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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO ÉWERTON ROBERTO RODRIGUES ALVES A RESTRIÇÃO LEGAL AO PORTE DE ARMAS DE FOGO – LEI 10.826/2003 – FRENTE A SUA (IN) EFICÁCIA PRÁTICA – O FRACASSO DE UMA LIMITAÇÃO A DIREITO INDIVIDUAL. FORTALEZA – CE 2018 ÉWERTON ROBERTO RODRIGUES ALVES A RESTRIÇÃO LEGAL AO PORTE DE ARMAS DE FOGO – LEI 10.826/2003 – FRENTE A SUA (IN) EFICÁCIA PRÁTICA – O FRACASSO DE UMA LIMITAÇÃO A DIREITO INDIVIDUAL. Trabalho monográfico apresentado ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Sidney Guerra Reginaldo FORTALEZA – CE 2018 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará Biblioteca Universitária Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a) A482r Alves, Éwerton Roberto Rodrigues. A restrição legal ao porte de armas - lei 10.826/2003 - frente a sua ineficácia prática - o fracasso de uma limitação a direito individual. / Éwerton Roberto Rodrigues Alves. – 2018. 55 f. : il. color. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2018. Orientação: Prof. Dr. Sidney Guerra Reginaldo. 1. Desarmamento. I. Título. CDD 340 Ao meu senhor Jesus Cristo, pela graça totalmente imerecida. Aos meus pais, Roberto e Elizabete, coautores da vida, implacáveis no amor e carinho a mim dispensado. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, não só por suas muitas misericórdias, mas pelo conforto e alívio proporcionados nos momentos mais difíceis. Também pela Providência, que me susteve em tudo o que foi necessário. À minha mãe Elizabete Rodrigues Alves, pelo amor incondicional desde quando minha memória pode retroagir, por seus muitos sacrifícios em meu favor, por todas as preces direcionadas a mim, paradigma de mulher superior às adversidades. Ao meu pai Roberto Pereira Alves, pelos grandes ensinamentos, alguns por meio de palavras, mas a maioria repassada pelo exemplo nos mais pequenos gestos. Tudo pode ser tirado de um homem, exceto uma coisa: a última das liberdades humanas – a de escolher uma determinada atitude em um determinado conjunto de circunstâncias; de escolher seu próprio caminho. Viktor E. Frankl RESUMO A política desarmamentista desde a sua implementação nos impérios, bem como marca uma ação deliberada de contenção e manipulação sociais de governos autoritários é mascarada sob o pretexto de promover a segurança pública, contudo, o intuito real é garantir o poder e dominação perante uma sociedade. A compreensão histórico – social das ações anti-armas desde o Japão imperial até a nação norte-americana, apresentando seus comparativos e resultados. Ressaltando também as normativas que asseguram a restrição do acesso civil às armas de fogo representam a prova cabal que a preocupação não é e nunca foi a violência urbana ou índice de crimes. O Estatuto do Desarmamento ou Lei nº 10.826/2003 tornou praticamente impossível a aquisição de armas fogo pelo cidadão comum e após 15 anos de vigência não cumpriu o fim a que propôs, a criminalidade e número de mortes no Brasil são alarmantes, e o cidadão diante de um cenário de guerra foi tolhido em uma garantia individual, vendo a mitigação do seu direito de defesa. A presente pesquisa busca analisar a política desarmamentista jamais alcançou e não irá as ilusões vendidas pelos seus defensores, bem como estudar o alcance social e eficácia prática do Estatuto do Desarmamento. Para a execução da pesquisa utiliza-se o método dedutivo e partir-se-á de uma compreensão geral do Desarmamento orientada a fomentar a diminuição de crimes, todavia dissertando sobre suas falhas. Operar-se-á da pesquisa documental indireta, por meio de pesquisa bibliográfica, realizada por livros, revistas, monografias e artigos eletrônicos, bem como pesquisa jurisprudencial. Palavras-chave: Desarmamento. Direito Individual. Política. Manipulação social. Legislação. Eficácia desarmamentista. ABSTRACT The disarmament policy since its implementation in the empires, as well as marks a deliberate action of social containment and manipulation of authoritarian governments is masked under the pretext of promoting public security, however, the real intention is to guarantee power and domination before a society. The historical - social understanding of anti - gun actions from imperial Japan to the American nation, presenting their comparisons and results. Also emphasizing the norms that ensure the restriction of civil access to firearms represent the full proof that the concern is not and has never been urban violence or crime rate. The Statute of Disarmament or Law No. 10.826 / 2003 made the acquisition of firearms practically impossible by the common citizen and after 15 years of validity did not fulfill the purpose it proposed, the crime and number of deaths in Brazil are alarming, and the citizen of a war scenario was stuck in an individual guarantee, seeing the mitigation of his right of defense. The present research seeks to analyze the disarmament policy never reached and will not go the illusions sold by its defenders, as well as to study the social reach and practical effectiveness of the Disarmament Statute. For the execution of the research the deductive method is used and it will start from a general understanding of the Disarmament oriented to foment the reduction of crimes, nevertheless dissenter on its failures. It will operate indirect documentary research, through bibliographical research, carried out by books, magazines, monographs and electronic articles, as well as jurisprudential research. Keywords: Disarmament. Individual Right. Policy. Social manipulation. Legislation. Disarmament effectiveness. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CFRB/88 – Constituição da República Federativa do Brasil CP – Código Penal SISNARM - Sistema Nacional de Armas UPP – Unidade de Polícia Pacificadora PMRJ – Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO........................................................................................................10 2. AS PRIMEIRAS LIMITAÇÕES ÀS ARMAS DE FOGO E O PIONEIRISMO JAPONÊS....................................................................................................................13 2.1. CONCEITOS, MOTIVAÇÃO E FINALIDADE.......................................................14 2.2. O INÍCIO DA POLÍTICA DESARMAMENTISTA..................................................17 3. CONTEXTO HISTÓRICO-LEGAL DO DESARMAMENTO CIVIL: A ALEMANHA NAZISTA E A POLÍTICA ESTADUNIDENSE............................................................21 3.1. O DESARMAMENTO NA ALEMANHA NAZISTA...............................................22 3.2. A POLÍTICA DE ARMAS NORTE-AMERICANA.................................................26 4. A TERRA DE SANTA CRUZ E O DESARMAMENTO CIVIL................................33 4.1. O ESTATUTO DO DESARMAMENTO................................................................34 4.2. O REFERENDO DE 2005....................................................................................38 4.3. A (IN) EFICÁCIA PRÁTICA DA LEI Nº 10.826/03...............................................41 4.4. A LIMITAÇÃO DE UMA LIBERDADE INDIVIDUAL E O EXERCÍCIO MITIGADO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL.............................................................................45 5. CONCLUSÃO.........................................................................................................50 10 1. INTRODUÇÃO A presente pesquisa monográficaobjetiva realizar uma análise crítica acerca da implementação do chamado Estatuto do Desarmamento, realizado por meio da lei 10.826/03, bem como dos seus resultados práticos em 15 anos de vigência. É importante enunciar as reflexões em relação ao tema, ante as implicações que promove ao restringir o acesso às armas por parte do cidadão comum. Esta pesquisa também se propôs a analisar as intenções motivadoras da referida lei, as quais se revelam com o cruzamento de informações adquiridas mediante a análise mais apurada dos resultados práticos alcançados – ou não alcançados – no período de vigência do Estatuto e aquilo que os defensores do desarmamento almejavam com a promulgação dessa norma. Em vista dos acontecimentos do século passado, em especial aqueles que ensejaram o início da Segunda Grande Guerra, nota-se a facilidade com que pontuais líderes políticos, ou mesmo governos formados por pessoas de mediana desenvoltura política, conseguem manobrar a população para que colaborem para a concretização de intuitos pessoais, ainda que sejam dos mais atrozes. E, não se pode dizer que essas possibilidades ficaram no passado e que o mundo está vacinado contra o totalitarismo. Pois, ainda nos dias atuais, todo o mundo segue inerme ante os absurdos praticados por governos totalitários em todas as partes do globo. Também considerando que todos esses grandes desastres políticos quase nunca se apresentam de maneira radical, mostrando os verdadeiros intentos, mas sim com a paulatina castração das liberdades individuais, retiradas sob pretextos aparentemente bondosos, mas também muito genéricos, urge esmiuçar cada proposta restritiva de direitos, a fim de aferir se de fato é uma política benigna, a qual trará bons frutos ou se na realidade se estar a lidar com mais um passo na direção da solidificação de um governo despótico. Assim sendo, este trabalho se justifica na necessidade de analisarmos a maciça e persistente implementação de ideias desarmamentistas na população brasileira, levando em conta que o desarmamento foi uma ferramenta natural em todas os governos ditatoriais ao longo da história. 