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1 A COMPLEIÇÃO NÔMADE DO INCONSCIENTE MAQUÍNICO DESEJANTE Rafael Augusto Vieira* Resumo: Para Deleuze e Guattari, o Inconsciente é uma fábrica de Real-Social, produtivo e não representativo como um simples teatro familiar num triângulo edípico. Pelo fato de ser fluido, atravessa com sua potência criativa os meios sociais na invenção do novo e na produção de intensidades.Por sua natureza fluida, o inconsciente maquínico-desejante tem em seu caráter produtivo um viés nômade. Tal nomadismo constitui, antes de um simples movimento, uma verdadeira máquina de guerra subversiva, irredutível e contraposta ao Aparelho de Estado. Seus fluxos e intensidades desejantes funcionam como dispositivos e deixam acontecer os processos de subjetivação, desarranjando e rearranjando as subjetividades em suas cristalizações e criando o novo na medida das possibilidades de cada corpo e na potencialização da vida. Este processo se dá, fundamentalmente, pelo que determina a própria potência nômade, ou seja, sua capacidade de reterritorializar-se sobre a própria desterritorialização. Contudo, por vezes ocorre o entrave desse processo de criação e invenção devido à captura das subjetividades pelo Aparelho de Estado e pela homogeneização dos encontros. Este mesmo Aparelho é capaz de simular um nomadismo como forma de aprisionar o devir em sua heterogeneidade e estancar os processos de subjetivação revolucionários. Mas, ainda esse caso, as linhas de fuga podem ser tomadas como pontos de singularidade e de possibilidade criativa, existindo, pois, alguma esperança na luta por uma produção criativa e diferente do que está estabelecido. Assim, pensar novas formas de habitar os espaços que já estão dados pode configurar parte dessa micropolítica da diferença, a qual implica também uma estética e uma ética afirmadoras da vida em sua heterogeneidade. A partir do que foi exposto, nos propomos a abarcar os conceitos de inconsciente e de nomadismo, através de uma conexão entre o estudo da Nomadologia, especialmente no volume 5 do Mil Platôs, de Deleuze e Guattari, e de inconsciente, especialmente em O Anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia, dos mesmos autores. * Pesquisa financiada pela FAPESP, processo 04/14888-4, sob a orientação do Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Jr. e-mail: rakvieira@yahoo.com.br 2 Considerando a concepção de inconsciente proposta pela esquizoanálise, tudo é produção de real-social. Ora, se tudo é produção, o nomadismo não deixa de sê-lo. Trata-se, antes de tudo, de um movimento que é produção maquínica desse inconsciente molecular e desejante. Mais do que um conceito, o nomadismo constitui uma pragmática dos modos existência, um modelo de devir e de heterogeneidade que se opõe ao estável, ao eterno, ao idêntico, ao constante.† Os cortes dessa produção maquínica se dão infinitamente e a única medida é o desejo que se agencia maquinicamente. Formam-se apenas pontos de parada no processo de subjetivação que são o que formam a chamada subjetividade. Tais pontos, quando não se cristalizam, permitem o fluir do processo de subjetivação com seus fluxos desejantes de forma a potencializar a vida de forma criativa e singular, e constituem um eu que não é identidade, mas que se deixa ser de acordo com as possibilidades de respiração que o processo lhe permite e com a forma como agencia tal produção desejante. A força que tem a velocidade de desarranjar o estabelecido e de produzir multiplicidades é infinita. Ao contrário dos campos gravitacionais que a si tudo arrastam, a ciência nômade tem no movimento a sua potência e sua capacidade de desterritorialização. Não há regra, há uma prática e um modo de vida, que perpassam as estruturas e são irredutíveis a elas, para não dizer contrapostos. O que define o espaço livre é a abertura às múltiplas formas de existência, a respiração com o mais possível de ar nos pulmões; não há objetivos que não sejam a potencialização da vida e o enriquecimento da existência. A articulação que o inconsciente tem com o Fora por seu caráter nômade impede que as relações sejam binárias, o espaço de produção é a fluidez e as virtualidades † DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia, Vol. 5. São Paulo, 34, 1997 – p. 25. A partir de agora MP5. 