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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO GISELLE SOUSA DA FONSECA A DISSEMINAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE MATERIAL ÍNTIMO ENQUANTO VIOLÊNCIA DE GÊNERO: ASPECTOS CÍVEIS E CRIMINAIS FORTALEZA 2018 GISELLE SOUSA DA FONSECA A DISSEMINAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE MATERIAL ÍNTIMO ENQUANTO VIOLÊNCIA DE GÊNERO: ASPECTOS CÍVEIS E CRIMINAIS Monografia apresentada no curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Civil; Direito Penal. Orientador: Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior FORTALEZA 2018 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará Biblioteca Universitária Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a) ___________________________________________________________________________ F744d Fonseca, Giselle Sousa da. A disseminação não autorizada de material íntimo enquanto violência de gênero : Aspectos cíveis e criminais / Giselle Sousa da Fonseca. – 2018. 74 f. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2018. Orientação: Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior. 1. Disseminação não autorizada de material íntimo. 2. Direitos da personalidade. 3. Violência de gênero. 4. Responsabilidade civil. 5. Tutela penal. I. Título. CDD 340 ___________________________________________________________________________ GISELLE SOUSA DA FONSECA A DISSEMINAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE MATERIAL ÍNTIMO ENQUANTO VIOLÊNCIA DE GÊNERO: ASPECTOS CÍVEIS E CRIMINAIS Monografia apresentada no curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Civil; Direito Penal. Aprovada em: 04/06/2018. BANCA EXAMINADORA ________________________________________ Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior (Orientador) Universidade Federal do Ceará (UFC) _________________________________________ Profª. Msc. Fernanda Cláudia Araújo da Silva Universidade Federal do Ceará (UFC) _________________________________________ Mestranda Thaynara Andressa Frota Araripe Universidade Federal do Ceará (UFC) A todas as mulheres, pela força e esforço diário despendidos em sua sobrevivência e resistência. Espero pelo dia em que não precisaremos ser tão fortes. AGRADECIMENTOS À minha mãe, Leuda Sousa da Fonseca, e ao meu pai, Gilson Roberto Barbosa da Fonseca, por todo esforço e apoio oferecidos e que, apesar das intempéries dos últimos anos, sempre tiveram como foco a educação e o futuro de seus filhos. Ao meu irmão, Júnior, que, com suas conversas e caronas, contribuiu para a conclusão do meu curso de Direito. Ao Ronaldo Aragão, por ser testemunha e estímulo às intensas mudanças ocorridas em mim e pelo amor traduzido em calma e cuidado nos últimos quase três anos. Aos amigos Victor Garcia, Carine de Moraes, Evelyn Barreto, Priscilla Muritiba, Hadassa Medeiros, Vitória Sales, George Portela, Lucas Rangel e Lucas Andrade por se fazerem próximos mesmo com as atribulações da vida do jovem adulto e por comemorar cada vitória minha como se deles fosse. Aos meus amigos do curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, por compartilharem suas histórias de vida e sonhos, além de tornarem mais leve a caminhada dos últimos cinco anos: Geórgia Oliveira, Joana Aurélio, Pedro Augusto, Lorena Lima, Renan Santos, Mairla Mesquita, Mateus Pinho e Lays Sousa. À Defensoria Pública, e mais especialmente à Defensoria Pública do Estado do Ceará, pela oportunidade de crescimento pessoal e profissional nesse lugar em que pude estagiar e entender melhor a importância da humanização no contato direto com as pessoas. Por último, mas não menos importante, às integrantes da banca, Fernanda Cláudia Araújo da Silva, pela disponibilidade em avaliar o presente estudo, Thaynara Andressa Frota Araripe, por ter cruzado o meu caminho e feito-me compreender que sozinha eu ando bem, mas, com e sendo apoio para outras mulheres, com certeza ando melhor, e, ao meu orientador, William Paiva Marques Júnior, pela amizade, atenção e ajuda primordial na elaboração deste trabalho, desde a escolha do tema até a revisão final, bem como pela dedicação em suas aulas ao longo da faculdade. “Eu não me vejo na palavra Fêmea: alvo de caça, conformada vítima.” Triste, Louca ou Má – Francisco, El Hombre RESUMO Busca-se analisar o fenômeno da disseminação não autorizada de material íntimo no Brasil. Inicialmente, partiu-se de uma análise da conduta em si e, a partir de um estudo acerca da construção dos gêneros masculino e feminino pautada em aspectos históricos e sociais, conclui-se que a referida conduta vitimiza majoritariamente as mulheres, podendo ser classificada como uma forma moderna de violência de gênero. Posteriormente, fez-se um estudo doutrinário especificando quais são os principais direitos da personalidade atingidos pela disseminação não autorizada de material íntimo. Ademais, é apresentada a possibilidade de responsabilização civil e a insuficiência de tutela para a conduta em questão nesta esfera. Por fim, são elencadas as leis correlatas ao tema e o principal projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional que visa a suprir a lacuna legislativa existente no ordenamento brasileiro quanto ao delito. Por meio de pesquisas bibliográficas, análise de dados, reportagens divulgadas na grande mídia nacional e fazendo uso do método dedutivo, buscou-se avaliar a disseminação não autorizada de material íntimo além do ato delituoso em si, tendo como enfoque os motivos que levam o agressor a cometê-lo e o porquê de ser um crime o qual converge para consequências tão avassaladoras na vida das mulheres. Palavras-chave: Disseminação não autorizada de material íntimo. Violência de gênero. Direitos da personalidade. Responsabilidade civil. Tutela penal. ABSTRACT This work aims to analyze the phenomenon of unauthorized dissemination of intimate material in Brazil. Initially, it was based on an analysis of the conduct itself and based on a study about the construction of masculine and feminine genders based on historical and social aspects, it was concluded that the aforementioned conduct victimizes mainly women, and can be classified as a modern form of gender violence. Therefore, it initiates a doctrinal study specifying which are the main personality rights affected by the unauthorized dissemination of intimate material. In addition, it presents the possibility of civil responsibility and the lack of guardianship for the conduct in question in this sphere. Lastly, the laws related to the theme and the main bill in progress in the National Congress that seeks to fill the legislative gap existing in the Brazilian legal system regarding the crime are listed. Through bibliographic research, data analysis, reports published in the national media and using the deductive method, this work sought to evaluate the unauthorized dissemination of intimate material beyond the criminal act itself, focusing on the motives that lead the aggressor to commit it and why it is a crime that converges to such overwhelming consequences in the lives of women. Keywords: Unauthorized dissemination of intimate material. Gender violence. Personality rights. Civil responsability. Criminal custody. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental CJF Conselho da Justiça Federal ECA Estatuto da Criança e do Adolescente GDPR GeneralData Protection Regulation ONU Organização das Nações Unidas PLC Projeto de Lei da Câmara STJ Superior Tribunal de Justiça SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO …............................................................................................ 12 2 A DISSEMINAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE MATERIAL ÍNTIMO….. 15 2.1 As diferenças nos processos de construção de gêneros.................................. 15 2.2 Delimitação conceitual e construto histórico..........................................…… 19 2.3 A disseminação não autorizada de material íntimo enquanto violência de gênero………………………....................................…………………………. 22 2.3.1 A dupla punição da vítima e sua culpabilização.........…............................…. 25 3 A TUTELA JURÍDICA CONSTITUCIONAL AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE ATINGIDOS PELA DISSEMINAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE MATERIAL ÍNTIMO………………………………… 28 3.1 Os direitos da personalidade………………………………………………… 28 3.1.1 Da honra……………………………………………………………………… 32 3.1.2 Da imagem……………………………………………………………………. 34 3.1.3 Da intimidade…………………………………………………………………. 35 3.1.3.1 O direito à intimidade e a proteção da identidade da vítima no acesso à justiça…………………………………………………………………………………… 37 3.1.4 Direito ao esquecimento…………………………………………………….... 40 4 INSUFICIÊNCIA DA TUTELA JURÍDICA NA ESFERA CÍVEL E O MARCO CIVIL DA INTERNET…………………………………………… 43 5 ANÁLISE NORMATIVA DO COMBATE À DISSEMINAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE MATERIAL ÍNTIMO NO BRASIL…………………. 52 5.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/90………... 52 5.2 A Lei Carolina Dieckmann – Lei nº 12.737/12……………………………... 53 5.3 Os artigos 139 e 140 do Código Penal………………………………………. 53 5.4 A Lei Maria da Penha – Lei nº 11.340/06…………………………………… 55 5.5 A Lei Rose Leonel: Projeto de Lei da Câmara nº 18/2017………………… 59 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………... 