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SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DA DIVERSIDADE NÚCLEO DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL DIRETRIZES CURRICULARES DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL DA SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ VERSÃO PRELIMINAR Curitiba - Pr 2010 Sumário Apresentação Institucional Professora Ms. Alayde Maria Pinto Digiovanni e professor Dr. Wagner Roberto do Amaral Histórico Equipe SEED/DEDI/NGDS Marcos Institucionais Equipe SEED/DEDI/NGDS Glossário Professora Ms. Viviane Teixeira Silveira O que são as Diretrizes Curriculares de Gênero e Diversidade Sexual? Professora Dra. Maria Rita de Assis César (UFPR) Gênero: Como e por que compreender? Professora Ms. Viviane Teixeira Silveira (Doutoranda UFSC) Gênero, sexualidade e educação Professora Dra. Maria Rita de Assis César (UFPR) Homofobia na Escola Professor Dr. Anderson Ferrari (PPGE/UFJF) Educação Sexual: questões de gênero Professora Dra. Eliane Rose Maio (UEM) Gênero e Diversidade Sexual na Escola: perspectivas e possibilidades Professora Ms. Dayana Brunetto Carlin dos Santos (SEED/DEDI/NGDS) Professora Ms. Kátia Cristina Dias da Costa (SEED/DEDI/NGDS) Professora Especialista Melissa Colbert Bello (SEED/DEDI/NGDS) Professor Especialista Ricardo José Bois (SEED/DEDI/NGDS) Apresentação Apresentamos a comunidade escolar o material que subsidiará a discussão sobre as questões de gênero e diversidade sexual na Rede Pública Estadual de Educação Básica do Paraná, com o tom de uma diretriz orientadora que norteará a ação no interior das nossas escolas. Vivemos em uma sociedade que, historicamente, se constituiu como uma sociedade masculina, lesbofóbica, homofóbica, transfóbica e racista, marcada pela exclusão social, particularmente dos processos de escolarização, de grupos específicos diferenciados pela classe social, bem como, diferenciados pelas questões de gênero e orientação sexual. Partindo da compreensão de que as práticas sociais são construídas historicamente e que os nossos pensamentos, acerca das coisas do mundo, são subjetivados a partir destas nossas relações, salientamos o espaço da instituição escolar como o espaço privilegiado para se discutir e mudar as concepções que temos sobre as coisas e os fenômenos sociais a partir do acesso ao conhecimento. Precisamos, cada vez mais, nos instrumentalizarmos para compreendermos e enfrentarmos as diferentes formas, não raras vezes veladas, de discriminação e exclusão social, e as professoras e professores, funcionárias e funcionários precisam compreender a dimensão pedagógica da sua ação para além da dimensão pedagógica, exclusiva da professora ou do professor, da transmissão de conteúdos curriculares. Temos em nossas mãos a condição concreta de provocar mudanças, esperamos que este material que entregamos a vocês provoque, mobilize e proporcione uma transformação na direção da sociedade que buscamos. Onde mulheres e homens participem coletivamente da tomada de decisões e definam conjuntamente seus caminhos. Deixamos a todas e todos um forte e afetuoso abraço, e o desejo de que realizemos sempre um bom trabalho no interior de nossas escolas. Alayde Maria Pinto Digiovanni Superintendente da Educação Wagner Roberto do Amaral Chefe do Departamento da Diversidade Histórico Texto em construção Marcos Institucionais Texto em construção GLOSSÁRIO Professora Ms. Viviane Silveira ASSIMETRIAS DE GÊNERO: desigualdades de oportunidades, condições e direitos entre homens e mulheres, gerando hierarquias. Por exemplo: no mercado de trabalho. BINARISMO: forma de pensamento que separa e opõe masculino e feminino, apoiando-se numa concepção naturalizante dos corpos biológicos. BISSEXUAL: pessoa que tem desejos, práticas sexuais e relacionamento afetivo-sexual com pessoas de ambos os sexos; CORPO: inclui além das potencialidades biológicas, todas as dimensões psicológicas, sociais e culturais do aprendizado pelo qual as pessoas desenvolvem a percepção da própria vivência. Não existe um corpo humano universal – mas sim corpos marcados por experiências específicas de classe, de etnia, de raça, de gênero, de idade. Visto que os corpos são significados e alterados pelas diferentes culturas, pelos processos morais, pelos hábitos, pelas distintas opções e possibilidades de desejo, além das diversas formas de intervenção e produção tecnológica. Por isso, o corpo é uma produção histórica. Foucault ao analisar instituições como escolas, prisões, hospitais psiquiátricos, fábricas, fala das maneiras como as diferentes disciplinas controlam, domesticam, normalizam os corpos. Sua preocupação é com as práticas sociais, sendo que é no corpo que se dá o controle da sociedade sobre os indivíduos. Os corpos apresentam as marcas do processo de passar ou não pela escola como o auto disciplinamento, o investimento continuado e autônomo do sujeito sobre si mesmo. Louro parte do pressuposto antropológico de que "os corpos são o que são na cultura” (2001, p.75), isto é, que os corpos adquirem seu significado apenas através dos discursos na cultura e na história. Essa vertente se afasta das discussões teóricas nas quais o corpo é tido como “natural”, no qual o biológico determina o gênero. CULTURA: Fenômeno unicamente humano, a cultura se refere à capacidade que os seres humanos têm de dar significado às suas ações e ao mundo que os rodeia. Portanto, vai além de um sistema de costumes; é objeto de intervenção humana. É compartilhada por indivíduos de determinados grupos, por isso não é individual. CURRÍCULO: A década de 90 traz à cena do debate uma percepção de currículo, que muito deve às compreensões sociais advindas dos estudos culturais, dos movimentos sociais, feministas, raciais, étnicos, sexuais e pós- coloniais, e que movimenta a discussão em torno da linguagem como elemento central de análise. Dessa forma, o currículo passa a ser entendido como um local de disputas de construção de objetos de conhecimento, no qual, outros significados estão envolvidos de forma ativa. Segundo Tomaz Tadeu “o texto que constitui o currículo não é simplesmente um texto: é um texto de poder” (SILVA, 2003, p.67). Nesse sentido, o currículo torna-se um instrumento de escolhas; nele os conhecimentos são separados, algo fica dentro e algo fora. Essas divisões são parte de relações de poder que refletem o que deve e o que não deve ser ensinado, determinando o que passa por conhecimento válido, incluindo certos saberes, estabelecendo diferenças, construindo hierarquias e produzindo subjetividades. Ao refletir a epistemologia dominante, a produção de um currículo acaba por ser marcadamente masculina. Logo, responsável que é por refletir e produzir subjetividades, o currículo acaba corporificando e produzindo as relações hierárquicas de gênero. Os estereótipos de gênero que refletem as hierarquias são transmitidos e naturalizados nos próprios processos de formação nas instituições educacionais (SILVA, 1999). Os significados do currículo e seus efeitos de poder constituem subjetividades profissionais e sociais. O currículo tem de ser compreendido como um aparato da diversidade cultural no qual seja possível pensar de novas formas questões políticas, econômicas, culturais, sexuais, etc, abrindo espaço para o outro e eliminando as distinções binárias. Um currículo masculinamente construído contribui para garantir as diferenças, reforçando e reproduzindo, o domínio masculino sobre as mulheres, garantindo a naturalização de certos tipos de conhecimentos, legitimando alguns grupos em detrimento de outros. DESIGUALDADE: é um fenômeno social que produz uma hierarquização entre os indivíduos e/ou gruposque não permite o tratamento igualitário (em termos de mercado de trabalho, de acesso a bens e recursos, para todos e todas. Essa desigualdade existe na divisão dos atributos entre homens e mulheres. Esse desnível se evidencia em vários contextos: familiar, social, escolar, religioso, econômico, político,... Dessa forma, fica claro que existem fronteiras que separam atitudes e comportamentos tidos como apropriados, válidas e legítimas relacionadas ao sexo masculino e ao feminino. DIFERENÇA: indivíduos e/ou grupos possuem várias formas de distinção e de semelhanças (cor, sexo, idade, nacionalidade). A desigualdade pauta-se por essas diferenças e semelhanças que constituem os indivíduos e/ou grupos. DIREITOS SEXUAIS: direitos que asseguram aos indivíduos a liberdade e a autonomia nas escolhas sexuais, como a de exercer a orientação sexual sem sofrer discriminações ou violência. Os direitos sexuais englobam múltiplas expressões legítimas da sexualidade, como por exemplo, o direito à saúde – direito de cada pessoa de ver reconhecidos e respeitados o seu corpo (autonomia), o seu desejo e o seu direito de amar (reconhecimento da diversidade sexual). DISCRIMINAÇÃO: ação de discriminar, tratar diferente, excluir, marginalizar. ESTEREÓTIPO: é uma generalização de julgamentos subjetivos feitos a um grupo ou a um indivíduo. Pode ser atribuindo valor negativo desqualificando-os e impondo-lhes um lugar inferior, ou simplesmente, reduzindo determinado grupo ou indivíduo a algumas características e, assim, definindo lugares específicos a serem ocupados. FEMINILIDADE: se refere às características e comportamentos considerados por uma determinada cultura associados ou apropriados às mulheres. Caracterizar