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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS Disciplina: SPO7403-04310 (20222) - Teoria Sociológica III Professor: Luiz Gustavo Cunha Discente: Ana Lívia de Lima Camargo (20103554) Da disciplina individual ao biopoder No presente trabalho será realizada uma análise dos conceitos de poder disciplinar e de biopoder para o filósofo Michel Foucault, através de suas obras Vigiar e Punir(1997) e Em Defesa da Sociedade (1999). Na terceira parte da obra Vigiar e Punir (1997), no capítulo que trata sobre a questão da disciplina, Foucault discorre sobre como o poder disciplinar age sobre os corpos. O autor aponta que, foi durante a época clássica que houve a descoberta do corpo como objeto e alvo de poder, sendo este corpo passível de manipulação, modelação e treinamento. A partir dessa noção de corpo como objeto e alvo de poder, Foucault apresenta o conceito de corpos dóceis. Um corpo dócil, segundo o autor, é um corpo que pode ser submetido, utilizado, transformado e aperfeiçoado e que sofre com limitações, proibições e obrigações em qualquer sociedade e que são passivos e passíveis de controle disciplinar. Esses “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar de ‘disciplinas’” (FOUCAULT, 1997). Essas disciplinas agem por meio de uma coerção constante e ininterrupta e tornaram-se, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, as fórmulas gerais de dominação. Foucault expõe que o momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano que visa a formação de uma relação que torna o corpo, por meio de um mesmo mecanismo, tanto mais obediente quanto mais útil e inversamente. Deste modo, forma-se uma política de coerções que consiste em um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, gestos e comportamentos. Surge assim uma “anatomia política”, uma “mecânica do poder”, resultado de uma multiplicidade de processos mínimos e diversos, que prevê não somente o domínio sobre os outros corpos, mas a forma com que esse domínio ocorre, determinando a maneira que devem operar, as técnicas, a velocidade e a eficiência que devem seguir. Deste modo, a disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, os corpos dóceis. Ao mesmo tempo que a disciplina aumenta as forças do corpo em termos econômicos de utilidade, ela diminui essas mesmas forças em termos políticos de obediência. Torna-os, desta maneira, corpos politicamente dóceis, mas economicamente úteis. A disciplina dissocia o poder do corpo, fazendo dele, por um lado, uma aptidão, uma capacidade que ela procura aumentar e retira a potência que poderia resultar disso, criando assim uma relação de sujeição estrita. Segundo Foucault, a disciplina parte do detalhe, ela é uma anatomia política do detalhe que toma de diversas técnicas sempre minuciosas e muitas vezes íntimas que definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova "microfísica" do poder. São técnicas minuciosas que sustentam a dominação: desde a minúcia dos regulamentos, passando pelo olhar esmiuçado das inspeções até o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo. Técnicas como cercamento, quadriculamento, organização em localizações funcionais e a utilização de filas (reais e ideais) são mecanismos utilizados pelo poder disciplinar. O poder disciplinar, segundo Foucault, é “um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor” (FOUCAULT, 1997). Seu objetivo não é anular as forças dos corpos, mas sim multiplicá-las para delas se apropriar por meio de técnicas individualizantes. Essa disciplina, ao mesmo tempo, fabrica indivíduos e os toma como objetos e instrumentos de seu exercício. De acordo com o autor, o sucesso do poder disciplinar se deve ao uso de instrumentos simples como o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e a sua combinação no procedimento do exame. Foucault argumenta que a disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar por meio de técnicas que permitam ver e induzam a efeitos de poder” (FOUCAULT, 1997) e que tornem os meios de coerção claramente visíveis para aqueles sobre quem são aplicados. Aqui, neste dispositivo, preza-se por uma organização das coisas no espaço de modo que fiquem visíveis para melhor serem controladas. A exemplo da arquitetura, que deixou de ser pensada não simplesmente para ser vista, ou vigiar o espaço exterior, mas para permitir que haja um controle interior e detalhado ao tornar visíveis quem nela se encontra. O encarceramento, antes utilizado, começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas. A vigilância passa, portanto, a ser um operador econômico decisivo, na medida em que, nas fábricas por exemplo, torna-se ao mesmo tempo uma peça interna do aparelho de produção (trabalhador fiscalizador) e uma engrenagem específica do poder disciplinar. A vigilância é especificada e passa a ser, deste modo, funcional, uma vez que não só na fábrica, mas também no ensino, é apropriada como um mecanismo com função de multiplicar eficiência. O poder da vigilância hierarquizada funciona como uma máquina que permite ao poder disciplinar estar por toda parte e controlar, de maneira silenciosa, até mesmo aqueles que estão encarregados de controlar. Ela organiza-se como um poder múltiplo, automático e anônimo. A sanção normalizadora funciona como um pequeno mecanismo penal