Prévia do material em texto
NOTAS SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE BRASIL E RÚSSIA NA ERA PUTIN E PERSPECTIVAS PARA O GOVERNO DE JAIR BOLSONARO1 Nayara de Oliveira Wiira2 RESUMO Nos últimos meses do governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2002, foi assinado entre Brasil e Rússia um acordo estabelecendo uma Parceria Estratégica, visando estimular uma relação bilateral mais ativa entre os países. Coincidindo com o início da chamada “era Putin”, a partir do início do século XXI é possível perceber uma aproximação, especialmente no âmbito multilateral, com uma atuação alinhada aparecendo na ONU e na OMC, no BRICS e no G20. Esse artigo procura pontuar alguns aspectos sobre a relação desenvolvida entre os dois países nos últimos 20 anos, realizando uma breve retomada histórica, e finalizando com algumas provocações para refletir sobre o futuro dessa relação. Para alcançar o objetivo de levantar uma discussão sobre o período, a metodologia utilizada foi um balanço da bibliografia selecionada, além da análise de pronunciamentos oficiais tanto do governo brasileiro como do governo russo. Para dar conta de apresentar perspectivas mais atuais, foram utilizados materiais jornalísticos produzidos a partir do segundo semestre de 2018. O artigo procura, assim, construir um quadro que dê conta de apresentar aspectos mais gerais dessa relação, apostando no papel fundamental que tanto Rússia como Brasil desempenha no cenário internacional. Palavras-chave: Política Externa. Rússia. Brasil. Notes about Brazil-Russia relations in Putin’s era. ABSTRACT In the last months of the government of Fernando Henrique Cardoso, in 2002, an agreement was signed between Brazil and Russia establishing a Strategic Partnership, aiming to stimulate a more active bilateral relationship between the countries. Coinciding with the beginning of the so-called "Putin era", from the beginning of the twenty-first century it is 1 Artigo submetido para apresentação no XIX Fórum de Análise de Conjuntura: "Os novos rumos do Brasil e da América Latina", realizado na Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP, campus de Marília, nos dias 18 e 19 de novembro de 2019. 2 Mestranda em Ciências Sociais no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências (UNESP – Marília), linha de pesquisa “Relações Internacionais e Desenvolvimento”. Graduada em Relações Internacionais pela mesma instituição. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. nayara.wiira@gmail.com possible to perceive an approximation, especially in the multilateral sphere, with an aligned role appearing in the UN and the WTO, in the BRICS and in the G20. This article seeks to highlight some aspects of the relationship developed between the two countries over the last 20 years, making a brief historical recovery and ending with some provocations to reflect on the future of this relationship. To reach the objective of raising a discussion about the period, the methodology used was a balance of the selected bibliography, besides the analysis of official pronouncements of both the Brazilian government and the Russian government. Journalistic materials produced from the second half of 2018 were used to account for more current perspectives. The article seeks to construct a framework that presents more general aspects of this relationship, betting on the fundamental role that both Russia and Brazil plays on the international scene. Keywords: Foreign Policy. Russia. Brazil. INTRODUÇÃO Após eleição realizada em 18 de março de 2018, o presidente da Federação Russa Vladimir Putin foi reeleito com 76,6% dos votos, consolidando uma trajetória de 19 anos no poder. Putin exerceu a presidência entre 2000 e 2008, além de ter sido presidente de governo (“primeiro-ministro”) em duas oportunidades, a primeira entre 1999 e 2000, nos últimos meses da gestão de Bóris Yeltsin, e a segunda entre 2008 e 2012, no mandato presidencial de Dmitri Medvedev. Tal jornada de Putin no poder representou, além de reestruturações internas, uma significativa mudança na condução da política externa russa, após as indefinições da década de 1990, quando a Rússia se encontrou em um período de disputa entre correntes que buscavam encontrar qual seria o seu papel na nova ordem mundial pós- Guerra Fria. Existe um debate na literatura de orientação construtivista nas Relações Internacionais sobre a