os comportamentos como “masculinos” ou “femininos” é basear-se nas noções essencialistas do binarismo mulher/homem, isto quer dizer que, atributos que muitas vezes são considerados femininos podem estar baseados no biológico e nas diferenças físicas. Dessa forma, a feminilidade nos homens, bem como a masculinidade nas mulheres, é considerada negativa por agir contra os papéis tradicionais da nossa cultura. Um estereótipo comum para homens homossexuais é de que são efeminados porque utilizam ou exageram comportamentos tidos como femininos, por exemplo. GÊNERO: conceito formulado a partir das discussões trazidas do movimento feminista para expressar contraposição ao sexo biológico e aos termos “sexo” e “diferença sexual”, distinguindo a dimensão biológica da dimensão sexual e, acentuando através da linguagem, “o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo” (SCOTT, 1995). Não com a intenção de negar totalmente a biologia dos corpos, mas para enfatizar a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas. Dessa forma, gênero seria a construção social do sexo anatômico demarcando que homens e mulheres são produtos da realidade social e não decorrência da anatomia dos seus corpos. HETERONORMATIVIDADE: termo utilizado para expressar que existe uma norma social que está relacionada ao comportamento heterossexual como padrão. Dessa forma, a idéia de que apenas o padrão de conduta heterossexual é válido socialmente, colocando em desvantagem os sujeitos que possuem uma orientação sexual diferente da heterossexual. HETEROSSEXISMO: Se refere à idéia de que a heterossexualidade é a orientação sexual “normal” e “natural”. Considerar a heterossexualidade como “natural”, aponta para algo inato, instintivo e que não necessita de ser ensinado ou aprendido. Ao considerar a heterossexualidade “normal”, contrapõe-se a idéia de que as outras orientações sexuais (homossexualidade e bissexualidade, por exemplo) são um desvio à norma e reveladoras de perturbação, não sendo encaradas como um dos aspectos possíveis na diversidade das expressões da sexualidade humana. O heterossexismo funciona através de um sistema de negação e discriminação – a sociedade tende a negar a existência da homossexualidade, tornando-a invisível (em quantos manuais escolares existem referências neutras ou positivas à homossexualidade?) e tende a reprimir e discriminar todos aqueles que se tornam visíveis. HETEROSSEXUAL: quem tem atração sexual por pessoas do sexo oposto ao seu, e relacionamento afetivo-sexual com elas. Heterossexuais não precisam, necessariamente, terem vivido experiências sexuais com pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto para se identificarem como tal. HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA: sistema que acomoda e hierarquiza as relações de gênero, no qual o homem é o modelo para todas as relações, inclusive aquelas em que ele não está presente. HOMOAFETIVO: é um termo utilizado para descrever relações entre pessoas do mesmo sexo e tem relação com os aspectos emocionais e afetivos envolvidos na relação amorosa e sexual entre essas pessoas. HOMOFOBIA: termo usado para descrever vários fenômenos sociais relacionados ao preconceito, a discriminação e à violência contra os homossexuais (ter desprezo, ódio, aversão ou medo de pessoas com orientação sexual diferente do padrão heterossexual). O termo, no entanto, não se refere ao conceito tradicional de fobia, facilmente associável à idéia de doença e tratados com terapias e antidepressivos. Atualmente, grupos lésbicos, bissexuais e transgêneros, com o intuito de conferir maior visibilidade política à suas lutas e criticar normas e valores postos pela dominação masculina, propõem, também, o uso dos termos lesbofobia, bifobia e transfobia. Daniel Borrillo faz uma leitura epistemológica e política desse conceito, não para compreender a origem e o funcionamento da homossexualidade, mas para “analisar a hostilidade provocada por essa forma específica de orientação sexual”. Segundo este autor quando a homossexualidade requer publicamente sua expressão é que se torna insuportável, pois rompe com a hierarquia da ordem sexual. Por isso, a tarefa pedagógica deve ser questionar a heterossexualidade compulsória e mostrar que a hierarquia de sexualidades é tão insustentável quanto a de sexos, bem como incluir a idéia de diversidade sexual em livros e apostilas escolares. HOMOSSEXUAL: é a pessoa que tem atração sexual e afetiva por pessoas do mesmo gênero e relacionamento com elas. HOMOSSEXUALIDADE: é a atração sexual e afetiva por pessoas do mesmo sexo. Cabe uma ressalva, não é correto o uso do termo homossexualismo, porque reveste de conotação negativa, atribuindo-lhe significado de doença e aberração. Por isso, devemos preferir a utilização dos termos homossexualidade, lesbianidade, bissexualidade, travestilidade, transgeneridade e transexualidade. IDENTIDADE DE GÊNERO: Expressão utilizada primeiramente no campo médico-psiquiátrico para designar os “transtornos de identidade de gênero”, isto é, o desconforto persistente criado pela divergência entre o sexo atribuído ao corpo e a identificação subjetiva com o sexo oposto. Entretanto, atualmente, a identidade de gênero corresponde à experiência de cada um, que pode ou não corresponder ao sexo do nascimento. Podemos dizer que a identidade de gênero é a maneira como alguém se sente e se apresenta para si ou para os outros na condição de homem ou de mulher, ou de ambos, sem que isso tenha necessariamente uma relação direta com o sexo biológico. É composta e definida por relações sociais e moldadas pelas redes de poder de uma sociedade. Os sujeitos têm identidades plurais, múltiplas, identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que podem até ser contraditórias. Os sujeitosse identificam, social e historicamente, como masculinos e femininos e assim constroem suas identidades de gênero. Cabe enfatizar que a identidade de gênero trata-se da forma que nos vemos e queremos ser vistos, reconhecidos e respeitados, como homens ou mulheres, e não pode ser confundida com a orientação sexual (atração sexual e afetiva pelo outro sexo, pelo mesmo sexo ou por ambos). IDENTIDADE SEXUAL: Identidades sexuais se constituem através das formas como vivemos nossa sexualidade, e refere-se a duas questões diferenciadas: 1) é o modo como a pessoa se percebe em termos de orientação sexual; 2) é o modo como ela torna pública (ou não) essa percepção de si em determinados ambientes ou situações. Quer dizer, corresponde ao posicionamento (nem sempre permanente) da pessoa como homossexual, heterossexual, ou bissexual, e aos contextos em que essa orientação pode ser assumida pela pessoa e/ou reconhecida em seu entorno. INTERSEXUAL OU INTERSEX: a palavra intersexual é preferível ao termo hermafrodita e é um termo usado para se referir a uma variedade de condições (genéticas e/ou somáticas) com que uma pessoa nasce, apresentando uma anatomia reprodutiva e sexual que não se ajusta às definições de masculino e feminino, tendo parcial ou completamente desenvolvidos ambos os órgãos sexuais, ou um predominando sobre o outro. A intersexualidade, enquanto transgeneridade é uma condição e não uma orientação sexual. Portanto, as pessoas que se autodenominam intersexuais podem se identificar como homossexuais, heterossexuais ou bissexuais. LESBOFOBIA: termo usado para descrever vários fenômenos sociais relacionados ao preconceito, a discriminação e à violência contra as lésbicas (ter desprezo, ódio, aversão ou medo de pessoas com orientação sexual diferente do padrão heterossexual). Ver homofobia. MACHISMO: é a crença de que os homens são superiores às mulheres. É uma construção cultural que definiu que as características atribuídas aos homens, tem um valor maior. Se pensarmos na educação de meninos e meninas, veremos que há um tratamento diferenciado que reproduz as manifestações de machismo nos meninos, e às vezes, nas próprias meninas. Ao incentivar (infidelidade, violência doméstica, esporte, diferença de direitos). MASCULINIDADE: Faz oposição ao termo feminilidade e diz respeito a imagem estereotipada de tudo aquilo que seria próprio dos indivíduos homens, ou seja, às características e comportamentos considerados considerados por uma determinada cultura como associados ou apropriados aos homens. Ver feminilidade, pois são conceitos relacionais que não passíveis de serem entendidos separadamente. MASCULINIDADE HEGEMÔNICA: É um modelo construído socialmente que controla, domina e substima as diversas formas de expressão de outras masculinidades, tornando-se um padrão de masculinidade. MOVIMENTO FEMINISTA: o movimento feminista surgiu para questionar a organização social, política, econômica, sexual e cultural de uma sociedade profundamente hierárquica, autoritária, masculina, branca e excludente. Sendo assim, o feminismo pode ser entendido como uma luta pela transformação da condição das mulheres, que é pública e também privada. E que pode ser entendida, a partir de três eixos: 1) como movimento social e político; 2) como política social; 3) e como ciência, ampliando os debates teóricos e conceituais (derivando a categoria gênero como analítica de sexo). Essas vias se entrecruzam, por diversas vezes, para desestabilizar representações, questionar a divisão sexual da sociedade, opor-se à hierarquização dos gêneros e, por isso, as teorias nem sempre podem