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1 
 
Como as Travestis eram vistas nos filmes da boca do lixo: o caso de “O Sexo dos 
Anormais” 
Dionys Melo dos Santos
1
 
Esse artigo toma por base o projeto de iniciação científica homônimo, orientado 
pelo Profº Dr. Jorge Leite Junior - membro do Programa de Pós Graduação em 
Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Esse artigo 
buscará problematizar através da interpretação sociológica a representação das travestis 
e transexuais no ciclo cinematográfico da Boca do Lixo partindo da análise das imagens 
que compõe o enredo do filme Sexo dos Anormais. 
ENTRANDO PELA BOCA 
Sentada no divã do Doutor Daniel, um psiquiatra, Jéssica começa a recordar sua 
história - a moça sentada antes era Zezinho, menino que cresceu sem pai no meio rural 
acompanhado da mãe e de seu irmão mais velho. A bela se encontrava internada na 
clínica do Doutor e sua esposa Cleide, na companhia de Mirian (personagem feminina 
com traços de ninfomania), aconselhada a experimentar os cuidados e métodos de 
tratamento ali ofertado por sua amiga Tônia (ex-paciente que protagoniza algumas 
cenas de voyeurismo junto ao seu cônjuge durante a película). 
 O breve parágrafo acima sobre a personagem Jéssica – interpretada pela artista 
assumidamente travesti Claudia Wonder, ícone da cena “underground” paulistana dos 
anos 80, faz parte do roteiro de Sexo dos Anormais, filme gravado em 1984 e lançado 
no eixo Rio-São Paulo durante o emblemático ano de 1985
2
, dentro daquilo que ficou 
conhecido como uma fase distinta dentro do ciclo boca do lixo (ABREU ,2002), como 
dispõe Nuno César Abreu em relação ao cinema paulista produzido nas décadas de 
70/80, popularmente denominado “pornochanchada”. 
Reconhecendo os limites de pensar essas categorizações, que buscam delimitar 
um tempo/espaço específico, de forma muito rígida, ressalto que o fundamental é a 
 
1
 Graduando em Ciências Sociais (UFSCar), estudante Erasmus no Departamento de Ciências 
Sociais, Politicas e do Território da Universidade de Aveiro (UA-PT) 
2
 Em 8 de março de 1985 o Congresso Nacional do Brasil aprova a emenda constitucional que 
estabelece eleições diretas pra Presidente, Governador e Prefeitos das capitais em dois turnos 
 
 
2 
 
caracterização entre os autores que fizeram da boca objeto de reflexão
3
, dos anos 80 
como um momento especial dentro do cinema “pornográfico” 
4
 nacional, diferenciação 
esta em muito marcada pela introdução/produção de cenas de sexo explícito. 
O início da década de 80 é um momento de transição para o país, a lei de anistia 
promulgada em 1979 deu indícios mais claros sobre o cansaço do regime ditatorial 
militar, vigente desde 1964. Momento de transição para a pátria, momento de transição 
para o próprio cinema produzido na Boca, o qual começa a perder território com a 
gradual abertura e a presença cada vez mais forte de filmes estrangeiros dentro do 
mercado nacional
5
. 
Segundo os relatos coletados no trabalho riquíssimo de Denise Godinho e Hugo 
Moura (2006), foi ainda numa tarde do verão do ano de 1979 que motivado por uma 
reportagem na famosa (pelo menos até aquele momento) revista Manchete sobre um 
filme nipônico com cenas de sexo explícito que chegaria ao Brasil em breve que serviu 
de motor, Raffaele Rossi
6
 foi impulsionado a inserir uma cena pornô em Boneca 
Cobiçada (valendo-se de um truque de luz que disfarça a penetração do ator Oásias 
Minniti em Vânia Bonier). 
 A filmagem, feita à contraluz, pouco mostrava e deixava a cena subentendida. 
Apesar de implícita, essa pode ser considerada a primeira cena de sexo explicito 
do cinema brasileiro. Para alivio de Rossi, Boneca cobiçada estreou em junho 
de 1980, oito meses depois do filme japonês entrar no país (GODINHO, D; 
MOURA, H, 2012:17)
7
 
 
3
 Ver também Díaz- Benítez (2010) e Seligman(2003). 
4
 Adoto nesse artigo uma perspectiva critica em relação à dicotomia erotismo/pornografia, no 
sentido das preposições colocadas em Leite Jr (2006): se realmente for possível distinguir o 
erótico do pornográfico, no limite, para que/quem servira essa distinção de certo modo tão 
subjetiva? 
5
 Gostaria de apontar que a criação em 1964 através do Decreto- lei nº 43 do Instituto Nacional 
de Cinema (INC) e sua politicas protecionistas que visavam o fomento do cinema nacional foi 
um importante ponto de apoio para o cinema da boca prosperar, como por exemplo na questão 
de reservas de certa quantidade de salas à filmes nacionais: no inicio dos anos 70 os cinemas 
brasileiros encontraram-se obrigados a respeitar uma espécie de cota de filmes brasileiros tendo 
as salas por obrigação exibir 140 filmes nacionais por ano. Não atoa que a partir do fechamento 
do INC em 1975 é possível perceber uma perda de força gradativa do cinema produzido na 
Boca do lixo. 
6
 Imigrante italiano e importante diretor que chega ao Brasil em 1954 com 16 anos 
7
 Importante ressaltar que o cenário brasileiro dos anos 70 é marcado pela forte atuação da 
censura que produzia alguns fenômenos, como no caso do Brasil: a diferença de quase dez anos 
 
