Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
MECANISMOS DE COESÃO E COERÊNCIA TEXTUAL: da ardósia ao computador na aprendizagem dos conectores Adelina Maria Carreiro de Moura DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO Área de Especialização em Supervisão Pedagógica em Ensino do Português Universidade do Minho Instituto de Educação e Psicologia 2003 MECANISMOS DE COESÃO E COERÊNCIA TEXTUAL: da ardósia ao computador na aprendizagem dos conectores Adelina Maria Carreiro de Moura Dissertação submetida à Universidade do Minho como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação na Área de Especialização Supervisão Pedagógica em Ensino do Português Sob orientação do Prof. Doutor José António Brandão Carvalho Universidade do Minho Instituto de Educação e Psicologia 2003 Ao meu pai Ao Carlos Ao Miguel e ao Bruno i Agradecimentos Muitas foram as pessoas que contribuíram para que este projecto fosse possível. Na impossibilidade de as nomear aqui todas, não quero deixar de referir algumas mais determinantes. A Profª Doutora Maria de Fátima Sequeira pelo parecer dado a quando da elaboração da proposta de Dissertação de Mestrado para requerer licença sabática para a sua realização, contribuiu para que me pudesse dedicar inteiramente ao trabalho que agora apresento. O professor José António Brandão Carvalho, meu orientador, pela ajuda solícita, pelos seus conselhos tão oportunos, pela sua disponibilidade e compreensão em atender às minhas solicitações, pela sua afabilidade e motivação para seguir em frente. A minha querida colega e amiga, a Drª Teresa Machado, que me acompanhou na execução da parte prática do estudo e aos seus (meus) queridos alunos da turma do 2º ano de Construção Civil e da turma do 2º ano de Electrónica da Escola Profissional de Braga Os Directores da Escola Profissional de Braga que me permitiram a realização deste estudo. O António pela sua análise crítica sempre oportuna e construtiva, pelo apoio dado em todos os momentos e particularmente pelo árduo trabalho de revisão do texto. O Carlos, meu marido, que com muito carinho entendeu a minha total dedicação a este projecto, pelo apoio afectuoso que recebi, deixo o meu muito obrigada. O Miguel e o Bruno, meus filhos, sem os quais este projecto nada significaria. Para todos os que me apoiaram em todas as circunstâncias o meu afecto e agradecimento. A todos eles, de formas distintas, obrigada. ii Resumo Desde a década de 60 que a Linguística Textual se tem dedicado ao estudo da natureza do texto e dos factores envolvidos na sua produção e recepção. Para compreender o fenómeno da produção de textos escritos, importa, antes de mais, saber o que caracteriza o texto escrito ou oral. Partir da definição de texto como uma ocorrência linguística dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e formal, implica reconhecer que um texto será bem compreendido quando avaliado sob três aspectos: pragmático (o seu funcionamento enquanto actuação informacional e comunicativa), semântico-conceptual (coerência) e formal (coesão). O conjunto de características que faz com que o texto seja um texto, e não um amontoado de palavras ou frases, é a textualidade. São sete os factores responsáveis pela textualidade de um discurso qualquer. De entre estes factores, a coesão e a coerência são as principais responsáveis pala tecitura do texto. Estes dois factores têm em comum a característica de promover a inter-relação semântica entre os elementos do discurso, isto é a sua conectividade e assim conferir textualidade a um conjunto de enunciados. A conectividade, particularmente o emprego dos conectores, assume um relevo considerável no presente estudo. Nele se inventaria e analisa as principais falhas produzidas pelos alunos de duas turmas do 2º ano do Ensino Profissional, durante o programa de ensino/aprendizagem das conjunções (coordenativas e subordinativas). As infracções aos factores de textualidade (coesão, coerência e informatividade), encontradas nos textos produzidos pelos alunos, merecem também ampla descrição e análise. Sendo a escrita um processo complexo, a introdução, na aula de língua materna, de ferramentas capazes de motivar e ajudar a promover hábitos de escrita afigura-se essencial. Nesta linha de pensamento, apresenta-se, também, o desempenho dos dois grupos turma, durante o programa de intervenção. Um fazendo uso do computador e outro usando os instrumentos tradicionais, papel e lápis. iii Abstract Since the 60s, the Textual Linguistics has been dedicated to the study of the nature of the text and the factors involved in its production and reception. To understand the phenomenon of the production of written texts, it must first of all know what the features of written or oral texts are. To define text as a linguistic occurrence, with social-communicative, semantic and formal unity, implies recognizing that a text will be well understood when evaluated from three aspects: Pragmatic (functioning as informational and communicative action), conceptual semantic (coherence) and formal (cohesion). The set of features that makes a text to be a text, not a bunch of words or phrases, is textuality. There are seven factors responsible for the textuality of a speech. Among these factors, cohesion and coherence are the major text flaps weaving. These two factors have in common the characteristic of promoting semantic inter-relationship between the elements of discourse, its connectivity and thus confer textuality to a set of statements. Connectivity, especially the use of connectors, assumes considerable importance in the present study. In it we collect and analyze the main errors produced by students from two classes of 2nd year of Vocational Education, during the