dissociar-se de suas ações políticas, e vice-versa. PODER/RELAÇÕES DE PODER: nossas definições, crenças, convenções, identidades e comportamentos sexuais têm sido modeladas no interior de relações definidas de poder. Para Michel Foucault, o poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares. O poder se exerce de diversas formas: poder de produzir os corpos que controla, produz sujeitos, fabrica corpos dóceis, induz comportamentos. Foucault propõe que observemos o poder como uma rede que, capilarmente, se distribui por toda a sociedade. Nas palavras dele: “lá onde há poder, há resistência e, no entanto (ou melhor, por si mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (1977, p. 91). PRECONCEITO: é um pré-conceito uma opinião que se emite antecipadamente alimentada pelo estereótipo, é um juízo preconcebido, manifestado geralmente na forma de uma atitude discriminatória perante pessoas, lugares ou tradições considerados diferentes ou "estranhos". RACISMO: conjunto de princípios que se baseia na superioridade de uma raça sobre a outra. A atitude racista é aquela que atribui qualidades aos indivíduos conforme seu suposto pertencimento biológico a uma determinada raça. Não é apenas uma reação ao outro, mas é uma forma de subordinação do outro. SEXISMO: atitude preconceituosa que difere homens de mulheres definindo características específicas para cada um, subordinando o feminino ao masculino. SEXO BIOLÓGICO: é o conjunto de características fisiológicas, informações cromossômicas, órgãos genitais, potencialidade individual para o exercício de qualquer função biológica que diferencia machos e fêmeas. Entretanto, o sexo não é simplesmente algo que lhe foi dado pela biologia. Foucault analisa o sexo biológico como um efeito discursivo. O poder cria o corpo ao anunciá-lo sexuado, ao fazer de sua constituição biológica um fator natural que carrega características específicas e torna indiscutível a divisão dos humanos em dois blocos distintos (homens e mulheres). Isto não significa que o corpo não exista de forma sexuada. O que o poder cria é outra coisa: é a importância dada a esse fator corporal (biológico). O sexo produz, interdita, possibilita e regula o corpo limitando certos tipos de escolhas para a produção de um corpo sexuado que seja culturalmente aceitável e inteligível. Assim, o sexo é uma norma através da qual alguém se torna viável. SEXUALIDADE: É aprendida, ou melhor, é construída ao longo de toda a vida, de muitos e diferentes modos, por todos os sujeitos por isso, é entendida como um conceito dinâmico que se modifica conforme as posições do sujeito e suas disputas políticas. A sexualidade tem a ver tanto com o corpo, como também com os rituais, o desejo, a fantasia, as palavras, as sensações, emoções, imagens e experiências. Ela não tem ligação somente com a questão do sexo e dos atos sexuais, mas também com os prazeres e sua relação com o corpo e a cultura compreendendo o erotismo, o desejo e o afeto; até questões relativas a reprodução, saúde sexual, utilização de novas tecnologias. TRANSEXUAL: pessoa que possui uma identidade de gênero diferente do sexo designado no nascimento. Homens e mulheres transexuais podem manifestar o desejo de se submeterem a intervenções médico-cirúrgicas para realizarem a adequação dos seus atributos físicos de nascença (inclusive genitais) à sua identidade de gênero constituída. TRANSFOBIA: termo usado para descrever vários fenômenos sociais relacionados ao preconceito, a discriminação e à violência contra transexuais (ter desprezo, ódio, aversão ou medo de pessoas com orientação sexual diferente do padrão heterossexual). Ver homofobia. TRANSGÊNEROS OU TRANS: são termos utilizados para reunir, numa só categoria, travestis e transexuais como sujeitos que realizam um trânsito entre um gênero e outro. TRAVESTI: pessoa que nasce do sexo masculino ou feminino,mas que tem sua identidade de gênero oposta a seu sexo biológico, assumindo papéis de gênero diferentes daquele imposto pela sociedade. Muitas travestis modificam seus corpos através de hormonioterapias, aplicações de silicone e/ou cirurgias plásticas, porém vale ressaltar que isso não é regra para todas (Definição adotada pelo Conferência Nacional LGBT em 2008) ORIENTAÇÃO SEXUAL: refere-se ao sexo das pessoas que elegemos para nos relacionar afetiva e sexualmente. Atualmente temos três tipos de orientação sexual: heterossexual, homossexual e bissexual. Contrapõem a OPÇÃO SEXUAL entendida como escolha deliberada e realizada de forma autônoma. VIOLÊNCIA DE GÊNERO: É aquela oriunda do preconceito e da desigualdade entre homens e mulheres e apóia-se no estigma da virilidade masculina (legítima defesa da honra) e da submissão feminina. Quando as vítimas são crianças e adolescentes o Art. 245 do ECA, obriga os profissionais da saúde e educadores e educadoras a comunicarem o fato aos órgãos competentes. Na escola a discriminação é manifestada por meio de apelidos, exclusões, perseguição, agressão física. O que são as Diretrizes Curriculares de Gênero e Diversidade Sexual? Professora Dra. Maria Rita de Assis César (UFPR) Diretrizes sugerem um caminho a ser seguido. Um conjunto de pressupostos que orientarão esse caminho a ser percorrido. Além de significar o feminino de diretor, pelo dicionário, diretriz significa “(...) linha reguladora do traçado de um caminho ou estrada; conjunto de instruções ou indicações para se tratar e levar a termo um plano, uma ação, um negócio, etc.; (...) norma de procedimento (...)”. Desse modo, ao se ter em mente a idéia de diretrizes, um conjunto de representações se materializa nos aproximando também da idéia de normas, regras, procedimentos legais, etc. Diretrizes são tudo isso e, sobretudo, em se tratando do currículo escolar, a proximidade com a idéia de normas e regras, também poderá significar procedimentos didático-pedagógicos que deverão ser seguidos. Acostumadas/os às inúmeras mudanças e reformas na educação brasileira professora/es também acabaram por se habituarem a receber de tempo em tempo novas diretrizes, além de novas normas, novas leis, novas regras que, por sua vez, produzem impactos de diferentes dimensões no planejamento e cotidiano do trabalho educacional. Muitas vezes proveniente de ‘ondas’ e ‘modas pedagógicas’, arranjos epistemológicos, que por obra do acaso ou do esforço de intelectuais e profissionais da educação e outras áreas do conhecimento, acabam por vislumbrar solução para problemas pedagógicos insistentes. As diretrizes curriculares na maior parte das vezes possuem uma filiação direta com a produção, o controle e a distribuição dos saberes escolarizados, além da vigilância das práticas e procedimentos pedagógicos. Assim, a elaboração de diretrizes curriculares faz parte do conjunto de atribuições de secretarias e ministérios na tentativa de ‘melhorar a educação’. Entretanto, estudos críticos de diversas filiações demonstram a arbitrariedade, as relações de poder estabelecidas nesses processos, as vozes caladas, os sujeitos esquecidos, enfim, uma gama de faltas e falhas que acabam por justificar os problemas decorrentes, tanto dos processos de elaboração, como também da aplicação das mesmas. Nas últimas décadas no Brasil, algumas experiências de elaboração de diretrizes curriculares têm considerado as inúmeras vozes e práticas que, segundo variadas críticas, durante muito tempo foram silenciadas na sociedade brasileira. Os inúmeros protagonistas de uma história que, há até pouco tempo, não constavam no rol dos saberes escolarizados, a partir de um conjunto de empreendimentos oriundos dos movimentos sociais, das universidades e das práticas culturais, começam a aparecer e intervir na produção e distribuição dos conhecimentos. Afrodescendêntes, indígenas, mulheres, quilombolas, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, isto é, sujeitos e experiências que não pertenciam ao mundo do conhecimento oficial e escolarizado, através das lutas sociais, fizeram-se presentes e hoje são partes fundamentais da construção de propostas educacionais, currículos, diretrizes, etc. Considerando os ‘novos’ sujeitos sociais, os ‘novos’ problemas pedagógicos e as ‘novas’ experiências escolares, além das relações de poder presentes nos textos pedagógicos, as Diretrizes Curriculares de Gênero e Diversidade Sexual da Secretaria de Educação do Estado do Paraná tomou como ponto de partida um questionamento sobre a própria idéia de diretrizes. Ao reconhecer o texto pedagógico como campo de disputas e relações de saber-poder, que por sua vez produz um conjunto normativo de práticas pedagógicas que acabam por se configurar em processos de exclusão de saberes e de sujeitos, estas diretrizes se propõem a inventar um outro lugar para a reflexão pedagógica. Não se trata aqui de instituir instrumentos de direção de conhecimentos e condutas pedagógicas. Os saberes aqui expostos dizem respeito a uma crítica em relação aos conhecimentos tradicionalmente veiculados nos textos pedagógicos. Tampouco trata-se aqui de produzi um novo guia do caminho a se percorrido, mas sim um conjunto de alertas e reflexões críticas sobre os caminhos que não deverão ser percorridos. Desse modo, estas diretrizes se apresentam como reflexões que problematizam os saberes normatizados e naturalizados, sobre gênero, sexualidade e diversidade sexual. Toma-se aqui o currículo é uma narrativa, isto é, a narrativa de alguns