característica dual da identidade russa, que apresenta características de uma grande potência (um colossal potencial bélico e energético) e, ao mesmo tempo, de uma potência regional (estatísticas socioeconômicas de um país em desenvolvimento) - que ainda busca através de sua política externa equilibrar o descompasso entre o protagonismo russo na “alta política” (questões de segurança global) face à tímida representatividade na governança econômica global. De tal maneira, encontra-se na literatura produzida a constatação de que o governo russo prezaria por uma ordem multipolar, pois tal seria o ambiente em que o país conseguiria resguardar seus interesses e também garantir a eficácia das normas e instituições internacionais, através das quais pretende recuperar e concretizar seu papel de grande potência, Putin sustentando um projeto político que visaria catapultar a Rússia via modernização econômica de corte liberal. Assim apresentados brevemente alguns aspectos gerais da condução da política externa russa nos últimos anos, o trabalho aqui apresentado tem o objetivo de realizar um balanço das relações entre Brasil e Rússia durante o governo Putin, tendo em vista que ocorre uma aproximação entre os dois países, especialmente na esfera multilateral, coincidindo com o período em que o Partido dos Trabalhadores do Brasil esteve no poder (primeiramente com Luís Inácio Lula da Silva, e depois dois mandatos de Dilma Rousseff). Com o marco da visita de Fernando Henrique Cardoso a Moscou em 2002, inicia-se um período em que os países buscaram estabelecer e fortalecer uma parceria estratégica, que se desdobra em um mosaico de mecanismos que estruturam as relações bilaterais, e também em um alinhamento anti-hegemônico no âmbito multilateral. Não podemos deixar de mencionar a importância do BRICS, a consolidação da reunião das maiores potências emergentes do mundo. A partir de 2015, percebe-se o fortalecimento do bloco, com o objetivo de transformá-lo de fórum de diálogo e coordenação de políticas em um mecanismo pleno de coordenação estratégica. Podemos apontar que ocorre um ganho vertiginoso de densidade na relação política entre Brasil e Rússia, mas tal avanço não se reflete na área econômica. Assim, o trabalho buscará compreender a trajetória das relações entre Brasil e Rússia, focando em uma primeira seção no histórico dessas relações, enquanto a segunda seção buscará pontuar aspectos mais atuais dessa aproximação entre os dois países. Ainda em uma última seção, o presente artigo tentará traçar algumas perspectivas sobre o futuro dessa relação, debatendo se Putin seguirá consolidando sua política externa, e considerando que o Brasil passa por um período de transição política, após a vitória do novo presidente brasileiro Jair Bolsonaro em outubro de 2018, momento que pode representar tanto uma ruptura quanto uma renovação. 1 BREVE HISTÓRICO DAS RELAÇÕES ENTRE BRASIL E RÚSSIA Ao buscarmos um histórico de mais longo alcance sobre as relações entre Brasil e Rússia, podemos perceber que no século XIX essa relação foi marcada pelo distanciamento geográfico, e no século XX foi marcada pelo distanciamento ideológico. Após o império russo reconhecer o Brasil independente em 1828, as relações foram tímidas – e continuaram sem um maior desenvolvimento após a revolução de 1917 (momento em que as relações sãointerrompidas, reestabelecidas em 1945, interrompidas novamente em 1947 e reestabelecidas somente em 1961). Mesmo durante o governo militar, as relações entre União Soviética e Brasil foram mantidas, e até mesmo foram desenvolvidos projetos conjuntos no setor energético3. A reaproximação concreta só ocorre a partir de 1985, e em 1988 é realizada a primeira visita em caráter oficial de um chefe de Estado brasileiro à Rússia, por José Sarney, uma visita de caráter político. A partir de 1990, no entanto, as instabilidades políticas internas em ambos países prejudicavam as relações bilaterais: a década de noventa foi marcada como uma fase pouco produtiva, com sérias dificuldades econômicas enfrentadas pelos dois países, agravadas pela instabilidade política, e o contexto resultou em uma falta de prioridade de um governo em relação ao outro – o que Jubran (2012) chama de um “desinteresse recíproco”. Mesmo com o momento desfavorável para uma aproximação proveitosa, em 1994 o então chanceler Celso Amorim visitou Moscou, lançando as sementes e iniciando a discussão