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INFÂNCIA: DESAFIOS DA MODERNIDADE 
 
Silva, Claudia Maria Rinhel* 
 
 
Resumo: Há anos estamos na prática de orientação de pais em Programas Sociais de 
crianças e adolescentes no âmbito municipal e temos observado um amedrontamento 
dos pais frente à ação dos filhos, se mostrando enfraquecidos na conduta e colocação de 
limites. Quando em atendimento aos pais, onde é esclarecido o papel de cada um, estes 
parecem surpresos e ainda inseguros no como agir, pois os filhos parecem ter um saber 
ameaçador. Temos realizado uma atuação mais direta, em relação à família dos 
atendidos pelos programas, onde são realizadas orientações mais freqüentes, palestras 
esclarecedoras e grupos de discussões relacionados ao cotidiano. Parece haver uma 
incógnita em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente por parte dos pais, 
possibilitando que as crianças e adolescentes usem do “saber”, ou melhor, das 
informações em relação aos seus direitos e deveres de maneira equivocada fazendo 
valer o que os mesmos entendem por certo; os pais que ficam alheios a estas 
informações sentem-se analfabetos e delegando aos filhos o poder que lhes era devido 
por natureza. Segundo Calligaris e também Elkind, aí está uma grande inversão de 
valores, onde os pais estão ocupando o lugar dos filhos e vice-versa, causando um 
descontrole das ações nas famílias. Podemos dizer, também dentro deste contexto, que 
está ocorrendo uma adultização das crianças e uma infantilização dos adultos. O 
presente trabalho tem como objetivo, diante de tal problemática, analisar a história da 
infância considerando a família como principal agente de transmissão de valores. Para 
tal análise são abordados os seguintes aspectos: a relação e a responsabilidade da 
família com a infância e com a formação ética da sociedade. Concluímos que a família, 
dos pontos de vista histórico e social, está vivenciando um período de retrocesso em 
relação ao conceito de infância onde certos princípios ficam questionáveis e o sentido 
que se atribui às ações se relativiza, gerando incertezas sobre os valores que devem ser 
construídos no processo educativo. Percebe-se, pois, uma indefinição sobre o que é ou 
não permitido ou aceito. Em parte isso ocorre porque não há um código ético 
"universal" que estabeleça padrões morais normatizadores da ação humana, entretanto, 
existem estratégias para reverter esta condição preservando a infância e referência dos 
pais enquanto detentores do saber e orientadores das ações familiares. 
 