grupos sociais que se tornaram perigosamente hegemônicos e se estabeleceram como ‘universais’. Desse ponto de vista ‘universal’ é a representação de conhecimento, cultura e sujeito de grupos que, no decorrer de processos históricos arbitrários e excludentes, foram alçados ao lugar do centro, isto é, o homem, branco, europeu, heterossexual, produtivo e reprodutivo. Assim, já partimos do pressuposto que o ‘universal’ não existe, isto é, que tudo aquilo estabelecido como universal se formou nos processos de relações de poder que engendram exclusões e desaparecimentos. Tudo aquilo que foi afastado na produção do ‘universal’, isto é, outros sujeitos, outros saberes, outras culturas, outras experiências, nesse processo de separação, acabaram por habitar as margens, isto é, mulheres, não europeus, homossexuais, não cristão, entre muitos outros. Entretanto, essa separação entre centro e margem foi fundamental para garantir um conjunto de privilégios a este centro, traduzidos por meio de processos de naturalização e normalização de condutas e conhecimentos. A própria idéia de currículo e, por conseguinte de diretriz curricular não escapou a esse processo. Diretrizes curriculares de matemática, ciências, língua portuguesa não causa espanto, dizem respeito a conhecimentos consagrados pelos processos de naturalização dos saberes. Entretanto, diretrizes para gênero e diversidade sexual nas escolas pode causar um certo mal estar. A escola precisa trabalhar com isso? Sim, é essa a tarefa da escola, sobretudo porque as questões de gênero e diversidade sexual já estão presentes no universo escolar e na maior parte das vezes vem sendo abordada com preconceitos e produzindo ainda mais sofrimento, violência e exclusão. Se durante vários séculos a escola não precisou explicar a razão de ensinar as hierarquias e desigualdades, faz-se necessário um conjunto de documentos que demonstrem o preconceito e a violência produzida pela instituição escolar. Em relação a hierarquia de gênero as mulheres foram ‘naturalmente’, quando nãoexcluídas, diminuídas, estimuladas diferentemente e incluídas em ações menos importantes. E ainda hoje, tanto se pergunta sobre a diferença entre meninos e meninas, demonstrando o preconceito latente. Entendemos aqui que a escola desde sempre aplicou uma pedagogia de gênero que consolidou a idéia de desigualdade entre homens e mulheres. Também em razão das diferentes experiências com a sexualidade e o desejo, a escola, sem qualquer explicação sempre se colocou no lugar da produção da norma heterosexual, produzindo, contribuindo e ampliando preconceitos em razão da sexualidade, praticando a homofobia, a lesbofobia e a transfobia. Sim, a escola, os saberes escolares e as práticas pedagógicas precisam ser objeto de reflexão sobre as desigualdades sexuais e de gênero. A idéia de diretrizes curriculares é aqui colocada em outro território do pensamento, da reflexão e das práticas pedagógicas; são aqui tomadas como narrativas construídas como crítica e resistência aos saberes normativos da escola. As diretrizes de gênero e diversidade sexual, aqui apresentadas, se colocam como ‘contra-narrativas’ ou ‘contra-diretrizes’, isto é, representam um texto que se propõe a ser um lugar de questionamento das verdades estabelecidas e que fazem funcionar as relações desiguais entre os gêneros e os sexos. Desse modo, não serão apresentados aqui novos conhecimentos, novos saberes científicos e metodologias de aplicação. O que estamos chamando de diretrizes é um conjunto de reflexões fundamentais que problematizam as verdades consolidadas sobre gênero, sexualidade e diversidade sexual. Nesse sentido, se des-instaura (des-territorializa) uma idéia universal de diretriz, re-territorializando-a. Isso se dá com o trabalho cuidadoso com os temas que concorrem para uma abordagem sobre o gênero, a sexualidade e diversidade sexual. Subvertendo a idéia tradicional de diretriz curricular, estas diretrizes, por abordar temas que trazem consigo uma importante críticas dos conhecimentos estabelecidos, se apresenta na forma de reflexão, com o objetivo de desestabilizar as verdades que construíram os preconceitos, as fobias, as violências sobre os sujeitos. Inaugurando uma outra maneira de escrever diretrizes curriculares apresentamos aqui um Glossário e um conjunto de quatro texto que abordam os seguintes temas: gênero, sexualidade, homofobia e educação sexual. Os textos que compõem essas diretrizes apresentam-se como possibilidades e certamente abrirão um espaço de confronto de idéias, fundamental para as experiências necessárias que os trabalhos com os temas proporcionarão. Talvez com esse documento estejamos inaugurando a possibilidade de professoras/es se defrontarem com o (des)conhecido, com o não saber, como forma de produzir reflexões-ações que produzam menos preconceito e violência. Gênero: Como e por que compreender? Professora Ms. Viviane Teixeira Silveira Através deste texto, pretendemos que você professor/a consiga identificar as diferenças na educação de meninos e meninas, atentando para uma compreensão social e histórica de que existe um padrão de conduta e de comportamentos diferenciados, que foram construídos social e historicamente, para meninos e meninas, homens e mulheres. Aos homens, o dever de serem provedores, agressivos, fortes; às mulheres cabe o cuidado com o lar, com a reprodução, e com a educação dos filhos e filhas. Esses padrões de comportamento pautam-se em argumentos biológicos que reproduzem desigualdades sociais relevantes entre os sexos. Ao identificarmos e reproduzirmos atividades e adjetivos diferenciados para homens e mulheres estamos construindo o gênero. Essa construção é marcadamente cultural, pois varia conforme a sociedade na qual estamos inseridos. Ao pensarmos no conceito de gênero cabe esclarecer duas características principais: 1) o gênero só tem sentido se pensado em termos relacionais, ou seja, só é possível conceber o feminino em relação ao masculino, e vice-versa; 2) a construção do gênero é cultural, só tendo sentido quando relacionada ao contexto sócio-cultural no qual se manifesta. É necessário esclarecer que a família e a escola têm um papel fundamental na luta contra o preconceito e a reprodução de desigualdades na sociedade. Precisamos ter um olhar atento para as questões da diversidade sexual e das construções de gênero para que possamos interferir nos processos de preconceito e de discriminação. Entender que existem corpos marcados por diferenças biológicas, mas que também, são marcados pela socialização. Desde que nascemos somos ensinados a ser meninos ou meninas, conforme a decoração do quarto, as cores das roupas, os brinquedos e as brincadeiras. Tudo isso constitui modos de pensar e de agir correspondente a cada gênero. É importante que vocês professores e professoras estimulem outras formas de constituição de identidade nas crianças e adolescentes que não venha somente ao encontro do que é esperado em termos de papéis de gênero. Podemos estimular nos meninos que sejam carinhosos, gentis, curtam balé e dança. As meninas, podem ser motivadas a gostar de carros e de futebol, sem que isso interfira na sua vivência da sexualidade, por exemplo1. Se quisermos educar para um mundo mais justo, é preciso que atentemos para não educar meninos e meninas de uma forma radicalmente distinta. Quando as crianças adentram as escolas, elas já passaram por uma socialização inicial da construção dos gêneros na família. Entretanto, a escola deve estar atenta para não permitir a reprodução do preconceito contra as mulheres e contra todos aqueles que fogem a masculinidade hegemônica. Se o gênero é construído por relações sociais, pela família, pela escola, pelos processos de socialização e pela mídia, podemos partir do pressuposto de que ele também pode ser reconstruído, desconstruído, questionado, modificado em busca de uma igualdade social entre homens e mulheres, do ponto de vista do acesso à direitos sociais, políticos e civis. Qual é a responsabilidade da escola nesse caso? Como educar meninos e meninas para a equidade de gênero? Construímos esse texto para demonstrar que o gênero tem uma história voltada para processos de socialização e aprendizado. Num primeiro momento, fizemos uma breve apresentação histórica sobre os debates do movimento feminista e os estudos de gênero em torno do campo político. Logo após professor/a, buscamos trazer um exemplo do gênero enquanto política social, trazendo para o debate a questão das políticas de ação afirmativa (cotas). Concluímos o texto, aprofundando o conceito de gênero e apontando as diferenças na educação de meninos e meninas, querendo dessa forma, que você professor/a, tenha acesso a informações para que possa conduzir um debate competente e não se omita diante de cenas explícitas de discriminação e preconceito, como o racismo e o sexismo, apostando assim, numa educação crítica. 1 A partir de um exercício sobre os filmes “Billy Eliot” e “Menina de Ouro”, por exemplo, podemos problematizar os estereótipos de gênero e preconceitos em relação a escolhas profissionais que desestabilizam a ordem heteronormativa e caricata do masculino e do feminino na sociedade. 