sobre a criação de uma parceria. (SOUZA, 2017). Em setembro de 1995, dando continuidade às tentativas de aproximação, ainda que de forma vagarosa, Yeltsin e Cardoso se encontraram às margens da abertura da Assembleia Geral da ONU, momento em que Yeltsin fez a proposta de criar uma Comissão de Alto Nível (CAN)4 para orquestrar o avanço das relações bilaterais dos países. Contudo, como já mencionado, essas relações só avançariam a partir dos anos 2000. (JUBRAN, 2012). As relações entre Brasil e Rússia na década de 1990 podem ser resumidas da seguinte forma: um começo com baixo interesse político mútuo, raríssimos encontros políticos entre altas autoridades, pouco dinamismo das negociações a respeito da cooperação bilateral, que se manteve estancada. A partir do fim de 1993 até meados de 1995, deu-se um maior interesse brasileiro em estabelecer as relações; de meados de 1995 até meados de 1998, os russos demonstraram um maior interesse. Entre 1998 e 2000, problemas econômicos e políticos, 3 Sobre o tema das relações entre Brasil e União Soviética durante o governo militar, buscar a referência: CATERINA, G. Expectativas promissoras: comércio e perspectivas de cooperação bilateral nas relações Brasil – União Soviética (1964-1967). Carta Internacional, Belo Horizonte, v. 13, n. 2, p. 76-93, 2018. 4 A proposta de Yeltsin foi muito bem recebida, já que a Rússia só mantém mecanismos de cooperação bilateral similares com nações como Estados Unidos, França, China e Ucrânia. Trata-se de um mecanismo de alto nível, já que é coordenado pelo vice-presidente brasileiro e o presidente de governo (“primeiro-ministro”) russo (os dois cargos são, segundo a hierarquia de seus respectivos governos, o segundo cargo mais importante no Poder Executivo). especialmente na Rússia, fizeram o país focar em parceiros considerados prioritários, como a China. (JUBRAN, 2012). Conforme Rosa (2014) procura demonstrar, a política externa russa na década de 1990 foi caracterizada por uma maior timidez, especialmente ao considerarmos sua atuação nas instituições internacionais. Considerando que a Rússia ainda enfrentava os impactos do colapso soviético e todas as consequências do desmantelamento do bloco, associados à uma severa crise econômica e deterioração das condições de vida da população russa, a antiga potência assistiu seu poder encolher e sua capacidade de ação externa ser retraída. Assim, Rosa destaca que, nesse período, a política externa russa acabou servindo como assistência às políticas internas de reforma, e também ficou concentrada em sua esfera de influência mais direta, a Comunidade dos Estados Independentes (CEI). A política externa russa só voltará a buscar espaço em outras regiões, dentre as quais a América Latina, a partir do fim da década de 1990 e início dos anos 2000, momento em que a Rússia recupera as condições e capacidades para elaborar uma política externa mais arrojada. Esse momento é inaugurado com a publicação da nova “Concepção de Política Externa” russa, em junho de 2000, após eleito Vladimir Putin como presidente. A nova política externa apresentada demonstra o ensejo de uma política externa independente, marcada por relações com grandes países (como China, Índia, Brasil) e com todos os membros do chamado “Eixo do Mal” (Irã, Iraque, Coreia do Norte). (JUBRAN, 2012). 2 O NOVO SÉCULO E A APROXIMAÇÃO ENTRE OS DOIS PAÍSES (ESPECIALMENTE A CONVERGÊNCIA POLÍTICA PUTIN-LULA) Conforme introduzido na seção anterior, a ascensão de Putin à presidência da Rússia coincide com o período em que o país começa a superar a profunda crise que marcou a década anterior. Putin reúne as condições para, a partir de sua chegada ao poder, recolocar a Rússia no centro da política internacional, resgatando “o poder e o prestígio russo” (ROSA, 2014, p. 71). Rosa (2014) resume os objetivos da política externa russa com base nos seguintes pontos: a) garantir sua posição de poder em sua esfera de influência imediata (o espaço pós- soviético, atualmente reunidos na CEI); b) evitar a todo custo a expansão do Ocidente, via OTAN, para esses países; c) garantir papel preponderante na ordem internacional, pela via da defesa da ordem multipolar; e d) participar – embora de maneira crítica – das instituições de governança global, como forma de aumentar sua influência. Ao considerarmos a relação entre Brasil e Rússia a partir desses quatro pontos centrais da política externa