teaching and learning conjunctions (subordinating and coordinative) program. The faults, in what concern the textuality factors (cohesion, coherence and informat1iveness), found in the texts produced by the students also deserve comprehensive description and analysis. The complexicity of the writing process cannot be denied, so the introduction of technology tools, in mother tongue classroom, that motivate and help promote writing skills, it’s essential. In this perspective, we also present the performance of the two class groups during the intervention program. One used a computer and other traditional instruments, like paper and pencil. iv ÍNDICE Agradecimentos ......................................................................................................... ii Resumo ...................................................................................................................... iii Abstract ...................................................................................................................... v Índice ......................................................................................................................... vi Lista de figuras .......................................................................................................... viii Lista de quadros ....................................................................................................... viii Lista de gráficos ........................................................................................................ viii 1. INTRODUÇÃO 1.1 Identificação do Problema ................................................................................... 2 1.2 Objectivos do Estudo ........................................................................................... 5 1.3 Corpus do estudo................................................................................................. 5 1.4 Importância e limitações do estudo ..................................................................... 6 PARTE I – REVISÃO DE LITERATURA CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo Introdução ……………………………………………………………..………….. 10 1. Concepções teóricas de aprendizagem da escrita .................................................. 12 1. O discurso oral e o discurso escrito .................................................................... 17 2.1 Evolução das estruturas sintácticas no texto escrito ...................................... 21 3. A Escrita: uma modalidade a aprender .................................................................. 24 3.1 A escrita e a consciência metalinguística ...................................................... 28 3.2 É urgente uma didáctica da escrita ............................................................... 31 3.3 Para uma pedagogia da escrita....................................................................... 33 4. A escrita como processo ........................................................................................ 37 4.1 Modelos teóricos de compreensão e produção de textos ............................... 39 4.1.1 Modelos clássicos de produção escrita .................................................... 41 4.1.2 Outros modelos de estratégia pedagógica ............................................... 47 4.2. Componentes do processo de produção escrita .................................................. 50 4.2.1 Planificação ................................................................................................ 51 4.2.2 Textualização ou Redacção ........................................................................ 52 4.2.2.1 Processos redaccionais ......................................................................... 53 4.2.3 Revisão ....................................................................................................... 56 Conclusão .................................................................................................................. 61 Capítulo II - Textualidade: mecanismos de estruturação textual Introdução v 1. A Textualidade: pressupostos teóricos .................................................................. 64 1.1. Operações psicológicas da produção ............................................................. 70 2. A conectividade: multiplicidade de aproximações ................................................ 72 2.1. Principais dificuldades no estudo dos conectores........................................... 76 2.2. A construção de sentidos no texto ................................................................. 79 3. Análise do discurso: mecanismos de estruturação textual..................................... 83 3.1. Conceito e modelo de coerência ..................................................................... 85 3.1.1. A busca de coerência ................................................................................... 88 3.2. A construção da coesão .................................................................................. 91 Conclusão .................................................................................................................. 94 CAPÍTULO III- As TIC na escola: o despertar para o prazer da escrita Introdução .................................................................................................................. 97 1. A informática na sociedade e na escola ................................................................. 98 1.2 O impacto das TIC na escola ........................................................................... 99 2. O processador de texto no processo de escrita ...................................................... 