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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS Disciplina: Pessoa e Corporalidade Professora: Antonela Maria Imperatriz Tassinari Discente: Ana Lívia de Lima Camargo (20103554) A contra-hegemonia da bissexualidade Os estudos acerca do tema pessoa e corporalidade são muito amplos, bem como vimos ao longo das aulas da disciplina. Dentro das diversas noções de pessoa existentes, podemos localizar também incontáveis corporalidades que se diferenciam, se encontram e se fundem, formando uma diversidade de possibilidades para se utilizar o próprio corpo, instrumento primeiro do ser humano, como colocava Marcel Mauss (1935) em seu famoso texto sobre as técnicas do corpo, tanto para sobreviver, quanto se relacionar e se expressar. Essas corporalidades podem seguir a hegemonia imposta ou transgredir com ela ao buscar uma corporalidade que foge à norma. A bissexualidade enquanto não apenas uma sexualidade, mas como uma identidade, tem esse poder de mostrar uma nova possibilidade para a manifestação de corporalidades, rompendo não somente com a heteronormatividade da sociedade mas, além disso, rompendo com a ideia monossexista de que só é possível se atrair única e exclusivamente por um gênero. Em sua dissertação denominada “A gente existe!”: ativismo e narrativas bissexuais em um coletivo monodissidente, Helena Motta Monaco (2020) aborda com bastante destaque a potencialidade política das identidades bissexuais, focando principalmente em como o ativismo e as teorias bissexuais afetam nas subjetividades dessas sujeitas bissexuais. Utilizando referências bibliográficas conhecidas e, até mesmo, abordadas pela disciplina como Marcel Mauss, Émile Durkheim, Michel Foucault, Freud, Donna Haraway, Robert Heartz, Sônia Maluf e Margaret Mead, a autora constrói sua dissertação em três capítulos: no primeiro capítulo, ela analisa a bissexualidade a partir de seus aspectos históricos e teóricos; no segundo, a bissexualidade em sua dimensão política e; no terceiro capítulo, aborda o tema a partir de seus aspectos subjetivos e, inclusive, apresentando trechos das entrevistas realizadas para a pesquisa. A partir de uma introdução inicial do que foi a bissexualidade ao longo do tempo e do que ela é hoje, a autora mostra de que maneira o movimento político bissexual, que se opõe à lógica binária de gênero e torna a bissexualidade uma narrativa possível e reconhecível, se faz importante para a formação das subjetividades bissexuais. Será o potencial subversivo de questionamento às lógicas binárias e desestabilização da heteronormatividade da sociedade o principal argumento deste texto, de modo a localizar a bissexualidade neste não-lugar que vai contra as hegemonias binárias e heteronormativas da sociedade. Bem como propõe Monaco (2020), aqui também proponho que a bissexualidade seja pensada não apenas como uma manifestação da sexualidade, mas também como uma possibilidade de organização e coletiva capaz de superar a dicotomia hetero/homossexual e de afirmar e reafirmar subjetividades de sujeitas que assim se identificam. Ao longo do tempo, a definição de bissexualidade foi se modificando. Por muito tempo essa sexualidade foi definida como a atração por homens e mulheres, como sugere a duplicidade do prefixo bi. No entanto, atualmente as concepções acerca dessa sexualidade deixaram de se limitar a esses binarismos e surgiram várias definições para o fenômeno, sendo, uma delas, da bissexualidade como a atração por mais de um gênero ou atração independente de gênero. De início, a autora apresenta a história da bissexualidade traçada por Steven Angelides, uma de suas referências, que mostra que a bissexualidade já foi colocada, em certo momento da história, em um lugar de “sexualidade natural” a partir de uma concepção evolucionista na qual a heterossexualidade seria o resultado desse processo de evolução. Nos anos 60, enquanto o movimento gay desafiava a psiquiatria e a patologização da homossexualidade, reivindicando um mundo sem distinções, a bissexualidade era omitida e reduzida a uma dimensão utópica, uma aspiração futura. Esse argumento baseava-se em um discurso que defendia que haveria na natureza humana um potencial bissexual inato, reprimido por normas culturais, negando a bissexualidade enquanto uma identidade ou uma prática presente e possível. Foi a partir de um cenário de insatisfação com o movimento gay e lésbico dos anos 70 que surgiu o movimento bissexual, em um momento de fortalecimento da dicotomia hétero/homossexual que mantinha a questão de gênero como elemento central nas questões de sexualidade. A bissexualidade, nesse contexto, desafiava a noção de monogamia ao ser entendida, na época, como o desejo simultâneo por homens e mulheres, o que a fez ser apagada e inviabilizada por