russa, podemos constatar que a relação com os brasileiros seria mais favorável para a Rússia alcançar os pontos c e d. A Rússia, com sua visão tipicamente realista, consagra a multipolaridade, militando no cenário internacional pela manutenção de uma ordem multipolar, para resguardar seus interesses e também a eficácia das normas e instituições internacionais. (SOUZA, 2017). É nessa defesa da multipolaridade que as relações entre Brasil e Rússia ganham mais notoriedade e espaço para alcançar sucesso. As relações com a China também representam uma alternativa, já que os chineses são hoje um dos mais importantes aliados para Moscou em sua posição anti-hegemônica, contando também com determinantes complementaridades econômicas, e consolidando-se na Organização para a Cooperação de Xangai. (SOUZA, 2017). O desejo da Rússia de criar laços privilegiados com o Brasil, portanto, parte de algumas semelhanças entre os países (são nações continentais que são atores-chaves em suas regiões, buscam o desenvolvimento de suas economias, dependem ainda da venda de produtos básicos e das reservas de recursos naturais), e também de algumas diferenças importantes, que garantem uma relação com complementaridades (Brasil não tem seu entorno caracterizado por conflitos envolvendo vizinhos, Brasil não atua tão diretamente em questões de paz e segurança, mas é protagonista [ou era] na dimensão econômica, âmbito em que os russos buscam adquirir maior protagonismo). (SOUZA, 2017). Entre 2000 e 2002, a Rússia continuou tentando estreitar os laços com os países da América Latina, e foi um período de visitas mútuas de alto nível, chegando à visita de Cardoso a Moscou em janeiro de 2002. Nessa visita é assinada a Parceria Estratégica entre os dois países, delineando uma série de planos de cooperação em diversas áreas, mas que só adquire mais substância e conteúdo a partir de 2010. Os dois países experimentarão maior convergência de posições e interesses no plano multilateral, como na concertação dos BRICS e na adoção de posições comuns na ONU. (JUBRAN, 2012). Por outro lado, o período de 2003 a 2005 é marcado por ser um momento russo de política externa independente, em que o país buscava uma associação político-estratégica com a Índia e com a China, assim como uma diversificação dos contatos políticose econômicos em outras regiões – o Brasil era um dos alvos, mas o foco na América Latina estava em países como Venezuela e Cuba, com quem a Rússia já desenvolvia uma parceria mais sólida. (JUBRAN, 2012). A visita de Putin em 2004 ao Brasil foi marcada pela tentativa dos dois governos encontrarem uma solução ao então vigente “embargo” à carne bovina brasileira, uma série de limitações à importação desse produto que foi imposta pelo governo russo e atingiu o setor brasileiro. Além dos governos terem decidido sobre a flexibilização das barreiras fitossanitárias sobre a carne importada pela Rússia, foi firmado o apoio do Brasil à entrada da Rússia na Organização Mundial do Comércio (OMC), e a Rússia afirmou de forma concreta pela primeira vez o apoio à entrada do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, o que representa um importante conjunto de avanços diplomáticos. (NUMAIR, 2009). O período 2005 a 2010 foi marcado por novos fóruns de discussão política, mas poucos resultados práticos. Nesse período também podemos destacar a maior proximidade entre a Rússia e a América Latina, em especial com a Venezuela, que comprou muitos armamentos russos, além de fortalecerem uma cooperação no âmbito energético, sobretudo no setor de hidrocarbonetos – petróleo e gás natural. (JUBRAN, 2012) Dentro desse período, no entanto, podemos destacar Rússia e Brasil aparecendo como principais entusiastas sobre a formação do BRIC: em 2008 ocorre a primeira reunião ministerial em Ecaterimburgo, fora do âmbito da ONU5; em 2009, na mesma cidade, ocorre a I Cúpula dos Chefes de Estado. (JUBRAN, 2012). Entre 2006 e 2009 foi evidente a baixa prioridade que Rússia e Brasil conferiam-se mutualmente em questões concretas da relação bilateral, um franco contraste com a fluidez no diálogo político em âmbito multilateral. Ainda assim, é um período em que ocorre um aumento vertiginoso da exportação de carnes brasileiras para a Rússia, e os russos se queixavam do tremendo desequilíbrio comercial entre os países (o Brasil continuamente apresenta um significativo saldo positivo na balança comercial com a