63 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……………………………………… 67 12 1 INTRODUÇÃO O avanço exponencial da tecnologia e o acesso cada vez mais amplo e rápido à internet permitiram mudanças expressivas na sociedade contemporânea. O surgimento de novas formas de comunicação, por meio de redes sociais e de aplicativos de mensagens instantâneas, impulsionaram o compartilhamento de imagens e vídeos entre os usuários e, nunca antes, a proteção da imagem, da intimidade e da privacidade tinha alcançado tanto destaque. Pode-se dizer que tantas inovações ocorrendo em tão pouco tempo geram um estranhamento e, ao mesmo tempo, um deslumbre de quem as utiliza, devido a uma falsa sensação de anonimato. É nesse contexto que se acentuou a prática de ações delituosas no ambiente virtual, entre elas, a disseminação não autorizada de material íntimo que se materializa pelo compartilhamento de fotos, vídeos, entre outros materiais audiovisuais, de conteúdo sexual, sem a autorização das pessoas envolvidas, que são amplamente divulgados como forma de constranger e punir socialmente as vítimas. Ocorre que a problemática abordada pode ser considerada muito além do que se entende como os limites da vida pública e da vida privada, cada vez mais condensados com o advento das novas tecnologias, assim como perpassa o debate sobre o respeito aos direitos da personalidade. É necessária, dessa forma, uma ótica vasta a fim de se indagar quais as estruturas que legitimam e que tornam possível esse tipo de comportamento por parte de quem apodera-se e divulga, de forma não autorizada, material íntimo alheio. Cabe salientar que qualquer pessoa, independentemente de gênero, pode ser vítima da referida conduta, entretanto, há diversos dados que estabelecem que as vítimas são majoritariamente mulheres e, por conseguinte, reforçam a existência da violência de gênero como motivadora do comportamento do autor. Diante do exposto, o presente estudo pretende analisar essa conduta que atenta contra os direitos da personalidade das vítimas, observando a sua complexidade, bem como a forma com que o Direito lida e respalda, ou não, as vítimas atualmente e apresentar a principal proposta em trâmite nas Casas Legislativas que propõe-se a criminalizar especificamente a prática. A presente pesquisa justifica-se pela relevância social e jurídica do tema, tendo em vista a crescente quantidade de casos veiculados na mídia, que inclusive levaram algumas das vítimas ao suicídio, e a urgência em reprimir essa divulgação não consentida de material íntimo. 13 A hipótese principal é de que a conduta em questão tem sido utilizada dominantemente pelos homens como uma forma de violência de gênero, por resultar em, muitas vezes, sofrimento psicológico às mulheres. O método a ser utilizado será o dedutivo, utilizando como técnica de pesquisa, a exploração da doutrina acerca do tema, análise de dados e reportagens divulgados na grande mídia nacional, além de pesquisa jurisprudencial e análise legislativa. No capítulo inaugural, são analisadas as questões que envolvem o tabu da sexualidade feminina, pautando-se na construção social do gênero feminino que está intimamente ligado à construção histórica da inferioridade feminina. No mais, procura-se delinear e conceituar o que seria a disseminação não autorizada de material íntimo e sua caracterização como violência de gênero, fora a construção da culpabilização das vítimas no meio social. No segundo capítulo, são abordados, os aspectos da legislação brasileira, no âmbito constitucional e infraconstitucional, referentes à proteção dos direitos da personalidade, apresentados como a honra, a imagem e a intimidade, além de se demonstrar a importância da aplicação do direito ao esquecimento aos casos que envolvem a conduta in voga com foco na proteção das vítimas. No terceiro capítulo, é analisado o instituto da responsabilidade civil na tutela dos direitos agredidos, assim como o impacto do Marco Civil da Internet na defesa das vítimas e, em decorrência da insuficiência dos referidos instrumentos, o imprescindível uso do direito penal para esse fim. Já no último capítulo, pretende-se expor, de início, os marcos normativos nacionais utilizados no tratamento à conduta da disseminação não autorizada de material íntimo, bem como o principal projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional que visa ou configurá-la como uma das várias formas de violência doméstica e familiar, ou tipificá-la como um novo crime a ser previsto no Código Penal Brasileiro. A execução desta pesquisa tem como finalidade principal debater o tratamento jurídico empregado aos autores e às vítimas da referida conduta no ordenamento brasileiro, levando-se em consideração os danos causados às vítimas e os direitos da personalidade violados, e, por fim, discutindo-se a pertinência de um dispositivo legal específico para a criminalização da conduta. Em suma, pretende-se mostrar que a mulher que se desvia dos comportamentos que lhe foram impostos, por meio da nudez e expressão de sua sexualidade, tende a ser rechaçada pela sociedade, mas não deve se render ao seu agressor e demais pressões sociais e 14 jamais se deixar silenciar. 15 2 A DISSEMINAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE MATERIAL ÍNTIMO Um dos graves problemas existentes na sociedade da informação contemporânea é a divulgação não autorizada de material de cunho sexual que atinge, em grande parte, indivíduos do sexo feminino, bem como o referido material é obtido e disseminado por intermédio de qualquer meio, embora seja na internet que seus danos são potencializados, seja pela rapidez e facilidade no acesso ou em decorrência da amplitude atual da rede mundial de computadores. Dessa forma, faz-se necessário um vasto estudo acerca do que impulsiona o fenômeno em questão, discutindo pontos sobre o contexto histórico e social queo produz e o valida. 2.1 As diferenças nos processos de construção de gêneros Tratando-se do assunto a que esse estudo se propõe, é necessária uma análise do panorama histórico-social em que se insere a vítima. Para isso, serão discutidos os processos de construção de gêneros, embora saliente-se que gênero não se trata de um conceito estático, congelado no tempo e no espaço. Nesse sentido, Guaracira Lopes Louro1. Não é possível fixar um momento — seja esse o nascimento, a adolescência, ou a maturidade — que possa ser tomado como aquele em que a identidade de gênero seja "assentada" ou estabelecida. As identidades estão sempre se constituindo, elas são instáveis e, portanto, passíveis de transformação. Ainda, o estudo das relações de gênero é entendido por muitos como uma polarização entre o feminino e o masculino, entretanto, ele não se concentra nos conflitos entre mulheres e homens em termos individuais ainda que se possa levá-los em consideração. Todavia, esse estudo se baseará no binário masculino/feminino e, a partir disto, em suas relações de poder, pois pode-se afirmar que vivemos em uma sociedade patriarcal, marcada pela dominação masculina em que as construções simbólicas impõem a homens e mulheres determinados papéis e, ao identificá-los dentro de sua cultura, acabam por limitar as potencialidades dos gêneros, criando rotulações sobre o que seria ou não permitido a cada um deles no âmbito social. O desenvolvimento dos papéis de gênero e a construção da identidade são 1 LOURO, Guaracira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. p. 27. 16 socialmente elaborados e aprendidos desde o nascimento, com base em relações sociais e culturais que se estabelecem a partir dos primeiros meses de vida. Beauvoir2, em sua obra O Segundo Sexo, cita a famosa frase “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” que resume em poucas palavras o processo de construção de gêneros que se inicia ainda na infância, deixando claro que não há destino biológico ou psíquico que defina a forma assumida pela mulher na sociedade. Ao contrário, é a própria sociedade que inicia um processo de masculinização do corpo masculino e de feminilização do corpo feminino. Nesse viés, Paechter3, professora de Educação na Universidade de Londres, destaca que as “masculinidades e feminidades” são ensinadas desde a descoberta do sexo dos bebês, estes ao nascerem são inseridos em “comunidades de práticas” masculinas ou femininas nas quais aprendem o que é próprio de cada comunidade, para inscrever em seus corpos as características gendradas e sentirem-se pertencentes a um determinado grupo. A autora explica: A masculinidade ou a feminilidade de uma pessoa não é inata nem natural, mas algo que é aprendido, que é constantemente retrabalhado e reconfigurado, além de encenado para o self e para os outros. São estados ativos, pois não são apenas o que somos, mas o que fazemos, como nos apresentamos, como pensamos sobre nós próprios em tempos diversos e em lugares específicos. Os pais e as mães, as irmãs e os irmãos, os parentes e os amigos, as escolas, assim como a mídia e outras instituições relacionadas às famílias têm esse papel formativo, transmitindo valores, modelos de papéis e estereótipos de gênero. Nesse sentido, a diferenciação entre os gêneros masculino e feminino se inicia desde a escolha das cores das primeiras roupas e da decoração dos quartos, azul para os meninos e rosa para as meninas, bem como nos brinquedos que acabam por influenciar certos comportamentos e inibir outros. Para os meninos, em geral, são reforçadas as brincadeiras que estimulam sua coragem, autonomia e segurança e, ao atingirem a puberdade, possuem espaço para o autoconhecimento de seus corpos, assim como o desenvolvimento de sua sexualidade. Em contrapartida, às meninas restam as brincadeiras que incitam a preocupação com o lar, com a família, assim como com a sua aparência física que, desde muito cedo, já é posta em prova diante dos padrões estéticos a serem seguidos. 