2- O surgimento das teorias feministas e de gênero no contexto brasileiro A história do movimento feminista no Brasil está diretamente associada às produções teóricas feministas. A década de 1970 foi rica politicamente e incitou a participação da mulher no cenário público, político e cultural. No entanto,neste período histórico, a participação feminina esteve vinculada, principalmente, a questões políticas e de confronto ao regime ditatorial que vigorava no País. A Organização das Nações Unidas- ONU instituiu o ano de 1975 como o ano internacional da mulher. Esta declaração oficial foi um marco que propiciou o cenário para o reconhecimento das lutas feministas no âmbito internacional. Segundo Sarti (2004)2 iniciado nas camadas médias, o feminismo brasileiro, que se chamava “movimento de mulheres”, expandiu-se através de uma articulação peculiar com as camadas populares e suas organizações de bairro, constituindo-se em um movimento interclasses, cujo foco era a oposição ao regime militar. Nesse sentido, temas como aborto, sexualidade, planejamento familiar, violências contra mulher permaneceram no âmbito das discussões privadas, com pouca ressonância pública durante os anos 70, só nas décadas seguintes esses temas passam a ser foco de reflexões e políticas públicas advindas, sobretudo, a partir das reivindicações feministas. Historicamente é a partir da década de 1980 que os estudos feministas procuraram dar maior visibilidade a problemáticas variadas que infligem mulheres em todos os cantos do país. Uma das questões mais evidenciadas foi as diversas formas de violências que acometem as mulheres. O combate a violência era o mote principal ao qual se dirigiam as atenções durante os anos 80. O foco, naquele momento, era assistir as vítimas a partir de intervenções psicológicas, sociais e políticas. Podemos citar que uma das principais conquistas dessa época foi à criação da Delegacia da Mulher. Esta política pública deve ser considerada de efetiva importância para as conquistas sociais obtidas durante as últimas três décadas, incluindo aqui a instituição dos temas transversais nos Parâmetros Curriculares Nacionais, a Secretaria Especial de 2 SARTI, Cynthia Andersen. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória. In: Estudos Feministas, Florianópolis, 12(2):264, maio-agosto/2004. Políticas para Mulheres, a Lei Maria da Penha3, discussões sobre sexualidades, descriminalização do aborto, criminalização e combate a homofobia, dentre muitas outras. Além das conquistas no âmbito político, o movimento e as teorias feministas e de gênero com toda sua produção teórica vêm rompendo com o aprisionamento das mulheres ao seu corpo biológico, debate que se aprofunda no Brasil nos anos 90, com a introdução do texto da autora Joan Scott, Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Essas discussões têm uma tradição interdisciplinar resultante de um processo de desconstrução teórica, que vem se desenvolvendo no interior de diversos campos disciplinares, tais como História, Sociologia, Antropologia, principalmente nas Ciências Humanas. Os debates na Biologia e nas Engenharias também estão presentes, é bastante atual e voltado para reflexões em torno de qual é o gênero da ciência, ou seja, como a ciência é produzida e a partir de quais critérios e relações de poder se constitui o conhecimento. Nesse sentido, caro/a professor/a, é importante estar atento e considerar o modo como o conceito de gênero foi se constituindo e quais são suas bases teóricas e suas dimensões conceituais para que a prática pedagógica possa se efetivar longe da construção de estigmas, estereótipos e preconceitos. Desnaturalizar hierarquias de poder baseadas nas diferenças de sexo tem sido um recurso utilizado para romper com argumentos pautadas na biologia que desqualificam as mulheres, corporal, intelectual e moralmente e qualificam um sujeito homem a partir de uma masculinidade hegemônica desconsiderando todas as perspectivas de respeitos às diferenças. Para RAGO (1995), o feminismo adquiriu uma enorme importância “ao questionar a organização sexual, social, política, econômica e cultural de um mundo profundamente hierárquico, autoritário, masculino, branco e excludente” (p.12). O feminismo como movimento social e político, inicialmente, pode ser pensado como o momento no qual as mulheres reivindicaram visibilidade e 3 A Lei Maria da Penha foi instituída em agosto de 2006. Tem por objetivo maior criar “mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher” (artigo 1º). Essa Lei dispõe também sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, além de prescrever a necessidade de uma ação ampla e integral na prevenção e no combate a essa violência, por parte dos diversos níveis de governo e do Poder Judiciário, e de setores organizados da sociedade civil. espaços na vida social, cultural e política, denunciando a dominação sexista, ideológica e cultural dos homens. Assim precisamos ficar atentos/as para o fato de que, um questionamento importante introduzido pela teoria feminista e pelos estudos de gênero, se refere a falsa dicotomia entre a esfera pública e privada. As teorias feministas justamente foram buscar as culturas aprisionadas dentro dos espaços familiares para se desenvolverem e proporem alternativas para a organização da sociedade. Temas fundamentais que animaram as discussões relativas às mulheres, como a violência, a saúde feminina, o aborto, entre outros, são reconhecidos como peças chaves na produção da subjetividade e identidade feminina e também sobre masculinidades e feminilidades. 3- Gênero como política social A categoria gênero surge para atender demandas e reivindicações das mulheres em termos de igualdade4, mas atenção professor/a, é importante lembrar que o gênero é relacional. Nesse sentido, como política social podemos exemplificá-lo com o surgimento das políticas de ação afirmativa no início da década de 1960 nos Estados Unidos, que propôs não só um conjunto de mandados políticos, “mas também uma teoria sobre as relações entre indivíduos e grupos, direitos políticos e responsabilidades sociais” (SCOTT, 2005, p.22). A ação afirmativa surgiu com a intenção de mostrar que algumas práticas sociais tinham excluído pessoas da categoria universal do ser humano (branco, heterossexual, masculino), e por isso, havia necessidade de investir para que indivíduos tivessem tratamentos iguais em termos de direito e de deveres. No Brasil, o investimento em políticas de ação afirmativa começou somente nos anos 90, mas teve a mesma intenção norte-americana, ou seja, eliminar desigualdades historicamente surgidas, garantindo a igualdade de 4 Pode-se traçar uma certa genealogia dos movimentos pela igualdade entre os sexos, que poderia retroceder ao século XVIII com Mary Wollstonecraft e a sua vigorosa reivindicação de igualdade (Vindication of the Rights of Woman de 1792, foi escrito em resposta as especulações de Jean Jacques Rousseau sobre a diferença entre a educação das mulheres e dos homens). Olympe de Gouges também foi uma personagem da Revolução Francesa, que ao sentir-se excluída da Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789 redigiu a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, em 1791, sendo a mais importante crítica da Declaração, pois não encontra as mulheres contempladas nesse texto. Maiores referências sobre Olympe de Gouges, bem como sobre Mary Wollstonecraft, podem ser encontradas em SCOTT, Joan. A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2002. oportunidades; bem como, proporcionar uma compensação por perdas provocadas por discriminação ou marginalização em virtude de raça, etnia, sexo, gênero. Portanto, a obtenção da equidade, necessita que reconheçamosas diferenças, nomeando quais grupos são excluídos nas diversas áreas, instituições, escolas, legislação e espaços públicos e privados. Nesse sentido, o trabalho dos/as professores/as é importante porque não pode reforçar estereótipos e discriminações, e sim, deve utilizar dessas lutas do movimento social para mostrar que os debates sociais estão presentes no espaço público e no privado, e são politicamente importantes. 4 – Conceitualizando gênero As abordagens das teorias feministas e dos estudos de gênero, representam acima de tudo uma revolução nas formas de produzir conhecimento social e histórico. A maior “revolução” talvez tenha sido a que ocorreu no plano da subjetividade, mais precisamente no sexual, pois é este o momento em que a virgindade deixa de ser um valor fundamental, “o casamento começa a ser amplamente questionado e se começa a pensar mais coletivamente, no ocidente, que o sexo poderia ser fonte de prazer não apenas destinado à reprodução da espécie humana” (GROSSI, 1998, p.2). Embora os estudos sobre as mulheres brasileiras tenham recebido um impulso extraordinário nos anos setenta, a referência continua sendo a unidade biológica das mulheres, isto é, que todas as mulheres, independente de sua condição social de origem, se reconhecem pela morfologia do sexo feminino (vagina, útero, seios) e os homens, pelo pênis e testículos. A própria diferença entre sexo e gênero representou um debate fundamental dentro dos estudos feministas5. A princípio a diferença entre homem e mulher era abordada de forma naturalizada, pois a diferença orgânica e fisiológica representava o corte simbólico entre homens e mulheres. A partir das teorizações sobre a sexualidade, além das aproximações com outras categorias de análise sociais, como raça, etnia, cultura, criou-se a categoria gênero, para que a idéia da diferença recaísse sobre o campo do histórico, do 5 Para mais, ver: LAQUEUR, Thomas Walter. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. social e do discursivo, colocando em xeque uma idéia de natureza, que também deveria ser questionada6. Diferença entre sexo e gênero SEXO GÊNERO Características físicas ou anatômicas que distinguem macho e fêmea Relacional Remete a questões biológicas de cada pessoa Não determina a orientação sexual de uma pessoa Cultura No Brasil, com a tradução e divulgação do artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica” de Joan Scott, as pesquisadoras brasileiras começam a utilizar essa categoria, enquanto instrumental de análise, apesar de já há algum tempo pesquisadoras norte-americanas terem utilizado a palavra gender para referir “as origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e mulheres” (SCOTT, 1990, p.5). A partir daí, o conceito de “gênero” seria amplamente empregado nos discursos sobre a sociedade, oriundos das mais diferentes instituições, tais como universidades, ONGs, escolas, sindicatos, governos, etc. Dessa forma, o conceito de gênero se refere à construção social do sexo anatômico, procurando demarcar oposição entre o sexo biológico. Ou seja, a forma com que homens e mulheres se manifestam na sociedade é parte de um aprendizado que ensina a agir conforme as prescrições de cada gênero, criando uma dicotomia entre o masculino e o feminino, institucionalizada, muitas vezes, pela concepção biológica sobre corpo. Assim, é a partir das diferentes concepções dos estudos de gênero que, inicialmente se referiam à “condição feminina”, a seguir à “problemática da mulher” e hoje, majoritariamente ao “gênero” enquanto categoria de análise, que as várias teorias procuram explicar, as categorias homem e mulher. Ou seja, desde o século XIX existe a idéia de que a categoria “mulher” é uma 6 Para mais, ver o artigo NICHOLSON, 2000. construção social, mas eram visíveis as dificuldades teóricas para explicar a opressão das mulheres nas diferentes teias de relações sociais com que homens e mulheres cotidianamente convivem. Assim, por um lado, enquanto os estudos da condição feminina tinham a pretensão de homogeneizar todas as mulheres (desconsiderando as diferenças de classe, raça, e idade), por outro, a ênfase dos estudos na problemática da mulher priorizava a questão de classe, e demonstravam, ambos, a falta de uma articulação das diferentes esferas em que se dá a opressão sobre as mulheres. É nas limitações destas teorias que surge o conceito de gênero, enquanto categoria relacional, o qual procurará articular as relações historicamente determinadas para além das diferenças de sexos, mas “sobretudo uma categoria que serve para ‘dar sentido’ a esta diferença” (SCOTT, 1998, p.10). Por outro lado, é necessário pontuar que a partir do final da década de 1980 emergiu nos Estados Unidos a Teoria Queer, voltada para o estudo das sexualidades, mas que em seu bojo problematiza o conceito de gênero, preconizando a problematização de questões clássicas referentes a diversos campos científicos como o sociológico, filosófico, antropológico e biológico numa tentativa de posicionamento crítico em relação às leituras teóricas e sociais sobre a normalização da sexualidade e dos corpos. Até os anos 90 a ordem social era considerada como sinônimo de heterossexualidade, e outras formas de manifestação e práticas sexuais que não se coadunassem com esse modelo eram compreendidos como “anormais”. Ou seja, o pressuposto da normalização heterossexista estava presente inclusive nos estudos referentes a sexualidade não-hegemônica. Os teóricos queer, dentre eles, Teresa de Lauretis, Judith Butler, Beatriz Preciado, compreendem a sexualidade como um dispositivo histórico e social de poder. A escolha do termo queer para denominar esta corrente teórica está baseada no uso contextual da palavra nos Estados Unidos, que significa, dentre outras denominações, xingamento, anormalidade, perversão e desvio. Nesse sentido, a palavra queer é socialmente utilizada de forma negativa e agressiva em relação às sexualidades não-hegemônicas e foi incorporada pelos teóricos para demarcar o espaço de estigmatização, análise e desconstrução de identidades hegemônicas, numa tentativa de dialogar diretamente com um sujeito fragmentado, efêmero e contextual; e questionar as definições do que é ser homem e ser mulher. Além disso, buscam a compreensão de uma sexualidade na qual a premissa de rótulos só serve para fortalecer a concepção heteronormativa. Segundo Butler “se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio constructo chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero” (Butler, 2008, p.25)7. Portanto, os pressupostos teóricos queer se apresentam de forma importante para a prática pedagógica, na medida em que estimulam o debate em torno de questões como a centralidade dos mecanismos sociais relacionados à operação do binarismo heterossexual/homossexual para a organização da vida social contemporânea, e procuram dar mais atenção crítica a uma política do conhecimento e da diferença, considerando as práticas e conhecimentos variados que organizam a sociedade como um todo, incluindo a sexualização de corpos, desejos, identidades, relações, cultura e instituições. Assim, é fundamental que a equipe escolar esteja atenta as manifestações das práticas sexuais no ambiente escolar, e que atuem na perspectiva de desconstrução dos processos de normalização da sexualidade centrada entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Para além desse binarismo existem muitas expressões de manifestação sócio-sexual que precisamser tratadas a partir de uma concepção respeitosa. Nesse sentido o trabalho pedagógico é muito importante e deve se pautar no diálogo e no respeito às diferenças e aos sujeitos. A escola é um espaço de socialização para a diversidade e para o questionamento da aprendizagem do gênero e da sexualidade, entretanto a invisibilização dessas questões mostra que é necessário um investimento dos/as professores/as em sua formação para aprofundar o debate com os/as alunos/as. Mesmo que abordagens étnico-raciais, de gênero e/ou econômicas já estejam, aos poucos, sendo contempladas e sendo alvo de investimentos do Ministério da Educação, as dimensões social e política da sexualidade permanecem às margens. 7 Butler, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Gênero, sexualidade e educação Professora Dra. Maria Rita de Assis César (UFPR) Gênero e sexualidade na escola? Quais os significados destes temas no universo escolar? De certa maneira, uma parcela da sociedade brasileira reconhece o lugar estabelecido especialmente sobre a sexualidade na escola. As primeiras preocupações em relação à educação do sexo de crianças e jovens no Brasil tiveram lugar nos anos vinte e trinta do século XX. Nesse momento a educação sexual já era uma preocupação para médicos, intelectuais, professores e professoras. Em 1933 foi fundado na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, o Círculo Brasileiro de Educação Sexual, que editou um periódico denominado Boletim desde o ano da sua criação (1933) até 1939 (SOUZA, 2002). Ao contrário das ideias que se estabeleceram no imaginário a respeito da ocultação sobre o sexo e as práticas sexuais, desde o final do século XVIII e, especialmente, desde o século XIX, o sexo já era objeto de discussões entre médicos e educadores que defendiam a presença de uma educação para a higiene sexual dos jovens (CÉSAR, 2008). Estas primeiras tentativas do século XX em defesa da educação sexual nas escolas brasileiras se dava por meio de pressupostos higienistas e eugênicos. A partir de perspectivas bem estabelecidas, a fala da sexualidade e não o seu silêncio constituiu-se como fator importante no discurso educacional brasileiro. Se relacionarmos o processo de escolarização à disciplinarização dos corpos de crianças e jovens, veremos que a educação do sexo encontrou seu lugar privilegiado na escola desde muito cedo. Assim, o ‘sexo bem educado’ se apresentou como parte fundamental do processo de escolarização, mesmo que este não tenha sido abordado sob a rubrica de uma disciplina específica, pois a regulação do sexo de crianças e jovens nas escolas foi uma tônica na conformação da pedagogia moderna (COSTA, 1983). Certamente, a instituição escolar se transformou ao longo do século XX. Ora conservadora, ora revolucionária, ora progressista, ora liberal. A partir dos anos de 1960, os movimentos pelos direitos civis, as lutas feministas, os movimentos de gays e lésbicas, as reivindicações étnico-raciais e, na América Latina, as lutas contra os regimes ditatoriais, produziram marcas no discurso sobre na escola. Um segundo momento importante em relação à produção discursiva e as práticas pedagógicas da educação sexual no Brasil deu-se nos primeiros anos da década de 1960. Pouco antes da ditadura militar, o Brasil vivia um clima de ‘renovação pedagógica’, as críticas sociológicas sobre os sistemas educacionais começavam a ser formuladas e aplicadas em escolas experimentais. Foi justamente nesse período que o tema da educação sexual retornou de forma mais sistemática ao discurso pedagógico. Nessa que podemos chamar de segunda onda da ‘educação sexual’ brasileira, escolas de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte organizaram programas de educação sexual em conexão com as novidades pedagógicas e curriculares de então. Nas