Rússia). Sobre a questão específica do BRICS, a Rússia utiliza essa plataforma para defender a reforma das estruturas de governança global, e trata-se de uma importante ferramenta de ampliação ainda maior da voz da diplomacia russa, uma tentativa de equilibrar as relações com as potências estabelecidas no sistema internacional: (...) o BRICS busca influir decisivamente na governança dos diferentes temas da agenda global. Para tanto, essas países que, de maneira isolada, não poderiam alcançar certos resultados ou obter voz em determinados foros, passam a adquirir maior status ao integrar tais arranjos políticos. (ROSA, 2014, p.105) 5 Desde 2006, os representantes de Brasil, Rússia, Índia e China buscavam realizar encontros simultâneos à abertura da Assembleia Geral da ONU, realizada anualmente em setembro, em Nova Iorque. Assim, o governo Lula foi marcado pela convergência com Putin nos foros multilaterais – o período em que ambos cumpriram seus mandatos de presidente foi marcado por um aumento do perfil dos dois países no cenário internacional: suas políticas externas encontrarão ressonância nas iniciativas multilaterais levadas a cabo pelos países emergentes. Dessa maneira, Rússia e Brasil intensificarão suas relações no plano multilateral, aproximando suas agendas e colhendo resultados importantes. Essa aproximação de agendas é refletida na definição do Plano de Ação da Parceria Estratégica, assinado em 2010 durante a visita de Lula à Rússia, em que foram reiterados os pontos de diálogo político, o desejo de uma ordem internacional mais democrática, o destaque ao papel central da ONU ressaltando a necessidade de reforma do seu Conselho de Segurança, e declarações sobre BRICS, negociações de clima, etc. Entre 2008 e 2013, intensificam-se os encontros de alto nível e as reuniões das comissões de cooperação; o Plano de Ação é atualizado em 2012, durante a visita de Dilma à Rússia, reforçando a convergência em temas da agenda política internacional. (ROSA, 2014). Apesar de toda aproximação política que ocorre entre as duas nações, o aspecto econômico dificilmente consegue ser desenvolvido. Essencialmente, o Brasil exporta carne e a Rússia exporta fertilizantes – “o comércio não retém o elemento estratégico da parceria, uma vez que outras áreas de cooperação apresentaram maiores resultados e, também, maiores possiblidades de avanço, e de modificação do status quo, o que é elemento fundamental de motivação para a conformação desse tipo de aliança no sistema internacional” (ROSA, 2014, p. 121-2). A bibliografia consultada aponta que a dificuldade de desenvolver uma relação bilateral forte nos setores militar, tecnológico e energético, deve-se a uma profunda divergência de interesses – a Rússia busca um mercado para tecnologia que produz, enquanto o Brasil busca oportunidades de desenvolver projetos conjuntos, que contem com a participação de ambos países em todo processo. Essas expectativas equivocadas geram uma certa frustração no âmbito bilateral. Além disso, apesar da aproximação no âmbito multilateral, no que concerne à relação bilateral a Rússia concede prioridade a alguns relacionamentos específicos na região latino-americana, os quais são, inclusive, considerados mais estratégicos, por conter elementos políticos importantes, em detrimento de fatores puramente econômicos. Países como Venezuela e Cuba, com que a Rússia estabeleceu uma política que vai da venda de armamentos e exploração conjunta de recursos a financiamento e ajuda econômica. (ROSA, 2014). 3 AS PERSPECTIVAS PARA O FUTURO DA RELAÇÃO ENTRE OS DOIS PAÍSES O ano de 2018 foi ano de eleições presidenciais tanto na Rússia como no Brasil. Os russos decidiram pela continuidade do governo Putin, que com o novo mandato deverá permanecer na presidência ao menos até 2024. Já no caso brasileiro, foi eleito o candidato Jair Bolsonaro, o que representou uma importante ruptura na condução política brasileira, após o Partido dos Trabalhadores (PT) ter vencido quatro eleições consecutivas. Com a ascensão do novo governo no Brasil, foram levantadas diversas questões sobre qual seria a condução da política externa brasileira, já que o período de campanha foi carregado por um forte viés ideológico, o que poderia enfraquecer o pragmatismo característico das últimas gestões do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Durante seu discurso de posse, o novo Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, apresentou