 
3 
 
O famigerado filme japonês que chega ao país, ainda no ano de 1979, anunciado 
na programação da Mostra Internacional de Cinema se tratava do clássico, e para muitas 
vozes uma obra de arte do diretor Nagisa Oshima: O império dos sentidos.
8
 O próprio 
Raffaele esteve em uma dessas sessões da qual apesar de ressaltar a importância da 
iniciativa corajosa cinematográfica chegou a conclusão de que não era o que ele 
esperava, disposto a produzir um filme em que o sexo apareça como um elemento 
excitante. 
Os elementos até aqui apontados vão caracterizando esse momento ímpar da 
sociedade brasileira, mas também do cinema erótico nacional onde se começa a 
perceber uma alteração na linguagem visual daquele tipo de cinema que ficou conhecido 
como “pornochanchada”- onde por muitas vezes a insinuação acompanhada da nudez 
eram o fio condutor, no limite um soft core genuinamente brasileiro. A intensificação 
dos instantes de ato sexual, os closes mais fechados nas partes genitais e o protagonismo 
final dos momentos de ejaculação masculina fazem-se sentir cada vez mais nas películas 
lançadas sob o termo guarda-chuva que pode ser considerada a palavra pornochanchada. 
Coisas Eróticas de Raffaele Rossi, lançado em 1982, é uma espécie de consenso quando 
buscamos um ponto inicial de uma fase mais hard core, utilizando termos mais 
próximos da oposição soft/hard utilizada por Seligman (2003). 
ADULTÉRIO À BRASILEIRA: NOTAS SOBRE A PORNOCHANCHADA. 
Em seu artigo “Um certo ar de sensualidade: o caso da pornochanchada no 
cinema brasileiro”, Flávia Seligman ressalta a ascensão da pornochanchada nos anos 
70 ( atingindo o seu momento de apogeu) em relação ao contexto mundial como uma 
adequação às demandas oriundas da revolução sexual, adequando-se assim ao mercado 
 
na exibição de cenas de sexo explicito nas salas de cinema nacionais, o icônico Garganta 
profunda, de 1972, revolucionou o cinema estadunidense impulsionando outras produções nessa 
direção durante a década. Durante o mesmo período no Brasil qualquer musica, jornal, peça 
teatral ou filme que incitasse um interpretação politica sobre o cenário nacional, caía no corte 
impiedoso da censura. “ A nudez, por sua vez, servia como uma via de escape. Enquanto as 
pessoas estivessem se masturbando nos cinemas, não explodiriam bombas pelas cidades. 
Embora antirrevolucionário, o nu ainda era o guardião dos maus costumes e por isso deveria ser 
castigado.” (GODINHO, D; MOURA, H, 2012: 16). 
8
 Ambientado em 1936, o filme conta a historia de um amor possessivo deuma ex- prostituta 
que vai trabalhar como empregada numa casa onde vive um homem solitário e sexualmente 
atormentado. Enredo esse baseado em um fato real acontecido pouco antes de o Japão entrar na 
II Guerra Mundial. 
 
 
4 
 
de consumo, explorando a nova vertente do erotismo e da sexualidade que ganhava 
espaço no mundo ocidental muito a partir das torções inseridas pela geração beat (mas 
não só), num primeiro instante ainda durante a década de 50, e os movimentos de 
contracultura dos anos 60
9
. Entretanto é preciso atentar para a especificidade do cenário 
social brasileiro nesse período. Apenas como fato ilustrativo dessas nuances e da tenaz 
censura moral que pairava, é durante a década de 60 que ocorre a Marcha da Família 
com Deus pela Liberdade , especificamente em 1964. 
Entendendo a pornochanchada como um ciclo a autora subdivide este em dois: 
a) um primeiro momento caracterizado pela dissimulação presente já mesmo nos títulos 
dos filmes, geralmente compostos por jogos de palavras como, por exemplo, Cada um 
dá o que tem lançado em 1975. A insinuação é um dos elementos centrais nesse 
momento. Seligman (2003) nomeia esse primeiro instante com o termo “soft core”, 
tendo esse período por início localizado na transição da década de 1960 para os anos 70 
se estendendo até o inicio dos anos 80. b) num segundo momento a presença do sexo 
explícito já é sentida, a dissimulação se ausenta até mesmo dos títulos, tornando-os mais 
claros e diretos, como por exemplo, Gozo Alucinante de 1985. Esse segundo momento 
nomeado pela autora como “Hard Core” inicia-se com os primeiros anos da década de 
80 prosseguindo até o seu final. 
Seligman (2004) ressalta que na metade dos anos sessenta, após o inicio da 
ditadura militar brasileira surge um gênero de comedias cinematográficas que se 
tornariam grandes sucessos de publico no Brasil, influenciadas pela tradição das 
comedias eróticas italianas (NASCIMENTO 2013) 
A comédia erótica é um subgênero da comédia. Comercialmente, foi um 
casamento que deu certo. Parece ter sido na Itália onde esse tipo de filme se 
destacou, a partir de 1965/1967. Provavelmente suas fontes tenham sido as 
comédias de costumes da década de 1950 e meados de 1960, de grande sucesso 
popular. Na Itália, a comédia foi um gênero muito forte, durante e logo após a 
efervescência do neorrealismo. Esse movimento projetou a Itália no cenário 
mundial, a partir de 1945, com filmes rodados em locações naturais (fora de 
estúdio), que tematizavam questões políticas e sociais e protagonizados por 
atores e atrizes não profissionais (em boa parte dos filmes).(NASCIMENTO, 
2013:3) 
 