2 BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: A experiência vivida. 2. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. p. 9. 3 PAECHTER, Carrie. Meninos e meninas: aprendendo sobre masculinidades e feminidades. Porto Alegre. Artmed, 2009. Tradução: Rita Terezinha Shcmidt. p. 24. 17 Nesse sentido, Beauvoir4 Tratam-na como uma boneca viva e recusam-lhe a liberdade; fecha-se assim um círculo vicioso, pois quanto menos exercer sua liberdade para compreender, apreender e descobrir o mundo que a cerca, menos encontrará nele recursos, menos ousará afirmar-se como sujeito; se a encorajassem a isso, ela poderia manifestar a mesma exuberância viva, a mesma curiosidade, o mesmo espírito de iniciativa, a mesma ousadia que um menino. Dessa forma, as mulheres são criadas repletas de receios acerca da vida, enquanto que o homem está preparado, ou se espera que esteja, para ser autor de seu próprio destino, fabricando-se, assim, uma relação desigual entre esses gêneros e tal desigualdade resulta em relações de poder entre a parte que domina e a que é dominada. Para a historiadora Joan Scott5, a análise das relações de gênero também implica a análise das relações de poder; e neste sentido, ressalta que essa relação permite a apreensão de duas dimensões, a saber: O gênero como elemento constitutivo das relações sociais, baseado nas diferenças perceptíveis entre os sexos e o gênero como forma básica de representar relações de poder em que as representações dominantes são apresentadas como naturais e inquestionáveis. Acerca da relação entre gêneros e da segunda dimensão apontada por Joan Scott como as análises de poder, pode-se inferir que, a partir do crescimento pautado em formas de educação completamente diferentes que se legitimam em aspectos biológicos, são criadas as relações de poder, tendo em vista que as mulheres, em sua maioria, são desenvolvidas envoltas em uma rede de proteção, enquanto que o homem assume um papel autônomo que estabelece a supremacia social masculina, diante da subordinação feminina. O primeiro contato com essa relação hierárquica surge na infância da menina com a presença do pai, conforme Beauvoir6 quando afirmou que a hierarquia dos sexos manifesta- se primeiramente na experiência familiar, compreendendo pouco a pouco que, se a autoridade do pai não é a que se faz sentir mais quotidianamente, é, entretanto, a mais soberana. Nesse sentido, a medida em que cresce, perpetua-se um bombardeio de informações que invocam a superioridade masculina, segundo a autora7: 4 BEAUVOIR, op. cit., p. 22. 5 SCOTT, Joan. “Gênero, uma categoria útil de análise histórica”. In Educação e Realidade, 16(2). Porto Alegre, Faced, UFRGS, 1990. p. 106. 6 BEAUVOIR, op. cit., p. 18. 7 BEAUVOIR, op. cit., p. 30. 18 Tudo contribui para confirmar essa hierarquia aos olhos da menina. Sua cultura histórica, literária, as canções, as lendas com que a embalam são uma exaltação do homem. São os homens que fizeram a Grécia, o Império Romano, a França e todas as nações, que descobriram a terra e inventaram os instrumentos que permitem explorá-la, que a governaram, que a povoaram de estátuas, de quadros e de livros. E chega, então, a fase da puberdade e com ela essa diferenciação de tratamento entre gêneros se manifesta no desenvolvimento da sexualidade, afinal, como equilibrar relações entre gêneros que foram nitidamente construídos de forma desigual? O rapaz vê como um grande triunfo a mudança de seu corpo e tem ânsia de se iniciar sexualmente, pois precisa provar para si e para os outros a sua virilidade, ao passo que a jovem tem vergonha das mudanças em sua estrutura física, além do que deve se manter inocente, casta e aguardar a “pessoa certa”, porquanto que jamais se espera dela o desdobramentode suas vontades sexuais que são rechaçadas sob o argumento de serem impuras e erradas. Acerca disso, Beauvoir8 aduz que o rapaz tem muito orgulho de seu corpo e os impulsos eróticos só confirmam tal orgulho que tira de seu próprio corpo, descobrindo neste um sinal de sua transcendência e de seu poder, enquanto que a moça pode até conseguir assumir seus desejos, mas estes permanecem o mais das vezes vergonhosos, sendo, portanto, o seu corpo inteiro aceito com embaraço. Nesta tradição, os pares contrapostos, como o feminino e o masculino, são vistos como opostos e excludentes, além de fixos nas suas diferenças. Aplicado à construção dos gêneros, o dualismo afirma, em primeiro plano, que o homem é ativo e a mulher, passiva. Aplicado à construção da sexualidade, ele funde a identidade de gênero e a identidade sexual, baseada em dois tipos de seres: homens sexualmente ativos e mulheres sexualmente passivas. É, portanto, no sexo que o poderio masculino se manifesta em plenitude em muitos casos, pois, diante de toda a conjuntura já apresentada, o homem tem pressa para concretizar suas ambições, à medida que a mulher sente temor e projetando-se no que a ela é ensinado, ocorre a sua objetificação, estando ali com o propósito de satisfazer as vontades do macho e deixar as suas de lado. Explica, Bourdieu9 Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo - o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o 8 BEAUVOIR, op. cit., p. 70. 9 BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014. p. 31. 19 desejo feminino como desejo da dominação masculina, como subordinação erotizada, ou mesmo, e, última instância, como reconhecimento erotizado da dominação. Caso alguma destoe desse comportamento passivo e padrão, ao priorizar as suas vontades, principalmente no que se refere ao tabu da sexualidade feminina, será rechaçada e sofrerá com a tentativa de quebra da lógica da dominação masculina. Conforme Freud, “a pessoa que quebra um tabu torna-se ela mesmo um tabu, pois poderá, por consequência, ser considerada de convivência contagiosa, já que tem o poder de influenciar outros a imitá-la”10. Surge, então, a utilização da humilhação e da degradação da honra como forma de manutenção do papel social da mulher, devendo, portanto, ser punida por seu desvio comportamental, tendo sua intimidade, seu corpo e sua privacidade expostas, como o que ocorre com as vítimas dos casos de disseminação não autorizada de material íntimo a que esse estudo se dispõe a tratar. 2.2 Delimitação conceitual e construto histórico A disseminação não autorizada de material íntimo, também conhecida como pornografia não autorizada ou pornografia de vingança, nomenclatura oriunda do termo, em inglês, revenge porn, consiste na divulgação de mídias geralmente captadas em um momento íntimo de um terceiro, visando ao entretenimento, ao desejo de notoriedade, ou, simplesmente, ao ato de divulgação de forma não premeditada e irresponsável, entre outras causas, resultando, em geral, em diversos danos morais e psicológicos às vítimas. Segundo Mary Ann Franks11, há um problema na nomenclatura revenge porn, diante da questão em si abordada ser mais abrangente do que o termo delimita, pois muitos que cometem tal delito não são motivados por vingança12. Dessa forma, no presente trabalho, utiliza-se preferencialmente a expressão disseminação não autorizada de material íntimo, pois, considera-se insatisfatório o uso do termo “pornografia”, tendo em vista que este não engloba todas as situações possíveis em que 10 FREUD, Sigmund. 1856- 1939. Totem e Tabu. 1ª ed. São Paulo: PenguinClassics Companhia das Letras, 2013. p. 27. 11 Mary Anne Franks, advogada norte-americana, professora da Escola de Direito da Universidade de Miami, formada em Direito pela Universidade de Harvard, é uma dos mais atuantes juristas na área de Direito e “Revenge Porn” nos Estados Unidos da América. Drafting na effective “revengeporn” law. A guide for legislations, 2015. Disponível em: < http://www.endrevengeporn.org/guide-to-legislations/>. Acesso em: 1 fev. 2018. p. 1. 12 FRANKS, Mary Anne. CITRON, Danielle Keats. Criminalizing Revenge porn. Wake Forest Law Review, 2014. vol. 49. 