104 2.1 O processador de texto: alguns estudos ............................................................ 108 3. O futuro da escrita na era da informática .............................................................. 109 4. A Rede: outro conceito de ensino/aprendizagem .................................................. 111 4.1 Materiais interactivos: para uma autonomia no estudo …………….. ............. 112 4.2 WebQuest: um modelo para ensinar/aprender.................................................. 114 Conclusão .................................................................................................................. 117 Conclusões gerais ...................................................................................................... 119 PARTE II- O ESTUDO CAPÍTULO IV _ Descrição do Estudo Introdução ................................................................................................................. 124 1. Metodologia ........................................................................................................... 130 1.1 Primeira fase: pré-teste ..................................................................................... 130 1.2 Segunda fase: programa de Intervenção ........................................................... 132 1.3 Terceira fase: pós-teste ..................................................................................... 134 2. Amostra ................................................................................................................ 135 3. Tratamento de dados .............................................................................................. 137 vi CAPÍTULO V – Resultados Introdução .................................................................................................................. 138 1. Análise e interpretação de dados ........................................................................... 139 1.1. Primeira fase ................................................................................................. 139 1.2. Segunda fase ................................................................................................. 143 1.2.1 Actividade nº 2 – Ordenação de parágrafos ............................................... 142 1.2.2. Actividade nº 3 – Ligação de frases .......................................................... 144 1.2.3. Actividade nº 4 – Ligação de frases utilizando o pronome que ................ 147 1.2.4. Actividade nº 5 _ Colocação pronominal .................................................. 150 1.2.5. Actividade nº 6 _ Articulação de frases em texto ...................................... 153 1.2.6. Actividade nº 7_ Ligação de frases 2 ........................................................ 154 1.2.7. Actividade nº 8 _ Evitar a Repetição. ........................................................ 157 1.2.8. Actividade nº 9 _ Parágrafos desordenados 2 ........................................... 159 1.2.9. Actividade nº 10 _ Ligação de frases _ Substituição do conector porque. 160 1.2.10. Actividade nº 11 _ Completar espaços (conjunções e locuções) ............. 162 1.2.11. Actividade nº 12 – Ordenação de Parágrafos 3 ....................................... 163 1.2.12. Actividade nº 13 – Ligação de frases 3 ................................................... 165 1.2.13. Actividade nº 14_ Ligação de frases 4 .................................................... 167 1.2.14. Actividade nº 15 – Ligação de frases 5 ................................................... 170 1.2.15. Actividade nº 16 – Completar texto ........................................................ 172 1.4. Terceira fase ................................................................................................. 173 2.4.1. Interpretação dos dados ............................................................................. 179 3. Factores de textualidade ........................................................................................180 3.1. Coerência, coesão e informatividade: análise qualitativa ............................. 180 3.2. Infracções aos factores de coesão e coerência ............................................. 184 3.2.1. Falhas na realização do requisito de repetição .......................................... 185 3.2.2. Análise das falhas na realização do requisito de progressão ..................... 193 3.2.3. Análise das falhas na realização do requisito de não-contradição ............ 199 3.2.4. Análise das falhas na realização do requisito de relação ........................... 213 3.3. Infracções ao factor de Informatividade ............................................................. 221 3.3.1 Análise das falhas na realização do requisito de suficiência de dados ....... 221 3.3.2. Análise do requisito de imprevisibilidade ................................................. 230 3.4. Exemplos de cartas com razoável grau de textualidade ..................................... 232 Conclusão .................................................................................................................. 237 Capítulo VI – Conclusões e implicações .................................................................. 241 Perspectivas de estudo futuro .................................................................................... 252 Referências Bibliográficas ......................................................................................... 257 Anexos ....................................................................................................................... 268 vii Lista de Figuras Nº 1- Elementos de estrutura do texto ....................................................................... 