9
 Para mais ver Adelman (2009) 
 
 
5 
 
 Adulterio all’italiana
10
, comédia produzida em 1966 por Pasquele Festa 
Campanile, foi lançado no Brasil em 15 de janeiro de 1967. Interessante retomar essa 
data quando temos em mente que em 1969 seriam realizados dois dos principais títulos 
do que se popularizaria como pornochanchada: Adultério à Brasileira, de Pedro Carlos 
Rovai, e Os paqueras, de Reginaldo Farias que segundo Fernão Ramos: “são típicos 
exemplares das primeiras comedias eróticas, caracterizadas por certos cuidados na 
elaboração(...) São também êxitos comercias, superando a marca de um milhão de 
espectadores.”(FERNÃO RAMOS apud SELIGMAN, 2004:2). 
Algumas características dessas comedias eróticas italianas penso que também 
podem ser verificadas nas produções de pornochanchada brasileira da década de 70, 
como por exemplo, a divisão dos filmes em episódios dando maior dinamismo a trama e 
que no aspecto comercial não cansava o publico, outro aspecto diz respeito aos cartazes 
de divulgação dos filmes que continham um padrão detectável : elaborado pela técnica 
do desenho trazia em primeiro plano mulheres seminuas rodeadas por uma situação 
cômica na maioria das vezes, além da diversidade de temas que essas películas 
abordam. 
As comédias eróticas inspiraram produtores brasileiros a seguir esse modelo de 
histórias picantes recheadas de erotismo(SIMÕES, 1984: 8-11). Essa influência, 
aliada a outros fatores, como o legado da chanchada, resultaria na produção do 
gênero Pornochanchada. A pornochanchada, que “bebeu muita água na fonte” 
da comédia erótica italiana, com a mesma receita de unir humor e erotismo, 
dominou o cenário do cinema brasileiro na década de 1970 com centenas de 
filmes de sucesso, com milhões de espectadores. Sirvam de exemplos: Como é 
boa a nossa empregada (1973), de Victor di Mello e Ismar Porto, e O bem 
dotado homem de Itu (1978), de José Miziara. Surgindo com a produção do Rio 
de Janeiro, na transição da década de 1960 para 1970, em filmes como Os 
paqueras (1969), de Reginaldo Farias, a pornochanchada se consolidou em São 
Paulo, na Boca do Lixo, onde se desenvolveu uma verdadeira indústria de 
cinema erótico no Brasil (ABREU, 2006).(NASCIMENTO, 2013: 13-14) 
Segundo Seligman (2004) e Vasconcellos (1986), a comedia seria uma das 
principais formas do drama , que foca na critica e a correção através da deformação e 
do ridículo cujo efeito principal é provocar o riso, considerada algo menor, popularesco 
quando comparada a tragédia, enquanto gênero, pelo senso comum e boa parte da 
academia. “O riso consiste também em uma certa catarse e implica em reconhecer o 
ridículo. Mas ainda, em reconhecer-se no ridículo, achando graça das situações que, 
 
10
 Filme que narra a historia de uma mulher que inventa um amante, após ver seu cônjuge nos 
bracos de sua amiga, apenas para deixa-lo mais apaixonado por ela. 
 
 
6 
 
vistas sem a sátira ou a paródia poderiam ser trágicas.”(SELIGMAN, 2004:3) assim 
comedia seria o equivalente a rir da falha, da desgraca, própria ou de outrem, rir da 
incapacidade, necessitando do publico para realizar-se em sua plenitude. 
Aristóteles, apontava na Poética para a questão da comedia trabalhar com a 
imitação de homens inferiores, ou seja aqueles que não fossem bravos guerreiros ou 
sábios letrados. Na comedia o enredo vai ser construído a partir de eventos cômicos que 
se ajustem a probabilidade, podendo ser também as impossibilidades e as ilogicidades, 
como fontes geradoras do riso. 
Levando em conta os elementos destacados do gênero comédia, todos se 
aplicam ao estudo da pornochanchada. Estes filmes se constituíam de histórias 
curtas, de fácil compreensão com personagens que beiravam o ridículo sendo 
este ridículo componente do cotidiano social da época. A apresentação do 
ridículo e os personagens cômicos faziam coisas consideradas moral e 
socialmente erradas, mostrando falhas e defeitos. O riso que nasce da 
constatação destas falhas e defeitos é chamado de “riso da zombaria”. A 
definição destas falhas e defeitos depende da estratificação moral de cada 
sociedade e também de um desajustamento em relação às proporções 
consideradas corretas, do ponto de vista da natureza humana. Porém, para 
provocar apenas o riso, e não só a comiseração e a tristeza, estes defeitos devem 
ser pequenos e sem conseqüências graves para seu protagonista ou para o grupo 
no qual ele está inserido. Quem ri considera-se superior àquele de quem está 
rindo, pois vê no outro um defeito que não possui.(SELIGMAN, 2004:4) 
 Dentro da dramaturgia brasileira podemos observar a tradição da comédia e da 
comédia de costumes datadas a partir do trabalho de Martins Pena(1815-1848) que 
produziu vinte comedias em sua carreira seguindo a tradição da comedia brasileira na 
abordagem do cotidiano. A comedia de costumes ridiculariza os modos, costumes de 
um determinado grupo social ou de uma determinada sociedade. Além da prevalência 
dos elementos da comédia, Seligman (2004) ira identificar na pornochanchada a 
presença da farsa, enquanto gênero dramatúrgico. Genêro este caracterizado pela 
situação cômica exagerada baseada principalmenteem equívocos, ou seja, no limite é a 
atribuição de certa naturalidade a situações inverossímeis. 
 A comedia de costumes, crítica humorística do cotidiano, aparece em quase 
todas as manifestações artísticas populares brasileiras. Dentro do cinema nacional, o 
movimento mais próximo a pornochanchada seria as chanchadas dos anos cinquenta
11
. 
Escapando a dicotomia “a favor/contra” ditadura militar, a pornochanchada é fruto de 
 