11 É importante destacar, que para a abordagem do presente estudo, operar-se-á da pesquisa documental indireta, mediante a pesquisa bibliográfica, realizada por livros, revistas, monografias e artigos eletrônicos, bem como pesquisa jurisprudencial. Neste ínterim, para se executar um trabalho monográfico desvelado, será necessário organizá-lo em três capítulos, os quais se estruturam da seguinte maneira: O primeiro capítulo será composto pela contextualização histórica do Japão feudal do séc XIII, o qual estava fragmentado na mão de nobres que disputavam constantemente o poder. Todavia, após os primeiros contatos com a pólvora e, principalmente, com a chegada da cultura e de conhecimentos científicos europeus na região, houve uma verdadeira revolução na conjuntura do país, a qual só se estabilizou com a prevalência do guerreiro Xogum Tokugawa Ieyasu. Tokugawa, apesar de se estabelecer por meio das armas de fogo introduzidas por meio de conhecimento europeu, passou a restringir fortemente a fabricação e o porte dessas armas à população comum. Na verdade, o xogum não poderia permitir que o simplório camponês tivesse a possibilidade de se sobrepor, com o fácil manejo das armas de fogo, à oligarquia formada por samurais, os quais se recusavam a combater com esse tipo de armamento. Mormente, o soberano não poderia permitir o livre acesso as armas por uma questão de maior influência sobre um povo, pois, se esse continuasse desarmado e indefeso, só teria o caminho da estrita submissão a todo tipo de desmando de Tokugawa. O segundo capítulo detalha e compara os resultados práticos das políticas desarmamentistas e armamentistas nos dois maiores símbolos de cada opção, tal seja: Alemanha Nazista e Estados Unidos da América (EUA), respectivamente. Nesse capítulo reafirma-se o caráter instrumental do desarmamento para as políticas totalitárias, ao passo que, revela o respeito às liberdades individuais presentes nos EUA, dentre elas o direito à posse e ao porte de armas, como antídoto a governos autoritários e pressuposto para a autonomia do povo. Por fim, no terceiro capítulo o tema é trazido à história do Brasil, desde o descobrimento até a implementação da lei 10.826/03, o Estatuto do Desarmento. No 12 referido capítulo busca-se demonstrar que, independentemente do local ou da época, as políticas desarmamentistas têm os mesmos efeitos. E não somente isso; o direito à posse e ao porte de armas, devidamente regulamentados e prudentemente aplicados, são garantias de outros direitos individuais, tais como: a vida, a liberdade de expressão e a propriedade privada. 13 2. AS PRIMEIRAS LIMITAÇÕES ÀS ARMAS DE FOGO E O PIONEIRISMO JAPONÊS O Japão implementou um modelo inicial de desarmamento civil com a finalidade de exercer o controle social, de forma que, após grande período de conflitos internos em uma nação completamente dividida e devastada pela guerra, uma ação deliberada, objetivando a contenção social, promoveu o desarmamento civil. Todavia, anteriormente à política anti-armas japonesa, os conflitos internos devastavam a ilha, devido às disputas dos senhores feudais, os quais guerreavam entre si em busca de obter o maior domínio territorial e o consequente poder que as terras significavam, para então imperar sobre os demais. Pode-se dizer que a influência europeia foi um fator propulsor para o agravamento das disputas, uma vez que, com a chegada dos estrangeiros, houve a apresentação de novas técnicas e armas ao povo japonês, as quais até o momento desconhecia o verdadeiro poder que uma arma de fogo, operacionalizada conforme a tecnologia europeia, seria capaz de oferecer. A exemplo disso, assevera Luiz Giaconi (2014, p.1) que “Registros apontam que nos primeiros 10 anos, cerca de mil tanegashimas foram encomendadas pelos diversos senhores feudais japoneses.” Fonte: Breve História do desarmamento parte 1: O Japão Pré-Imperial por Luiz Giaconi (2014, p.1). Continua Giaconi (2014) informando que em um espaço de aproximadamente 70 anos o Japão já fabricava quase industrialmente mais armas comparando com a produção europeia. Desta forma, os nobres japoneses, em busca de vencer os conflitos, encomendavam e aperfeiçoavam as suas armas aos moldes dos ocidentais, o que de fato Figura 1 - Tanegashimas 14 ocasionou uma decisão aos conflitos históricos entre as mais variadas facções aristocratas. Findados os conflitos, o Xogum se estabeleceu como soberano supremo do arquipélago japonês e, gozando da estabilidade que a paz interna e externa lhe proporcionara, passou a implementar todo tipo de medida autoritária, a fim não só de demonstrar poder, mas também de assegurá-lo. Nisso se pode encontrar a pilastra mestra dos argumentos motivadores ao desmantelamento das manufaturas bélicas, orquestrado por decretos unilaterais, por vezes travestidos e floreados de medidas à seguridade da identidade japonesa, ao nacionalismo na terra do sol nascente. 2.1. CONCEITOS, MOTIVAÇÃO E FINALIDADE O contato inicial do Japão com armas de fogo e pólvora se deu ainda no século XIII. Vale ressaltar que as armas eram primitivas, com pouca eficiência, a principal característica desse armamento era a simplicidade, marcada pelo pequeno porte, a maioria nem mesmo contava com gatilho ou aparelho de mira, o que, para maiores distâncias, significava a ineficiência absoluta. Importante fator à chegada dessa nova tecnologia em terras nipônicas foi a geografia, devido à proximidade do Japão com a China,urge dizer que esse primeiro encontro antecedeu a chegada, bem como a consequente influência europeia na região. Essa arma de fogo, cuja munição era colocada pela boca (antecarga), era conhecida por “teppos”. Apesar de representarem as primeiras armas de fogo que chegaram ao convívio dos japoneses, não houve muita aceitação, tampouco fama, devido ao seu baixo poder de alcance e eficiência, portanto, não figurava como a preferida das tropas ou até mesmo dos caçadores, de maneira que até o momento, os arcos, já consagrados desde os primórdios da cultura do país, atendiam melhor aos interesses populares. Todavia, em meados do século XIII, o cenário de armas de fogo começaria sua transformação nas ilhas japonesas, dada a chegada dos europeus, inicialmente eram portugueses, com o objetivo de exploração, apresentaram aos japoneses as armas de fogo europeias, mais desenvolvidas e com maior capacidade bélica, completamente diferente dos conhecidos e falidos “teppos”. 15 A partir da nova tecnologia portuguesa, foi concebido um novo artefato bélico, o qual convencionou-se denominar “tanegashimas”, que passaram a ser amplamente produzidas no Japão, feitos aos moldes do modelo português, o já consagrado “arcabuz”. Cujas principais diferenças em relação aos antigos teppos, traduzem-se na presença do gatilho para realizar os disparos, notadamente, uma grande modernização em relação as primeiras armas mencionadas, as quais, em sua maioria, faziam uso de pavio, ou seja: total retardo e imprevisibilidade nos disparos. Em vista de toda a fama e eficiência não encontrada nos antigos canhões – os teppos, mas nas tanegashimas, esse novo artefato de guerra passou a figurar como preferência dos senhores feudais do Japão, contando, inclusive, com a produção em larga escala. Acerca das tanegashimas e sua introdução nas ilhas japonesas, bem como seu maior poder de fogo para caça e para a defesa, deixando os arcos e as espadas em segundo plano, nesse momento, é imperioso citar Bene Barbosa (2016, p.1): Tanegashima é uma ilha do sul do Japão, situada no arquipélago Ōsumi sendo a segunda maior do arquipélago. Foi nesta ilha que desembarcaram os primeiros portugueses com suas missões Jesuítas em 1543. Logo depois vieram os franciscanos e dominicanos. Junto aos Europeus vieram as armas de fogo que causaram enorme impacto nos moradores da ilha, que em pouquíssimo tempo puderam constatar sua utilidade para caça e defesa quando comparadas aos arcos e flechas e espadas. A ilha era e é conhecida pela sua produção de ferro e pelos mestres artesãos/ferreiros. Dentro desse contexto, não demorou muito que esses ferreiros passassem a produzir seu próprio armamento, com grande qualidade e quantidades relativamente altas para padrões de produção da época. O Japão entrava oficialmente na Era da Pólvora e Tanegashima se tornava sinônimo de arma de fogo e assim são designadas até hoje É importante aduzir, a situação japonesa era de conflito, tendo em vista que o poder era compartilhado por diversos senhores feudais, que entre si, estavam em guerra disputando por terras e, consequentemente pelo poder, ou seja, o Japão estava dividido, o que favoreceu o surgimento de cada vez mais conflitos e também da corrida pelo melhor armamento, considerando que aquele que estivesse na posse da arma mais eficiente, certamente levaria grande vantagem, era literalmente a “Era da Pólvora” que perdurou por aproximadamente sessenta anos. 16 Após longo período de guerra, muitos eram os guerreiros que lutavam para garantir suas terras e mais conquistas, a fim de monopolizar o poder, dessa maneira, houve o destaque para um deles, com a vitória dos embates que assolavam internamente o Japão, a esse respeito é conveniente apontar breve comentário de Bené Barbosa (2016, p.1): O Japão feudal era politicamente caótico. No início do século XVI, os conflitos internos tinham saído do controle ameaçando a ordem social e o poder dos senhores feudais. Esse cenário só seria revertido pela sucessão