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ISSN 21774013 Inclusão e Mediação: Estratégias e Ferramentas Possíveis Nira Kaufman e Sheina Tabak A mediação escolar é uma prática que ainda não conta com bibliografia extensa que ajude a definir seus parâmetros e objetivos norteadores. Portanto, a proposta de mediação aqui presente vem sendo construído a partir da experiência das autoras como mediadoras e na coordenação do Projeto Encontros de Mediação e Inclusão1. Dessa forma, temos delineado certos valores e modos de funcionar do mediador, que acreditamos potencializar um modo de inclusão que aposta na diversidade e na singularidade de cada sujeito. Alguns apontamentos sobre a prática da mediação escolar. O mediador escolar surge, nas escolas particulares do Rio de Janeiro, devido ao crescimento de alunos “em situação de inclusão"2. Com isso, as escolas se vêem às voltas com uma nova demanda: Como incluir esses "novos" alunos? No processo de construção dessa resposta, o "mediador” aparece como um possível instrumento; mas logo se torna imprescindível nas salas de aula cariocas e o número de profissionais exercendo essa prática cresce rapidamente. No trabalho de mediação vem cabendo as tarefas de adaptação do material que será usado pelo aluno para um formato acessível; a adaptação de tarefas realizadas em sala de aula e de testes e provas; a saída desses alunos de sala de aula para realizar alguma atividade que não possa ser realizada na sala junto aos outros colegas; entre outros. A necessidade desse profissional é, normalmente, indicada pela escola e os custos arcados pela família3. A escola entende que as demandas desse aluno vão para além das suas possibilidades, e para incluí-lo é necessário um profissional que o acompanhe no cotidiano escolar. 1 O projeto Encontros de Mediação e Inclusão (EMI) nasceu em 2012, a partir do nosso desejo de tornar mais consist ente o trabalho de mediação que vínhamos fazendo nas escolas. Hoje, o EMI é um espaço de formação para profissi onais – mediadores, professores, auxiliares, entre outros ‐‐ que atuam no campo da inclusão escolar, além de proporcionar consultoria para famílias ou escolas, na inclusão específic a de alunos com capacidade de aprendizagem diversas. Mais informações em www.eminclusao.com.br 2 Esse termo tomamos emprestado de Freller, “(...) utilizamos o termo aluno em situação de inclusão, apontando para o trabalho que nos cabe (...): movimentar a situação dos alunos excluídos. Os alunos não são de inclusão indefinidamente, (...), mas estão em uma situação que demanda trabalho para se modificar, um lugar de passagem” (CÍNTIA FRELLER, 2006). 3 A partir de janeiro de 2016 entrou em vigor o Estatuto do Deficiente que regulamenta o trabalho de inclusão nas escolas, e proíbe que as mesmas exijam das famílias qualquer custo a mais para que seus filhos frequentem a escola. Portanto, o funcionamento do mediador vem se modificando, mas ainda é cedo para perceber como irá se configurar as novas relações de trabalho. ISSN 21774013 Mas quando falamos em incluir, do quê afinal estamos falando? Goethe nos dá um pista quando diz “Trate as pessoas como se elas fossem o que poderiam ser e você as ajudará a se tornarem aquilo que são capazes de ser.” O aluno em situação de inclusão não é uma pessoa que nasceu com um déficit que a torna menos capaz do que as pessoas ditas normais. Esses alunos, diz Bayer (2006), têm características singulares que, no contexto escolar onde estão inseridas, tornam suas aprendizagens mais difíceis, com maiores desafios. Dessa forma, partimos da premissa de que todas as pessoas têm capacidade para aprender, e que é papel da escola buscar diversificar as formas de ensinar. Portanto, desviamos o foco da inclusão do aluno para a instituição. A inclusão é uma forma de pensar as relações entre as pessoas dentro e fora das instituições. Não se trata de incluir uma pessoa em um coletivo que já está dado e ao qual ela precisa se adaptar; mas tornar o ambiente inclusivo, ou seja, com práticas que enxerguem a singularidade dos alunos ao mesmo tempo que investe no coletivo. Como nos sinaliza Marcondes (2004), “a inclusão não