11 As chanchadas formaram um momento impar no cine nacional, atigindo públicos excelentes, 
foram produzidas trezentas obras entre 1950 e 1960(DIAS, 1993:13) 
 
 
7 
 
uma confluência de fatores que permitiram ocupar uma faixa de mercado que estava 
descoberto. Encarada como um subgênero da comedia, a pornochanchada trouxe para os 
anos 60 e principalmente 70 os malandros
12
 eternizados nas chanchadas populares dos 
anos 40 e 50. 
Preconceituosa com o sexo, utilizado apenas de forma jocosa, a pornochanchada 
não permitia desvios de forma nenhuma. O mais claro dos seus atos moralistas 
foi à caracterização dos personagens gays. Sempre eram estereotipados de 
forma a assumirem o papel do bobo na história. Ridicularizados, os filmes 
deixavam bem clara a sua postura rígida de não se confrontar com o código de 
ética pregado pela classe média. Personagens que não tivessem uma conduta 
moral aceita nos preceitos da sociedade não se davam bem no final. A 
insinuação ao sexo e as piadas de duplo sentido, chamadas como baixo corporal 
tinham também êxito absoluto junto ao público de classe média. Tanto é a prova 
que deu e dá certo que esta mesma fórmula utilizada na chanchada e na 
pornochanchada passou para os programas populares de televisão vistos até hoje 
com os mesmos ingredientes.(SELIGMAN, 2004:11) 
 Seguindo o que Freitas (2004) aponta, não é objetivo desse texto discutir a 
qualidade desses filmes, em especial O sexo dos anormais, esse texto fornece uma visão 
sócio-historica dessas produções que dominaram as salas de cinema nacionais durante a 
década de 1970 e primeira metade dos anos 80. “Até mesmo o machismo, o racismo e 
outros ‘ismos’ de que são acusadas tais fitas(geralmente com razão) são indícios 
históricos para se refletir a mentalidade coletiva da época”(FREITAS, 2004:3). 
 Creio ser importante introduzir, antes de prosseguirmos pela boca, a questão que 
para autores como Nuno Cesar Abreu e Inimá Simões: a introdução de cenas de sexo 
explicito descaracterizariam o que seria a pornochanchada em sua forma pura. Dentro 
dessa perspectiva o momento no qual o filme O sexo dos anormais , objeto central dessa 
analise se aloca, já caracterizaria uma fase distinta do que seria a pornochanchada, mas 
dentro do ciclo cinematográfico da boca do lixo paulistana. Assim esclareço o motivo 
pelo qual opto já no titulo por utilizar o termo “boca do lixo” em detrimento de 
“pornochanchada”. 
A boca do lixo pode ser encarada como uma metáfora geográfica relacionada ao 
que seria o “Quadrilátero do Pecado”, um ponto de encontro dos diretores brasileiros na 
 
12
 Personagem do malandro, oposta aquela do “País que vai pra frente” e do “Brasil feito por 
nós” do anos 70, não foi pensado para bater de frente com a politica de marketing dos militares. 
A figura do malandro é uma constante na sociedade brasileiro desde Oscarito, Grande Otelo, 
Moreira da Silva a Zé Carioca. No caso da pornochanchada esse malandro desse o morro e 
passa a habitar a zona sul do rio de janeiro tendo por essência a mesma: o charme e a aversão ao 
trabalho. Para mais ver Seligman (2004). 
 
 
8 
 
época, formado pela avenida Duque de Caxias, rua dos Timbiras, avenida São João e 
rua dos Protestantes, essa região localizada no conhecido bairro de Santa Ifigênia, no 
coração da cidade de São Paulo. Abrigava também as imediações como a rua do 
Triumpho. Denise Godinho e Hugo Moura (2012:26) ressaltam que “os filmes eram 
produzidos e exibidos na região por causa da proximidade com a linha ferroviária.” 
Facilitando o fluxo da parafernália cinematográfica, além do fato de que as 
distribuidoras Fox e Paramount se localizavam também no centro da cidade de São 
Paulo. Fazendo com que aos poucos aquele espaço geográfico se se transforma num 
polo mercadológico do ramo, a “Holywood paulistana”. 
Acredito que a presença de uma lógica econômica, a lógica de mercado, seja 
uma característica fundamental do cinema produzido na boca e que reflete na própria 
heterogeneidade tão característica desse ciclo cinematográfico. O depoimento de 
Ozualdo Candeias (cineasta brasileiro considerado um dos pioneiros do cinema 
marginal brasileiro
13
), à publicação “30 Anos de Cinema Paulista”, em 1980, ensaia 
uma definição sobre o que seria o dito “cinema da boca”: 
Cinema da Boca não existe. O que existe é um cinema paulista que se estruturou 
dentro de uma realidade e dentro de uma necessidade de mercado, que tem uma 
característica perfeitamente diferente da do Rio. [...] A chamada Boca, rua do 
Triunfo, nada tem a ver com o nível das produções. A rua, esse local, esse 
quarteirão, tem uma função que pode ser profissional ou social, e cada um faz a 
fita que quer. A fita do Massaini não tem muito a ver com a fita, por exemplo, 
de um Custódio Gomes ou de um Wilson Rodrigues. E, no entanto, se diz que 
tudo é Boca. O Galante fazendo uma fita, se ele faz com Khouri é uma coisa, se 
ele vai fazer com um tal de Agenor é outra [...] Aqui há uma produção ligada às 
necessidades de mercado e mais ou menos assim dentro de uma linha industrial, 
que não depende do dinheiro do governo.(CANDEIAS apud ABREU, 2002:46) 
O QUE É TRANSEXUALIDADE? OU, BREVE DIALOGO COM BERENICE 
BENTO. 
Paralelamente, como aponta Berenice Bento (2008) em sua análise sobre o 
dispositivo transexual, é durante as décadas de 60 e 70 que começam a desenvolver 
estudos mais sistemáticos sobre a especificidade do “fenômeno transexual” expressão 
 