de três guerreiros notáveis: Oda Nodunaga, Toyotomi Hideyoshi e Tokugawa Ieysu.Como explica John Keegan em seu livro “Uma História da Guerra”: “A excelência do comando não foi a única explicação para a restauração do poder central. Os três generais eram também expoentes de uma nova arma (as armas de fogo)” . Assim, saindo vencedor da guerra, o guerreiro Xogum Tokugawa Ieyasu inicia a era do Xogunato Tokugawa, através da qual não difere muito do que se verifica hoje quando se muda o Poder: os partidários ou aliados são colocados para compor o império, sendo-lhes dados títulos de nobreza, cargos honrosos e de confiança, além de diversos benefícios. Enquanto os inimigos sofrem o confisco das terras e, em muitos casos, o degredo das ilhas japonesas. Além disso, importa mencionar o fato histórico do fechamento do Japão para as relações de comércio com os estrangeiros, incluindo os próprios portugueses e holandeses, havendo também a expulsão dos demais estrangeiros. O objetivo do Império era manter incólume as tradições japonesas, tudo aquilo que representasse a menor ameaça à cultura local deveria ser imediatamente cessado. Por esta razão, a religião cristã pregada pelos jesuítas portugueses, se configurava em afronta às tradições locais, sendo considerada um estorvo ao plano nacionalista do Xogum. Por conseguinte, houve perseguição aos adeptos da religião cristã, bem como a sua total proibição. Diante da centralização do Poder do Xogum e início da paz interna japonesa, que perduraria por mais de duzentos anos, foram empreendidas medidas não apenas para manter a cultura japonesa intacta e sempre imponente, mas também para assegurar o sucesso e permanência do Poder Central. 17 Nesse sentido, foi iniciado o desarmamento japonês. Entende-se que o Xogum imbuído no dever de manter a paz interna e de resguardar o Império, tenha promovido o desarmamento, levando em conta variados elementos para justificar tal ação. O elevado número de nobres, que no Japão era bastante significativo e aumentava cada vez mais, ponderando a trajetória de um guerreiro samurai, ou seja, um nobre que se dedicou toda a vida para se tornar um mestre, não só nas artes marciais, como também na sofisticada tradição e etiqueta japonesa, encontraria um simplório fim perante um ordinário camponês que estivesse munido com uma arma de fogo. E isso não poderia ser tolerado. Destarte, a própria honra seria violada, uma vez que perder a vida pelas mãos de um homem comum, por meio de disparo de arma de fogo, não encontraria qualquer dignidade nem mesmo aos olhos de um ocidental, muito menos segundo as fortes tradições japonesas. O próprio ritual de suicídio samurai (harakiri) seria um caminho muito melhor para o nobre samurai se defrontar com seu fim. Assim, ter sua vida ceifada por uma espada, em uma luta configurava uma morte bem mais honrosa para os japoneses. Acima de tudo, o motivo maior, capaz de influenciar fortemente a ação desarmamentista de Xogum foi o exercício facilitado de controle sobre seus subordinados, tendo em vista que subjugar um camponês, impondo regras e deveres, seria bem fácil sem qualquer mecanismo que pudesse ensejar resistência, como por exemplo a arma de fogo. Ainda, vislumbra-se que de maneira mais ampla, até mesmo o Poder do Xogum, estaria sob maiores questionamentos caso se permitisse aos camponeses meios que promovessem sua imposição perante um nobre, conforme já exemplificado. O homem comum armado, já no Japão feudal, significava uma clara ameaça ao “Imperador deus”, significava questionamentos ao poder total do soberano, algo impossível de ser tolerado. 2.2. O INÍCIO DA POLÍTICA DESARMAMENTISTA Não se olvide, que a paz interna estabelecida e o poder de Xogum,se deram em virtude das vitórias nas guerras internas, nas quais as armas de fogo tiveram papel de 18 protagonistas para o vencedor. Tem-se, nessa mesma linha, que de igual maneira, o controle armamentista seria crucial para manutenção do Poder e da boa ordem. Em seguida, o Império ordenou então, que os civis deveriam entregar todas as suas armas de fogo, uma vez que não havia qualquer ameaça externa e a situação interna já havia se estabilizado, o maior interesse era a manutenção do status quo. Necessário salientar que mesmo naquele período já era possível identificar o discurso apelativo a uma paz utópica e, por que não dizer pacifista, o qual se aproveitava de elementos culturais e religiosos da população, a fim comovê-la e deixá-la alheia ao pensamento crítico e racional como foi no icônico caso em que o Xogum Hideyoshi determina a retenção das armas – não só as de fogo, como também as armas brancas – de todo o povo, excetuando-se militares (servidores do próprio Xogum), com a promessa de construir um grande monumento em forma de Buda. Tal construção nunca chegou a se concretizar. O melhoramento da tecnologia de guerra foi simplesmente desprezado em prol de uma preservação da estrutura social, tal seja: estrutura notadamente estratificada sem a possibilidade de qualquer mobilidade, na qual o imperador exercia seu poder de dominação, em conjunto com a aristocracia de senhores feudais e de seus samurais, sobre uma população campesina inteiramente entregue a todos os desmandos do soberano. Assim comenta Keegan (1993, p.30): “[…] Na quarta, dos samurais do Japão, um aperfeiçoamento disponível dos meios técnicos de guerrear foi proibido em nome da preservação da estrutura social existente” A política desarmamentista do Império atrasou o Japão para a modernização de armas, bem como, findo o século, raras eram as oficinas que produziam armas, tampouco japoneses que ainda possuíam o conhecimento de fabricação, algo que custaria caro ao Japão, algum tempo depois. A invocação das raízes japonesas, aliada, consequentemente, à repulsa de todo o conhecimento estrangeiro existente no Japão, não obstante as lucrativas relações comerciais com o Ocidente, ao final, vedadas, garantiu a implementação maciça do desarmamento japonês. As Ilhas Japonesas, então, assumiram a acepção social da sua condição geográfica, nesse sentindo, é válido continuar a citar Keegan (1993, p. 47): 19 No século XVI, a classe dos espadachins japoneses viu-se diante do desafio das armas de fogo; ela então descobriu meios de livrar o Japão dessas armas e assim perpetuar sua dominação social por mais 250 anos. Enquanto o mundo ocidental, que tocou brevemente o Japão no século XVI, comerciava, viajava, se industrializava e passava por revoluções políticas, os samurais japoneses fechavam seu país ao mundo exterior, extirpavam as cabeças-de-ponte da religião estrangeira e da influência técnica e fixavam fortemente as tradições segundo as quais tinham vivido e mandado por mil anos. Importa aludir ao que explica Bené Barbosa (2016, p. 1) citando John Keegan sobre o desarmamento deliberado ocorrido no Japão: Keegan aponta três motivadores para a imposição do desarmamento no arquipélago japonês. Primeiramente havia uma verdadeira ojeriza ao que era estrangeiro e as armas de fogo era um grande símbolo disso, associadas ainda mesmo que ilogicamente ao cristianismo que era visto como uma ameaça à ordem estabelecida pelos governantes. Junto com as armas, todos os religiosos estrangeiros foram banidos. O segundo, e para mim o de maior peso, foi a “instabilidade social” que a posse de armas trazia uma vez que qualquer camponês, sem qualquer tradição nas artes do combate, munido de uma arma de fogo poderia abater sem muitas dificuldades um fidalgo ou um samurai altamente treinado. O terceiro ponto é que simplesmente era possível! Não haviam ameaças externas, as ameaças internas (após o desarmamento das classes inferiores) podiam ser facilmente esmagadas pela força das espadas samurais e, culturalmente, a pólvora era irreconciliável com o ethos do guerreiro japonês. Na prática, para as classes dominantes, as armas não fariam qualquer falta. O Japão se tornava a nação que implantara o desarmamento com o maior e mais profundo grau de sucesso possível. A Era da Pólvora simplesmente foi varrida daquele país, mas isso não significou mais civilidade ou paz. Muito pelo contrário. Ao desarmar sua população, camponeses e não fidalgos, os governantes levaram a opressão ao patamar poucas vezes alcançado. Como define John Keegan, “ao assegurar o monopólio das espadas aos guerreiros, os Tokugawa estavam garantindo o lugar dos samurais no pináculo da sociedade japonesa” Percebe-se que o desarmamento civil serve, entre outras situações, para garantir a eficácia e imponência de governos autoritários, ou seja, a princípio se retira as armas dos cidadãos livres com a justificativa de manutenção da paz e da ordem, contudo, naturalmente se cria o ambiente mais favorável possível ao governante de índole ditatorial, como foram os imperadores japoneses, que não tendo nenhum tipo de freio aos seus desmandos, subjugaram as classes desfavorecidas. 20 Assim, o desarmamento foi um mecanismo utilizado para exercer controle social através da imposição de um poder essencialmente autoritário. E vale apontar que, fatidicamente, o modelo japonês foi seguido por outros governos, igualmente despóticos, a fim de concentrar o domínio sobre pessoas. Convém trazer a lume, o que assevera Benjamin Franklin (1975): “Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança”. 