80 Nº 2- Modelo de coerência ........................................................................................ 90 Nº 3- Factores e condições de textualidade ............................................................... 182 Nº 4- Recursos coesivos ............................................................................................ 183 Lista de Quadros Nº 1- Proveniência geográfica ................................................................................... 136 Nº 2- Média de idade ................................................................................................. 136 Nº 3- Resultados dos itens do Pré-teste .................................................................... 140 Nº 4- Resultados dos itens do Pós-teste ..................................................................... 136 Lista de Gráficos Nº 1- Percentagens de cada turma no Pré-Teste ........................................................ 149 Nº 2- Resultados da actividade nº 4. .......................................................................... 150 Nº 3- Percentagens por turma .................................................................................... 150 Nº 4- Resultados da actividade nº 5 ........................................................................... 152 Nº 5- Percentagens por turma .................................................................................... 152 Nº 6- Resultados da actividade nº 6 ........................................................................... 154 Nº 7- Percentagens por turma .................................................................................... 154 Nº 9- Resultados da actividade nº7 ............................................................................ 156 Nº 9- Percentagens por turma .................................................................................... 157 Nº 10- Resultados da actividade nº8 .......................................................................... 158 Nº 11- Percentagens por turma. ................................................................................. 158 Nº 12- Resultados da actividade nº 9 ......................................................................... 159 Nº 13- Percentagens por turma .................................................................................. 160 Nº 14- Resultados da actividade nº10 ........................................................................ 161 Nº 15- Percentagens por turma. ................................................................................. 162 Nº 16- Resultados da actividade nº 11 ....................................................................... 162 Nº 17- Percentagens por turma. ................................................................................. 163 Nº 18- Resultados da actividade nº 12 ....................................................................... 164 Nº 19- Percentagens por turma .................................................................................. 164 Nº 20- Resultados da actividade nº 13 ....................................................................... 166 Nº 21- Percentagens por turma .................................................................................. 167 Nº 22- Resultados da actividade nº 14 ....................................................................... 169 Nº 23- Percentagens por turma .................................................................................. 169 Nº 24- Resultados da actividade nº 15 ....................................................................... 171 Nº 25- Percentagens por turma .................................................................................. 171 Nº 26- Resultados da actividade nº 16 ....................................................................... 172 Nº 27- Percentagens por turma. ................................................................................. 173 Nº 28- Resultados do Pós-Teste ................................................................................ 174 Nº 29- Percentagens por turma .................................................................................. 175 Nº 30- Resultados do Pré-Teste Pós-Teste ............................................................... 175 Nº 31- Resultados do Pré-Test176e e Pós-Teste da Turma Experimental ................ 176 Nº 32- Percentagens do Pré-Teste e Pós-Teste da Turma Experimental .................. 176 viii Nº 33- Resultados do Pré-Teste e Pós-Teste da Turma de Controlo ........................ 177 Nº 34- Percentagens do Pré-Teste e Pós-Teste ca Turma de Controlo...................... 177 Nº 35- Totais das duas turmas no Pré-Teste Pós-Teste ............................................. 178 Nº 36- Percentagens do Pré-Teste e Pós-Teste nas duas turmas ............................... 178 Introdução ___________________________________________________________________ 1 Introdução “A língua […] é o capital simbólico por excelência de uma comunidade. É um capital, porém, desigualmente repartido, e esta desigualdade impõe limitações graves à capacidade de entendimento, de expressão e de comunicação de muitas mulheres e de muitos homens e, por conseguinte, cerceia a liberdade e a participação política de muitos cidadãos. Só a educação e a escola […] podem tornar menos desigual e menos injusta a repartição deste capital simbólico e dar assim aos jovens a possibilidade de virem a ser homens e mulheres mais dialogantes, mais livres, mais solidários e mais responsáveis” (Aguiar e Silva, 1989, p. 18, citado por Vieira de Castro1). A década de 60 apresenta-se como uma verdadeira metamorfose quanto ao objecto de estudo e ao método de trabalho dos linguistas: o texto, e não apenas a