13
 É comum pensarmos o cinema produzido no Brasil durante a década de 60 e inicio dos anos 
70 em termos de Cinema Novo (CN) e Cinema Marginal (CM). Não adentrarei na 
caracterização dessa dicotomia que apresentará muitos pontos de contato entre as duas correntes 
de cinema. O titulo do filme de Ozualdo Candeias “A Margem” foi importante na classificação 
desse movimento como “cinema marginal”. Para uma caracterização mais rica sobre o CM ver o 
trabalho de Ângela José (2007) sobre o cinema marginal, a estética do grotesco e globalização 
da miséria. 
 
 
9 
 
que dá nome ao livro do endocrinologista Harry Benjamin, publicado em 1966, e que 
fornecera as primeiras bases para se diagnosticar o “verdadeiro transexual”. Em 1969 
ocorre em Londres o primeiro encontro da Associação Harry Benjamin que passaria a se 
chamar Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association (HBIGDA) em 
1977. Cabe apontar que a transexualidade passa a ser considerada uma “disforia de 
gênero”, termo cunhado por John Money em 1973. É a HBIGDA que ira se legitimar 
nessa área produzindo um dos mais importantes documentos responsáveis pela 
normatização dos tratamentos: o State of Care (SOC). 
Além do SOC, outros dois documentos são reconhecidos como oficias na 
orientação do diagnostico: a) o Manual de Diagnostico e Estatística de Distúrbios 
Mentais (DSM) produzido pela Associação Psiquiátrica Americana (APA). b) o Código 
Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS). 
Nesses documentos há o pressuposto de que a transexualidade, por se tratar de 
uma doença, tem basicamente os mesmo sintomas em todas as partes do mundo. 
A patologização caminha de mãos dadas com a universalização. O desejo em 
produzir um diagnóstico diferenciado para transexuais anunciado precariamente 
na década de 1960, ganha concretude nos anos de1980. A sua inclusão no 
Código Internacional de Doenças, em 1980, foi um marco no processo de 
definição da transexualidade enquanto doença.(BENTO 2008:98) 
 Há algumas diferenças entre esses três documentos , muito em função da matriz 
de pensamento operacionalizada neles. Berenice Bento (2008) aponta duas grandes 
influencias teóricas nesses documentos: o endocrinologista Harry Benjamin e o 
psicanalista freudiano Robert Stoller cujo seu livro “A experiência transexual” tornou-
se referencia obrigatória para psicanalistas que buscam se aproximar da transexualidade. 
A ênfase da cirurgia como recurso terapêutico diferencia principalmente o SOC do 
DSM-IV
14
. Se o DSM-IV nos traz a operacionalização do pensamento de Robert 
Stoller, o SOC tem por fonte de inspiração Harry Benjamin, não fugindo em suas 
diversas atualizações do ponto inicial formulado por Benjamin de a transexualidade 
como tendo sua origem em alguma parte do corpo onde as cirurgias de 
transgenitalização são as únicas terapias possíveis. O CID-10 consiste num documento 
mais pratico e objetivo, no limite, um protocolo que apresenta as características gerais e 
 
14
 Encontra-se disponível o DSM-V, atualizado em 2013, não irei mobiliza-lo nesse paper. Pois 
o foco aqui é o trabalho de Berenice Bento (2008). 
 
 
10 
 
o código que deve estar presente em todos os diagnósticos. Entretanto como frisa Bento 
(2008:98-99): 
Nesses três documentos (DSM-IV, CID-10 e SOC) as pessoas transexuais são 
construídas como portadoras de um conjunto de indicadores comuns que as 
posicionam como transtornadas, independente das variáveis culturais, sociais e 
econômicas. Há algumas diferenças entre estes documentos. Para o SOC, “o 
transexual de verdade” tem como única alternativa para resolver seus 
“transtornos” ou “disforias”, as cirurgias de transgenitalização. Já no DSM-IV, 
a questão da cirurgia é apenas tangenciada, visto que sua preocupação principal 
está em apontar as manifestações do “transtorno” na infância, adolescência e 
fase adulta. O CID-10 é o documento mais objetivo: apresenta as características 
gerais e o código que deve estar presente em todos os diagnósticos referentes ao 
“transexualismo”. 
 Na perspectiva de Bento (2008), a transexualidade revelaria as convenções sociais 
sobre o feminino e o masculino, das definições do que seria um “homem” ou “mulher” de 
verdade. Defendendo a tese de que a concepção que atrela gênero à genitália geraria 
necessariamente esses trânsitos identitários. Nessa perspectiva queer o foco de explicação sai do 
indivíduo e se atenta em especial às estruturas sociais, relações de poder. 
AS TRAVESTIS NA BOCA DO LIXO: CLOSE EM CLAUDIA WONDER 
 Nesse contexto de várias mudanças dentro da experiência cinematográfica 
nacional, alterações na dinâmica política do país e modificações nas formas de encarar a 
experiência trans- intensificando a medicalização/patologização dessa- 
coincidentemente, ou não, observamos no cinema brasileiro da boca o acentuar de 
personagens trans( especialmente travestis) atuando em destaque nos filmes. Talvez a 
história de Jéssica, retratada em Sexo dos Anormais, seja a primeira dentro dessa nova 
tendência do cinema erótico nacional a apresentar a história de uma travesti (como é 
referida dentro do próprio filme) vivida por uma artista, ativista, travesti e com certo 
reconhecimento: Claudia Wonder
15
. 
 