20 esse fenômeno ocorre, bem como há uma forte conotação moral no termo em questão que pode prolongar o estigma e o sofrimento usual a que as vítimas são submetidas. O primeiro caso13 de disseminação não autorizada de material íntimo que ganhou grande publicidade ocorreu nos Estados Unidos em 1980. Um casal americano, LaJuan e Billy Wood, fotografou-se nu. Posteriormente, revelaram o material e guardaram-no em seu quarto, local que apenas os dois tinham acesso. Algum tempo depois, um vizinho e amigo do casal, Steve Simpson, invadiu seu apartamento e encontrou as imagens de LaJuan nua, e resolveu enviá-las para uma revista especializada em publicação pornográfica para homens, Beaver Hunt, que era composta por imagens de modelos não profissionais fornecidas pelos próprios leitores. Para que o material fosse publicado, era necessário o preenchimento de um formulário e Simpson o fez com dados falsos, entretanto, ao informar o número de telefone da vítima, divulgou seu contato verdadeiro, fato este que lhe gerou grande exposição após a publicação da revista, pois, por diversas vezes, recebeu ligações de cunho assediador. Com o desenvolvimento da tecnologia, a comunicação entre os seus usuários tornou-se mais fácil e rápida, além de vasta, tendo em vista que qualquer um passou a ser gerador de conteúdo em potencial. Neste cenário, surge então um espaço de conexões virtuais entre as relações sociais, o qual passou a ser denominado de ciberespaço, que pode ser conceituado pelo filósofo francês Pierre Lévy14 como: [...] O novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. E, no final do século XX, Sérgio Messina15 percebeu e classificou a recorrente troca de material audiovisual de conteúdo íntimo sobre ex-namoradas na Usenet, uma das mais antigas redes de comunicação via computador, como: realcore pornography ou “pornografia caseira”, em tradução livre, que se destacou pelo seu realismo e autenticidade que destoava do conteúdo clássico de pornografia a que a maioria dos usuários estava acostumada a acessar. 13 TSOULIS-REAY, Alexa. A brief history of revenge porn: A few years ago, having your compromising photos fall into the wrong hands was a nightmare scenario. Now it’s a genre... 2013. Disponível em: http://nymag.com/news/features/sex/revenge-porn-2013-7. Acesso em: 10 março. 2018. 14 LÉVY, Pierre. Cibercultura. Pierre Lévy; tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34. 1999. p. 17. 15 Para mais informações sobre este sistema: https://revistausenet.com/que-eusenet/. Acesso em: março de 2018. Grupo pioneiro em Comunicação através da Rede de Computadores. 21 Conforme a demanda crescia e a internet se desenvolvia, sites e blogs surgiram para veicular e alimentar esse novo “gênero pornográfico”, misturando vídeos reais, enviados por usuários, bem como vídeos de simulação oriundos da indústria pornográfica profissional. Em 2010, foi realizada a primeira prisão por disseminação não autorizada de material íntimo na Nova Zelândia16. Joshua Ashby publicou uma foto de sua ex-namorada nua em frente ao espelho noperfil dela em uma rede social e mudou a senha logo após o término para que ela não pudesse excluir a imagem. Ele foi condenado a um ano de prisão: quatro meses pela divulgação da foto de maneira pública, de modo que todos os 500 milhões de usuários ativos na época poderiam ver, e outros seis por ter ameaçado a vítima por mensagens de textos com conteúdo agressivo antes da postagem. No mesmo ano, o californiano Hunter Moore criou um site que permitia aos usuários postar fotos de outras pessoas nuas, em sua maioria mulheres, associando a elas o nome completo e o link do perfil na rede social Facebook. Com uma média de 30 milhões de visualizações mensais, o site se tornou conhecido mundialmente e lucrava dez mil dólares mensalmente. Em 2012, ele o tirou do ar e, em 2014, foi preso também acusado de invadir contas de e-mail e roubar fotografias pessoais17. Em se falando de novas roupagens acerca dos crimes virtuais, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) compartilhou em sua página virtual um artigo especial, cujo título versa sobre “Velhos crimes, um novo modo de praticá-los”, manifestando-se sobre as mudanças da internet nas relações humanas e as diversidades de novas questões jurídicas na vida moderna em rede. Tudo isso devido à facilidade ao acesso pelo qual a internet se torna “um campo propício para a prática de muitos crimes. Com a ferramenta, a divulgação de notícias falsas, vinganças pessoais e golpes bancários se misturaram a casos de pedofilia e tráfico” 18. Percebe-se, portanto, que a prática da disseminação não autorizada de material íntimo teve o seu início antes mesmo do advento da internet, pode-se destacar, entretanto, os efeitos de prevalência, alcance e impacto da prática através dos modernos meios de comunicação e reprodução de conteúdos imagéticos. Logo assim, a evolução tecnológica trouxe as ferramentas de vídeo gravação, de scanner, de computação e a internet. A essência, todavia, do fenômeno social permanece a mesma; houve apenas uma expansão das 16 Disponível em: <http://www.dailymail.co.uk/news/article-1329812/Joshua-Ashby-Facebook-user-jailed- posting-naked-picture-ex-girlfriend.html>. Acesso em: 10 março de 2018. 17 Disponível em: <http://www.huffpostbrasil.com/2015/12/07/hunter-moore-o-rei-do-porno-de-vinganca-e- condenado-a-2-dois_a_21686927/?utm_hp_ref=br-revenge-porn>. Acesso em 10 março de 2018. 18 Artigo especial compartilhado pelo Superior Tribunal Federal. Velhos crimes, um novo modo de praticá- los. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/ %C3%9Altimas-not%C3%ADcias/Velhos-crimes,-um-novo-modo-de-pratic%C3%A1%E2%80%93los>. Acesso em: 5 mar. 2018. http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/%C3%9Altimas-not%C3%ADcias/Velhos-crimes,-um-novo-modo-de-pratic%C3%A1%E2%80%93los http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/%C3%9Altimas-not%C3%ADcias/Velhos-crimes,-um-novo-modo-de-pratic%C3%A1%E2%80%93los 22 possibilidades através da comunicação em rede19. Com o desenvolvimento das novas mídias, principalmente aplicativos de mensagens instantâneas, a quantidade de compartilhamentos desse tipo de material em 2014 quadruplicou, em relação a 2012, conforme a SaferNet, Organização Não Governamental, fundada em 2005, com foco na promoção e defesa dos Direitos Humanos na Internet no Brasil20. Desse modo, faz-se necessário o desenvolvimento de políticas criminais dedicadas a respaldar as vítimas dessa violência, pois, diante da ausência de um tipo penal específico para o delito da disseminação não autorizada de material íntimo na maioria dos ordenamentos jurídicos dos países, alguns qualificam o espaço cibernético como um novo mundo, um mundo virtual, criando uma distância que não existe, pois não há dois mundos diferentes, um real e outro virtual, mas apenas um, no qual se devem aplicar e respeitar os mesmos valores de liberdade da pessoa. As Filipinas, por exemplo, foram o primeiro país a criminalizar a conduta de forma autônoma em 2009, definindo penas de 3 a 7 anos e multa21. No Reino Unido, em 2015, a disseminação não autorizada de material íntimo tornou-se um tipo penal específico, com pena de 2 anos e multa para aquele que divulgar tais imagens, bem como limitações ao seu acesso à internet22. Já no tocante à Legislação Brasileira, para coibir a disseminação não autorizada de material íntimo, pode-se afirmar que a punição ainda está muito aquém do que deveria diante dos imensos danos causados às vítimas, pois esses casos são quase sempre relacionados aos crimes contra a honra e a consequência disso geralmente se resume a um mero pagamento de indenização. 2.3 O fenômeno da disseminação não autorizada de material íntimo como violência de gênero A valorização do homem em detrimento da mulher possui raízes históricas, 19 KREPS, David. Foucault, exhibitionism and voyeurism on Chatroulette. In. F. Sudweeks, H., et al.. Proceedings Cultural Attitudes Towards Communication and Technology. Murdoch University Press, Australia, 2010. p. 164. 20 Disponível em: < http://www.compromissoeatitude.org.br/em-2-anos-no-de-vitimas-de-imagens-intimas- vazadas-quadruplica-segundo-pesquisa/>. Acesso em 10 março de 2018. 21 Disponível em: <http://www.lawphil.net/statutes/repacts/ra2010/ra_9995_2010.html> . Acesso em: 9 março de 2018. 22 Disponível em: <https://www.engadget.com/2015/04/13/revenge-porn-now-a-specific-crime-in-uk/>. Acesso em 9 março de 2018. https://www.engadget.com/2015/04/13/revenge-porn-now-a-specific-crime-in-uk/ http://www.compromissoeatitude.org.br/em-2-anos-no-de-vitimas-de-imagens-intimas-vazadas-quadruplica-segundo-pesquisa/ http://www.compromissoeatitude.org.br/em-2-anos-no-de-vitimas-de-imagens-intimas-vazadas-quadruplica-segundo-pesquisa/ 23 sociológicas e culturais que podem ser representadas, por exemplo, com passagens presentes no Novo Testamento, na Primeira carta aos Coríntios, em que o Apóstolo Paulo, 14:34-35, dizia: […] permaneçam as mulheres em silêncio nas igrejas, pois não lhes é permitido falar, antes permaneçam em submissão, como diz a Lei. Se quiserem aprender alguma coisa, que perguntem aos seus maridos em casa; pois é vergonhoso a mulher falar na igreja […]23. Pode-se dizer, portanto, que a cultura de submissão da mulher ao poder do homem foi, e ainda é, legitimada pelos mais diversos meios de controle social que não impediram a sua propagação independentemente da barreira histórica dos séculos, tornando-a inerente ao comportamento humano, vez que se trata de expressão cultural que ultrapassa gerações, renovando-se de forma diversificada com o passar dos anos. Uma sociedade que divide os seus entes em minorias por meio da submissão, cria um terreno fértil para práticas de violência em torno daqueles que tem a sua voz limitada ou inexistente e, assim, aconteceu com as mulheres que se tornaram vítimas recorrentes de diversas formas de hostilidades que, por terem se convertido em acontecimentos corriqueiros e já banalizados por grande parte do corpo social, a frequência das práticas de violência de gênero ganhou significativa proporção. Em 1993, o artigo primeiro da Declaração para Eliminação da Violência contra Mulheres, elaborada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), define a violência de gênero como qualquer ato violento baseado no gênero que resulte, ou tenda a resultar, em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo ameaças de cometimento de tais atos, coerção, ou privação arbitrária de liberdade, quer ocorra em público ou na vida privada (ONU, 1993)24. Nesse sentido, no Brasil, em 1994, a “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher”, em Belém do Pará, conceituou: “[...] violênciacontra a mulher é qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”25. Impende destacar, contudo, a dificuldade de ajustar uma conduta específica como 23 BÍBLIA. 