frase, passa a colocar-se como unidade de análise. A Linguística passa de uma abordagem da frase, que estudava a língua de forma ideal e abstracta, para uma abordagem textual e discursiva. Ela passa a propor o tratamento da língua no seu uso efectivo, visando a produção de sentidosdentro de um contexto em interacção. Partindo do pressuposto de que existe um esquema textual subjacente à estrutura de superfície do texto-produto enunciado, tomaremos como assunto a tratar neste estudo as propriedades da textualidade e, dentro desta questão, abordaremos um dos mecanismos de coesão textual- a junção. Para além desta questão, trataremos ainda de reflectir sobre a utilização das TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) nas práticas pedagógicas de ensino/aprendizagem do estabelecimento de relações de conectividade, responsáveis pela textura do texto. Esta questão prende-se, em parte, com o pensamento de Collins e Gentner (1980:67) ao considerarem que a entrada do computador na vida escolar se apresenta como um instrumento facilitador da produção escrita,: “more and more sofisticated computer text-editors are coming into use that allow writers to do things easily that are quite difficult to do with pen and paper”. Nas sociedades contemporâneas os cidadãos interagem, com relativa frequência, com textos escritos com funções diversas. Uns servem de regulação dos comportamentos sociais, outros são elementos integrantes dos contextos de trabalho, outros, ainda, servem a intenção de recreação ou “fruição estética”. Em todos os casos, a 1 http://www.ectep.com/literacias/contextos/ensaio/02.html (consultado em 23/02/03) http://www.ectep.com/literacias/contextos/ensaio/02.html Introdução ___________________________________________________________________ 2 capacidade de construção de sentido(s) dos textos escritos é cada vez mais relevante nos dias de hoje e o desenvolvimento tecnológico tem feito emergir novas formas de comunicação que por seu lado se traduzem em novas formas de utilizar a linguagem escrita. Quando se fala do ensino do Português, fala-se do baixo nível de escrita desenvolvido pelos nossos alunos. Tem-se vindo a dizer que os jovens escrevem cada vez menos e não gostam de escrever, todavia esta situação não se pode imputar exclusivamente à escola, ela radica de condições e factores da própria sociedade. Na opinião de Fonseca (1992: 222), “cada vez se escreve e se lê menos, na nossa sociedade do audiovisual e do imediato; mas apesar disso, continua alta a cotação social e simbólica do escrito”. Todo o processo de escrita é complexo e não se pode reduzir às características do produto final, o texto escrito. O acto de escrita é mais lato envolvendo “o desenvolvimento cognitivo do jovem, na sua maturação crítica, na sua autonomia intelectual e sócio-afectiva” (Mateus et al., 1994: 109). Apesar da complexidade que envolve todas estas problemáticas, neste estudo pretendemos reflectir, essencialmente, sobre problemas frequentemente detectados em textos escritos que se prendem com os processos de coesão textual. A noção de coesão é uma das questões fundamentais que mais atenção tem recebido por parte de disciplinas como a Análise do Discurso e a Teoria do Texto. A coesão textual envolve uma quantidade de diferentes relações linguísticas (lexicais, junção, referência, substituição) que, em conjunto, são responsáveis pela formação da textura de um texto escrito. Tal como um conjunto de fios não forma, só por si, um tecido, do mesmo modo, um conjunto de frases não forma, necessariamente, um texto. É imprescindível que haja, entre elas, ligações, formando um “tecido” que funciona como um todo, como uma unidade em relação ao que o rodeia. É neste contexto que surge a noção de conectividade como objectivo principal do nosso estudo. Identificação do problema Desde há algum tempo que nos temos vindo a questionar sobre como fazer da aula de língua materna um espaço privilegiado para o desenvolvimento da competência comunicativa do aluno, entendida, grosso modo, como a capacidade de gerar e entender textos correctos e aceitáveis. O texto escrito desempenha um papel fundamental em todo o processo de ensino/aprendizagem, ultrapassa os limites da sala de aula de língua Introdução ___________________________________________________________________ 3 materna e institui-se como instrumento essencial e indispensável de todas as disciplinas curriculares. Enquanto instrumento, funciona como meio de transmissão dos diferentes conteúdos de cada disciplina. Incompreensivelmente, o texto escrito esbarra com alguma relutância, algo generalizada, dos alunos face à sua produção e, por outro, com a queixa dos professores e da sociedade em geral, de que os alunos saem da escola sem saber escrever. São opiniões expressas por professores e educadores, análises vindas a lume na comunicação social, conclusões de alguns estudos que traduzem com frequência certa incomodidade e desencanto perante os efeitos das práticas escolares na promoção de capacidades, atitudes e conhecimentos no âmbito da leitura e da escrita. Ora, a escrita é um processo complexo, que envolve competências diversas e por isso deverá ser alvo de um programa didáctico específico, sistemático e programado. A escola é muitas vezes o único local onde muitos alunos contactam com o texto escrito em geral, e determinados tipos de texto em particular, tornando-se necessário familiarizá-los com as convenções da linguagem escrita, que a tornam distinta da linguagem oral. Não é indiferentemente que se usa uma e outra, o facto de se privilegiar, ora um código, ora outro, obedece a convenções sociais. Assim, a captação e compreensão destes dois códigos requer atitudes e aptidões diferentes, porque a linguagem