15
 Ícone da cena paulistana dos anos 80, que se assumiu travesti em plena ditadura militar, 
prostituindo-se em Paris, onde, segundo relato dela em entrevista a professora Larissa Pelúcio 
(2006), foi a nona trans brasileira a atuar, é durante os anos da década de 80 que consolidou-se 
como artista “underground”, fazendo shows em boates paulistana e tendo na plateia artistas. 
Claudia Wonder faleceu em 2007 deixando muitos escritos, um livro publicado, varias 
entrevistas e um premiado documentário dirigido por Dácio Pinheiro. “Ressalto esses registros, 
porque Cláudia, lamentava o vazio de historia e memoria que existe entre e sobre as travestis, 
apontando a tragédia da aids como responsável por essa lacuna”(Pelucio 2006) 
 
 
11 
 
 Segunda a própria Claudia Wonder em entrevista concedida a professora Larissa 
Pelúcio disponível no endereço eletrônico
16
 do Núcleo de Pesquisa em Diferenças, 
Gênero e Sociedade (Quereres) foi a arte um dos caminhos terapêuticos para conseguir 
organizar sua sanidade e sexualidade: 
No meu caso foi a arte. Foi o modo que eu encontrei de mostrar que eu sou 
alguém, que eu existo, que eu sou uma pessoa. Um modo de eu me afirmar e de 
eu ser querido. Desde criança eu quis ser artista. Desde criança… porque desde 
criança que eu ouço assim “toma vergonha”, “Toma jeito de homem”. Então eu 
acho que assim, o aplauso era onde eu me sentia querido(...)Era meu modo de 
me mostrar que eu sabia fazer alguma coisa, da minha capacidade. “Olha, vocês 
me marginalizam, vocês me maltratam, vocês me destroem, mas eu faço isso. 
Eu se fazer isso”. 
Além disso, como justificativa pela escolha de Sexo dos Anormais como fio 
condutor, Alfredo Sternheim( diretor e roteirista) em sua biografia, lançada em 2009, 
deixa claro que o filme fora encomendado por Alfred Cohen, fundador da Paris Filmes 
e dono da distribuidora Brasil Filmes, empolgado pela farta mídia em cima de outra 
importante figura trans dos anos 80: Roberta Close, que no ano de 1984 estrelaria um 
histórico ensaio capa para a revista Playboy
17
. Para se ter noção do impacto desse 
primeiro ensaio, na edição de julho de 1984 que trazia Claudia Lucia na capa, no canto 
inferior esquerdo havia uma chamada anunciando fotos extras de Roberta Close 
atendendo a pedidos do publico, nesse mesmo ano na edição de outubro que continha 
Betty Faria na capa foi a vez de Thelma Lipp
18
 debutar em um ensaio fotográfico.. Já 
em 1990, Roberta sairia na edição de março da mesma revista que tinha Luma de 
Oliveira no ensaio capa, que anunciava a exclusividade das fotos sobre o “novo corpo” 
de Roberta Close, após passar pelo processo de “redesignação sexual”. 
 Acredito ter aqui um importante motor de arranque, um fato que pode nos 
ajudar a entender o que impulsionou o cinema da boca do lixo a produzir filmes com 
 
16
 Para mais acessar http://www.ufscar.br/cis/2010/11/entrevista-de-claudia-wonder-a-larissa-
pelucio/. 
17
 Friso que é em maio de 1984 que sai o primeiro ensaio de Roberta Close na Playboy 
atingindo uma boa repercussão, vendendo milhares de revistas e esgotando-as em seus 
primeiros dias. Esse primeiro ensaio não continha fotos da genitália de Roberta, que passaria 
pelo processo atualmente chamado por “redesignação” no final da década de 80. 
18
 No começo dos anos de 1980, Thelma Lipp surgiu como uma resposta paulista a outro 
fenômeno do gênero: a linda Roberta Close. Thelma e Roberta disputaram, durante toda a 
década, capas de revistas de todo o Brasil. Uma fazia o tipo “mulherão fatal” (Roberta), 
enquanto a outra (Thelma) fazia o gênero “garotinha”. Nesse mesmo período Claudia Wonder 
despontava na cena underground paulistana estrelando shows ao lado do seu grupo Jardim das 
Delícias na famosa boate Madame Satã. 
http://www.ufscar.br/cis/2010/11/entrevista-de-claudia-wonder-a-larissa-pelucio/
http://www.ufscar.br/cis/2010/11/entrevista-de-claudia-wonder-a-larissa-pelucio/
 