* claudiarinhel@uol.com.br 
(Psicóloga dos Programas Sociais de crianças e adolescentes do município de Assis-SP) 
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1. Introdução 
Em tempo de mudanças, princípios ficam questionáveis e o sentido que se 
atribui às ações se relativiza, gerando incertezas sobre os valores que devem ser 
construídos no processo educativo. Percebe-se certa indefinição sobre o que é ou não 
permitido ou aceito. Em parte isso ocorre porque não há um código ético "universal" 
que estabeleça padrões morais normatizadores da ação humana. Neste contexto, o que 
estamos presenciando nos dias de hoje são: meninas vestidas como pequenas adultas; 
crimes hediondos cujos autores principais são crianças e adolescentes; a banalização, 
cada vez mais precoce, do sexo e, como conseqüência, do outro, além de exemplos cada 
vez mais notórios de como nossa população infantil vêm se apresentando, fatos estes 
suficientes para justificar uma análise crítica do contexto em que vivemos e para 
levantarmos, a partir desta análise, propostas que visem transformações no resgate desta 
infância que vem se dissolvendo em nossas mãos. 
Consideramos que a família tem uma responsabilidade muito grande nessas 
transformações, pois ela constitui o primeiro universo das relações sociais da criança, 
onde seus membros vão experimentar a flexibilidade das fronteiras entre o público e o 
privado e iniciar a moldagem de suas potencialidades com o propósito da convivência 
em sociedade e da busca de sua realização pessoal. 
Calligaris (1992) fala que a educação familiar dispõe o lugar de quereres e o 
preço deste lugar, necessário à vida, é a interdição. A partir da proibição dos limites 
impostos como filho é que podemos reconhecer o nosso lugar, o lugar de filhos. 
Compreendendo o nosso lugar conseguiremos reconhecer o lugar do outro e assim, 
respeitá-lo. 
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 Neste trabalho, pretendemos mostrar, por meio da análise histórica e social 
do papel da família e da compreensão crítica da realidade, que a família pode auxiliar na 
transformação do atual contexto. 
2. A respeito do papel da família 
A família tem, teoricamente, como função básica a proteção e educação de 
seus filhos. Ela representa o lugar onde são experimentados os primeiros sentimentos da 
vida do ser humano e onde iniciamos nossa socialização e, neste contexto, encontramos 
a base de muitas das nossas atitudes diante da sociedade. 
Há anos a família foi considerada como o principal veículo de transmissão 
de valores sociais que estruturavam a tradição, mas hoje essa mesma estrutura familiar 
parece estar abalada pela inversão de valores. A transmissão de valores, segundo 
Vygotsky (1995), se dá por meio do processo de apropriação da cultura e das 
características humanas ao longo da história, não se desenvolvem espontaneamente, não 
existem no indivíduo como uma potencialidade, porém são aprendidas nas relações com 
os outros, ou seja, em primeira instância, com a família. 
3. A respeito da história da infância e da família 
O sentimento de infância foi se constituindo e se transformando ao longo do 
tempo e está diretamente relacionado com a ideologia social de determinada época. 
Consideramos importante pontuar que o conceito de infância se desenvolveu 
paralelamente ao desenvolvimento do conceito de família no transcorrer da história, 
pois, acreditando que a única maneira de os homens aprenderem e se apoderarem da 
história produzida pela humanidade é pela reconstrução das informações apresentadas. 
Pensamos que a questão histórica e cultural contextualizada na atualidade nos remete a 
questionar os valores priorizados pela família atual, afinal, o homem é construído e 
constrói sua própria história e é inegável que a multiplicidade e variedade de fatores não 
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permitem fixar um modelo familiar uniforme, sendo importante compreender a família 
de acordo com os movimentos que constituem as relações sociais ao longo do tempo e 
do espaço cultural. 
Nem sempre na história houve a preocupação da família com a saúde e o 
bem-estar de seus membros; o sentimento de família tal qual o conhecemos surgiu no 
fim do século XVII e início do século XVIII. Como conseqüência da condição histórica, 
a infância era tão insignificante que não chegava a tocar a sensibilidade da sociedade. 
Na Idade Média não se tinha noção do papel fundamental da educação infantil. Com o 
surgimento da preocupação moral, por parte de pensadores, educadores e reformadores, 
a família passou a se preocupar mais com seus filhos. 
4. Estamos retrocedendo no que diz respeito ao desaparecimento da infância? 
Apesar do aumento nos discursos sobre direitos humanos, globalização e 
eqüidade, grandes descobertas científicas e do total acesso à informação, o século XX 
foi palco de um crescente aumento da desigualdade social e econômica no mundo, além 
de estar presenciando o desaparecimento do sentimento da infância tal qual a 
conhecemos. O atual contexto, ao mesmo tempo em que infantiliza e empurra para 
frente o momento da maturidade com a preservação do egocentrismo/narcisismo 
primitivo, “adultiza” a criança, quase que excluindo a infância. Exemplos disto são 
vistos cotidianamente: o alcoolismo deixou de ser “coisa de adulto”; muitos crimes têm 