na essência de todos os sistemas disciplinares quando qualificam e reprimem um conjunto de comportamentos que escapavam aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença. As disciplinas estabelecem, deste modo, uma “infra-penalidade” de modo que cada indivíduo encontra-se preso numa universalidade punível-punidora. O poder disciplinar penaliza os desvios, objetivando corrigir e reduzi-los, através de micro penalidades que consistem em processos sutis que vão desde castigos físicos leves a privações ligeiras e pequenas humilhações. A função da punição dentro do processo disciplinar consiste em um elemento do sistema de gratificação-sanção estabelecido no qual são definidos e hierarquizados dois pólos opostos dos bons e dos maus indivíduos, promovendo uma diferenciação não dos atos mas deles mesmos. Essa divisão segundo classificações e graus tem função de marcar os desvios, hierarquizar as qualidades, as competências e aptidões, mas também castigar e recompensar com base no mérito e comportamento. No entanto, a punição no regime do poder disciplinar não visa nem a expiação nem a repressão, a penalidade “que atravessa todos os pontos e controla todos os constantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza e exclui” (FOUCAULT, 1997), ou seja, essa penalidade normaliza. As disciplinas, portanto, inventaram um novo funcionamento punitivo que se opõe a uma penalidade judiciária. A partir disso são criadas normas e O Normal se estabelece como princípio de coerção das instituições disciplinares. Através do exame são combinadas as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. O exame é um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar e punir, é acompanhado de uma inversão da visibilidade (antes o poder era visível e com a disciplina se faz invisível) e de um sistema de registro fundamental para o funcionamento da disciplina. Esse poder da escrita possibilita a constituição do indivíduo como objeto descritível e analisável e a constituição de um sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição em uma “população”. O exame, com a possibilidade de descrever, mensurar e compararo indivíduo, o torna um “caso” a ser treinado, re-treinado, classificado, normalizado, excluído e assim utilizam dessa descrição como um meio de controle e um método de dominação. Para Foucault, “[...] o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que, combinado com a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória”. (FOUCAULT, 1997) As disciplinas marcam, segundo Foucault, o momento em que se efetua o que se poderia chamar de troca do eixo político da individualização. Para ele, o poder produz. Produz realidade, campos de objetos, rituais da verdade e o próprio indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter. Na obra Em Defesa da Sociedade, que reúne transcrições de aulas ministradas por Michel Foucault no Collège de France entre os anos de 1977 e 1978, mais especificamente na aula de 17 de março de 1976, o filósofo vai além da ideia de poder disciplinar e desenvolve o conceito de biopoder. Diferentemente do poder disciplinar que, surgido nos séculos XVII e XVIII, era completamente centrado no corpo individual, durante a segunda metade do século XVIII emergiu uma nova tecnologia de poder que não exclui a técnica disciplinar, do contrário, a integra, a modifica parcialmente e utiliza-se dela ao nela se implantar, de certa maneira. Contudo, a nova técnica não suprime a técnica disciplinar por ser de nível diferente desta. Ao contrário do poder disciplinar, que se dirige ao homem-corpo, ela se dirige ao homem-ser vivo, ao homem-espécie. Depois da anatomo-política do corpo humano, surge então a biopolítica da espécie humana. Foucault explica que a diferença fundamental é que “a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como nascimento, a morde, a produção, a doença, etc.” (FOUCAULT, 1999) Os primeiros objetos de saber e alvo de controle dessa biopolítica foram os processos de fecundidade, natalidade, morbidade, mortalidade e longevidade, juntamente com uma porção de problemas econômicos e efeitos do meio. É desses fenômenos coletivos, em seus efeitos econômicos e políticos, que a biopolítica vai extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu poder. Se concentrando, especialmente, nos acontecimentos aleatórios de duração considerável que ocorrem em uma população. Inclusive, nessa nova tecnologia de poder se insere a noção de “população” como um problema político, científico, biológico e de poder. Essa biopolítica implanta mecanismos com funções muito diferentes das funções dos mecanismos disciplinares. No caso da biopolítica, os mecanismos tratam-se de previsões, estimativas estatísticas, medições globais com o objetivo de intervir a nível das determinações desses fenômenos gerais, no que eles têm de global, estabelecendo mecanismos reguladores para gerar um equilíbrio, manter uma média, otimizar a vida. Deste modo, assegurar aos processos biológicos do homem como espécie não uma disciplina, mas uma regulamentação. Na chamada época clássica, Foucault explica que o grande poder absoluto da soberania consistia em poder fazer morrer. O soberano possuía o direito de vida e de morte de seu súdito, sendo somente por ele que o súdito lograva seu direito de estar vivo e era através da decisão dele que