3 múltiplas do desejo, as sempre novas formas de afetar e de ser afetado. Os movimentos de produção do Real‡ que se dão neste inconsciente estão em constante relação com o mundo na produção do si e na valorização das singularidades. Enquanto o aparelho de Estado nos oferece a palavra ou, reduzindo o quanto pode as nossas potencialidades, a opção nômade nos coloca em contato com a palavra e, que nos permite escolher tudo, abraçar tudo o que o nosso corpo permite, abraçar tudo aquilo que nossa vida permite. Dessa forma, o impossível é a única impossibilidade, pois vivemos no possível e no limite. A vida do nômade é intermezzo§; é na borda que se dão os contatos, é na margem que estão abertas as possibilidades, é aí, justamente neste não-lugar, que é também intensivo e afectivo, que a articulação com o Fora permite uma produção nomádica da existência e a emergência do singular. Talvez sejam os fenômenos fronteiriços onde a ciência nômade exerce uma pressão sobre a ciência de Estado.** Deleuze e Guattari consideram o nomadismo como máquina de Guerra justamente por ser inalienavelmente relacionado com esse Fora, o qual não foi capturado. O Fora, ou espaço liso, constitui um território que, como já dito, é um não- lugar, ou melhor, é um território da existência, um lugar existencial. A vinculação da vida é, pois, com um itinerário. O que importa é o constante caminhar, que abre os poros, alivia os pulmões, permite que o sangue flua, dá energia e disposição para continuar a caminhar. Por tal relação com o Fora, este espaço liso é contraposto ao espaço estriado e sobrecodificante do Aparelho de Estado. Porque o Estado capitalista é o regulador dos fluxos descodificados, enquanto apanhados pela axiomática do capital.†† Como estar sempre estático em um território é condição necessária para a existência de um Estado, ele nunca será verdadeiramente nômade. Na ânsia de capturar, ‡ NAFFAH, A. O inconsciente: um estudo crítico. São Paulo, Ática, 1998 – p. 25. § MP5 – p. 51. ** MP5 – p. 27. †† DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O Anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia. Lisboa, Assírio e Alvim, 1966 – p. 262. 4 sobrecodificar e, em última instância, parar essa produção desejante que o nômade maquina, o Estado desenvolve alguns artifícios que simulam o nomadismo a fim de tentar evitar sua própria desmantelação. Mas, como essa produção capitalista não é capaz de se reterritorializar na própria desterritorialização, seu movimento não é absoluto. O capitalismo é capaz de recriar o nomadismo como uma de suas reterritorializações, mas o território nômade “capitalístico” não se reterritorializa efetivamente sobre uma desterritorialização absoluta, apenas procura compensar o perigo de que uma máquina de guerra verdadeiramente nômade venha desorganizar a axiomatização e desmantelar a máquina sobrecodificante.‡‡ Diante dessa simulação nomádica do Estado, o que a máquina de Guerra faz não é outra coisa senão pôr-se em fuga, traçar linhas que fujam aos efeitos do discurso capitalístico universalizante. A fuga do controle exercido pelo aparelho de Estado constitui uma tentativa de autonomia. É nômade todo processo (político, coletivo, individual, psíquico, etc) que traça uma linha de fuga aos aparelhos do Estado sedentário e de seus subprodutos.§§ Por isso, a itinerância do processo constitui mesmo a formação do dito espaço liso, por meio da efetivação de um movimento absoluto, sempre no plano das intensidades. Ogrande feito do nômade é sua capacidade de se reterritorializar na própria desterritorialização. Em outras palavras, a construção de novos territórios (existenciais) pelo nômade não retorna sempre aos espaços de outrora, mas perfaz um movimento de desterritorialização, na medida em que abandona os territórios atuais para a construção dos novos. Essa potencialização máxima do novo é o que caracteriza os processos nômades, e é o princípio mesmo da nomadologia. As possibilidades do nômade se dão ‡‡ CARDOSO JR, H. R. “Nomadismo e “nomadologia” para subjetividades contemporâneas, segundo Deleuze e Guattari.” In: França, S. A. M. et alli. Estratégias de controle social, São Paulo, Arte e Ciência, 2004 – p. 128. §§ Idem – p. 129. 5 justamente nas linhas de fuga que traça, das quais uma pode até mesmo ser parar por um instante, enquanto tudo corre. O nômade sabe esperar, e tem uma paciência infinita. Imobilidade e velocidade, catatonia e precipitação, “processo estacionário”, a pausa como processo.