oral que o aluno usa está relacionada com o contexto, com a situação em que é produzido, não trazendo grandes entraves à compreensão da mensagem. O mesmo não acontece com o texto escrito em que qualquer obstáculo que entrave a comunicação só pode ser resolvido no interior do texto, tendo o aluno de aprender a procurar a coerência na superfície textual, através da descodificação dos recursos coesivos que o texto apresenta. Neste contexto, os professores de português procuram melhorar a competência textual dos alunos, na busca do desenvolvimento pleno da competência comunicativa natural de cada um. Daqui resulta a urgência que há em reflectir sobre os objectivos do ensino do português, que se podem identificar, de certo modo, com o pensamento de Monica Berretta (1978:277): “...la capacitá di costruire testi e discorsi coerenti, “logici”, e vice-versa di cogliere in testi o discorsi dati le coerenze e incoerenze interne, è una delle “abilità” pui importanti da sviluppare negli allievi”. Introdução ___________________________________________________________________ 4 Um dos campos da investigação que escolhemos radica destas preocupações, por considerarmos que está na hora de estabelecer novos objectivos para o ensino da língua materna, restringindo o fornecimento de modelos fixos dos diferentes tipos de discurso e procurando trabalhar mais ao nível do plano lógico-semântico-cognitivo, considerando o texto nas suas três dimensões básicas: formal, conceptual e pragmática. É a partir de pressupostos da linguística textual, em interacção com outras áreas como a psicolinguística, a sociolinguística, a linguística, a filosofia, a antropologia, entre outras, que procuram estudar o processo pelo qual o falante produz textos coerentes, assim como o processo que utiliza o ouvinte para compreender esse texto, que pretendemos explorar três dos factores responsáveis pela textualidade de um discurso qualquer. De entre os sete factores apresentados por Beaugrande e Dressler (1990) apenas nos interessam a coesão e a coerência, que se relacionam com o material conceptual e linguístico do texto, e a informatividade, que tem a ver com factores pragmáticos envolvidos no processo sociocomunicativo. Para que um texto seja aceitável e adequado sob o ponto de vista linguístico, não basta que cadafrase seja sintáctica e semanticamente bem formada. A sua articulação, isto é, o estabelecimento de elos coesivos exige competências que se podem desenvolver e aperfeiçoar. Foi neste âmbito que nasceu a ideia de tratarmos um dos elementos da coesão textual- a junção. Apesar da importância do estudo destas estruturas linguística, a escola não tem sabido contornar a grande complexidade que as envolve, tendo, de certa forma, o seu ensino, na aula de língua materna, sido votado ao esquecimento. Ora, elas são uma chave importante para a produção e compreensão do texto, o que obriga necessariamente que o seu estudo se realize segundo modelos das gramáticas de texto. Quando se reconhece aos indivíduos uma capacidade de produzir e interpretar textos literários, pressupõe-se a ocorrência de um conceito de competência que embora de características semelhantes à competência linguística de Chomsky2, se amplia ao plano do texto. 2 A concepção de competência linguística (capacidade do falante produzir e compreender frases bem formadas da língua) divulgada por Chomsky não é suficiente para compreender os processos de produção e interpretação dos discursos escritos, dado ser elaborado num modelo de gramática de frase e assim não poder dar conta de uma unidade superior, o texto, que apesar de ser formado por um conjunto de frases não é apenas uma mera justaposição delas. O texto ao ser dotado de regras que o organizam como um todo coeso e coerente, tem uma gramática própria, não se reduzindo a meras relações frásicas. A capacidade que o falante tem para produzir e compreender textos, sabendo distingui-los de não-textos, chama-se competência textual. Introdução ___________________________________________________________________ 5 A tese da existência nos indivíduos de uma gramática textual interna (a competência literária dos nativos de uma cultura) é defendida por van Dijk (1972:176) ao afirmar que sem ela “não se seria capaz de comparar textos literários, fazer deles resumos e até, lembrá-los. Não se conseguiria mesmo lê-los como textos coerentes ou reconhecê-los como literários”. Urge, portanto, enfrentar este conjunto de problemas o mais cedo possível, pelas dimensões e ecos que se ouvem um pouco por todo o lado relativamente ao “mau tempo para a escrita”. É, também, neste quadro que nos interessa o estudo da problemática do uso do computador nas práticas de escrita, e em particular as implicadas na textualidade, por alguns motivos fundamentais: Porque desde há alguns anos vimos tendo consciência de que a evolução tecnológica tem posto ao serviço da educação um conjunto de ferramentas essenciais para práticas inovadoras de leitura e escrita; Porque os jovens têm hoje uma grande familiaridade com os meios audiovisuais e multimédia, pelo que urge aproveitar esta atitude favorável e canalizá-la como fonte de motivação à escrita; Porque, como professores de Português, a produção escrita é uma das componentes do processo de ensino/aprendizagem fundamental; Porque há urgência de uma pedagogia da escrita, (Fernanda Irene Fonseca, 1992), que ajude a rentabilizar a escrita na sala de aula; Porque é à escola que cabe a tarefa de preparar as gerações futuras para níveis elevados de proficiência escrita e competência textual. Com este estudo pensamos contribuir para uma maior reflexão sobre um dos problemas que rodeia a prática pedagógica de qualquer professor de língua materna: os mecanismos de