 
12 
 
personagens trans em destaque em um curto período de tempo. Ainda na primeira 
metade da década de 80 uma verdadeira explosão de filmes com personagens travestis 
em seus enredos ganha espaço nos cinemas: Volúpia de mulher, O viciado em c... e Sexo 
dos Anormais tem todos 1984 como ano de produção, sendo que os dois últimos 
originariam continuações produzidas durante 1985. 
Há de se lembrar, como Abreu(2002) aponta, o cinema da boca seguia uma 
lógica de produção que não perdia de vista o mercado. Fator que por muitas vezes é 
utilizado para descredibilizá-lo e colocá-lo como algo menor na história do cinema 
nacional. Entretanto como já dizia o folheto promocional de O Pornógrafo também 
conhecido como “manifesto do cinema cafajeste”, escrito pelo diretor João Callegaro, o 
cinema da boca do lixo trata de abandonar as: “elucubrações intelectuais responsáveis 
por filmes ininteligíveis e atingir uma comunicação ativa com o grande público, 
aproveitando os 50 anos de mau cinema norte-americano devidamente absorvido pelo 
espectador”(CALLEGARO apud ABREU, 2002:41). 
 Díaz-Benítez (2010:11-12) afirma que mesmo de modo marginal, a pornografia 
faz parte do nosso cotidiano, daquilo que convencionamos chamar cultura. Apontando a 
zona sensível em que essa se localiza, permanecendo entre discurso e juízos de valor, 
marcando uma tensão entre o nominável e o inominável, a pornografia estaria ali 
habitando as fronteiras movediças entre o que se considera “bom” ou “ruim”. A autora 
de “Nas redes do sexo” busca durante o livro compreender como o “dispositivo 
pornográfico” produz corpos e prazeres, ressaltando a atenção aos enunciados sobre 
gênero e sexualidade e posições de gênero elaborados por essa forma de representação 
visual. No limite, é uma preocupação latente desse artigo pensar como o pornô pode 
colocar em cena normatividades e transgressões. 
 Penso ser fundamental apontar que a figura da travesti, do homem travestido de 
mulher, não é no todo um tema novo, principalmente a performance do homem 
travestido de mulher já aparecera décadas anteriores geralmente visando atingir 
finalidades cômicas, mas é em Sexo dos Anormais que temos essa figura, definida como 
travesti dentro do filme, enquanto protagonista, e consequentemente, protagonizando 
cenas de sexo explícito. É na busca em compreender o motor que possibilitou esse 
movimento que esse artigo vem se desenvolvendo. 
 
 
13 
 
 A ideia de o cinema popular produzido na boca do lixo como uma importante 
ferramenta que nos ajuda a revelar, ou pelo menos, a compreender melhor, fornecendo 
elementos que nos permitem pintar em tons mais visíveis a realidade brasileira do 
momento
19
 é uma das linhas que costuram esse texto. Função essa muitas vezes 
ofuscada por uma espécie de “estética do bom gosto nacional” que classifica 
comumente filmes que compões esse bloco temático como algo extremamente trivial, de 
menor importância. No limite, busco aqui compreender na intersecção de dois 
dispositivos, o pornográfico e o transexual: como foram se moldando os discursos sobre 
as figuras trans. Talvez a própria ficha cinematográfica, disponível na cinemateca 
brasileira, de indícios quando nos seus “termos descritores”, em relação ao caso 
específico de Sexo dos Anormais, apareçam palavras como: Deficiente mental, Sexo, 
Hospital, Psiquiatria e Travestismo
20
 
FOUCAULT E A TEORIA QUEER: O PREFIXO “PÓS” NÃO COMO 
PASSAGEM DE TEMPO CRONOLOGICO, MAS SIM ASSINALANDO O 
ENFRAQUECIMENTO DE ANTIGOS PARADIGMAS. 
A Teoria Queer é um daqueles saberes que emergiram no movimento histórico 
que Michel Foucault definiu como sendo a “insurgência dos saberes sujeitados”. 
Trata-se de um movimento em processo e negociação na esfera acadêmica 
constituída no modelo do pensamento disciplinar vinculado à formação 
profissional. Em outras palavras, a Teoria Queer só pode ser compreendida 
quando situada como parte de uma inflexão histórica recente na maneira de 
produzir conhecimento, aquela que vinculou o saber às demandas politicas de 
grupos historicamente subalternizados por suas diferenças de gênero, 
sexualidade e/ou raça. (MISKOLCI, 2014:43) 
Por “dispositivo” entendo aqui, levando ao limite, como um conjunto de 
discursos e práticas que criam incessantemente o “objeto” ao qual se referem. Espaço do 
dito, mas também do não dito. Arco e flecha ao mesmo tempo, um dispositivo é nas 
palavras de Foucault (2010:244): 
Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discurso, instituições, 
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas 
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, 
 
19
 Assim como Hall (2009:7),a concepção de ‘momento’ que utilizo aqui correspondo ao que 
antropólogo caribenho David Scott definiu como espaço problemático na sua obra inovadora 
Conscripts of Modernity. De acordo com David Scott, um ‘espaço problemático’ pode ser 
definido como “ um espaço discursivo historicamente constituído” pela confluência de 
elementos históricos e discursivos. 
20
 Segundo pesquisa previa realizada no acervo de fichas cinematográficas disponibilizado pelo 
Ministério da Cultura online no endereço http://www.cinemateca.gov.br/. 
http://www.cinemateca.gov.br/
 