21 3. CONTEXTO HISTÓRICO-LEGAL DO DESARMAMENTO CIVIL: A ALEMANHA NAZISTA E A POLÍTICA ESTADUNIDENSE. A utilização da política desarmamentista a fim de conter as classes menos desfavorecidas, iniciou-se, a bem da verdade, segundo relatos históricos, nas ilhas japonesas, que após longo período de guerras, tornou-se um império pacífico. Todavia, com o pretexto da permanência da paz interna, dentre outros já comentados inicialmente, desarmou sua sociedade civil. A estratégia política, por assim, dizer, de controle social ganhou novos adeptos, que de igual forma, utilizaram-se de justificativas não menos pretensiosas que as japonesas. Pode-se destacar dentre as políticas antiarmas mais contundentes e com os propósitos mais obscuros a bandeira nazista alemã. A Alemanha Nazista suprimiu de todos os Judeus qualquer possibilidade de resistência, determinou a proibição letal do possuir qualquer armamento. A ordem era bastante clara, aquele que fosse encontrado ainda em posse de arma seria executado sem qualquer delonga ou justificativa. Nesse sentindo, elucida Stephen P. O Halbrook (2010, p.1) citando notícias do New York Times: A Noite dos Cristais (Kristallnacht)-- a infame violência nazista contra judeus da Alemanha -- ocorreu em novembro de 1938. Foi precedida pela confiscação de armas de fogo das vítimas judias. Em 8 de novembro, o The New York Times informou de Berlim, "Chefe da Polícia de Berlim Anuncia 'Desarmamento' de Judeus," explicando: "O Presidente da Polícia de Berlim, Conde Wolf Heinrich von Helldorf, anunciou que como resultado de uma atividade policial nas últimas semanas toda a população judia de Berlim havia sido 'desarmada' com a confiscação de 2,569 armas curtas, 1,702 armas de fogo e 20,000 cartuchos de munição. Quaisquer judeus ainda achados de posse de armas sem licenças válidas são ameaçados com a mais severa punição." Na noite de 9 de novembro, Adolph Hitler, o Ministro da Propaganda Joseph Goebbels e outros chefes nazistas planejaram o ataque. Ordens foramenviadas para forças de segurança nazistas: "Todas as lojas judias devem ser destruídas imediatamente. Sinagogas devem ser queimadas. O Führer quer que a polícia não intervenha. Todos os judeus devem ser desarmados. Em caso de resistência eles devem ser fuzilados imediatamente." 22 Há sustentação de que o desarmamento da Alemanha Nazista tenha vetores diferenciados dos demais, sobretudo quando se fala em ideologia e que o Holocausto foi viabilizado com a sociedade civil desarmada, afirmação que alcance debates acalorados, em virtude de haver diferentes vertentes acerca deste argumento. Ao contrário dos Alemães, e com base nos exemplos de controle de armas ao redor do mundo, a nação norte-americana, apesar da enorme discussão a respeito da possibilidade de um cidadão comum possuir arma de fogo, estatuiu, sob a égide liberal, bem como ao encontro da sua Constituição Democrata, a famosa Segunda Emenda. Verifica-se neste ponto, a política em favor das liberdades individuais e o discurso oposto daqueles conhecidos pelos governos comunistas e nazista, neste se prega a defesa das garantias democráticas, não se trata de controle social, mas segurança pública. Além disso, há a previsão legal do porte de armas nas terras estadunidenses, ao passo que nos exemplos citados, não havia esta prerrogativa expressa legalmente, situação que ensejou a liberalidade dos governos autoritários. Por estas razões, inicia-se as considerações acerca do modelo nazista de controle de armas, bem como o seu oposto apresentado pela política norte-americana, apontando seus resultados conforme suas realidades histórico-legais nacionais. 3.1. O DESARMAMENTO NA ALEMANHA NAZISTA Sabe-se do fatídico momento pelo qual a Alemanha, sob a égide de um regime completamente autoritário, tendo como principais característica a centralização do poder nas mãos de um dos ditadores mais famosos da história, qual seja, Adolf Hitler. Além disso, a política nazista de repressão a tudo que contrariava os seus preceitos puros, que eram tidos por supremos e superiores em relação a qualquer outro, ensejando a perseguição e o horror, principalmente aos judeus, concebido por holocausto. Confirmando a utilização da política anti-armas para controle social, na Alemanha a ação foi empregada para repressão daqueles que representavam a marginalização para a sociedade ariana, além de garantir também nenhuma resistência dos subjugados. 23 Nesse sentindo, explica Giaconi (2014, p.1) a respeito do método implementado pela Alemanha para a realização do controle das armas de fogo e suas divergências com outros modelos, destaca: O caso das armas na Alemanha nazista é extremamente interessante, e, por muitas vezes, foi interpretado e utilizado de maneira equivocada. Adolf Hitler é frequentemente colocado na galeria dos tiranos genocidas que confiscaram e proibiram que seu povo tivesse acesso à armas, como Stalin, Lênin, Fidel Castro, Mao Tse-tung, a família Kim da Coréia do Norte e vários outros. Mas isso não é completamente verdade. O caso nazista alemão é um pouco mais complexo do que os similares comunistas. Em parte devido à ideologia. Muitas das leis alemãs sobre controle de armas de fogo foram herdadas pelos nazistas, e não impostas por eles. Leis essas, que criadas numa democracia, tinham, em teoria, as melhores intenções. Mas acabaram servindo para facilitar o serviço de um futuro regime autoritário e homicida. E contribuíram para facilitar uma das maiores catástrofes da história da humanidade: o holocausto. Extrai-se da ideia do autor acima indicado que, na verdade, não se pode falar em normativa desarmamentista originária no regime nazista, mas sim de legado já deixado pela democracia, cujas premissas alcançavam ideias republicanos e liberais, contudo o aporte legislativo herdado serviu de base para as futuras ordens nazistas e início da perseguição racial e antissemita de Hitler. Conforma a legislação democrata rígida já existente e diante do início do que seria a perseguição e dizimação de milhões de pessoas, bastante conveniente ao líder que não houvesse meios para iniciar pontos de conflito com qualquer resistência, ou seja, todas as medidas que garantissem o sucesso da empreitada nazista. Na mesma perspectiva, continua Giaconi (2014, p. 1) acerca das leis que dificultaram o acesso as armas de fogo ainda na época da República de Weimar e seus consectários: Para tentar diminuir o clima belicoso, em 1919, o governo da então Repúblicade Weimar aprovou a primeira lei nacional para o controle de armas de fogo, ordenando a entrega de todas as armas ao governo. Quem não obedecesse estava sujeito a uma pena de até cinco anos de prisão e a uma multa de cem mil marcos. Em 1928, a coalizão de sociais democratas, centristas e conservadores, que ganhou as eleições do mesmo ano, estabeleceu uma lei mais completa sobre o tema. A nova legislação acabava com a proibição total da lei anterior, mas requeria permissão tanto para comprar, quanto para portar uma arma de fogo (no caso, pistolas e revólveres de baixo calibre). Lojas de armas deveriam manter registros dos 24 compradores, além de obter licenças para funcionar. Armas mais antigas, que não possuíssem numeração de série deveriam ser devolvidas aos fabricantes para que pudessem ser numeradas, e então devolvidas aos proprietários. A permissão para a compra de uma arma só era concedida a pessoas de “reputação ilibada”. E o direito ao porte era apenas concedido em casos raros, quando o comprador conseguia comprovar necessidade da mesma. Mais ou menos como o que acontece no Brasil dos dias de hoje. As regras eram tão duras que menos de 0,5% dos compradores conseguiam o direito ao porte de armas. Ainda, com a rigidez das normas, inclusive para a posse e para a adquirir as armas, lançados no governo democrático alemão condicionado também a comprovação da necessidade do seu armamento ou de sua aquisição. O governo possuía os registros das pessoas que possuíam armas de fogo, havia um controle sobre os proprietários de arma de fogo, iniciado na República de Weimar. De forma que o líder nazista com base nas informações que já possuía, editou lei enrijecendo o controle de armas a fim de iniciar tranquilamente a sua caçada, sem qualquer oposição. Convém mencionar que o desarmamento nazista, conforme aduz o autor citado diferiu em alguns pontos do ocorrido nos demais Estados autoritários, neste houve o direcionamento, a fim do extermínio dos judeus, ciganos, negros, aquilo que representasse a escória, para os alemães puros, da sociedade alemã. Não havia tolerância, então a humanidade dessas classes foi retirada brutalmente, os direitos básicos como a própria nacionalidade, o patrimônio e consequentemente as armas, de quaisquer espécies, que pudessem servir como mecanismo de defesa e resistência. Figura 2 - Closeup do cartaz holandês proibido armas . Os cidadãos tiveram 24 horas para render todas as armas de fogo aos nazistas ou então encarar a pena de morte- Impresso em alemão na esquerda e em flamengo na direita. Fonte: Repressão Nazista aos Donos de Armas - Por Stephen P. O Halbrook, PhD., J.D (2010,p.1) 25 Retirando dos judeus os seus bens, os seus direitos e as suas armas, garantido objetivo alemão para liquidar os seus inimigos, assim considerados aqueles homens, mulheres e crianças, não havia espaço para clemência, nenhum judeu poderia escapar da tirania alemã sob o comando de Hitler. Ainda, aduz Giaconi (2014) que devido a atentados no ano de 2002, nos quais os agressores lançaram mão de armas de fogo, toda a política burocrática para aqueles que desejassem adquirir uma arma foi reformulada no sentido de pormenorizar as exigências e, com isso, delimitar um perfil do cidadão menos propício a incorrer nesses tipos de