1 Cor. Português. Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. Trad. Comissão de Tradução da Sociedade Bíblica Internacional. São Paulo: Geográfica, 2000. Pag. 896, 14:34-35. 24 ONU, 1993, Disponível em: <https://nacoesunidas.org/acao/mulheres/>. Acesso em: 15 fev. 2018. 25 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Adotada em Belém do Pará, Brasil, em 9 de junho de 1994, no Vigésimo Quarto Período Ordinário de Sessões da Assembleia Geral. Disponível em: < http://www.cidh.org/ Basicos/ Portugues/m.Belem.do.Para.htm>. Acesso em: 13 fev. 2018. https://nacoesunidas.org/acao/mulheres/ 24 ato de violência de gênero, isto porque, em grande parte das situações, o fato de estar habituada com um ambiente de limitações comportamentais, envolvida pelo complexo histórico de inferioridade e subjugação, a vítima não reconhece tais atos como violência, o que prejudica por vezes a denúncia e a elucidação dos casos. No viés da disseminação não autorizada de material íntimo, todos os gêneros são passíveis de vitimação. Para Ana Cristina Sarcinelli Gama, sobre o tratamento dessa nova modalidade de violência promovida por meio das redes sociais, aduz que a pornografia de vingança é a mais recente modalidade de violência advinda da interconexão mundial de computadores e promove nas redes sociais uma espécie de linchamento moral da vítima, trazendo consequências, não somente para as relações virtuais, mas também na vida cotidiana26. Apesar dessa forma de violência não ser suportada exclusivamente por mulheres, têm-se constatado que a volumosa maioria das vítimas são elas, o que reflete uma questão de gênero de acordo com Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Nancy Andrighi27, conferindo por meio do desenvolvimento tecnológico, uma roupagem diferente à violência de gênero do século XXI, disseminando e expondo a intimidade da mulher na mídia, a ponto de destruir com sua imagem e honra perante a sociedade em função tanto da velocidade de disseminação da informação quanto da dificuldade para se excluir totalmente esse tipo de conteúdo da internet. A organização EndRevengePorn28 disponibilizou em 2014 os resultados da pesquisa que realizou em seu site, e acabou por oficializar: das pessoas entrevistadas pelo site, 90% das que alegaram terem sido vítimas da pornografia de vingança eram mulheres. Destas, 57% alegaram que o conteúdo pornográfico foi disponibilizado por um ex-namorado homem, acompanhado do nome completo da vítima (59%) e do perfil desta na rede social (49%)29. Um levantamento feito em 201730, a partir dos pedidos de ajuda e orientação registrados no canal de ajuda às vítimas da SaferNet, que monitora crimes na internet em 26 GAMA, Ana Cristina Sarcinelli. Pornografia De Revanche - Violência Contra A Mulher Nas Redes Sociais. Disponível em <http://nippromove.hospedagemdesites.ws/anais_simposio/arquivos_up/documentos/artigos/12dc886b2e61 b3557810cdd78637f3d0.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2018. 27 Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mar-16/pornografia-vinganca-violencia-genero-afirma- nancy?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook>. Acesso em: 05 mar. 2018. 28 Organização sem fins lucrativos que serve milhares de vítimas em todo o mundo e defende a inovação tecnológica, social e legal para combater o abuso online. Disponível em: <https://www.cybercivilrights.org/welcome/>. Acesso em: 07 mar. 2018. 29 BUZZI, Vitória De Macedo. Pornografia da Vingança: contexto histórico-social e abordagem no direito brasileiro. 1ª ed – Florianópolis: Empório do Direito , 2015. p. 37. 30 Disponível em <http://helpline.org.br/indicadores/>. Acesso em: 20 fev. 2018. http://helpline.org.br/indicadores/ https://www.conjur.com.br/2018-mar-16/pornografia-vinganca-violencia-genero-afirma-nancy?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook https://www.conjur.com.br/2018-mar-16/pornografia-vinganca-violencia-genero-afirma-nancy?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook 25 parceria com Ministério Público, Polícia Federal e Secretaria de Direitos Humanos, relatou que correspondem a mulheres 67% dos casos que envolvem sexting (mensagens de conteúdo íntimo e sexual) e exposição íntima, o que demonstra a grande incidência, relacionando-se à necessidade de se tratar desse crime como uma nova violência de gênero. 2.3.1 A dupla punição da vítima e sua culpabilização Franks31 afirma ser a mulher a principal vítima dessa nova modalidade de violência, a qual, além da exposição e constrangimento sofridos quando da divulgação de sua imagem, os danos à honra sofridos são imperiosamente maiores que aqueles sofridos pelos homens, pois o olhar cultural da sociedade tende a culpar a vítima que compartilha suas imagens, protegendo o agressor e impedindo a sua punição. Os danos causados às vítimas da disseminação não autorizada de material íntimo são imensuráveis e decorrem, muitas vezes, das extremas relações de confiança interrompidas pela conduta do agressor. Por essa acepção, diz Franks32 entre outras coisas, ser a disseminação não autorizada de material íntimo mais uma modalidade substancial da violência doméstica, visto que o grande número de casos ocorre por ser o agressor o companheiro da vítima. São eles parceiros íntimos e afetivos, com os quais a vítima estabelece vínculos de confiança, divide suas experiências sexuais e mantém relacionamento estável. Permitir-se fotografar, neste sentido, seria uma liberalidade do casal, o consenso na captação da imagem não seria permissivo à sua divulgação. Ressalte-se, ainda, que o consenso para tirar uma foto difere muito de uma autorização para que a mesma foto seja propagada para outras pessoas, pois, em grande parte dos casos, parte-se de uma premissa de confiança naquela pessoa que receberá aquele conteúdo33. A Difícil questão sobre o consentimento. A partilha consensual de imagens íntimas (nuas) muitas vezes é feita com a compreensão implícita ou expressa de que estas imagens permanecerão confidenciais. Como vítimas de pornografia vingança geralmente afirmam, elas compartilharam suas imagens íntimas e fotos nuas porque, e somente porque, seus parceiros lhes asseguraram que estas imagens seriam mantidas em sigilo. No entanto, o público tem dificuldade em reconhecer a importância dessa “promessa” de confidencialidade, ainda que implícita, no contexto de um relacionamento. Críticos resistem a criminalização da pornografia de vingança com 31 FRANKS, Mary Anne. Drafting na effective “revenge porn” law. A guide for legislations, 2015. p. 13. Disponível em: < http://www.endrevengeporn.org/guide-to-legislations/>. Acesso em: 1 fev. 2018 32 FRANKS, op. cit., p. 16. 33 FRANKS, op. cit., pp. 354 e 355. 26 o argumento de que o consentimento de ter ou tirar fotos em um contexto de um relacionamento de confiança se traduz em consentimento em outros contextos, como compartilhar estas imagens com o mundo. Esse entendimento de consentimento é contrário à ideia de compartilhar informações confidenciais em um contexto restrito. Consentimento para compartilhar informações em um contexto não serve como consentimento para compartilhar essa informação em outro contexto34. A autorização para tirar a foto ou autorização para visualizar a foto recebida é, então, incompatível com a ideia de publicar a foto e compartilhá-la com outros, geralmente causando danos irreparáveis às vítimas por meio de uma dupla punição oriunda de pré- julgamentos de uma sociedadearcaica e patriarcal que tende a crucificar mulheres por seu comportamento sexual. O resultado disso são vítimas permanentemente abaladas que muitas vezes chegam a praticar atitudes extremas, como o suicídio que ocorreu com Giana Laura Fabi e Júlia Rebeca35 após terem imagens íntimas divulgadas em redes sociais em 2013, por não suportarem viver com a pressão de se sentirem inadequadas e inferiorizadas. Uma outra nuance dessa mesma problemática é o reflexo desses padrões comportamentais arcaicos da sociedade presentes no Poder Judiciário, pois não raro aqueles que deveriam se pautar em questões objetivas e livrar-se de suas convicções pessoais no momento de um julgamento não o fazem, agindo de forma preconceituosa e culpabilizando a vítima como corresponsável pelo que aconteceu a ela, como no julgamento do Recurso Especial 1.445.240/SP pelo STJ. O referido julgado dividiu o STJ, pois o Ministro Luís Felipe Salomão, ao tecer declarações acerca deste Recurso Especial36 que envolvia um caso de disseminação não autorizada de imagens íntimas e definia um montante para a indenização à vítima afirmou 34 The Consent Conundrum. Consensual sharing of intimate images is often done with the implied or express understanding that such images will remain confidential. As revenge porn victims have told us time and again, they shared their explicit images or permitted the naked photos to be taken because, and only because, their partners assured them that the explicit images would be kept confidential. Nonetheless, the public tends to have difficulty recognizing the significance of such implied confidences in sexual contexts. Critics resist the criminalization of revenge porn on the grounds that consensual sharing in one context-a trusted relationship translates into consent in other contexts-posting to the world. That understanding of consent not only runs against widely shared intuitions about other activities but also against the insights of privacy law and scholarship. Consent to share information in one context does not serve as consent to share this information in another context. 