escolas paulistas destacaram-se as experiências desenvolvidas tanto na Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo quanto no Colégio Vocacional e nos Colégios Pluricurriculares. Estas experiências específicas de educação sexual e todas as demais experiências pedagógicas originadas dessas instituições foram reprimidas e suprimidas pela ditadura militar. Como a ditadura impôs um regime de controle e moralização dos costumes, especialmente decorrente da aliança entre os militares e o majoritário grupo conservador da igreja católica, a educação sexual foi definitivamente banida de qualquer discussão pedagógica por parte do Estado e toda e qualquer iniciativa escolar foi suprimida com rigor. As iniciativas que conseguiam resistir e burlar o controle se tornaram experiências de resistência e, nas décadas seguintes, a ‘educação sexual’ foi tomada como um dos marcos educacionais das lutas pela democratização do país. No período ditatorial, portanto, a educação sexual e os debates sobre gênero ou feminismo apareceram como parte de um projeto de escola e educação que se instaurou nas bases das lutas pela redemocratização do país, e nesse momento a educação sexual apareceu como uma reivindicação importante do movimento feminista brasileiro. Naquele momento, a escola foi tomada como o lugar privilegiado dos processos de redemocratização e a educação sexual como uma proposta libertadora dos corpos, das mulheres e sujeitos. Entretanto, a ligação entre a ‘educação sexual’ e o movimento feminista produziu apenas marcas leves nas práticas pedagógicas de ‘educação sexual’ no Brasil, as quais logo desapareceram. Essa vinculação da ‘educação sexual’ com as questões que cercavam a luta contra o patriarcado e a hierarquia de gênero foi abandonada e o feminismo como campo de indagação das práticas pedagógicas desapareceu sem deixar rastros. Com efeito, na mesma medida em que o feminismo desapareceu como ‘epistemologia’ das práticas pedagógicas sobre a sexualidade, a educação sexual começou a se fortalecer como campo específico da saúde. Assim, no início dos anos 80, o discurso da saúde e da biologia ocupara por completo esse espaço. Duas décadas mais tarde, a epidemia de HIV/AIDS terá um grande impacto na educação, na medida em que crescia o paradigma da informação como ‘arma’ contra a epidemia. Assim, a escola no início dos anos 90 foi tomada como um lugar fundamental para a propagação de informações sobre o ‘sexo seguro’, as quais incluíam, além do contágio do HIV/AIDS e outras DSTs, a ‘gravidez na adolescência’, que para os especialistas começou a ser tomada como um ‘problema pedagógico’ importante. A partir desse momento, o discurso da sexualidade nas escolas brasileiras foi definitivamente colonizado pela ideia de saúde e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e da gravidez na adolescência, tomadas como sinônimo de problema de saúde física e social. Na segunda metade dos anos de 1990, no âmbito de um conjunto de reformas educacionais, o governo brasileiro produziu os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) . Os PCNs foram concebidos como resposta e solução para grande parte dos problemas educacionais no Brasil, bem como resposta à inserção na Constituição de 1988 de temas oriundos dos movimentos sociais, tais como as questões étnico-raciais, o meio-ambiente, a sexualidade e o gênero, esquecidas desde os projetos dos anos 70 (CÉSAR, 2004). Inspirada pela reforma educacional espanhola organizada pelo partido popular, ultraconservador, no início dos anos 90, a educação brasileira tomou para si a concepção dos temas transversais e instituiu a educação sexual como um dos temas a serem trabalhados nos PCNs. O fascículo como Tema Transversal Orientação Sexual, publicado em 1997, foi tomado como a consolidação definitivamente do tema nas escolas, produzindo uma escolarização da sexualidade. No transcurso do tempo observamos alguns deslocamentos. Já não nos preocupamos mais com a masturbação das crianças, por exemplo. Nesse meio tempo, entretanto, talvez tenhamos criado outros mecanismos tão perversos quanto os anteriores, na medida em que, por exemplo, ainda nos deparamos com uma verdadeira obsessão médica com o corpo, com a saúde e, sobretudo, com as chamadas identidades de gênero. Assim, é possível que nossa história da sexualidade tenha uma origem e desdobramentos com os quais não desejamos mais ter qualquer familiaridade, mas certos desdobramentos dessa história são ainda exemplos de exclusão e violência em torno das práticas sexuais não normativas. Especialmente na última década, vem se realizando importantes esforços na tentativa de afastar as discussões sobre corpo, prazer, desejo, cuidados e feminismo, primeiro de sua origem eugenista, e depois de seu desdobramento biológico, com vistas exclusivas à saúde e a prevenção. Talvez ainda tenhamos que perceber que, paradoxalmente, a ‘educação sexual’ no contexto escolar contemporâneo possa ser um espaço para entendermos a história da sexualidade do ponto de vista dos nossos mecanismos de exclusão e de produção da norma sexual, de modo que possamos resistir aos mecanismos de produção e reprodução da norma. Se isso acontecer, a educação sexual, orientação sexual, ou uma ‘educação para a sexualidade’, nas escolas será, antes de tudo, um ato político contra os processos de violência e exclusão em razão do desejo e do gênero. Entretanto, quase um século depois das primeiras tentativas de organizar um programa de educação sexual nas escolas brasileiras, o ‘sexo bem educado’ certamente não pertence mais ao universo positivista e eugenista das primeiras décadas do século XX. O novo ‘sexo bem educado’ passou agora a ocupar territórios vizinhos, como a ideia de ‘sexo responsável’, ‘sexo saudável’ e ‘sexo seguro’. Assim, podemos dizer que uma ‘epistemologia’ da saúde, da responsabilidade e do binômio risco/segurança vem produzindo uma educação sexual definida por uma ideia específica sobre o ‘bem viver’. No cenário educacional contemporâneo, e tendo por objetivo específico delimitar parâmetros sobre a vida e a felicidade, a sexualidade seguiu rumos epistemológicos diversos, como a psicologia do desenvolvimento e a fisiologia da saúde. Uma vez mais, na tentativa de esboçar contornos ‘epistemológicos’, reporto-me à história e ao conceito de sexualidade, tal como definida por Michel Foucault (1984), pois penso ser esse um horizonte importante para pensarmos sobre a sexualidade na educação. Desse ponto de vista, a presença da sexualidade na escola pode perfeitamente se traduzir na função de reproduzir o dispositivo de controle dos corpos, assim como em paradigma biopolítico de controle da vida, pois foi justamente na instituição escolar que se instauraram historicamente os dispositivos disciplinares e de governo sobre os corpos de crianças e jovens. (VEIGA-NETO, 2002) Como afirma Helena Altman (2001) em sua análise dos PCNs, também amparada pelo referencial foucaultiano, estes documentos provocam uma incitação ao discurso sobre o sexo na escola, isto é, produzem uma verdadeira explosão discursiva: a proposta era que, no interior dos pressupostos dos temas transversais, “a orientação sexual deve impregnar toda a área educativa”. Com Michel Foucault, aprendemos que por meio da incitação ao discurso do sexo se instauram mecanismos de controle sobre os corpos dos indivíduos, exercidos não somente dentro de um sistema de punições e proibições, mas, especialmente, por meio de mecanismos que produzem sujeitos e seus corpos sexuados. Tal produção se dá no sentido do exercício do controle sobre a forma ideal de viver a sexualidade, isto é, de forma normativa, tendo em vista as práticas sexuais monogâmicas, heterossexuais e reprodutivas. As análises realizadas sobre os PCNs demonstram que estes assumem uma abordagem preventiva e, neste contexto, prevenir as práticas sexuais de ‘risco’ seria a tônica normativa na construção de uma forma ideal de sexualidade: Ao trata do tema Orientação Sexual, busca-se considerar a sexualidade como algo inerente à vida e à saúde, que se expressa desde cedo no ser humano. Engloba o papel social do homem e da mulher, o respeito por si e pelo outro, as discriminações e os estereótipos atribuídos e vivenciados em seus relacionamentos, o avanço da AIDS e da gravidez indesejada na adolescência, entre outros, que são problemas atuais e preocupantes (BRASIL, 2000, p. 107). No interior do fascículo de Orientação Sexual há um subitem denominado Relações de Gênero, com duas páginas e meia de texto. A inserção do tema se dá enquanto conteúdo específico da Orientação Sexual. Os objetivos para a abordagem são: [...] combater relações autoritárias, questionar a rigidez dos padrões de conduta estabelecidos para homens e mulheres e apontar para a sua transformação. A flexibilização dos padrões visa permitir a expressão de potencialidades existentes em cada ser humano que são dificultadas pelos estereótipos de gênero. Como exemplo comum pode-se lembrar a repressão das expressões de sensibilidade, intuição e meiguice nos meninos ou de objetividade e agressividade nas meninas (BRASIL, 2000, p. 144). Em um momento importante do texto ressalta-se que a “a abordagem das relações de gênero com as crianças dessa faixa etária, convém esclarecer, é uma tarefa delicada”. Por que seriam abordagens sobre relações de gênero mais ‘delicadas’ que as intervenções sobre a sexualidade? Nesse