atos maisextremados. Dentre as novas exigências estão: avaliações psicológicas obrigatórias e idade mínima de 25 anos. Todavia as novas legislações restritivas de direitos não se contiveram às armas de fogo e, em 2008 e 2009, também alcançaram armamentos de menor potencial ofensivo (chamados IMPO), tais como as armas de pressão e os “tasers”, que foram totalmente proibidos. Além da sanha legiferante do estado motivada pelos susoditos eventos, o governo ainda impôs vistorias frequentes às residências de todos aqueles cidadãos proprietários de armas, já escrutinados pelas mesmas normas estabelecidas primeiramente. As novas limitações e mecanismos de controle não se ativeram em restringir os direitos de civis, uma vez que chegaram até mesmo a seus próprios agentes – militares e policiais – os quais, mesmo mantendo o direito de posse e porte de arma, passaram a encontrar diversas novas barreiras no trâmite de compra desses armamentos, bem como na aquisição das munições necessárias ao seu emprego. Como já explicitado anteriormente, após os atentados a escolas, passou-se a classificar as pessoas de acordo o seu perfil de potencialidade a atos terroristas e essa classificação se expressou em um sistema de licenças baseado no tripé: necessidade, interesse e capacidade. E a partir da avaliação desses critérios, a cada cidadão interessado na aquisição de uma arma de fogo, atribuía-se uma determinada cor. A cor verde exigia menos dos interessados, é adquirida mais facilmente, no entanto só dá direito a, no máximo, duas armas. Posteriormente, caso o civil atendesse a critérios mais específicos, poderia ter acesso a cor amarela e passaria a poder adquirir não mais 26 duas, mas até cinco armas. Finalmente, na hipótese do cidadão se tornar um colecionador de armas registrado e aprovado pelo poder público, concedia-se a cor vermelha. Na outra ponta temos aquelas pessoas a quem, a priori, devido ao histórico pessoal, é negada a aquisição de qualquer tipo de arma de fogo. As características aqui levadas em conta vão desde a passagem por algum crime, até o chamado “comportamento agressivo”, ainda que este não tenha culminado em algum registro de delito. Também estão proibidos de adquirir armas de fogo aqueles que possuem histórico de doenças mentais e de vício em drogas ou álcool (GIACONI, 2014). 3.2. A POLÍTICA DE ARMAS NORTE-AMERICANA Os Estados Unidos da América (EUA) são, de longe, o país mais armado do planeta. Cerca de 40% dos americanos afirmam possuir pelo menos uma arma de fogo – segundo levantamento do Pew Research Center, totalizam mais de 283 milhões de armas apenas nas mãos de civis em todo o território estadunidense. Essa conjuntura do país denominada “cultura das armas” tem sua origem nos primórdios da nação americana, quando britânicos cruzaram o Atlântico – com outros povos europeus – para tentar uma nova vida além-mar, devido a superpopulação do Reino Unido e, principalmente, às perseguições religiosas. Porém, o cenário encontrado pelos europeus na Norte-América era bem diferente da realidade europeia. Pode-se dizer que a situação ao norte era mais belicosa do que a encontrada pelos exploradores europeus que se aventuraram na parte sul do continente, uma vez que, afora todos os fatores de risco em comum, a parte setentrional ainda contava com um clima muito mais instável, que contava com invernos impiedosos, grandes empecilhos para a cultura de grãos ou frutas. Somado a estes fatores, a nova terra já tinha seus ocupantes, índios que se eternizaram nos contos e filmes de faroeste, quase sempre lembrados por serem implacáveis e extramente cruéis ao subjugarem seus inimigos. Tais condições explicam por que inicialmente os colonos se mantiveram a leste, próximos ao Atlântico, e só após muitas décadas conquistaram o oeste. 27 Por todos esses fatos, acrescentando-se os acontecimentos da Guerra de Independência, Guerra Civil (também conhecida como Guerra de Secessão) é que os americanos formaram sua sociedade baseada na ideia da “terra da liberdade” (Land of free), da qual o símbolo maior é a estátua da liberdade. Essa valorização das liberdades individuais está nas raízes do povo americano, em especial o direito à posse e ao porte de armas, pois, como já foi dito, a terra não era a mais adequada para grandes latifúndios exportadores. Nesse contexto, a caça se incrustou no cotidiano do colono e perdura até os dias de hoje, seja para a subsistência, seja para a proteção contra animais selvagens, ou mesmo para a simples prática esportiva. Portanto, foi natural que todo esse pano de fundo cultural inspirasse o arcabouço jurídico dos Estados Unidos. O direito do cidadão de ter e de portar armas de fogo já era assegurado desde o século XVIII, tradição herdada do common law inglês. A Constituição americana, por sua Segunda Emenda, a qual entrou em vigor em 1789, estabelece textualmente: “Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser infringido.” Figura 3 - THE 2ª AMENDENT Fonte: A revolução americana começou por causa do desarmamento por Fernando Negro (2013, p.1) Repise-se que os Estados Unidos têm a característica de garantir ao seu povo a liberdade, razão pela qual se tem uma política de Estado mínimo, o que foi traduzido pela Carta de Direitos ou American Bill of Rigths de 1791, que entre as dez primeiras 28 emendas, houve a previsão na segunda emenda do direito dos indivíduos de portarem arma de fogo, forma de garantir a liberdade individual dos cidadãos americanos. Contudo, é importante destacar que o texto constitucional pode sofrer regulamentação pelos Estados Americanos, ou seja, não há um direito ilimitado e irrestrito ao porte de arma em todo o território norte-americano, cabendo aos estados legislarem sobre as armas de fogo, sem, contudo violar a garantia constitucional. Em outras palavras, é possível compreender o direito de portar armas de cada pessoa nos EUA para que possa exercer seu direito de defesa, contudo, os estados podem restringir o porte de armas de acordo com regulamentação própria. Há assim uma grande discussão sobre a abertura da possibilidade de regular e restringir as armas de fogo, de um lado tem-se que a literalidade da segunda emenda garante ao americano o porte de arma, ou seja, não podendo sofrer ingerência, contudo há a prerrogativa do exercício do controle do direito ao porte de armas também defendido. É possível vislumbrar que há uma divisão de opiniões e de idéias políticos bem sedimentados, motivo pela qual a situação permanece aberta ao debate, sobretudo após ataques com arma de fogo, situação que pode sofrer modificação, contudo encontra resistência em aspectos históricos, ou seja, a conduta americana frente aos seus colonizadores e após, internamente construindo também elementos culturais que influenciaram tal cenário. Nesse diapasão Guazzelli (2017,p.1) comenta sobre a segunda emenda e sua finalidade: Durante todo o século XIX a Segunda Emenda jamais foi contestada. Parecia bastante óbvio para todos os americanos que o direito de portar armas era uma salvaguarda necessária para garantir o direito de autodefesa dos cidadãos e evitar que o Estado tivesse o monopólio do uso da violência, assim como acontecia no arcaico Estado Absolutista. Enquanto os Estados Unidos expandiam o seu território e transformavam- se em um país continental por meio de compras, acordos e conquistas militares, não fazia muito sentido falar em limitação ao uso de armas de fogo pelos cidadãos. Sem elas, certamente os pioneiros que se arriscaram além dos Montes Apalaches ou do Mississipi seriam massacrados. Igualmente, graças ao contato comercial com os franceses,de quem adquiriram armas de fogo, os índios Comanches, Sioux e Blackfoot das Grandes Planícies americanas conseguiram resistir mais do que quaisquer outros ao exército americano. Foram as milícias armadas independentes que garantiram a Independência do Texas em relação ao México e sua posterior anexação aos Estados Unidos em 1845. Com a revolução 29 causada pelos revólveres de repetição fabricados por Samuel Colt e Smith & Wesson, assim como os rifles Winchester, a Guerra Civil Americana foi, juntamente com a Guerra do Paraguai, a primeira guerra total registrada, garantindo a liberdade de milhões de pessoas escravizadas, embora às custas de 600 mil mortes. De fato, no século XIX, a história dos Estados Unidos e a história das armas de fogo se confundiam. É imprescindível extrair da Segunda Emenda uma compreensão do teor da norma e a partir dele se discutir a intenção do legislador norte-americano. Em que pese uma primeira interpretação extraída da norma citada revele a intenção do legislador, que seria, de fato, a de assegurar aos indivíduos o seu direito de defesa mediante o porte de armas, também bem como a estruturação de instituições também de defesa e segurança pública, quando se faz uma análise aprofundada do texto legal, depara-se na verdade com ambiguidades, que leva a um debate acalorado entre os defensores e os opositores da política de armas. De acordo com Guazelli (2017, p.1) é possível reconhecer duas vertentes quando lê a Segunda emenda, considerando a finalidade do legislador, bem como as suas já citadas influências histórico-culturais, assim, leciona: Dessa forma, quando o texto da emenda diz que uma milícia bem regulamentada, sendo necessária para a segurança de um Estado livre(,) o direito do povo de possuir e portar armas, não devem ser infringidos, há abertura para duas linhas de interpretação. Na primeira, há o pressuposto de que a Segunda Emenda trata não de um, mas dois direitos: em primeiro lugar, o direito de organização de milícias, desde que atendam aos critérios explícitos de a.) serem bem regulamentadas; b.) serem necessárias para a segurança de um Estado livre. Em segundo lugar, o direito de as pessoas possuírem armas sem a intromissão do governo. Nessa linha de interpretação, entendemos que o direito de milícia ASSIM COMO o direito de portar armas não devem ser infringidos.Contudo, uma segunda interpretação percebe que o direito de formação de uma milícia bem regulamentada e o direito de possuir armas não são colocados com o sentido de adição (Direito A + Direito B). Antes disso, o direito de portar armas, para essa linha de raciocínio, somente é garantido com o fim de formar milícias, que contemporaneamente equivalem-se às forças policiais municipais e estaduais dos EUA. Além disso, essa segunda interpretação assume o argumento de que a palavra ‘povo’ (people) na Segunda Emenda evidencia o fato de que o direito de portar armas não é individual, mas coletivo (o que, na minha modesta opinião, não faz muito sentido). A interpretação seguida varia de acordo com o caso a que se aplica, bem como a conjuntura a que está submetida, tendo a Suprema Corte dos Estados Unidos se posicionado, ora em um dado aspecto, ou no outro, conforme narrado anteriormente. 