um conteúdo que refletiu, de fato, o viés ideológico da campanha presidencial – ao citar países que seriam “exemplares”, o ministro menciona Israel, Estados Unidos, Itália, Hungria e Polônia; ao mencionar relações bilaterais, o ministro destaca o aspecto comercial dessas relações, focando na “geração de resultados concretos para o emprego, a renda e para a segurança dos brasileiros”; ao tratar das relações multilaterais, o ministro menciona a Organização Mundial do Comércio, e que “no sistema multilateral político, especialmente na ONU, vamos reorientar a atuação do Brasil em favor daquilo que é importante para os brasileiros” – não houve qualquer menção aos BRICS, à China, e muito menos à Rússia. O alinhamento completo com os Estados Unidos se apresenta como peça central da nova política externa brasileira. (STUENKEL, 2019). Esse alinhamento pode ser visto, em um primeiro momento, como um possível fator de enfraquecimento das relações do Brasil com países como China e Rússia. Por mais que ainda seja cedo para realizar uma avaliação da política externa do governo Bolsonaro, após esse primeiro ano de mandato podemos perceber que esse alinhamento com os americanos de fato foi defendido, e a relação do Brasil com ospaíses do BRICS sofreu certo estremecer. Em meio a um novo confronto comercial entre Estados Unidos e China, o BRICS proporcionaria “acesso privilegiado aos líderes políticos chineses, oferecendo uma plataforma única para defender os interesses do Brasil em relação à China.” (STUENKEL, 2019). Stuenkel afirma que “Com o grupo BRICS, o Brasil já tem a vantagem de ser parte de uma plataforma institucionalizada que facilita a adaptação a essa nova realidade. A importância geopolítica do bloco hoje é maior do que nunca”. (STUENKEL, 2019). Assim, o Brasil poderia utilizar essa proximidade para atuar ativamente das negociações comerciais entre as duas maiores potências do mundo. Contudo, podemos avaliar que, ao menos no decorrer de 2019, a plataforma oferecida pelo BRICS não foi utilizada dessa maneira, e algumas das negociações bilaterais entre Estados Unidos e China inclusive surgem como ameaça às exportações brasileiras – já que os Estados Unidos concorrem diretamente com o Brasil por parte do mercado chinês. Podemos também aplicar essa lógica pragmática à questão venezuelana. O último ano foi marcado por um acirramento das tensões ao redor do governo Nicolas Maduro, e uma divisão global em que países como Estados Unidos, Brasil e outros não reconhecem o novo mandato presidencial de Maduro, após eleições que foram consideradas fraudulentas, e países como China, Rússia, Turquia e outros, que reconhecem o governo Maduro e julgam que qualquer país que não o faça está interferindo diretamente em questões internas. Em dezembro de 2018, Maduro anunciou um investimento russo bilionário na Venezuela, mais de US$ 6 bilhões que serão destinados ao setor do petróleo e do ouro; além disso, Maduro teria assinado um contrato de compra de 600 mil toneladas de trigo russo. Assim como no caso da China, a plataforma do BRICS poderia ser utilizada como uma oportunidade de diálogo, em que o Brasil poderia buscar algum protagonismo atuando como mediador com China e Rússia para negociar a situação da Venezuela. Ainda assim, na última cúpula dos BRICS realizada no Brasil, os chefes de Estado evitaram a pauta de assuntos de maior discordância, como o caso da Venezuela. CONSIDERAÇÕES FINAIS É importante destacar que o presente artigo não tem a pretensão de dar conta de todos os aspectos relacionados a cooperação existente entre Brasil e Rússia. O objetivo foi pincelar algumas notas que deem conta de apresentar um panorama geral das tendências diplomáticas entre os países, os momentos de aproximação e os momentos em que a relação bilateral acabam enfraquecidas. De tal forma, questões importantes como aspectos da cooperação bilateral espacial e tecnológica, o posicionamento alinhado de Rússia e Brasil em questões importantes no cenário internacional, o crescimento dos BRICS (como a criação do Novo Banco de Desenvolvimento) podem não ter sido devidamente apresentadas. De forma geral, podemos concluir que de 2000 a 2010 percebe-se uma “tendência genérica” de aproximação entre Brasil e Rússia, uma aproximação que se mantém essencialmente na política, que não foi acompanhada por um desenvolvimento das relações comerciais. Jubran (2012) avalia que não há uma consolidação da chamada “Parceria Estratégia”, e destaca percepções errôneas por parte das autoridades dos dois países: os brasileiros, por um lado, interpretavam a relação com a Rússia como uma relação “sul-sul” (no sentido de “sul político”), nutrindo expectativas de cooperação que seriam frustradas – por outro lado, a Rússia via de forma errônea que o Brasil seria apenas possível consumidor dos seus produtos. A divergência de percepções pode ajudar a explicar a ausência de concretização de projetos. A Parceira Estratégica entre os países não é estratégica per se no plano bilateral, devido a vários fatores, como a falta de complementaridade entre as duas nações em questões bilaterais; mas a parceria parece ganhar um real sentido “estratégico” no âmbito multilateral, por se configurar como ferramenta de alteração do status quo. Sobre o futuro da relação entre os países, ainda é cedo para emitir conclusões muito elaboradas, e os eventos estão sendo desenrolados enquanto este artigo é finalizado. Contudo, podemos destacar que a relação entre Brasil e Rússia tanto no âmbito bilateral e especialmente no âmbito multilateral continua sendo de primeira importância, especialmente se a diplomacia brasileira tem a pretensão de atuar como protagonista em questões de “alta política”. É uma relação com potencial para desenvolvimento, especialmente como ferramenta política. Ainda que o Brasil pareça estar apostando em um distanciamento do BRICS e da Rússia com uma justificativa ideológica de alinhamento com os Estados Unidos, é cedo para afirmar categoricamente se esse governo está pronto para comprar as consequências desse distanciamento - apenas o tempo dirá. LISTA DE REFERÊNCIAS AGÊNCIA BRASIL. Banco de Desenvolvimento do Brics deve ampliar atuação no Brasil. Agência Brasil. Brasília, 6 nov. 2018. Disponível em < http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-11/banco-de-desenvolvimento-do- brics-deve-ampliar-atuacao-no-brasil>. Acesso em 23 Jan. 2019. ARAUJO, R.; BAUMANN, R.; FERREIRA, J. As relações comerciais do Brasil com os demais BRICs. CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, fevereiro de 2010. BACIGALUPO, G. Z. As relações russo-brasileiras no pós-Guerra Fria. Rev. bras. polít. int., Brasília , v. 43, n. 2, p. 59-86, Dec. 2000 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034- 73292000000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 5 Feb. 2019. BRANDÃO, M. Mourão não vê crise entre Brasil e Rússia por causa da Venezuela. Agência Brasil. Brasília, 24 jan. 2019. Disponível em < http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-01/mourao-nao-ve-crise-entre-brasil-e- russia-por-causa-da-venezuela>. Acesso em 5 Fev. 2019. COSTA, G. Comércio do Brasil com Brics avança, mas agenda mudou em dez anos. Agência Brasil. Brasília, 26 jul. 2018. Disponível em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-07/comercio-do-brasil-com-brics- avanca-mas-agenda-mudou-em-dez-anos>. Acesso em 23 Jan. 2019. EXAME. Ignorado pelo Brasil, BRICS chega aos dez anos esvaziado e dividido. Exame. São Paulo, 13 out. 2019. Disponível em <https://exame.abril.com.br/mundo/ignorado-pelo-brasil- brics-chega-aos-dez-anos-esvaziado-e-dividido/>. Acesso em 07 nov. 2019 FOLHA DE SÃO PAULO. Bolsonaro desistiu de mencionar Venezuela em discurso para 'não polemizar' com Putin. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 de junho de 2019. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/06/bolsonaro-desistiu-de-mencionar-venezuela- em-discurso-para-nao-polemizar-com-putin.shtml>. Acesso em 07 Nov. 2019 G1. Após encontro com Putin, Nicolás Maduro anuncia investimento bilionário da Rússia na Venezuela. G1, Rio de Janeiro, 06 dez. 2018. Disponível em < https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/06/apos-encontro-com-putin-nicolas-maduro- anuncia-investimento-bilionario-da-russia-na-venezuela.ghtml>. Acesso em 23 Jan. 2019. ______. Temer diz que 'tranquilizou' líderes do Brics sobre Bolsonaro. G1, Rio de Janeiro, 11 dez. 2018. Disponível em <https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/12/11/temer-diz-que- tranquilizou-lideres-do-brics-sobre-bolsonaro.ghtml>. Acesso em 23 Jan. 2019. JUBRAN, B. M. Brasil e Rússia: política, comércio, ciência e tecnologia entre 1992 e 2010. 