coesão e coerência textual. Não se trata de encontrar respostas definitivas, mas antes de avaliar e descrever a situação e perspectivar campos ou linhas de investigação daí decorrentes. Objectivos do estudo Quando escreve, o emissor, apropria-se de elementos da língua e dá-lhes sentido, organiza-os em forma de texto. O texto é o tecido linguístico de um discurso, é uma Introdução ___________________________________________________________________ 6 tecedura de sons, de palavras, de frases, orações, ideias, sentidos. Para Humberto Eco o texto é "uma máquina preguiçosa”, pois obriga o leitor a um árduo trabalho de cooperação e interpretação, porque "o texto deixa os seus próprios conteúdos no estado virtual, esperando que o trabalho cooperativo do leitor lhe dê a sua actualização definitiva". Para que um texto seja texto deve assentar num conjunto de propriedades a que se dá o nome de textualidade. De entre as propriedades que a textualidade possui encontra- se a conectividade ou articulação, que se relaciona com a interdependência semântica das ocorrências textuais, resultante dos processos linguísticos de sequencialização (conectividade sequencial ou coesão), ou resultante dos processos mentais de apropriação do real e da configuração e conteúdo dos esquemas cognitivos que definem o saber de cada um de nós sobre o mundo (conectividade conceptual ou coerência). Qualquer texto deve ter conexão, isto é, as ideias devem ser logicamente articuladas, de modo a evitar contradições, redundâncias inúteis e saltos bruscos de sentido. É neste contexto que os conectores ou articuladores do discurso desempenham um papel importante e constituem o cerne do nosso estudo. Assim, depois de definido o tema do nosso estudo, passamos a explicitar os objectivos fundamentais que o norteiam: 1. Avaliar competências de escrita no que se refere ao uso dos mecanismos de estruturação textual; a) Identificar através da análise qualitativa as principais dificuldades na aplicação, em frase ou em texto, de diferentes estruturas sintácticas (coordenação e subordinação); b) Descrever as principais infracções a três dos factores de textualidade (coesão, coerência e informatividade) em textos escritos; 2. Avaliar um programa de intervenção de estudo sistemático dos elementos de junção (conjunções); 3. Comparar os desempenhos dos alunos em contexto de ensino/aprendizagem, dos elementos de junção ocorridos em ambiente tradicional (papel e lápis) e em ambiente informático (computador). Introdução ___________________________________________________________________ 7 Estes três objectivos nortearam tanto o desenvolvimento da primeira parte, correspondente à revisão de literatura, como a segunda que diz respeito à descrição do estudo. Corpus do estudo Para a realização do presente estudo reunimos todos os materiais produzidos em todas as fases do projecto e serão eles que constituirão o corpus deste estudo. Do programa de intervenção recolhemos e analisámos todas as fichas de actividades resolvidas pelos diferentes grupos das duas turmas intervenientes neste estudo: a Turma de Controlo e a Turma Experimental. Estas fichas serviram de base ao tratamento quantitativo, que apresentamos, e à análise descritiva das principais falhas produzidas pelos alunos na resolução das diferentes actividades do programa de intervenção. As frases que transcrevemos são fiéis ao que o aluno escreveu. Do Pré-Teste e Pós-Teste recolhemos os textos (cartas) produzidos pelos sujeitos intervenientes, que serviram de base à análise descritiva das infracções aos factores de textualidade (coesão, coerência e informatividade). Foram transcritos de acordo com as versões originais, sem sofrerem qualquer alteração ou correcção de ordem sintáctica ou ortográfica. Para além destes textos procedemos, também, à análise quantitativa dos restantes itens presentes nestes dois testes. Importância e limitações do estudo A importância do estudo resulta em primeiro ligar do conhecimento que ele originar e das implicações que possa vir a ter no ensino/aprendizagem da escrita, em especial, no que concerne à estruturação textual. Interessou-nos a escolha da temática deste trabalho pela importância que a produção de texto escrito adquire no contexto escolar, em especial, na aula de língua portuguesa e pela dificuldade,quase generalizada, de produzir textos coerentes e com alto nível de informatividade. Para além disto, a introdução de novas ferramentas nas práticas pedagógicas escolares foi outro factor que nos levou a esta opção. Pela complexidade que se reveste o ensino/aprendizagem da escrita, e na incapacidade de tratar este problema nas suas múltiplas dimensões e diversidade de perspectivas que encerra, delimitámos a nossa escolha ao âmbito da redacção e dentro desta, à coesão textual, deixando de fora outros aspectos todos eles justificativos para um estudo desta natureza. Assim, propusemo-nos trabalhar e analisar apenas o Introdução ___________________________________________________________________ 8 funcionamento dos mecanismos de junção - conjunção - coordenação/subordinação - por considerarmos inegável a sua utilidade como elementos da eficiência do discurso. As virtualidades do domínio destes mecanismos na produção de textos são expressas por Val (2002:8-9): ”além de tornar a superfície textual estável e económica, na medida em que fornecem possibilidades variadas de se promover a continuidade e a progressão do texto, também permitem a explicitação de relações que, implícitas, poderiam ser de difícil interpretação, sobretudo na escrita”. A temática dos mecanismos de coesão textual interessou-nos por considerarmos que têm um papel fundamental na indiciação das intenções de quem escreve e das inferências que deverão