momento, é fundamental a tarefa de escutar o discurso produzido nesse documento. Em primeiro lugar, apesar do texto tratar das relações desiguais entre homens e mulheres na perspectiva histórica, aquilo que se compreende por gênero no texto são os tais ‘papéis sexuais’ ou ‘papéis de gênero’. O principal elemento presente nesse ‘conteúdo’ específico de Orientação Sexual são as características ou ‘estereótipos’ do masculino e do feminino, isto é, a “sensibilidade e a meiguice” de meninos e a “objetividade e a agressividade” das meninas. Além disso, o texto ressalta a importância de intervenção nos momentos de “discriminação de um aluno em seu grupo, com apelidos jocosos e às vezes questionamento sobre sua sexualidade. O professor deve então sinalizar a rigidez das regras existentes nesse grupo que definem o que é ser menino ou menina” (BRASIL, 2000, p. 145). O caráter ‘delicado’ do tema advém da norma social produzida no interior do dispositivo da sexualidade, isto é, a norma da heterossexualidade ou, como a denominou Judith Butler, a heteronormatividade. Em uma palavra, a dificuldade ou o caráter ‘delicado’ apontado pelo texto dos PCNs advém de uma confusão entre a ideia de gênero, definida não como categoria de análise das relações de poder entre os gêneros, como a pensou Joan Scott [...] mas sim, em virtude da percepção do gênero como ‘papéis’ a serem desempenhados pelos dois ‘sexos biológicos’ determinados. No âmbito daquela confusão conceitual, só há espaço para a correspondência entre corpo-sexo-desejo, isto é, corpo ‘masculino-pênis-desejo feminino’ e ‘feminino- vagina-desejo masculino’ de modo que as características atribuídas aos dois gêneros, isto é, meiguice, objetividade e agressividade, constituem uma resposta imediata a esse sistema normativo de sexo-gênero. Nessa perspectiva, trabalharas relações de gênero significa apenas e tão somente demonstrar que meninos podem ser também meigos e sensíveis sem que isso possa ‘ferir’ sua masculinidade, e que meninas podem ser agressivas e objetivas, além de gostarem de futebol, sem que essas características firam sua feminilidade. É importante ressaltar que, nessa perspectiva, alunos e alunas gays, lésbicas e transexuais permanecerão sem lugar no ambiente normativo da escola, como se pode observar na citação abaixo: Eu já trabalhei com duas meninas que se diziam homo, mas elas faziam isso pra chamar atenção. Agora ver beijo na boca entre duas meninas, me choca. Não te choca? Esse liberalismo me choca um pouco. Ver duas meninas se beijando isso me choca. Isso eu não trabalhei bem em mim eu não consigo aceitar. E a mídia influencia muito, incentivando o homossexualismo. Nas novelas [...] (Ana)8 Essa fala bastante significativa indica a dificuldade em relação a um possível questionamento do sistema heteronormativo na escola. Mesmo que algumas experiências educacionais já tenham definido que questões sobre a homossexualidade requerem uma abordagem específica a respeito da diversidade sexual, o esforço para minimamente colocar perguntas sobre a heteronormatividade permanece um grande desafio ainda não contemplado. Para o discurso escolar, em um primeiro momento, o importante é negar a existência de alunos e alunas homossexuais e bissexuais, pois a infância e a juventude são aclamadas como fases transitórias em relação ao exercício da sexualidade, de modo que, se bem conduzida por profissionais competentes, os jovens serão restituídos ao seu curso ‘normal’. Se a presença de alunos e alunas homossexuais dentro da escola já é um incômodo, então, a partir daquela perspectiva, a experiência da transexualidade se torna 8 Entrevista obtida no âmbito de pesquisa realiza pelo grupo de pesquisa sobre gênero e sexualidade nas escolas de Curitiba. O nome da professora é fictício. verdadeiramente insuportável do ponto de vista da instituição escolar, pois, diante de seus corpos transformados, a fala competente da instituição não vê esperança de retorno à norma heterossexual. Assim, aquilo que resta é o afastamento desses corpos indesejáveis, isto é, a expulsão, que hoje se constitui em um elemento importante da evasão escolar. É importante lembrarmos uma vez mais que qualquer decisão teórica e epistemológica é também política. Em se tratando da sexualidade, é também importante que se faça presente uma reflexão sobre as implicações das políticas de sexualidade. Lembremos que foi o dispositivo da sexualidade que instaurou o regime da heterossexualidade compulsória em todos os âmbitos da nossa vida. A heterossexualidade compulsória ou heteronormatividade é o conceito a partir do qual Judith Butler (1999) analisou as relações de poder entre homens e mulheres e entre homossexualidade e heterossexualidade, demonstrando a construção do dispositivo da sexualidade como marcado pela norma heterossexual. Se tomarmos como certo o lugar da sexualidade na instituição escolar, é importante que demarcar os temas que envolvem o trabalho na instituição escolar. Pesquisas realizadas com professoras/es e alunas/os vem demonstrando a necessidade de uma formação específica tendo em vista a diversidade sexual presente no universo escolar. Alunas/os e professoras/es gays, lésbicas, bissexuais e transexuais compõem a diversidade contemporânea da instituição escolar; entretanto, para esta instituição que nasceu disciplinar e normatizadora, a diferença, ou tudo aquilo que está fora da norma, em especial, a norma sexual, mostra ser insuportável por transbordar os limites do conhecido. Assim, um trabalho que assuma como princípio a diversidade sexual marca a entrada em um ‘campo epistemológico’ desconhecido, na medida em que a ‘epistemologia’ reconhecível é a do sistema heteronormativo de correspondência entre sexo-gênero. É decisivo o reencontro da sexualidade com as novas perspectivas dos estudos de gênero, recordando que os projetos de educação sexual dos anos 70 partiram de uma perspectiva libertária representada pelas abordagens feministas. Ao abordar o gênero como categoria de investigação, podemos recusar os lugares definidos para as dicotomias entre masculino e feminino, além de reconstruir os significados dos corpos, dos desejos e dos prazeres (SCOTT, 1995). Em outros termos, se assumirmos o gênero como categoria de análise das ciências humanas será possível formular novas epistemologias da sexualidade na escola. No mesmo sentido, mas radicalizando os questionamentos, isto é, problematizando a hegemonia linguística e cultural organizada a partir da heterossexualidade compulsória, a perspectiva dos estudos de gênero pode trazer à luz a heteronormatividade predominante nas práticas e discursos escolares. Sob tal perspectiva teórica, revela-se que o currículo possui uma matriz que, além de masculina, é heterossexual. Essa nova perspectiva ‘epistemológica’ se encontra com as teorizações queer,9 produzindo questionamentos sobre os limites do discurso do sexo e da sexualidade marcados por uma concepção naturalizada, a-histórica e monolítica. Nesta ótica, o sexo está confinado à sua percepção biológica, responsável por delimitar a fronteira entre os sujeitos: masculino/feminino, heterossexual/homossexual e normal/anormal. A teoria queer, partindo das indagações de Foucault e de Butler, representa um acervo importante de novas “perguntas-respostas”, pois não é prescritiva, questionando principalmente as condições de possibilidade do conhecimento (SPARGO, 2007). Contra as abordagens da sexualidade marcadas pelo sistema heteronormativo de correspondência entre sexo-gênero, a teoria queer traz à tona a discussão não somente sobre a constituição dos sujeitos da sexualidade, como também sobre os próprios limites daquele modelo de construção de conhecimento e o quanto cada sujeito ou grupo suporta (des)conhecer. Neste sentido, a teoria queer demonstra que o sexo, o corpo e o próprio gênero são construções culturais, linguísticas e institucionais geradas no interior das relações de saber-poder- prazer, determinadas pelos limites do pensamento moderno. Assim, ao tratar da teoria queer, Guacira Lopes Louro (2004, p. 65) diz que: “[...] há limites para o conhecimento: nessa perspectiva, parece importante indagar o que ou quanto um dado grupo suporta conhecer”. A teoria queer recusa a incorporação da alteridade no modelo hegemônico da norma sexual e social, argumentando que esta seria uma ação originária das ‘políticas de tolerância’ que assumem a existência do binômio normal/anormal e, portanto, 9 Queer em inglês significa estranho, esquisito, além de ser uma forma preconceituosa e violenta de abordar indivíduos homossexuais. Entretanto, no interior das universidades anglosaxãs, teóricas do gênero e da sexualidade se reapropriaram do vocábulo e produziram uma ‘epistemologia’, ou um conjunto de articulações intelectuais, questionando o aprisionanento da concepção de corpo no sistema heteronormativo de sexo-gênero-desejo (SPARGO, 2007). tendem a pacificar e normatizar, na medida do possível, a alteridade. Ao contrário disso, a teoria queer questiona as condições de possibilidade do conhecimento que produz a norma sexual e social. Para finalizar. Primeiro, o trabalho com a diversidade sexual nas escolas pressupõe um conhecimento das disposições de professoras e professores que, por sua vez, deverão adentrar uma nova lógica do (des)conhecer, de sorte que tal trabalho não
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