se dá incluindo os corpos das crianças nas classes regulares. A inclusão se dá quando se devolve ao coletivo aquilo que foi individualizado no corpo do sujeito” (MARCONDES, 2004). Na inclusão não cabe mudar o outro, e sim se disponibilizar para produzir uma mudança em nós. No encontro com o diferente de nós produzimos uma mudança que cria um modo de fazer comum. Só existe hoje a necessidade de afirmamos a inclusão porque ela não existe. Nossas escolas ainda não são inclusivas. Para uma inclusão real, as escolas precisam modificar seu funcionamento a fim de atender cada um dos seus alunos - independentemente de suas deficiências, origem socioeconômica ou cultural. Quando crianças em situação de inclusão começam o ocupar o espaço escolar sem que este se transforme para recebê-las, estamos lidando com experiências de integração. Nesse modelo, a diferença é considerada anormalidade. No modelo inclusivo, a diferença é a normalidade. Ela é inerente a vida, é condição de vida. Logo não nos cabe aceitar ou respeitar, ela está em nós e é prerrogativa da existência. Dessa forma, a diferença passa a ser palavra chave nos corredores da escola. Vamos afirmar que somos todos diferentes e, portanto, somos iguais justamente porque somos diferentes. No entanto, algumas diferenças não impedem que o aluno consiga aprender e experimentar a escola a partir do formato já dado. Outras diferenças, no encontro com esse formato de escola que temos hoje, produz ISSN 21774013 dificuldades para o aprendizado dos alunos. O trabalho do mediador incide, justamente, sobre essas dificuldades geradas no encontro entre a instituição escola e o aluno em situação de inclusão. Portanto, o que vamos percebendo é que precisamos inverter a lógica de que são os alunos que vão entrar nas salas de aula e precisam funcionar dentro das propostas feitas para um coletivo que teoricamente é igual. Esses alunos necessitam de estratégias diferenciadas. A realidade vem nos mostrando que a diversidade é característica central nas salas de aula e que uma única proposta para todos tem sido mostrado cada vez menos eficaz. Esses alunos nos obrigam a pensar em outras formas de apresentar os mesmos conteúdos, repensar as regras, o tempo, o currículo. O que temos feito? Ao longo do tempo, fomos descobrindo que dois alunos com o mesmo diagnóstico nos apresentavam dificuldades muito distintas e, por isso, éramos convocados a pensar em estratégias diferentes em cada situação. Por outro lado, dois alunos com diagnósticos diferentes podiam ter as mesmas dificuldades. E ainda mais, alguns alunos que não tinham diagnósticos também tinham dificuldades semelhantes a alunos com diagnósticos bem definidos. Dessa forma, optamos por compreender os alunos que acompanhamos a partir das dificuldades e das habilidade que eles nos mostram e não pelo diagnósticoque carregam. Assim, estratégias e materiais construídos para um aluno podem servir para outro com a mesma dificuldade. Além disso, abrimos espaço para que as estratégias e ferramentas criadas inicialmente para aluno em situação de inclusão possam ser utilizadas com alunos fora dessa categoria, e aos poucos, incluir as apostas de diversificação no cotidiano de todos os alunos. Não se trata de descartar os diagnósticos como atravessamento do trabalho com o aluno, mas de afirmar uma prática de mediação que não tem no diagnóstico o caminho privilegiado, que não define suas intervenções de acordo com a deficiência ou o transtorno atribuído ao aluno acompanhado. Pois "Introduzir uma criança nas instituições, na sociedade e na cultura como "aquele Down", é priorizar o registro orgânico, em detrimento de sua expressão subjetiva, amputando sua singularidade” (Senra, Mello, Lima, Amaral, Pilar, 2008). Temos 2 conceitos que tem sido norteadores para o trabalho de mediação: a noção de autonomia e a ideia de mediadores. ISSN 21774013 A noção de autonomia mais comum é definida pela quantidade de coisas que conseguimos fazer sozinhos. Propomos modificar esse conceito e entender autonomia pelo seu oposto - somos autônomos quando conseguimos nos conectar a muitas coisas e pessoas para operar aquilo que queremos. Portanto, na