda Roberta Close. Thelma e Roberta disputaram, durante toda a década, capas de revistas de todo o Brasil. Uma fazia o tipo “mulherão fatal” (Roberta), enquanto a outra (Thelma) fazia o gênero “garotinha”. Nesse mesmo período Claudia Wonder despontava na cena underground paulistana estrelando shows ao lado do seu grupo Jardim das Delícias na famosa boate Madame Satã. http://www.ufscar.br/cis/2010/11/entrevista-de-claudia-wonder-a-larissa-pelucio/ http://www.ufscar.br/cis/2010/11/entrevista-de-claudia-wonder-a-larissa-pelucio/ 12 personagens trans em destaque em um curto período de tempo. Ainda na primeira metade da década de 80 uma verdadeira explosão de filmes com personagens travestis em seus enredos ganha espaço nos cinemas: Volúpia de mulher, O viciado em c... e Sexo dos Anormais tem todos 1984 como ano de produção, sendo que os dois últimos originariam continuações produzidas durante 1985. Há de se lembrar, como Abreu(2002) aponta, o cinema da boca seguia uma lógica de produção que não perdia de vista o mercado. Fator que por muitas vezes é utilizado para descredibilizá-lo e colocá-lo como algo menor na história do cinema nacional. Entretanto como já dizia o folheto promocional de O Pornógrafo também conhecido como “manifesto do cinema cafajeste”, escrito pelo diretor João Callegaro, o cinema da boca do lixo trata de abandonar as: “elucubrações intelectuais responsáveis por filmes ininteligíveis e atingir uma comunicação ativa com o grande público, aproveitando os 50 anos de mau cinema norte-americano devidamente absorvido pelo espectador”(CALLEGARO apud ABREU, 2002:41). Díaz-Benítez (2010:11-12) afirma que mesmo de modo marginal, a pornografia faz parte do nosso cotidiano, daquilo que convencionamos chamar cultura. Apontando a zona sensível em que essa se localiza, permanecendo entre discurso e juízos de valor, marcando uma tensão entre o nominável e o inominável, a pornografia estaria ali habitando as fronteiras movediças entre o que se considera “bom” ou “ruim”. A autora de “Nas redes do sexo” busca durante o livro compreender como o “dispositivo pornográfico” produz corpos e prazeres, ressaltando a atenção aos enunciados sobre gênero e sexualidade e posições de gênero elaborados por essa forma de representação visual. No limite, é uma preocupação latente desse artigo pensar como o pornô pode colocar em cena normatividades e transgressões. Penso ser fundamental apontar que a figura da travesti, do homem travestido de mulher, não é no todo um tema novo, principalmente a performance do homem travestido de mulher já aparecera décadas anteriores geralmente visando atingir finalidades cômicas, mas é em Sexo dos Anormais que temos essa figura, definida como travesti dentro do filme, enquanto protagonista, e consequentemente, protagonizando cenas de sexo explícito. É na busca em compreender o motor que possibilitou esse movimento que esse artigo vem se desenvolvendo. 13 A ideia de o cinema popular produzido na boca do lixo como uma importante ferramenta que nos ajuda a revelar, ou pelo menos, a compreender melhor, fornecendo elementos que nos permitem pintar em tons mais visíveis a realidade brasileira do momento 19 é uma das linhas que costuram esse texto. Função essa muitas vezes ofuscada por uma espécie de “estética do bom gosto nacional” que classifica comumente filmes que compões esse bloco temático como algo extremamente trivial, de menor importância. No limite, busco aqui compreender na intersecção de dois dispositivos, o pornográfico e o transexual: como foram se moldando os discursos sobre as figuras trans. Talvez a própria ficha cinematográfica, disponível na cinemateca brasileira, de indícios quando nos seus “termos descritores”, em relação ao caso específico de Sexo dos Anormais, apareçam palavras como: Deficiente mental, Sexo, Hospital, Psiquiatria e Travestismo 20 FOUCAULT E A TEORIA QUEER: O PREFIXO “PÓS” NÃO COMO PASSAGEM DE TEMPO CRONOLOGICO, MAS SIM ASSINALANDO O ENFRAQUECIMENTO DE ANTIGOS PARADIGMAS. A Teoria Queer é um daqueles saberes que emergiram no movimento histórico que Michel Foucault definiu como sendo a “insurgência dos saberes sujeitados”. Trata-se de um movimento em processo e negociação na esfera acadêmica constituída no modelo do pensamento disciplinar vinculado à formação profissional. Em outras palavras, a Teoria Queer só pode ser compreendida quando situada como parte de uma inflexão histórica recente na maneira de produzir conhecimento, aquela que vinculou o saber às demandas politicas de grupos historicamente subalternizados por suas diferenças de gênero, sexualidade e/ou raça. (MISKOLCI, 2014:43) Por “dispositivo” entendo aqui, levando ao limite, como um conjunto de discursos e práticas que criam incessantemente o “objeto” ao qual se referem. Espaço do dito, mas também do não dito. Arco e flecha ao mesmo tempo, um dispositivo é nas palavras de Foucault (2010:244): Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discurso, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, 19 Assim como Hall (2009:7),a concepção de ‘momento’ que utilizo aqui correspondo ao que antropólogo caribenho David Scott definiu como espaço problemático na sua obra inovadora Conscripts of Modernity. De acordo com David Scott, um ‘espaço problemático’ pode ser definido como “ um espaço discursivo historicamente constituído” pela confluência de elementos históricos e discursivos. 