30 Por conseguinte, a fim de ilustrar o entendimento em casos concretos e o seguimento de uma ou outra corrente interpretativa da Segunda Emenda, é primordial apontar os casos e os respectivos entendimentos adotados pelo Tribunal Norte Americano, informados por Guazelli (2017,p.1): Estados Unidos contra Miller (1939) – Em 1934, foi aprovada nos Estados Unidos a ‘Lei Nacional de Armas de Fogo’, com objetivo de regulamentar a taxação de fabricantes e distribuidores de certas armas, bem como políticas de restrição à importação e regras para transporte interestadual. Também foi criado um registro nacional para as armas no país. O ímpeto que levou à criação da lei em questão foi o rápido crescimento do crime organizado na ‘Era da Proibição’, especialmente em função da Lei Seca (caso emblemático de tentar controlar um problema por meio da proibição e acabar criando outro bem maior). Pistolas e revólveres convencionais foram excluídos de registro. Nesse contexto, Jack Miller, juntamente com Frank Layton, foi acusado pelo transporte de escopetas de cano serrado sem registro entre Estados. Entre os pontos da argumentação de Miller em sua defesa, constava que a sessão da Lei Nacional de Armas de Fogo que regulamentava o transporte interestadual de certas armas era inconstitucional, pois violava a Segunda Emenda. O juiz local de Arkansas deu ganho de causa para Miller e o Estado apelou, levando o caso à Suprema Corte. Esta acabou revertendo a decisão. Para a Suprema Corte, a Segunda Emenda, em conjunto com uma cláusla da Constituição sobre milícias, oferecia elementos para a afirmação de que “na ausência de qualquer evidência demonstrando que a posse ou uso de escopetas tem qualquer relação razoável com a eficiência de uma milícia bem regulamentada, não podemos dizer que a Segunda Emenda garante o direito de manter ou usar tal instrumento”. Essa interpretação, que vinculava o direito de portar armas ao estabelecimento de milícias regulamentadas pelos Estados (a polícia, basicamente), permaneceu como regra nas decisões da maioria dos magistrados dos EUA nos 60 anos seguintes. Distrito de Columbia contra Heller (2008) – Em 1975, o Distrito de Columbia promulgou uma lei de regulação e controle de armas de fogo. Basicamente, a partir dessa data o distrito baniu a posse de armas de fogo para civis, tornado crime o porte de armas não registradas e proibindo o seu registro! Para a polícia local, ficou reservada a possibilidade de conceder licenças temporárias, desde que os proprietários das armas legais as mantivessem descarregadas e travadas. Dick A. Heller, um policial do distrito, entrou com o pedido de registro de uma arma, que ele pretendia manter em casa para segurança familiar. O pedido foi negado. O policial então entrou com uma ação contra o Distrito de Columbia evocando a Segunda Emenda e o caso foi parar na Suprema Corte. Em uma apertada decisão por 5 a 4, a Suprema Corte dos Estados Unidos postulou que a Segunda Emenda protege o direito individual de os cidadãos possuírem e portarem armas, não tendo esse direito qualquer dependência ou conexão com a formação de milícias. Assim, Heller venceu a ação e a lei de regulação e controle de armas de fogo do Distrito de Columbia foi considerada Inconstitucional. 31 Além das indagações jurídicas dos Texto Constitucional, verifica-se também que aqueles que defendem e pregam o desarmamento utilizam-se dos variados argumentos e, claro, das oportunidades de promover o seu discurso antiarmas, principalmente diante de situações de grave violência, a polêmica vem a tona sempre que há um incidente envolvendo armas de fogo. Assim, sabe-se que os EUA, de fato, são cenário de trágicos e famosos ataques com utilização de armas de fogo, seja em escolas, igrejas ou boates. A brutalidade, na maioria vezes o número elevado de vítimas e até mesmo o modus operandi de cada atentado inflama o debate a respeito da facilidade da aquisição de armas de fogo no estado americano, com aparo constitucional na Segunda Emenda. Fato é que, a cada novo atentado abre-se a discussão sobre o porte, sem muita restrição, de armas de fogo para os cidadãos americanos sob o enfoque midiático e político. Deve-se destacar que o papel da imprensa, nessas questões, sensacionaliza o drama dos ataques e conduz as indagações às interesses políticos próprios, muitas vezes escusos e, desprovidos das verdadeiras informações. Além disso, não é apenas o discurso da mídia que transforma a ferramenta no elemento nuclear do problema,mas também há intelectuais, pensadores no mesmo passo, não se esquecendo dos políticos que buscando a melhor conveniência eleitoreira defendem, ainda que diante do desconhecimento dos dados reais ou mesmo indiferença a estes, a política desarmamentista com o slogan falacioso de ser em favor da coletividade ou para a promoção do bem comum. Nessa perspectiva, Ghani (2016, p.1) entende que há o esquecimento dos verdadeiros culpados e critica a maneira como se argumenta e defende-se a burocratização do porte de armas, indicando que não será a resolução do problema: Em relação à “culpa das armas” vende a idéia de que o acesso a compras de armamento nos EUA viabiliza os crimes cometidos por psicopatas. Será que para o psicopata que mata 50 pessoas e está disposto a morrer, a burocracia para comprar uma arma seria um empecilho para impedir seus crimes? É evidente que para um criminoso, restrições legais ao porte de arma não é nenhum problema, por uma razão simples: ele compraria no mercado ilegal. Além disso, quem mata não são as armas, mas as pessoas por trás delas. Na Arábia Saudita e no Irã, os fundamentalista islâmicos matam gays jogando-os de prédios ou enforcando-os em guindastes. Devemos também proibir os prédios altos e os guindastes a fim de evitarmos assassinatos? 32 Abstrativiza-se a atribuição da culpa, vinculando-a ao meio empregado, ou seja, às armas de fogo que podem ser facilmente adquiridas, não ao sujeito da ação que imbuído em seu propósito de matar, seja qual for a motivação, de cunho religioso, político, sociológico, racial ou afins. 33 4. A TERRA DE SANTA CRUZ E O DESARMAMENTO CIVIL Atendo-se ao processo das políticas desarmamentistas deve-se remontar às primeiras restrições de acesso às armas no Brasil, o que se deu ainda no Período Colonial e teve continuação gradativa sob influência de aspectos históricos, políticos e sociais. A nova descoberta portuguesa ensejou o início da história brasileira como colônia de exploração de Portugal, assim denominado Período Colonial. E foi ainda neste período que se tem notícia do começo de uma política anti-armas, não em atenção as estatísticas de violência e criminalidade, que se deve ressaltar não chegavam a ser alarmantes, mas para impedir qualquer oposição ou resistência, utilizando o desarmamento para controle social, como de costume. A pena para aquele que fosse encontrado fabricando armas na colônia era a condenação à morte, norma que permaneceu vigente durante todo o período colonial. Importa dizer, que mesmo ante de o Brasil vir a se tornar colônia de Portugal, este já possuía legislação restringindo a fabricação de uso de armas nas suas colônias, o que novamente corrobora o objetivo real da política. Assim, já havia uma compilação de normas direcionadas as colônias portuguesas, inclusive tratando acerca do procedimento para o porte e uso de armas, esse conjunto normativo tratava-se das Ordenações Filipinas. Em 1822 o Brasil proclama a independência de Portugal e consequentemente não mais se submete ao regime das Ordenações Filipinas, o que inicia o Período Imperial, porém pouco tempo depois Dom Pedro I abdica do trono e retorna a Portugal, passa-se ao Período Regencial, uma vez que Dom Pedro II apenas com cinco anos, então o regente Diogo Antônio Feijó assume império. Assim, a respeito das medidas do Regente para conter as turbulências causadas pelas revoltas em razão do abuso do poder Imperial assevera Celso Tribuno (2017, p.1): De 1831 até 1840, ficou conhecido como Período Regencial. Diversas revoltas populares aconteceram nesse período: Cabanagem, Revolta dos Malês, Sabinada, Farroupilha, dentre outras. As revoltas tinham o mesmo motivo: o abuso do poder