escola o trabalho do mediador é ajudar o aluno a construir autonomia. Ou seja, ampliar as suas relações no cotidiano da escola: precisar do professor, do colega, do lápis, da cadeira, do inspetor, da letra maior, do material concreto, das imagens, etc. A principal conexão que o aluno tem tido na escola é o mediador escolar. Portanto, atuamos a partir dela e pensamos em como ir além. Ou seja, deslocar da figura do “mediador escolar”o papel central de mediar permitindo que outras pessoas e objetos possam ocupar o lugar de mediadores. Não significa ficar SEM mediador, mas podendo contar com uma série de mediadores na aprendizagem e nas relações o aluno passa a não depender apenas da presença do mediador escolar, tornando-se assim mais autônomo. A relação de mediação pressupõe uma relação de afeto, de transformação e não de função. Dessa forma, nem todas as pessoas – colega, inspetor, professor, mediador - estabelecem uma relação de mediação com o aluno; nem todos material que adaptamos ou construímos para o aluno de fato o ajuda na realização de alguma atividade ou na vivência de sala de aula. Portanto, são sempre apostas pensadas a partir da relação que o mediador vai tecendo com o aluno, a partir de seus gostos, seus desenhos preferidos, as brincadeiras, a matéria que mais gosta e etc. Não podemos, enquanto profissionais, decidir o que será um mediador para o aluno ou não, nosso trabalho é oferecer diferentes possibilidades, correr riscos acreditando que o aluno vai ser capaz de decidir o que daquilo que lhe é ofertado vem em seu auxílio e aquilo que cumpre apenas uma função burocrática, ou mesmo acaba por o atrapalhar. Por fim, Uma vez que entendemos que a inclusão desses alunos só será possível com a participação de todos os atores que ocupam o espaço escolar, a parceria com a escola é de suma importância para o trabalho do mediador. Ocupar apenas um lugar ao lado do "aluno em situação de inclusão" torna o mediador vulnerável a ser também excluído reforçando a exclusão do aluno. Portanto, é preciso também caminhar pela instituição, produzindo indagações apostando em fazer fazendo vibrar a estrutura rígida da escola. ISSN 21774013 Partindo desse norte, cabe ao mediador, em parceria com a escola, garantir que esse aluno aprenda, participe das atividades de sala de aula e seja acolhido pelos colegas e professores, perpetuando a ideia de que para incluir é preciso mover o coletivo. Esse processo demanda trabalho, como mudanças na logística da escola, no tempo e no espaço, no currículo e acima de tudo nas relações. É isso que temos levado para nossas práticas dentro das instituições. Temos experienciado o fortalecimento desses alunos ditos em situação de inclusão, enfatizando a importância de um olhar direcionado para as suas potencialidades, que muitas vezes ficam escondidas atrás de diagnósticos e funcionamentos que não se encaixam no formato da escola. A prática de mediação que temos operado nas escolas vem produzindo incômodos e ruídos; e essa é nossa maior conquista, uma atuação que propicia questionamentos e abre um campo de reflexão. Enquanto estivermos produzindo tensões que instiguem mudanças, mesmo que pequenas, garantimos uma prática ética e potente. Bibliografia BEYER, H. O. Educação inclusiva: ressignificando conceitos e práticas da Educação Especial. In: INCLUSÃO - Revista da Educação Especial - Jul/2006 FRELLER, C. É possível ensinar educadores a incluir? Diponível em: http://eminclusao.files.wordpress.com/2013/01/4-c3a9-possivel-ensinar-educadores-a- incluir.pdf HARAWAY, D. J. When species meet. In: Posthumanities, Volume 3. London, 2008. pp. 161-180. MACHADO, A. M. Medicalização e escolarização: por que as crianças não aprendem a ler e escrever? In: Cadernos Temáticos Vol.8 ? Dislexia: subsídios para políticas públicas / Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (org). São Paulo: CRPSP, 2010. Educação Inclusiva: De quem e de quais práticas estamos falando? In: 27º reunião anual ANPED, São Paulo, 2004. SENRA, A.H; MELLO, E; LIMA, L; AMARAL, M.A; PILAR, P. Inclusão e singularidade: um convite aos professores da escola regular. Belo Horizonte: Scriptum, 2008.