 
14 
 
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O 
dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos. 
 Assim sendo, como defende Bento (2014), o dispositivo transexual seria um 
conjunto de saberes produzidos pelo “saber/poder” médico voltados para a 
patologização das experiências trans. Díaz- Benítez (2010) propõe, como já abordado 
anteriormente na introdução, a problematizar como o dispositivo pornográfico coloca 
em cena hierarquias e convenções sociais de gênero atenta aos enunciados e a posições 
elaboradas por essa representação visual. 
Creio ser incontornável apontar que em Foucault saber é encarado como uma 
forma de poder, se apoiando no método genealógico que consistiria no limite, na busca 
em compreender os contextos que criam o sujeito dando atenção aos discursos e suas 
condições de aparição, sem perder de vista o próprio processo de formação descontínua 
e irregular desses discursos. A grande lição que toma emprestada de Foucault aqui é 
essa busca em compreender os contextos que criam sujeitos. Ou seja, a perspectiva 
foucaultiana é marcada pela desnaturalização das ontologias, na sua abordagem não há 
ontologia sem história, apontando assim uma questão política, ou melhor, a existência 
de toda uma epistemologia que é política. No limite diria que Foucault vai operar, ou 
pelo menos buscar fazer uma desnaturalização das narrativas
21
 e é isso que também faz 
parte das linhas que guiam esse projeto. 
A ciência e o discurso médico, em especial, trabalham com uma definição 
fechada, centrada na relação do sujeito com o corpo para diferenciar o que seria a 
transexualidade da experiência travesti, caracterizando a transexualidade como uma 
relação de aversão, no limite, ojeriza ao corpo e a genitália( o que não ocorreria quando 
pensamos as travestis). Entretanto acho fundamental marcar que as definições sobre 
travestis e transexuais são pautadas por um forte aspecto político
22
. Nesse sentido busco 
privilegiar a forma como os sujeitos aparecem nomeados em suas próprias interações, 
quando não busco colocá-los sob o manto do termo guarda-chuva “trans”, apesar de 
reconhecer os problemas que essa restrição pode gerar. 
 
21
 É um aspecto próprio ao dito Pós- Estruturalismo problematizar as próprias criações da 
ciência, seu aspecto construído, romper com os pressupostos. 
22
 Para mais ver Barbosa (2013), Bento (2004) e Leite Jr (2011). 
 
 
15 
 
A figura de Jéssica, personagem vivida por Cláudia Wonder em Sexo dos 
Anormais, é pensada aqui como um catalisador, um símbolo dos múltiplos vetores que 
incidem sobre as figuras trans e especialmente nesse processo de patologização da 
experiência, que busca jogar para o espaço asséptico dos consultórios as sexualidades 
ditas desviantes
23
. A trajetória de Jéssica dentro do enredo é pensada aqui como espécie 
de ilustração do processo de construção corporal e inserção social de sujeitos trans, emespecial travestis, na coletividade. 
CONCLUSÃO: JOAN W. SCOTT E INVISIBILIDADES 
Aceitando a impossibilidade de formular grandes torções nessa conclusão devido 
ao estagio que a pesquisa se encontra, retomo o trabalho de Scott (1998) no sentido de 
apontar enquanto “conclusão” a importância, assim como a autora, da apreensão da 
história das diferenças e de seu impulso crítico em molduras epistemológicas distintas 
da que parte ao apelo da experiência como prova incontestável, chamando atenção as 
violências epistemológicas que esses grupos subalternizados enfrentam
24
. A autora 
aponta a existência de regimes de visibilidade
25
 que fomentam a necessidade da busca 
de fontes alternativas quando pensamos grupos marginalizados, pois a historia oficial
26
 
tende apagar certas partes, em um processo de automutilação marcado pela perspectiva 
de grupos hegemônicos no momento. Nesse sentido creio e defendo a importância de 
revisitar como as travestis eram vistas nos filmes da boca do lixo para uma melhor 
compreensão da atuação e inserção dessas na sociedade brasileira nesses 30 anos que se 
passaram desde o lançamento de Sexo dos Anormais. 
 
 
 
 
 
 
23
 Como dispõe Foucault(1988) 
24
 Já que a travestilidade não constitui uma experiência necessariamente evidente, 
25
 Em dialogo com o conceito foucaultiano de regime de verdade. 
26
 Por “historia oficial” entendo as variantes mais institucionalizadas de viés macroestrutural. 
 
 
16 
 
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19 
 
RESUMO 
Este trabalho busca problematizar através da interpretação sociológica a representação das 
travestis/transexuais no ciclo cinematográfico da Boca do Lixo partindo da análise das imagens que 
compõe o enredo do filme Sexo dos Anormais, produzido e lançado durante o biênio 1984/1985, 
suportada pela bibliografia alinhada a uma perspectiva pós-estrutural centrada nas contribuições da teoria 
Queer ao debate sobre sexualidade e gênero, além dos contributos de Stuart Hall às questões sobre a 
representação do outro. Mais especificamente, pretende-se investigar: a) Como a personagem travesti 
Jéssica aparece representada no enredo do filme Sexo dos Anormais, alinhada a quais discursos; b) as 
tecnologias e saberes- partindo em especial da análise crítica do cânone médico/psi em relação à 
transexualidade e travestilidade- mobilizados nesse trabalho de representação do outro, analisando as 
passagens mais representativas do filme sobre a discussão desenvolvida durante o trabalho. No limite o 
que busco por meio desse projeto é compreender através da análise sociológica como a mulher trans é 
inserida nesse filme e quais suas condições de aparecimento dentro do cinema da boca e como esse 
movimento pode nos ajudar a entender o próprio processo de inserção das figuras trans na sociedade 
brasileira da década de oitenta.

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