o súdito poderia morrer. Neste contexto, o soberano possuía o direito de fazer morrer ou deixar viver, visto que a morte era o objeto da decisão. Com a nova tecnologia do biopoder surge o poder da regulamentação que consiste, pelo contrário, em fazer viver e deixar morrer. Uma face da manifestação desse poder pode ser visualizada na desqualificação progressiva que a morte sofreu ao longo do tempo: a morte deixou de ser um movimento de ritualização e, muitas vezes celebração, para ocupar um lugar privado em que se esconde, tornando-se até mais tabu que o sexo. Com o surgimento dessa nova tecnologia de poder e a sua essência de promoção da vida, a morte passa a ser um sinal de falha dessa tecnologia que não foi capaz de controlar os acidentes, as eventualidades e deficiências a que a vida encontra-se suscetível. Neste caso, a morte encontra-se de fora do domínio do biopoder. Para Foucault, a única justificativa admissível para a morte, no sistema de biopoder, é pelo racismo. Foi com o surgimento do biopoder que o racismo se inseriu como mecanismo fundamental do poder e passou a ser tão fundamental que, segundo o autor, não é possível o funcionamento do Estado moderno sem que passe pelo racismo. A primeira função do racismo, para Foucault, seria de fragmentar, fazer cesuras no interior do contínuo biológico a que se dirige o biopoder. Ele estabelece um recorte entre o que deve viver e o que deve morrer, a morte do outro, da “raça inferior” (do degenerado, anormal) pode deixar a vida mais pura, é uma forma de proteção contra a ameaça biológica à espécie por uma raça inferior, relação profundamente estreita com as teorias biológicas evolucionistas do século XIX. O racismo “assegura a função de morte na economia do biopoder, segundo o princípio de que a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela é membro de uma raça ou de uma população” (FOUCAULT, 1999), estando essa definição distante da ideia de um racismo que seria o desprezo e o ódio das raças umas pelas outras. Em uma sociedade de normalização o racismo é indispensável como condição para tirar-se a vida de alguém, uma vez que ele garante que seja assegurada a função assassina do Estado, para que o Estado possa exercer seu direito de matar com justificativa de proteção contra o perigo. Aqui coloca-se a questão anteriormente abordada sobre o “deixar morrer” no biopoder, visto que essa retirada da vida que o Estado promove não necessariamente consiste em assassínio direto, mas baseia-se também e principalmente no fato de expor à morte, multiplicar para alguns o risco de morte ou, ainda, a promoção da morte política, da expulsão, da rejeição. O racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que utiliza das raças, sua eliminação e purificação para exercer seu poder soberano. Quanto às tecnologias de poder, desde o final do século XVIII, as duas tecnologias de poder existem de maneira sobreposta, visto que o poder disciplinar estabeleceu uma estrutura prévia da qual o biopoder veio a se apropriar e complementar. De um lado, a técnica disciplinar que é centrada no corpo, produtora de efeitos individualizantes, que manipula e treina os corpos com o intuito de torná-los úteis e dóceis ao mesmo tempo e, de outro, uma tecnologia de poder previdenciária e regulamentadora centrada na vida, que visa o equilíbrio global por meio do controle de eventos inesperados e compensar seus efeitos nas massas. Foucault aponta a existência aqui de duas séries gerais: a série corpo – organismo – disciplinas – instituições (disciplina); e a série população – processos biológicos – mecanismos regulamentadores – Estado (biopoder). No entanto, é importante esclarecer que esses dois conjuntos de mecanismos, disciplinar e regulamentador, não se excluem e podem articular-se um com o outro e assim o são, na maioria das vezes. Um exemplo disso seria a questão da sexualidade que encontra-se na encruzilhada do corpo e da população, da disciplina e da regulamentação. Mesmo sendoum comportamento corporal, o que a faz passível de controle disciplinar e individualizante através de vigilância permanente, também possui seus efeitos procriadores – ou não – , seus processos biológicos inerentes a um corpo-organismo que dizem respeito não mais ao indivíduo, mas à população. A “norma” é o elemento que circula entre o disciplinar e o regulamentador, se aplicando tanto sobre o corpo quanto sobre a população. “A sociedade de normalização não é, pois, nessas condições, uma espécie de sociedade disciplinar generalizada cujas instituições disciplinares teriam se alastrado e recoberto todo o espaço [...]. A sociedade de normalização é uma sociedade em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulamentação”. (FOUCAULT, 1999) Quando Michel Foucault argumenta, portanto, que o poder do século XIX incumbiu-se da vida, significa que ele teve êxito em abarcar toda a superfície vital desde o orgânico ao biológico, do corpo à população por intermédio das tecnologias de disciplina e regulamentação, perpassadas pela norma. Esse poder se incumbiu tanto do corpo, quanto da vida ou, até mesmo, da vida em geral pelo corpo e pela população. Referências FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1997. FOUCAULT, Michel.Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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