imperial contra as classes mais baixas, todas as revoltas terminaram com a vitória da Monarquia. Feijó criou a Guarda 34 Nacional monopolizando o poder unicamente para a proteção da Família Real e extinguindo as milícias com medo que pudessem desestabilizar o poder monárquico. Diferentemente do que ocorreu nos EUA, onde cidadãos a criação da Segunda Emenda da Constituição Americana, permite todos os cidadãos se armarem e criarem milícias para defender seu país contra ameaças externas e internas. No entanto, mesmo com as milícias proibidas no Brasil, todo cidadão brasileiro livre (que não eram escravos ou índio) tinham o direito de possuir armas para defesa pessoal. Esta leis permaneceram por todo o Período Imperial e República Velha, que durou de 1989 a 1930. Com a tomada de poder por Getúlio Vargas se estabelece a primeira campanha de desarmamento oficial no Brasil. Assim, a partir da política de Getúlio Vargas se tem início a campanha desarmamentista, o que desaguou em normativas editadas sob a justificativa de combate a criminalidade, quando o intuito sempre foi a manutenção do poder. A abertura para o surgimento de uma legislação mais rígida quanto a restrição civil de acesso as armas de fogo ganhou novo ânimo, de modo que as lei se tornaram mais duras até se chegar na atual legislação, conhecida por Estatuto do Desarmamento ou Lei nº 10.826 de 22 de dezembro de 2005. Deve-se elucidar o cenário através do qual se estatuiu a Lei nº 10.826/03, tratando das suas finalidades, bem como os resultados atingidos com a sua política, sem se esquecer do Referendo Popular realizado sob a determinação da referida Lei a fim de ouvir a população acerca das restrições. Ainda, cabe discutir a mitigação de um direito fundamental, bem como indagar se ainda há representatividade popular, se acaso a violência e os índices de criminalidade diminuíram ou foram amenizados. 4.1. O ESTATUTO DO DESARMAMENTO Antes de tratar especificamente a respeito da Lei nº 10.826/03 ou Estatuto do desarmamento, deve-se aduzir a história que precedeu o seu surgimento, bem como a conjuntura que o estruturou até a sua entrada em vigor. Nesse sentindo, de volta a Era Vargas, conforme já mencionado, foi no Governo de Getúlio Vargas que, de fato, foi operacionalizada a política desarmamentista. Assim, a fim de resolver conflitos internos e em busca de estabilidade para seu governo frente a dois movimentos que cresciam no país, quais sejam, o Coronelismo e o Cangaço, e que representavam ameaça ao poder governamental foi editado o Decreto nº 24.602 de 6 de 35 julho de 1934, que tratava de restringir ao acesso civil as armas de fogo, bem como oficializa o monopólio do Estado para decidir sobre as autorizações que figuravam como exceções. É importante apresentar o teor do artigo 1º do referido Decreto a fim de compreender o alcance das restrições: Art. 1º Fica proibida a instalação, no país, de fábricas civis destinadas ao fabrico de armas e munições de guerra . Parágrafo único. É, entretanto, facultativo ao Govêrno conceder autorização, sob as condições : a) de ser aceita uma fiscalização permanente nas suas direções administrativas, técnica e industrial, por oficiais do Exército, nomeados pelo Ministro da Guerra, sem onus para a fabrica; b) de submeter-se às restrições que o Govêrno Federal julgar conveniente determinar ao comércio de sua produção para o exterior ou interior; c) de estabelecer preferência para o Govêrno Federal na aquisição dos seus produtos . Art. 2º É absolutamente proibido qualquer fábrica civil fabricar munição de guerra, a não ser no caso previsto no parágrafo único do art.1º . A partir da entrega das armas de fogo pelos coronéis e seus subordinados, bem como com a caçada ao cangaço, o governo Getúlio de maneira estratégica conseguiu garantir a sua permanência, bem como o controle social, acabando com dois fortes movimentos que poderiam desestabilizar o país e fragilizar o governo, novamente, não se buscou diminuir os crimes, o interessepolítico promoveu a ação desarmamentista. Em seguida, é possível citar outra norma que também visou restringir e punir aquele individuo que violasse a legislação ao portar ou possuir arma de fogo, desta forma o Decreto-Lei nº 3.688 de 3 de outubro de 1941, estabeleceu no seu artigo 19 trazia a seguinte determinação: Art. 19. Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade: Pena – prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a três contos de réis, ou ambas cumulativamente.§ 1º A pena é aumentada de um terço até metade, se o agente já foi condenado, em sentença irrecorrível, por violência contra pessoa.§ 2º Incorre na pena de prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a um conto de réis, quem, possuindo arma ou munição:a) deixa de fazer comunicação ou entrega à autoridade, quando a lei o determina;b) permitir que alienado menor de 18 anos ou pessoa inexperiente no manejo de arma a tenha consigo;c) omite as cautelas necessárias para impedir que dela se apodere facilmente alienado, menor de 18 anos ou pessoa inexperiente em manejá-la. 36 Verifica-se que a pena prevista era de prisão simples ou multa, como era um crime de baixíssimo potencial ofensivo, considerado na época, a multa era a pena aplicada predominantemente. A seguir, observou-se que houve maior rigor quanto as normas de regulamentação do acesso civil às armas de fogo, tendo em vista que em Congresso realizado pelas Nações Unidas foi incisivamente argumentado que o alto índice de criminalidade era fruto da ausência de uma legislação mais rigorosa quanto ao porte de armas. O que influenciou os governantes brasileiros da época a promoverem uma reformulação da legislação sobre a posse e o porte de armas. Acerca desse processo de atualização da lei que tratava sobre as armas de fogo, Damásio de Jesus (2007, p.3) Leciona Realmente, o Governo Federal, em 1997, no sentido de reduzir a delinquência urbana, a chamada “criminalidade de massa”, fez entrar em vigor a Lei n. 9437, de 20 de Fevereiro, hoje revogada, criando o Sistema Nacional de Armas de Fogo (SINARM), transformando a contravenção de porte ilegal de arma de fogo em crime, regulando sua aquisição e posse e introduzindo outras providências, medidas que reclamávamos desde 1995. Considerando que esta primeira legislação acima indicada estava cheia de vícios e brechas, foi editada a Lei nº 10.826 de 22 de dezembro de 2003 ou o Estatuto do Desarmamento. Neste diploma, tem-se a previsão do procedimento para os registros das armas, as autorizações, os crimes e as sanções, bem como regulamente o Sistema Nacional de Armas – SINARM. Ressalte-se que o Estatuto referenciado não se limitou a tratar das falhas da legislação anterior, mas para enrijecer categoricamente a possibilidade de aquisição de armas de fogo pela sociedade civil. De forma que há a clara distinção entre a posse e o porte de armas de fogo com o tratamento jurídico igualmente distinto conforme a previsão da Lei mencionada. Assim, é possível dizer que o legislador intencionou vedar ou impossibilitar definitivamente o acesso as armas de fogo pelo cidadão comum, outra conclusão não se pode extrair do conteúdo normativo apresentado pela Lei nº 10.826/03, que burocratiza a aquisição de uma arma de fogo. 37 Ainda, sobre o registro de armas, bem como sobre a rigidez do comando legal aponta Damásio de Jesus (2007, p. 3): O Estatuto, sintomaticamente denominado “do Desarmamento”, praticamente extinguiu o direito do cidadão possuir arma de fogo, salvo raríssimas exceções. O registro obrigatório da arma, que concede o direito de seu proprietário mantê-la exclusivamente dentro de sua residência (art. 5°, caput), exige tantos requisitos que a sua concessão se torna impossível para a grande maioria da população. Não se deve esquecer de indicar que o artigo 4º do citado Estatuto que assim determina: “Art. 4o – Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos”. A declaração de efetiva necessidade é a justificativa pela qual aquele que pretende possuir ou portar uma arma de fogo deve apresentar expondo os motivos do seu intento para a autoridade. A regulamentação se deu com o advento do Decreto nº 5.123/2014 acrescentou ao artigo 12 o texto a seguir: Art. 12. Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá: I - declarar efetiva necessidade; (...) § 1o A declaração de que trata o inciso I do caput deverá explicitar os fatos e circunstâncias justificadoras do pedido, que serão examinados pela Polícia Federal segundo as orientações a serem expedidas pelo Ministério da Justiça. O critério inserido através do parágrafo primeiro levou a um julgamento extremamente subjetivo da solicitação para aquisição de armas, de modo que aquele individuo que anseia possuir ou portar uma arma, deve não apenas explicar quais os seus motivos, bem como ainda ficará a critério da autoridade da Polícia Federal para fins de avaliação do seu pedido. Todos os critérios desenvolvidos com base em uma política voltada a reduzir os níveis de violência e criminalidade dentro do território nacional. Poderia até se concluir como motivo nobre, caso estivesse revestido de argumentos verossímeis e dados reais, contudo, infelizmente não é esse o caso da nação brasileira. Além disso, a fim de tornar a decisão política mais popular e corroborar o que trazia a Lei de Armas, como também é conhecida a Lei nº 10.826/03 optou-se pela realização de um Referendo Popular, através do qual a sociedade seria consultada com a finalidade 38 de se conceber a vontade do povo com a de seus representantes, finalmente sabendo do povo qual a sua opinião sobre as restrições e a vedação do acesso as armas de fogo. O intuito era concretizar um movimento mais democrático a fim de incluir os cidadãos no processo legislativo. Importa tecer as devidas considerações da realização do Referendo e suas implicações para a discussão sobre o acesso civil as armas de fogo. 4.2. O REFERENDO DE 2005 Como já comentado, sempre houve no Brasil e no mundo quem propusesse a limitação, ou mesmo a impossibilidade do acesso às armas de fogo pelo cidadão comum. Porém, na história recente de nosso país, as discussões acerca da proibição da comercialização de amamento de fogo se iniciam em 1998, com o então Ministro da Justiça Renan Calheiros, o qual foi autor do projeto de lei do Executivo nº 1.703, que proibia a comercialização de armas e munições em todo o território nacional. Então, em 22 de Dezembro de 2003 foi sancionada a lei 10.826/03, a norma mais restritiva no que tange à posse e ao porte de armas de fogo já produzida em nosso país. No entanto, a lei não tinha apenas estas pretensões – limitar o direito à posse e ao porte – no que se refere à limitação de direitos. Em seu artigo 35 a lei assim versava: “Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º dessa Lei. § 1oEste dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005. § 2oEm caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral.” Ou seja, por meio do art.35 o susodito estatuto também almejava proibir a comercialização de armas de fogo e munições, excetuando-se os “integrantes das entidades de desporto” (§6º, VIII) e os grandes empresários do ramo de segurança privada (§6º, IX) – muitos dos quais deputados e senadores, diga-se de passagem – que prestam seus serviços não ao cidadão comum, o qual não tem poder econômiconem mesmo para adquirir um simples revólver calibre 38, dados os absurdos preços provocados, em última análise, por esta mesma legislação, seja pelo monopólio de algumas empresas, seja pela inesgotável burocracia exigida, mas a políticos e grandes 39 empresários que em nada foram atingidos pelo estatuto, uma vez que não se é necessário a posse ou o porte de armas quando se pode pagar seguranças, esses sim muito bem armados. Logo após a aprovação do Estatuto do Desarmamento, o então Senador Renan Calheiros, novamente, não tardou em apresentar, no início de 2004, à mesa do Senado, o projeto de decreto do Legislativo que visava regulamentar e ao mesmo tempo marcar a data de cumprimento do referendo. Atenta-se aqui ao que apregoa o §1º do citado artigo: “dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005” (grifo nosso). Diante do contexto inegavelmente populista daquele governo, não foi por acaso a escolha desse mecanismo (o Referendo). Dada a colossal aceitação popular e o clima de exaltação do então representante eleito ao executivo federal, um referendo, ainda que se tratasse um instrumento restritivo de direitos de uma sociedade de maioria conservadora, seria apenas um mero protocolo que chancelaria com o carimbo “vontade do povo” àquela que, na verdade, era vontade do governo. Todavia, o referendo não se trata da vontade do povo por meio de políticos, os quais, apesar de eleitos, externalizam, na prática, interesses dos próprios representantes, dos seus partidos e dos mais variados lobbys que apoiam e possibilitam as candidaturas. Desta feita, após mobilizações de diversas organizações da sociedade civil, especialmente a associação civil “Movimento Viva Brasil”, encabeçada pelo ativista e especialista em segurança pública Benedito Gomes Barbosa Junior, mais conhecido como “Bene Barbosa”, a população brasileira escolheu rejeitar a proposta do art.35 com 59.109.265 votos, equivalente a 63,94% dos votos, enquanto apenas 36,06% concordaram com a proposta do artigo. Todavia, a após o resultado da votação e a consequente frustração de diversos interesses, levantaram-se as mais diversas questões acerca da legitimidade de uma convalidação popular lançar por terra uma decisão que parlamentares passaram anos amadurecendo até transformá-la em Lei. Como já dito anteriormente, foi escolhido o mecanismo do Referendo, previsto constitucionalmente no art. 14, II, como forma de manifestação da “soberania popular” como aduz o próprio inciso. Assim sendo não há que se falar em inconstitucionalidade, 40 muito pelo contrário, o resultado da votação refletiu a verdadeira vontade da maioria da população. Poderíamos até ir além, muito mais se analisarmos a atual conjuntura política do Brasil, uma vez que os órgãos responsáveis pela fiscalização e aplicação da lei, em especial o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, expuseram diversos políticos corruptos eleitos legitimamente pelo voto popular e, ao que tudo indica, está prestes a desmascarar outros tantos. Diante do exposto cabe a indagação: se o povo diretamente se opôs à limitação, ou melhor, ao fim do seu direito de compra e venda de armamento, esse mesmo povo também não se oporia à limitação ou, na atuação situação, quase impossibilidade de posse e porte de armas? Os proponentes da própria Lei 10.286/03 e de projetos de lei limitadores de direitos, quase todos indiciados no Supremo Tribunal Federal, representam de fato a vontade popular? O ex-Presidente e atual presidiário Luiz Inácio Lula da Silva assim se pronunciou em seu discurso por ocasião da sanção do Estatuto: “Reafirmar a prerrogativa da paz como instrumento de construção social é o sentido profundo deste Estatuto do Desarmamento que estamos promulgando hoje. Ele representa o desfecho de um enorme esforço político realizado pelas duas casas do Congresso Nacional, que trabalharam incessantemente para que sua tramitação fosse rápida e consensual. O fato de o Estatuto (...) ser promulgado às vésperas de uma das datas referenciais da comunhão humana, 19 que é o Natal (...). Esse simbolismo expressa a vontade unânime da sociedade brasileira de cortar a espiral de violência que nos inquieta e nos constrange perante a humanidade e a civilização (...). Na década de 90, 404.348 pessoas foram assassinadas no país. O principal alvo desse tiroteio ensandecido é a nossa juventude. (...). Criamos medidas mais severas contra práticas anteriormente punidas apenas como contrabando ou descaminho”. Reafirmo o que disse o ministro Márcio Thomaz Bastos. A população brasileira pode ter a certeza de que esse Estatuto não visa apenas coibir a circulação e a posse individual. Queremos interromper as fontes de abastecimento do crime organizado. E, para tanto, o Estado atuará de forma incisiva”. (22/12/2003). Contudo, o arquiteto e fundador da República Popular da China, Mao Tsé Tung (apud BARBOSA 2015, p.16), pelo qual o próprio Luiz Inácio afirmou nutrir admiração em entrevista dada à revista PlayBoy em 1979, da mesma linha ideológica de Che Guevara, Fidel Castro e do próprio Lula, assim afirma: “Todo poder político emana do cano de uma 41 arma. O partido comunista precisa comandar todas as armas; desta maneira, nenhuma arma jamais poderá ser usada para comandar o partido.” 4.3. A (IN) EFICÁCIA PRÁTICA DA LEI Nº 10.826/03 Rememorando as alardeadas razões que motivaram a propositura e posterior concretização da Lei 10.826/03 ou do Estatuto do Desarmamento, o recorte do já mencionado discurso por ocasião da sanção da norma assinada pelo então Presidente da República, expressa bem o que o próprio político e todo o establishment de mesmo viés ideológico almejavam e, até mesmo prometiam, com a implementação da lei, tal seja: “expressa a vontade unânime da sociedade brasileira de cortar a espiral de violência que nos inquieta e nos constrange perante a humanidade e a civilização”. A pergunta a se fazer diante de metas tão arrojadas, passados quase 15 anos de desarmamento, como o título da própria lei diz, é: existe uma real preocupação desses representantes que ocupam o poder desde a década de 90, os quais insistem em restringir o direito individual ao porte de armas, com o bem-estar do brasileiro? A “espiral de violência que nos inquieta e constrange perante a humanidade” foi de fato cortada? Houve redução das mortes com o emprego de armas de fogo? Podemos falar ao menos em estabilização dos homicídios nos quais assassinos lançaram mão desse tipo de armamento? Apesar dos estudos acerca do tema carecerem de dados mais precisos e de pesquisas mais aprofundadas a respeito do tema, o que veremos a seguir, com base nos estudos utilizados pela maioria das organizações pró-desarmamento, é que a resposta para todas as supracitadas perguntas é “não”. Senão vejamos: é notável o fenômeno do hábito brasileiro de, desde o botequim de esquina mais vulgar até as mais elitizadas rodas de conversa dos grandes intelectuais, atribuírem a culpa dos males que afligem o país à má administração dos recursos públicos, mormente no que tange à atenção despendida ao tripé: saúde, educação e segurança. Todavia, ao longo da história brasileira, não são raros os exemplos regionais e nacionais de políticos que decolaram politicamente com um discurso e áurea messiânica. 42 Contudo, a própria história do país – da mais antiga até a recentíssima – revelaram os verdadeiros propósitos desses homens, os quais, invariavelmente, tinham como único objetivo assegurar e estender o próprio poder. Tudo às custas de propostas paternalistas, as quais, retirados todos os sofismas amortizantes, garantiam sempre a vantagem da força. Importa aqui rememorar os primórdios da nação
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