não poder ser integrada aos valores sociais da época. Além de já ser vista como um risco ao movimento da época. A bissexualidade reaparece, portanto, com o auge da teoria queer nos anos 90, a partir de uma luta desse movimento por uma desconstrução dos binarismos. Entretanto, a teoria queer manteve, na época, uma tendencia a ignorar a bissexualidade, mesmo com os argumentos do movimento bissexual tendo a capacidade de beneficia-los. Não havia um lugar estável e aberto para os bissexuais dentro da comunidade LGBT. Helena Mota Monaco (2020) mostra, então, como para Merl Storr, o conjunto de trabalhos por ela chamados de epistemologias bissexuais demonstram que as sujeitas bissexuais não se sentem pertencentes à noção binária hétero/homossexual na qual se baseia a organização da sexualidade moderna. Essas epistemologias surgem, portanto, de modo a desestabilizar as categorias binárias e localizar a bissexualidade em um entre-lugar, um lugar de fronteira ao abarcar elementos tanto da heterossexualidade quanto da homossexualidade, transitar nesses dois lugares e mesmo assim não pertencer a nenhum deles. Aparece, então, dentro desse contexto de diferenciação de bissexuais e hetero/homossexuais, o conceito de monossexualidade. Esse conceito “coloca tanto a heterossexualidade quanto a homossexualidade no mesmo lado: o lado da sexualidade direcionada a um único objeto gendrado de desejo” (MONACO, 2020, P.46). A bissexualidade questiona esse sistema de categorias e divisão, rompendo com as categorias binárias reproduzidas pela monossexualidade. A ideia de monossexualidade, segundo a autora, é útil para explicar o apagamento e a relativa invisibilização da bissexualidade ao mostrá-la como O Outro. Atitudes como essas de apagamento, invisibilização, invalidação e hipersexualização de bissexuais são exemplos de bifobia. Monaco utiliza a definição de Lani Ka’ahamanu e Loraine Hutchins (2015) que definem “bifobia como medo de intimidade ou proximidade de pessoas que não se identificam como heterossexuais ou homossexuais.” (MONACO, 2020, p. 46). Portanto, a bifobia trata-se, em sua grande maioria, de violências simbólicas que afetam principalmente o psicológico e a saúde mental de pessoas bissexuais e tem sua origem em pessoas monossexuais, mesmo que de formas diferentes ao partirem de heterossexuais e homossexuais. Se a bissexualidade é uma forma de expressão da corporalidade, a bifobia pode ser vista, portanto, como a reação de oposição a essa corporalidade que foge às regras estabelecidas pelo sistema social. Monaco (2020) aponta como a bissexualidade, em muitos contextos, passou a ser entendida como uma categoria identitária e como, nesse aspecto, pode ser vista “ não como uma identidade dada, mas como práticas e construções discursivas da subjetividade a partir da sexualidade” (MONACO, 2020, 98). O conceito de monodissidencia, apresentado no texto, surge, portanto, da vontade de demarcar a dissidência da monossexualidade característica da bissexualidade, mas não só dela, uma vez que “o termo bissexual, usado como guarda-chuva, representa umespectro de identidades. Algumas das identidades incluídas nesse espectro são: bissexual, pansexual, polissexual, queer, sexualidade fluida, homoflexível, heteroflexível, curiosa, birromântica, panromântica, multissexual (por vezes também usado como termo guarda-chuva), pessoas sem rótulo, entre outras.” (MONACO, 2020, p. 100) Este conceito de monodissidencia vem de maneira a unificar o movimento e acaba por estabelecer uma diferenciação com os sujeitos monossexuais. É uma forma identitária de auto afirmação do lugar em que essas sexualidades, mas especialmente a bissexualidade neste caso, lutam para ocupar através de movimentos políticos, como o coletivo B, estudado pela autora da dissertação. A bissexualidade coloca-se, portanto, nesta análise, como uma corporalidade contra-hegemônica ao superar as divisões de corpo e gênero para se atrair e direcionar afeto. Afinal, a ela acaba “abrindo espaço para pensar um mundo em que o sexo não precisa ter tanta importância” (MONACO, 2020, p.49). A partir do momento em que abandona as categorias de classificação binária e o gênero deixa de ser uma questão ou adquire menor importância em um relacionamento entre pessoas, através de uma manifestação da sexualidade independente de gênero, a bissexualidade transgride com a hegemonia social ao lutar para que corpos possam se relacionar livremente com outros corpos. Referências: MAUSS, Marcel – [1935]. “As técnicas corporais”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac&Naify. pp. 399-422. 23 MONACO, Helena Mota. “A gente existe!”: ativismo e narrativas bissexuais em um coletivo monodissidente. 2020. 152 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.
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