crianças e/ou adolescentes como os principais autores; a erotização precoce, 
principalmente das meninas, tem sido vista como “bonitinha” ou “normal” por seus 
próprios paisque impõem responsabilidades em excesso e muito cedo, obrigando suas 
crianças a crescerem prematuramente. Tal situação nos remete ao período da Idade 
Média, citado por Ariès (1981), onde a passagem da criança pela família e pela 
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sociedade era muito breve e insignificante para que tivesse tempo de tocar a 
sensibilidade. 
Considerando que historicamente a morte precoce de muitas crianças 
provocava esta insignificância ou se hoje temos a mídia como uma das maiores fontes 
de dissolução da fronteira adulto/criança, concordando com Postman (2000), o fato é 
que estamos de certa forma, dando um passo para trás no que diz respeito à infância. A 
família, por sua vez, enquanto responsável pela garantia da infância saudável de seus 
filhos, parece dissoluta diante de sua problemática. 
Podemos observar, conforme destaca La Taille (2002), que cada vez mais as 
crianças estão assumindo o papel de imperadores na sociedade; Calligaris (2000) 
reforça esta idéia quando analisa o comportamento dos adultos e das crianças com 
enfoque na inversão de valores sociais: do modelo adultocêntrico passamos para o 
modelo puericêntrico. Até meados do século XX, o modelo vigente era o adultocêntrico, 
onde o adulto era considerado o centro do universo e cabia à criança e ao adolescente 
satisfazer os desejos e as vontades dos adultos. Com isso, conforme propõe a discussão 
de Silva (2004), garantia-se a transmissão da tradição, isto é, um conjunto de regras e 
valores transmitidos de pai para filhos e a conseqüente manutenção da sociedade tal 
como sempre existira. 
Para Postman (2000), a família se enfraqueceu quando os pais perderam o 
controle da informação que seus filhos recebem, de tal forma que “a mídia reduziu o 
papel da família na moldagem dos valores e da sensibilidade dos jovens” (p.164). 
Em acordo com Postman, vemos que para Lasch (1991), o mundo moderno 
se infiltrou de tal forma dentro da família que a privou da intensidade emocional que 
anteriormente a caracterizava, logo, parece que não estamos conseguindo andar no 
mesmo passo que o da modernidade, não acompanhamos a multiplicidade e a rapidez 
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com que as linguagens e mudanças ocorrem e, com isto, neste descompasso entre o que 
é novo e o que é antiquado, parece que desconsideramos nossas instituições e regras de 
convívio social. Neste contexto de mudanças, os adultos se deparam com novos modos 
de viver e de se relacionar. Indecisos, passam a questionar, a relativizar, a mudar ou a 
ficar sem parâmetros sobre como agir com suas crianças. Desta forma, exigem e 
pressionam o desenvolvimento de habilidades nas crianças que as mesmas não têm 
condições de desenvolver. 
As crianças, hoje submetidas às pressões contemporâneas para que cresçam 
depressa, ficam sem referência de valores e condutas, pois as emoções e sentimentos 
parte mais complexa e intrincada do desenvolvimento, tem seus próprios momentos e 
ritmos e não podem ser apressados; para tanto ocorre que o comportamento e a 
aparência da criança falam adulto e seus sentimentos choram criança. Assim, as crianças 
precisam de tempo para crescer, para aprender e para se desenvolver. Tratá-las 
diferentemente dos adultos, segundo Elkind (2003), não é discriminá-las, mas 
reconhecer sua condição especial de ser em desenvolvimento, portanto, resgatar e fazer 
retroceder este processo de inversão de papéis é também resguardar as crianças dos 
problemas e dificuldades do mundo adulto, considerando que as mesmas não têm 
capacidade emocional para entendê-lo ou mesmo interpretá-lo, incorrendo assim num 
risco muito grande de serem gerados males para o seu desenvolvimento emocional. 
Há de se ter nesse panorama que o problema a se descortinar em nossos 
olhos (muitos ainda atônitos pela velocidade que se operam os avanços da tecnologia e 
da evolução social) não é mais de reconhecer os novos modelos familiares, mas sim 
protegê-los. A grande questão que afigura-se-nos é a proteção a ser conferida aos novos 
modelos familiares, resgatando o sentimento de infância, que realmente parece estar 
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retrocedendo, para reverter o processo de inversão de papéis com conseqüências 
imprevisíveis para o desenvolvimento das crianças e da sociedade. 
 
 
Referências Bibliográficas: 
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2a ed., 1981. 
CALLIGARIS, C. Hello Brasil! Notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. 
São Paulo: Escuta, (1992). 173p. 
ELKIND, D. A. Sem tempo para ser criança. A infância estressada. Porto Alegre: 
Artmed, 2003. 
LASCH, C. Refúgio num mundo sem coração. A família: santuário ou instituição 
sitiada? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 
La TAILLE, Y. Vergonha, a ferida moral. Petrópolis-RJ: Vozes, 2002. 
POSTMAN, N. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: GRAPHIA, 2000. 
SILVA, N. P. Ética, indisciplina e violência nas escolas. Petrópolis, Rio de Janeiro: 2004. 
VYGOTSKY, L.S. Obras escogidas, v.III. Madrid: Visor, 1995.

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