2012. – Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. MACFARQUHAR, N. For the Kremlin, Venezuela is not the next Syria. The New York Times, Nova Iorque, 30 Jan. 2019. Disponível em < https://www.nytimes.com/2019/01/30/world/europe/russia-venezuela-putin- maduro.html?rref=collection%2Fbyline%2Fneil- macfarquhar&action=click&contentCollection=undefined®ion=stream&module=stream_unit&version=latest&contentPlacement=2&pgtype=collection>. Acesso em 5 Fev. 2019. MANETTO, F. Maduro desafia o Ocidente agarrando-se a China e Rússia. El País. São Paulo, 11 Jan. 2019. Disponível em < https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/10/internacional/1547150403_382340.html>. Acesso em 23 Jan. 2019. ______. Maduro exibe apoio da Rússia frente ao aumento da pressão internacional. El País. São Paulo, 11 Dez. 2018. Disponível em < https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/11/internacional/1544504815_951763.html>. Acesso em 23 Jan. 2019. MARCHAO, T. Sob Bolsonaro, Brasil assume liderança dos Brics em 2019. UOL Internacional, Buenos Aires, 30 nov. 2018. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2018/11/30/sob-bolsonaro-brasil- assume-lideranca-dos-brics-em-2019.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 23 Jan. 2019. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Discurso do ministro Ernesto Araújo durante cerimônia de Posse no Ministério das Relações Exteriores. Brasília, 2 de janeiro de 2019. Disponível em < http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas- categoria/ministro-das-relacoes-exteriores-discursos/19907-discurso-do-ministro-ernesto- araujo-durante-cerimonia-de-posse-no-ministerio-das-relacoes-exteriores-brasilia-2-de- janeiro-de-2019>. Acesso em 23 Jan. 2019. MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF THE RUSSIAN FEDERATION (Министерство иностранных дел Российской Федерации). Foreign Minister Sergey Lavrov’s remarks and answers to media questions at a news conference on the results of Russian diplomacy. Moscou, 2019. Disponível em <http://www.mid.ru/en_GB/press_service/minister_speeches/- /asset_publisher/7OvQR5KJWVmR/content/id/3476729>. Acesso em 24 Jan. 2019. ______. História das relações bilaterais. Embaixada da Rússia no Brasil. Disponível em < https://brazil.mid.ru/web/brasil_pt/historia-das-relacoes-bilaterais>. Acesso em 11 de Jan. 2019. NUMAIR, E. Brasil e Rússia: do confronto ideológico à parceria estratégica. Relações Internacionais no Mundo Atual, Curitiba, n. 9, p. 123-148, 2009-1. O GLOBO. Bolsonaro deixa retórica ofensiva para trás e vai à China atrás de investimentos. O Globo, Rio de Janeiro, 23 out. 2019. Disponível em <https://oglobo.globo.com/mundo/bolsonaro-deixa-retorica-ofensiva-para-tras-vai-china- atras-de-investimentos-1-24035790>. Acesso em 07 nov. 2019 PHILLIPS, T. Venezuela welcomes Russian bombers in show of support for Maduro. The Guardian, Londres, 10 dez. 2018. Disponível em < https://www.theguardian.com/world/2018/dec/10/venezuela-russian-bombers-maduro>. Acesso em 23 Jan. 2019. ROSA, V. G. Brasil e Rússia: uma parceria verdadeiramente estratégica? 2014. - Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Universidade de Brasília, Brasília, 2014. SOUZA, I. A. M. Brasil e Rússia: a construção da parceria estratégica no pós‑Guerra Fria. In: BARBOSA, P. H. B. (org.) Os desafios e oportunidades na Relação Brasil‑ Ásia na perspectiva de jovens diplomatas. Brasília: FUNAG, 2017. P. 135-172. SPUTNIK NEWS – BRASIL. Qual é o futuro do BRICS na era Bolsonaro? Sputnik News. Rio de Janeiro, 19 dez. 2018. Disponível em < https://br.sputniknews.com/brasil/2018121912942415-bolsonaro-brics-eua-israel/>. Acesso em 23 Jan. 2019. ______. 'Bolsonaro pode terminar de esvaziar o significado dos BRICS', diz especialista. Sputnik News. Rio de Janeiro, 11 out. 2018. Disponível em <https://br.sputniknews.com/noticias-eleicoes-2018-brasil/2018101112420338-jair-bolsonaro- psl-fernando-haddad-pt-gerardo-cerdas-vega-brics-russia-brasil/>. Acesso em 23 Jan. 2019. ______. Qual será a postura do Brasil em organismos internacionais na era Bolsonaro? Sputnik News. Rio de Janeiro, 01 jan. 2019. Disponível em < https://br.sputniknews.com/brasil/2019010113022910-postura-brasil-orgaos-internacionais- bolsonaro/>. Acesso em 23 Jan. 2019. STUENKEL, O. Para lidar com a China, Bolsonaro tem um instrumento nas mãos. El País. São Paulo, 22 Jan. 2019. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/21/opinion/1548087364_354774.html>. Acesso em 23 Jan. 2019.