35 Disponível em: <http://blogs.ne10.uol.com.br/mundobit/2013/12/21/especial-o-drama-das-vitimas-do- porno-da-vinganca-no-brasil/>. Acesso em 05 mar. 2018. 36 Jovem menor de idade foi fotografada enquanto mantinha relações sexuais durante uma festa realizada na Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo. O material foi amplamente divulgado sem o consentimento da vítima. O ato foi praticado por dois homens: um deles fotografou e encaminhou para o outro, que passou a divulgar na internet. Ver em: Indenização por “pornografia de vingança” divide STJ. Disponível em: https://jota.info/justica/indenizacao-por-pornografia-de-vinganca- divide-stj- 23112016. Acesso em 05 de mar. de 2018. 27 que “a divulgação de coisas deste tipo na internet está amparada por uma suposta máscara de anonimato que fortalece as pessoas que querem difamar, prejudicar. Por isso, a indenização deve ser alta”. Para o Ministro, a ação com o objetivo de difamar e a divulgação das imagens significaram a perpetuação da violação da privacidade e intimidade. “Lembrando que a internet multiplicou exponencialmente a publicação, podendo causar danos irreparáveis à psique de uma adolescente”, apontou. Todavia, a percepção da natureza ofensiva desse ato ilícito e dos seus potenciais danosos, segmentou o posicionamento dos juízes e acabou por proporcionar julgados dissonantes, tendo o Ministro Raul Araújo se pronunciado sobre o mesmo recurso especial supramencionado, afirmando que não daria provimento a este. Para ele, tratava-se de um caso de culpa concorrente – ou seja, a culpa não seria exclusivamente dos dois réus. Para o ministro, a jovem também teria sua parcela de responsabilidade, já que se expôs ao praticar atos de natureza sexual em um ambiente que não era um quarto de casal. Portanto é possível afirmar que, apesar de as mulheres terem conquistado maiores espaços e direitos políticos e passarem a exercer posições sociais e econômicas que tradicionalmente eram reservadas ao homem, o cerne do ordenamento jurídico brasileiro ainda se encontra envolto e dominado pela masculinidade, sendo o Direito nada mais que o reflexo de uma sociedade com um discurso majoritariamente sexista. Dessa forma, o Direito se coloca à margem das relações de dominação e subordinação ao se omitir diante da violência contra a mulher, seja no que tange ao processo de culpabilização da vítima ou no que toca à abstenção de intervir no ambiente privado37. Esse é o cenário em que a disseminação não autorizada de material íntimo ganha claro foco, onde a lei é feita, em sua maioria, por homens e para as suas necessidades e o olhar sobre a dignidade do ser feminino decae e fica em segundo plano. 37 CUNHA, Bárbara Madruga da. Violência contra a mulher, direito e patriarcado: perspectivas de combate à violência de gênero.In Grupo PET/Direito (Org.). XVI Jornada de iniciação científica de Direito da UFPR: Anais. Curitiba. 2014, p. 157. Acesso em 15 de março de 2017. 28 3 A TUTELA JURÍDICA CONSTITUCIONAL AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE ATINGIDOS PELA DISSEMINAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE MATERIAL ÍNTIMO A partir do Código Civil de 2002, os direitos da personalidade passaram a ocupar lugar de destaque na humanização do Direito Civil. Para William Paiva Marques Júnior38: Na realidade contemporânea observa-se que o paradigma fundante do Direito Civil não é apenas conferir segurança jurídica aos atos negociais, mas, para além disso, a promoção da dignidade da pessoa humana, notadamente com a adoção dos direitos da personalidade (normatizados pelos Arts. 11 a 21 do Código Civil de 2002). Demonstra-se, assim, a impossibilidade de tratar do Direito Público e do Direito Privado como esferas incomunicáveis, tendo em vista que atualmente suas relações se intensificaram a ponto de a linha divisória que delimita o espaço entre elas se tornar bastante tênue e imprecisa, pois lidam, muitas vezes de forma direta, com as garantias individuais, principalmente no que tange à intimidade e ao livre desenvolvimento da personalidade que são objetos do presente estudo. 3.1 Os direitos da personalidade Nesse primeiro momento, é necessário definir o conceito de personalidade, que assevera Maria Helena Diniz39: [...] a personalidade consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa. A personalidade não é um direito, de modo que seria errôneo afirmar que o ser humano tem direito à personalidade. A personalidade é que apóia os direitos e deveres que dela irradiam, é objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens. Os direitos da personalidade são, portanto, os direitos subjetivos que versam acerca de tutelas inerentes à existência humana e a sua dignidade, além disso, conforme a autora40, são os direitos de exigir um comportamento negativo dos outros, protegendo bens inatos, ou seja, bens congênitos, nascidos com o indivíduo, bem como são absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e 38 MARQUES JÚNIOR, William Paiva. Influxos do neoconstitucionalismo na descodificação, micronormatização e humanização do Direito Civil. REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO, UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ, v. 34, p. 313-353, 2013. 39 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005, v. I. p. 121 40 DINIZ, op. cit., p. 123. http://lattes.cnpq.br/0421308962735688 29 inexpropriáveis. Nessa perspectiva,para Carlos Alberto Bittar41, os direitos de personalidade constituem direitos inatos, análogos às competências normalmente exercidas pelo homem, relacionados a atributos inerentes a sua condição, consoante preleciona: Entendemos que os direitos da personalidade constituem direitos inatos – como a maioria dos escritores ora atesta -, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancioná-los, em um ou outro plano do direito positivo - em nível constitucional ou de legislação ordinária -, e dotando-os de proteção própria, conforme o tipo de relacionamento ao qual se volte, a saber: contra o arbítrio do poder público ou às incursões particulares. Ainda de acordo com o autor42, os direitos de personalidade, além de inatos, “constituem direitos absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios, necessários e oponíveis erga omnes”. Caio Mário da Silva Pereira43 esclarece que direitos inatos, assim o são, pois se sobrepõem a qualquer condição legislativa, devido ao seu aspecto originário, como o direito à vida, o direito à integridade física ou moral. Ainda, os direitos considerados absolutos são oponíveis erga omnes; os irrenunciáveis estão vinculados à pessoa de seu titular e, intimamente vinculados à pessoa, não pode esta, em regra, abdicar deles, ainda que para subsistir; já os direitos intransmissíveis são presentes, quando o indivíduo goza de seus atributos, sendo inválida toda tentativa e sua cessão a outrem, por ato gratuito ou oneroso; os imprescritíveis são assim classificados, porque sempre poderá o titular invocá-los, mesmo que por largo tempo deixe de utilizá-los. O artigo 11 do Código Civil dispõe explicitamente sobre a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade ao afirmar que: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. Dessa forma, conforme previsão, com exceção dos casos previstos em lei, os titulares não podem dispor dos direitos da personalidade, não podem transmití-los a terceiros, renunciando ao seu uso ou abandonando-os, não sendo o seu exercício capaz de sofrer limitações. Os direitos de personalidade são também vitalícios, terminando usualmente com a morte do seu titular, porém certos direitos sobrevivem mesmo após o óbito, conforme aduz Maria Helena Diniz44: 41 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7. ed. Rio de Janeiro, RJ: Forense, 2006. p. 07. 42 BITTAR, op. cit., p. 11. 43 PEREIRA, Caio Mário. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro, RJ: Forense, 2006. v. 1. p. 242. 44 DINIZ, op. cit., p. 124. 30 Os direitos da personalidade são necessários e inexpropriáveis, pois, por serem inatos, adquiridos no instante da concepção, não podem ser retirados da pessoa enquanto ela viver por dizerem respeito à qualidade humana. Daí serem vitalícios; terminam, em regra, com o óbito do seu titular por serem indispensáveis enquanto viver, mas tal aniquilamento não é completo, uma vez que certos direitos sobrevivem. Deveras o morto é devido respeito; sua imagem, sua honra e seu direito moral de autor são resguardados. Nesse sentido, a 4ª Turma do STJ julgou o Recurso Especial 521697/RJ45, cujo relator foi o Ministro César Asfor Rocha, em que as filhas de Manoel dos Santos, consagrado como o jogador de futebol “Garrincha”, pleiteavam danos morais e materiais devidos à violação ao direito à imagem, ao nome, à intimidade, à vida privada, à honra e todos os conexos da personalidade do referido ídolo por uma editora que lançou um livro falando sobre a vida pessoal do futebolista sem a autorização das filhas. CIVIL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO À IMAGEM E À HONRA DE PAI FALECIDO. Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo, deixa de merecer proteção à imagem e à honra de quem falece, como se fossem coisas de ninguém, porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida. Daí porque não se pode subtrair dos filhos o direito de defender a imagem e a honra de seu falecido pai, pois eles, em linha de normalidade, são os que mais se desvanecem com a exaltação feita à sua memória, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que lhe possa trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo, seja por dano moral, seja por dano material. (…). É importante salientar que, devido às constantes mudanças no mundo que acarretam no surgimento de novas tutelas relacionadas à pessoa, os direitos da personalidade não constam em um rol taxativo, mas exemplificativo, a fim de se adaptar às novas necessidades humanas. Consoante Maria Helena Diniz46, os direitos da personalidade são os direitos da pessoa “de defender o que lhe é próprio”. No entanto, a defesa desses direitos, tendo enfoque nos direitos à privacidade, à imagem e à honra, tem se mostrado debilitada, gerando danos em sua subjetividade, principalmente, com o advento da internet. Os novos arranjos modernos da sociedade, por exemplo, ao mesmo tempo em que dão espaço para novas formas legítimas de expressão da sexualidade no âmbito virtual, tanto 45 BRASIL. Superior Tribunal De Justiça. Recurso Especial: 521697 RJ 2003/0053354-3, Relator: Ministro César Asfor Rocha, Data de Julgamento: 16/02/2006, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 20/03/2006 p. 276RDR vol. 38 p. 332RSTJ vol. 201 p. 449. 46 DINIZ, Maria Helena. Direitos da personalidade. In: DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 135. 31 individual como coletivamente, também servem como instrumento das novas formas de se causar dano à integridade da pessoa. Nesse cenário, os arcaicos paradigmas éticos e normativos de construção de todo o sistema social de controle sobre a sexualidade passam a ser desafiados e revistos, para a construção de um direito democrático ao livre desenvolvimento da pessoa humana e conseguinte repressão das condutas abusivas. Sob o prisma do princípio da dignidade humana, entende-se que a prática da disseminação não autorizada de material íntimo, especialmente, viola os direitos da personalidade, a saber, a intimidade, a privacidade, a honra e a imagem, todos consagrados na Constituição de 1988 que foi extremamente rica na expansão de uma nova consciência jurídica dos cidadãos, como constatou Leonardo Greco47: “a Constituição de 1988 foi extremamente fecunda na expansão e consolidação de uma nova consciência jurídica dos cidadãos, calcada primordialmente na efetividade dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados”. Observa-se em seu artigo 5° que prevê a proteção aos direitos em análise. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (…) Sidney Guerra48 enfatiza a dificuldade de se estabelecer na doutrina o que é direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. Destaca ademais que, dependendo do caso concreto, em determinados momentos, não necessariamente quando ocorre a violação de um direito, ocorrerá o mesmo em relação aos demais, poisé possível que exista tão somente a violação do direito à intimidade ou do direito à vida privada, ou, ainda, apenas do direito à honra e do direito à imagem, por exemplo. É errôneo, portanto, interpretar que os direitos em análise possuem o mesmo significado, pois além do legislador originário os ter criados com previsão específica, a doutrina os conceitua como institutos diferentes. Isso posto, avança-se para diferenciá-los. 47 GRECO, Leonardo. O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 1. 48 GUERRA, Sidney. Direito fundamental à intimidade, vida privada, honra e imagem. In: Anais do XV encontro preparatório para o congresso nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/recife/direitos_fundam_sidney_guerra.p df.> Acesso em 22 março 2018. p. 5. 32 3.1.1 Da honra Entende-se por honra a reputação de um indivíduo expressa na ideia que ele tem de si, classificada como honra subjetiva, bem como na que os outros têm dele, a honra objetiva. O direito à honra é sustentado por uma qualidade moral através da forma como cada pessoa pressupõe e espera ser bem aceito pela sociedade. Nessa lógica, para Aranha49, o conceito de honra pode ser dividido em dois sentidos: o objetivo, que representa a nossa reputação, traduzida como a face exterior da honra de alguém, o respeito que se deve merecer daqueles que o cercam, a boa fama, a estima pessoal, enfim, a maneira pela qual é reconhecido pela sociedade; e o subjetivo, que se traduz como o sentimento da própria honorabilidade pessoal, a dignidade pessoal, o decoro, o sentimento que todos nós temos e pelo qual exigimos respeito. Com o advento da internet, o desrespeito à honra de alguém é capaz de atingir uma quantidade ilimitada de pessoas em pouquíssimo tempo, tendo em vista que ser esta um veículo cuja troca de informações e dados é impossível de ser totalmente controlada, fazendo com que essa violação não se limite a apenas um dos círculos sociais da vítima, como trabalho e escola. Além disso, por ser uma ferramenta considerada recente, cujo acesso no Brasil, ainda limitado, iniciou-se apenas em 1996, a sociedade segue aprendendo a utilizá-la e as normas jurídicas ainda estão adaptando-se a essa nova realidade. Todavia, muitos tomam o meio virtual com irresponsabilidade, pois acham que estão protegidos por um suposto anonimato e, com isso, podem externar seus “achismos” de qualquer maneira. Conforme Almeida50, entre os direitos de personalidade que mais padecem de agressões no cyberspace está o direito à honra, pois a internet tem uma estrutura que é em parte responsável pela sensação de segurança que o usuário tem ao se manifestar ao propiciar sérios obstáculos a uma satisfatória tutela desse bem de personalidade, seja pela dificuldade em buscar esta satisfatória, seja pela dificuldade em encontrar o autor do ilícito, seja pela dificuldade em processá-lo quando se encontre em outro país, seja pela necessidade de celeridade para esse tipo de questão, em razão do massivo alcance da informação. A instantaneidade também faz com que não haja tempo para refletir acerca do que está sendo dito, na medida em que o acesso por todos está apenas há poucos cliques de distância. Assim, 49 ARANHA, A. J. Q. T. C. Crimes contra a honra. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 5. 50 ALMEIDA, Luiz Antônio Freitas de. Violação do direito à honra no mundo virtual: a (ir)responsabilidade civil dos prestadores de serviço da Internet por fato de terceiro. In: MIRANDA, Jorge. et al [Org.] Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2012. 227, 233-234. 33 os primeiros processos judiciais que traziam à internet à lide tinham o direito à honra como objeto. Quando a vítima é pessoa conhecida pelo público, a divulgação cresce a níveis inimagináveis, assim como o dano, sendo uma medida praticamente ineficiente a retirada da internet ou a indisponibilidade do material composto pelo conteúdo que a atinge. Posiciona- se o autor51: Há de se ressaltar que a violação do direito à honra na Internet é uma das mais severas agressões a esse direito da personalidade. A dimensão do dano é potencializada a um grau altíssimo pela ampla divulgação existente no meio virtual, que não conhece fronteiras territoriais. Ademais, outro fator dificulta ainda mais qualquer controle do estrago causado a esse direito da personalidade: transmitida a informação ofensiva pela primeira vez, a possibilidade de que seja copiada e retransmitida inúmeras vezes por qualquer usuário que a ela tenha acesso revela o quão vulneráveis estão os direitos de personalidade de uma forma geral ante esse poderoso meio de comunicação. No ordenamento brasileiro, buscou-se tutelar os crimes que atingem à honra no Título I do Código Penal Brasileiro, quando se aborda os crimes contra a pessoa, parte inserida no Capítulo V, Dos Crimes Contra a Honra, em que a violação da honra está tipificada nos artigos 138 (Calúnia), 139 (Difamação) e 140 (Injúria). De acordo com o dispositivo legal, a calúnia é a imputação sabidamente falsa a alguém de fato definido como crime; a difamação é imputação a alguém de fato ofensivo à sua reputação; e a injúria trata-se de ofensa a alguém em sua dignidade ou decoro. Dessa forma, a calúnia e a difamação atingem a honra objetiva do indivíduo, ou seja, a ideia que as pessoas têm dessa pessoa, a sua reputação, enquanto que a injúria atinge a sua honra subjetiva, sendo entendida como o juízo que determinada pessoa faz acerca de quem se é. É sabido que, até o momento, a disseminação não autorizada de material íntimo, em muitos casos, inclui-se nos crimes contra a honra em nível de responsabilização penal, que, por ser uma categoria bastante genérica, deixa de lado as particularidades de um crime que atinge suas vítimas de uma forma mordaz, trazendo consequências que podem devastar a sua vida. Ademais, mesmo existindo a tutela do direito à honra na Constituição, no Código Penal e em outros dispositivos normativos, nenhum deles têm sido satisfatório no objetivo de privar a prática da disseminação não autorizada de material íntimo e, em consequência, essas as condutas só se proliferam sem que exista uma verdadeira punição. 