*** O Estado, que ao mesmo tempo protege e controla, deve ser visto de forma abrangente, inclusive e principalmente em suas brechas, em suas frestas, locais por onde o caminhante pode passar. No que diz respeito às ciências, embora não duvidemos que haja interpenetrações entre os modos nomádico e legal, reconhecemos também que há sempre uma corrente graças à qual as ciências ambulantes ou itinerantes não se deixam interiorizar completamente nas ciências régias reprodutoras.††† Nesse caso, a axiomatização e a forma teoremática de análise dão lugar ao modo problemático. Em uma palavra, diríamos que enquanto a ciência régia se preocupa em soluções cientificas, as ciências ambulantes estão empenhadas em inventar problemas. O que acontece é que o nômade só possui uma geografia; a história que aprendemos é a da vitória do Estado, que é sempre, por isso mesmo, contada por ele próprio. Os historiadores consideram os nômades como uma pobre humanidade que nada compreende.‡‡‡ A força guerreira dos nômades sofre a censura sobrecodificante do Estado quando se contam seus feitos. Mas a força nômade pode ser justificada até mesmo pelas armas. Ora, é o vetor de velocidade da arma que indica sua potência. Na verdade, nem sabemos se a arma que inventa a velocidade, por sua projeção, ou se é a velocidade que enseja a balística. O fato é que considerar a máquina nômade como máquina de Guerra justifica-se até mesmo pelo estudo das armas, as quais estão *** MP5 – p. 52. ††† MP5 – p. 41. ‡‡‡ MP5 – p. 71. 6 inextrincavelmente relacionadas com a velocidade de desprendimento. Pode-se dizer até mesmo que a velocidade é em si mesma um “sistema de armas”.§§§ Falando em termos de subjetividade, o desejo agenciado também é um sistema de armas, uma máquina veloz e produtiva; os afectos são projéteis, tanto quanto as armas.**** Os agenciamentos nômades do desejo não formam uma axiomatização, como os agenciamentos sedentários do aparelho de Estado, e sim uma espécie de rizoma, com seus saltos, desvios, passagens subterrâneas, caules, desembocaduras, traços, buracos, etc.†††† O plano da possibilidade múltipla dos encontros se abre para dar força à inventividade da vida, na sua forma mais criativa e revolucionária. Mas esse nômade ainda está longe de ser uma realidade palpável. Continua misturado nas páginas dos livros, escondidos no silêncio de nossa captura ou no recôndito de nossa tibieza. Ora, se o caráter revolucionário do nomadismo constitui uma dificuldade para sua efetivação, está aí de fato o desafio de sua luta e alegria de sua conquista, considerando que a utilização de tal sistema de armas permitirá perceber que a grandeza de uma vitória é medida pela dureza de seus combates. BIBLIOGRAFIA BAREMBLITT, G. Introdução à Esquizoanálise. Belo Horizonte, Biblioteca do Instituto Felix Guattari, 1998. CARDOSO JR, H. R. “Nomadismo e “nomadologia” para subjetividades contemporâneas, segundo Deleuze e Guattari.” In: França, S. A. M. et alli. Estratégias de controle social, São Paulo, Arte e Ciência, 2004. §§§ MP5 – p. 77. **** MP5 – p. 79. †††† MP5 – p. 100. 7 CARDOSO JR, H. R. “Deleuze e Foucault em co-participação no campo conceitual”. In: Rago, M., Orlandi, L. B. L., Veiga-Neto, A. (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzscheanas. Rio de Janeiro, P&A, 2002. DELEUZE, G. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro, 34, 1992. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O Anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia. Lisboa, Assírio e Alvim, 1966. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia, Vol. 1. Rio de Janeiro, 34, 2000. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia, Vol. 4. São Paulo, 34, 1997. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia, Vol. 5. São Paulo, 34, 1997. GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo, 34, 1992 LOPES, P. C. Pragmática do desejo. Aproximações a uma teoria clínica em Félix Guattari e Gilles Deleuze. Mestrado em Psicologia Clínica. PUC – SP, 1997. NAFFAH NETO, A. O Inconsciente: um estudo crítico. São Paulo, Ática, 1998. PELBART, P. P. A nau do tempo-rei: 7 ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro, Imago, 1993.
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