20 Segundo pesquisa previa realizada no acervo de fichas cinematográficas disponibilizado pelo Ministério da Cultura online no endereço http://www.cinemateca.gov.br/. http://www.cinemateca.gov.br/ 14 filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. Assim sendo, como defende Bento (2014), o dispositivo transexual seria um conjunto de saberes produzidos pelo “saber/poder” médico voltados para a patologização das experiências trans. Díaz- Benítez (2010) propõe, como já abordado anteriormente na introdução, a problematizar como o dispositivo pornográfico coloca em cena hierarquias e convenções sociais de gênero atenta aos enunciados e a posições elaboradas por essa representação visual. Creio ser incontornável apontar que em Foucault saber é encarado como uma forma de poder, se apoiando no método genealógico que consistiria no limite, na busca em compreender os contextos que criam o sujeito dando atenção aos discursos e suas condições de aparição, sem perder de vista o próprio processo de formação descontínua e irregular desses discursos. A grande lição que toma emprestada de Foucault aqui é essa busca em compreender os contextos que criam sujeitos. Ou seja, a perspectiva foucaultiana é marcada pela desnaturalização das ontologias, na sua abordagem não há ontologia sem história, apontando assim uma questão política, ou melhor, a existência de toda uma epistemologia que é política. No limite diria que Foucault vai operar, ou pelo menos buscar fazer uma desnaturalização das narrativas 21 e é isso que também faz parte das linhas que guiam esse projeto. A ciência e o discurso médico, em especial, trabalham com uma definição fechada, centrada na relação do sujeito com o corpo para diferenciar o que seria a transexualidade da experiência travesti, caracterizando a transexualidade como uma relação de aversão, no limite, ojeriza ao corpo e a genitália( o que não ocorreria quando pensamos as travestis). Entretanto acho fundamental marcar que as definições sobre travestis e transexuais são pautadas por um forte aspecto político 22 . Nesse sentido busco privilegiar a forma como os sujeitos aparecem nomeados em suas próprias interações, quando não busco colocá-los sob o manto do termo guarda-chuva “trans”, apesar de reconhecer os problemas que essa restrição pode gerar. 21 É um aspecto próprio ao dito Pós- Estruturalismo problematizar as próprias criações da ciência, seu aspecto construído, romper com os pressupostos. 22 Para mais ver Barbosa (2013), Bento (2004) e Leite Jr (2011). 15 A figura de Jéssica, personagem vivida por Cláudia Wonder em Sexo dos Anormais, é pensada aqui como um catalisador, um símbolo dos múltiplos vetores que incidem sobre as figuras trans e especialmente nesse processo de patologização da experiência, que busca jogar para o espaço asséptico dos consultórios as sexualidades ditas desviantes 23 . A trajetória de Jéssica dentro do enredo é pensada aqui como espécie de ilustração do processo de construção corporal e inserção social de sujeitos trans, emespecial travestis, na coletividade. CONCLUSÃO: JOAN W. SCOTT E INVISIBILIDADES Aceitando a impossibilidade de formular grandes torções nessa conclusão devido ao estagio que a pesquisa se encontra, retomo o trabalho de Scott (1998) no sentido de apontar enquanto “conclusão” a importância, assim como a autora, da apreensão da história das diferenças e de seu impulso crítico em molduras epistemológicas distintas da que parte ao apelo da experiência como prova incontestável, chamando atenção as violências epistemológicas que esses grupos subalternizados enfrentam 24 . A autora aponta a existência de regimes de visibilidade 25 que fomentam a necessidade da busca de fontes alternativas quando pensamos grupos marginalizados, pois a historia oficial 26 tende apagar certas partes, em um processo de automutilação marcado pela perspectiva de grupos hegemônicos no momento. Nesse sentido creio e defendo a importância de revisitar como as travestis eram vistas nos filmes da boca do lixo para uma melhor compreensão da atuação e inserção dessas na sociedade brasileira nesses 30 anos que se passaram desde o lançamento de Sexo dos Anormais. 23 Como dispõe Foucault(1988) 24 Já que a travestilidade não constitui uma experiência necessariamente evidente, 25 Em dialogo com o conceito foucaultiano de regime de verdade. 26 Por “historia oficial” entendo as variantes mais institucionalizadas de viés macroestrutural. 16 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, N. Boca do Lixo: cinemas e classes populares. Campinas: [s.n], 2002. ADELMAN, M. A voz e a escuta- encontros e desencontros entre teoria feminista e a sociologia contemporânea. Curitiba: Blucher, 2009. ARISTÓTELES. POÉTICA. Porto Alegre: Globo, 1966. BENEDETTI, M. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 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Mais especificamente, pretende-se investigar: a) Como a personagem travesti Jéssica aparece representada no enredo do filme Sexo dos Anormais, alinhada a quais discursos; b) as tecnologias e saberes- partindo em especial da análise crítica do cânone médico/psi em relação à transexualidade e travestilidade- mobilizados nesse trabalho de representação do outro, analisando as passagens mais representativas do filme sobre a discussão desenvolvida durante o trabalho. No limite o que busco por meio desse projeto é compreender através da análise sociológica como a mulher trans é inserida nesse filme e quais suas condições de aparecimento dentro do cinema da boca e como esse movimento pode nos ajudar a entender o próprio processo de inserção das figuras trans na sociedade brasileira da década de oitenta.
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