51 ALMEIDA, op. cit., p. 234. 34 3.1.2 Da imagem O direito à imagem relaciona-se à projeção da personalidade física (traços fisionômicos, corpo, atitudes, gestos, sorrisos, indumentárias, etc.) ou moral (aura, fama, reputação, etc.) do indivíduo (homens, mulheres, crianças ou bebê) no mundo exterior, segundo entendimento de Carlos Alberto Bittar52. Silma Berti53 acentua que “a imagem não se restringe ao aspecto visual da pessoa”. Ela compreende “a imagem sonora da fotografia e da radiodifusão e os gestos expressões dinâmicas da personalidade”. Ela compreende a imagem que vaza pelo texto da internet. Ela está, portanto, essencialmente ligada à identidade da pessoa humana. Vê-se, então, o direito à imagem como uma forma de proteção desta a fim de que a imagem de um indivíduo não seja mercantilizada sem o seu consentimento ou contra seus interesses, sendo válido salientar que não se trata apenas da imagem em si, sendo esse direito bastante abrangente de forma a tutelar características capazes de individualizar uma pessoa, como a sua aparência, a sua voz e seus escritos nas mais diversas nuances. A Constituição de 1988 buscou tutelar o direito à imagem dividindo-o em três vertentes, quais sejam: a imagem retrato (art. 5°, X), a imagem social (art. 5°, V) e a imagem autoral (art. 5°, XXVIII), não requerendo ofensa ou reprodução de um conteúdo de um terceiro, sendo suficiente o uso indevido da imagem para justificar uma ação judicial em suadefesa. Nesse viés, a Súmula 403 do STJ ao afirmar que “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais” reforça que a reparação é intrínseca ao próprio uso indevido da imagem para fins, por exemplo, comerciais independentemente de prova de prejuízo ou dano, se ofensivo ou pecuniário. Quando se trata da disseminação não autorizada de material íntimo, os conceitos de imagem retrato e imagem social são bastante relevantes, pois, explica Uadi Lammêgo Bulos54, a imagem retrato se relaciona com a imagem física do indivíduo, ou seja, fisionomia, partes do corpo, gestos, expressões captadas pelos recursos tecnológicos. Apenas o ser humano a titulariza. Investidas contra a imagem-retrato acarretam indenização pelo dano material ou moral então decorrente. Já a imagem social são os atributos exteriores da pessoa 52 BITTAR, Carlos Alberto. Atentado à honra pela imprensa. Tutela dos direitos da personalidade e dos direitos autorais nas atividades empresariais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 105. 53 BERTI, Silma. O direito à própria imagem. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 49. 54 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 572. 35 física, com base naquilo que ela própria transmite na vida em sociedade. No mais, o direito à imagem está relacionado diretamente com a dignidade da pessoa humana e com a projeção da personalidade física ou moral dos indivíduos com a sociedade, segundo define Sidney Guerra55. Por conseguinte, o conceito de imagem não se resume apenas ao que é reproduzido, mas, certamente, ao conjunto de características que refletem o retrato moral de uma pessoa. 3.1.3 Da intimidade No período da Segunda Guerra, que mundialmente tomou grande proporção, ocorreram diversos episódios acerca da violação da privacidade e, em decorrência disso, com foco na dignidade da pessoa humana, surgiu a tutela de diversos direitos da personalidade e, entre eles, o direito à intimidade, referindo-se ao âmbito mais íntimo do indivíduo, que hoje se encontra previsto na Declaração dos Direitos Humanos, no Pacto da ONU sobre direitos civis e políticos, na Convenção Européia de 1950 e na Convenção Americana de 1969. Na atual Constituição Federal Brasileira, a intimidade encontra guarida no inciso X do art. 5º, considerando-se esta inviolável, assim como a honra; e também no inciso LX, que limita a publicidade dos atos processuais para a proteção da intimidade. Já o Código Civil possui um capítulo específico com o fito de abordar os direitos da personalidade, estando presente, em seu art. 21, o direito à intimidade, sendo inviolável a vida privada da pessoa natural e cabendo sempre medidas visando proteger essa inviolabilidade. Ressalte-se que a intimidade não deve ser concebida somente no plano físico, mas também no plano virtual, do ambiente da internet, sendo inviolável o domicílio eletrônico de uma determinada pessoa. O Código Penal não tutela a intimidade propriamente dita, mas possui seção própria para tipificar os crimes contra a inviolabilidade dos segredos, que podem ser entendidos como uma parcela da intimidade de uma pessoa. Justamente nessa seção foi incluído o tipo da invasão de dispositivo informático, pela Lei n. 12.737, de 30 de novembro de 2012, que ficou conhecida como Lei Carolina Dieckmann. Para alguns, é uma prática rotineira a confecção de fotos e filmagens íntimas como mecanismo de proximidade do casal e estímulo à manutenção de uma vida sexual ativa e prazerosa. Sem dúvida, o envio desse material parte de uma premissa de confiança, pois deve se destinar única e exclusivamente ao uso dos parceiros, fazendo valer o direito à 55 GUERRA, op. cit. 36 intimidade previsto na Constituição Federal, que também abrange a inviolabilidade quanto ao exercício da sexualidade. Assim, os comportamentos sexuais praticados em um contexto de intimidade não devem ser utilizados para a propagação em outros contextos e para terceiros. A esfera da intimidade, segundo Hannah Arendt na obra de Celso Lafer56, é regida pelo princípio da exclusividade. Esse princípio não se confunde com o da diferenciação, que marca a diferença entre os indivíduos, própria da esfera privada, e que se opõe ao público enquanto espaço do coletivo. A intimidade é a esfera que comanda as escolhas, pessoais e que não segue nenhum padrão objetivo. É exatamente a intimidade enquanto esfera do exclusivo que a autora sugere como limite ao direito à informação, através da ponderação de que o que constitui a vida íntima das pessoas não é de interesse público. A intimidade não exige publicidade, porque não envolve direito de terceiros. E por ser exclusiva, sente-se lesada quando é divulgada ou invadida sem autorização. Este direito foi abrangido, inclusive, na Declaração dos Direitos Sexuais57 de 1997, elaborada durante o XIII Congresso Mundial de Sexologia, que, dentre outras disposições, traz como direito à vida particular sexual “o direito às decisões individuais e aos comportamentos sobre intimidade desde que não interfiram nos direitos sexuais dos outros”. Saliente-se que o conceito de intimidade divide opiniões ao longo do tempo e é confundido por muitos autores com o conceito de privacidade, onde alguns, inclusive, conceituam ambos como se abordassem o mesmo assunto. A diferença existente entre intimidade e privacidade, conforme aduz Uadi Lammêgo Bulos58, é que a privacidade se caracteriza por ser mais ampla do que a de intimidade, pois a primeira envolve todos os relacionamentos do indivíduo, tais como suas relações comerciais, de trabalho, de estudo e de convívio diário. Já a intimidade diz respeito às relações íntimas e pessoais do indivíduo, como as travadas com seus amigos, familiares e companheiros que participam de sua vida pessoal, englobando também o espaço impenetrável do indivíduo e que diz respeito tão somente a este, como as suas memórias, as suas recordações, a sua vida íntima e os seus segredos. Nesse viés, afirma Carlos Roberto Gonçalves59: 56 LAFER, Celso. 1988. A reconstrução dos direitos humanos - um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo, Cia das Letras. pp. 267-268. 57 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS SEXUAIS. XIII Congresso Mundial de Sexologia. Valência, 1997. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/gays/direitossexuais.html>. Acesso em: 30 março 2018. 58 BULOS, op. cit. 59 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil Brasileiro: responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 35. 37 O conceito de intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa humana, suas relações familiares e de amizade, enquanto o conceito de vida privada envolve todos os relacionamentos da pessoa, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo, etc. No direito brasileiro, o direito à intimidade e à vida privada também encontra-se previsto na cláusula geral do artigo 21 do Código Civil Brasileiro, sendo válido ressaltar, ainda, que a Lei de Imprensa, Lei nº 5250/67, criada em plena vigência do regime militar e revogada em 2009, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130, pela sua incompatibilidade com norma ordem constitucional estabelecida em 1988, foi o primeiro instrumento legislativo a tutelar expressamente o direito à intimidade e à vida privada no ordenamento brasileiro. O direito à intimidade vem sendo duramente atacado nessa sociedade conectada. Fazer uma diferenciação entre o que será classificado como conteúdo de natureza pública ou privada é uma tarefa árdua. Dessa forma, a busca por uma tutela efetiva dos direitos de personalidade no mundo cibernético é recente e ainda demanda preocupações.