ser feitas pelo leitor, no âmbito da compreensão do texto. Assim, pensamos poder despistar algumas dificuldades e abrir caminho a algumas soluções metodológicas, que em articulação com outros trabalhos já realizados ou a realizar poderão fornecer bases importantes de trabalho, mesmo tendo em conta as limitações deste estudo, que se restringe a duas turmas do 2º ano do Ensino Profissional em Braga, no ano lectivo 2002/2003. Não é, por conseguinte, nossa intenção generalizar as conclusões além dos limites desta investigação, mas estamos certos que seria de grande interesse a sua expansão, bem como o servir de ponto de partida para futuros estudos. O papel que a Escola assume hoje reveste-se de grande importância na formação integral do aluno, não sendo apenas um lugar de iniciação, mas de aprendizagem e consolidação do processo de escrita, visto que, no entender de Delgado Martins (citada por Carvalho, 1992) a escrita é um saber escolarizável que deverá ser explicitado e ensinado, de modo a poder ser aprendido. Neste sentido, a importância deste trabalho de investigação reside também no contributo que pode prestar no domínio do conhecimento em que se integra e sendo ele a Didáctica da Língua Materna a sua relevância é maior, por ser um domínio em autonomização relativamente a outros domínios com os quais se relaciona. As limitações deste estudo resultam não só da complexidade das temáticas tratadas: tecnologias e mecanismos de coesão na produção escrita, mas também da limitação do número de sujeitos envolvidos, que coloca algumas limitações à generalização dos resultados ao universo do Ensino Profissional. Primeira Parte Quadro Teórico O quadro teórico que sustenta o nosso estudo ocupa a primeira parte desta dissertação, composta por três capítulos. No Primeiro Capítulo tecemos algumas considerações sobre a complexidade da escrita como processo e sobre alguns dos modelos teóricos. No Segundo Capítulo é dada atenção à problemática da textualidade e da conectividade. No Terceiro Capítulo abordamos algumas questões relacionadas com as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), umas mais gerais e outras mais específicas, no domínio da sua utilização no ensino em geral e na escrita, em particular, no que se refere à textualidade. CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 10 CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo A escrita é importante na escola porque é importante fora dela Emília Ferreiro Introdução A linguagem é a capacidade que têm os seres humanos de usar qualquer sistema de sinais significativos, que lhes permita expressar sentimentos, pensamentos e experiências. Assim, o domínio da linguagem oral e escrita é fundamental para que o homem possa comunicar no mundo em que vive. A escola, como instituição educativa, tem a obrigação de ensinar a ler, a escrever e a expressar oralmente em todas as situações. A escrita, tal como a expressão oral, é uma modalidade de comunicação que tem de ser estudada e ensinada, na estrutura e função. No entanto, dado tratar-se de um sistema diferente das outras formas de comunicação é necessário a tomada de atenção relativamente às suas características específicas resultantes das circunstâncias de produção, como é referido por Carvalho (1990: 129): “As características do texto escrito, tanto no que diz respeito à sua organização, como às estruturas predominantemente utilizadas, têm muito a ver com as circunstâncias em que ele é geralmente produzido”. O desenvolvimento da produção escrita e o aprender a dominar a produção de um texto é uma tarefa complexa, mas fundamental. Embora, o que mais se valorize nas nossas escolas seja a ortografia, relegando para plano secundário as outras vertentes da escrita, a escola deve ajudar a criança a escrever desde cedo, através da valorização da ideia de ensinar/aprender a escrever. A necessidade do ensino da escrita é reconhecida por numerosos autores, entre outros Vygostsky (1986); Barbosa (1990); Delgado-Martins (1991 e 1992); Fonseca (1992); Smagorinsky (1992); Mata e Pereira (1993); Dolz 1993; Cabral (1994); Santos, (1994); Costa (1996); Grabe e Kaplan (1996); Pinto (1998); Carvalho (1999 e 2003). A sua importância advém do facto de ela ser um dos elementos mais universais de comunicação, continuando a merecer a atenção de numerosos estudos, porque sem ela a CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 11 cultura definida como uma “inteligência transmissível” não existiria. Para Fernando Santos (1998:17): “É graças à escrita que a Humanidade possui o registo de um volume imenso de conhecimentos em todos os domínios do saber, particularmente nos de ordem científica e técnica. Conhecimentos que garantem o prosseguimento da sua caminhada na senda do progresso, desvendando cada vez mais os segredos que a natureza e o universo encerram. A escrita é assim o garante de todo o progresso”. Dadas as dificuldades e a complexidade do processo de escrita, assistiu-se ao aparecimento de alguma investigação centrada na análise do processo em acção na produção do texto escrito e ao aparecimento de alguns dos modelos processuais de escrita, em especial o de Flower e Hayes (1980) e de Scardamalia e Bereiter (1987). Os níveis de insucesso no domínio da expressão escrita no Sistema de Ensino Português, fazem pensar na urgência de conjugação de esforços tendentes a melhorar o ensino e a aprendizagem da expressão escrita, desde a mais tenra idade, e instituir uma efectiva didáctica da escrita. Na produção textual, a textualidade parece ser um domínio que apresenta muitas dificuldades, visto que o texto é produzido através da escolha e da organização de palavras que se unem adequadamente umas às outras, devendo apresentar um sentido lógico, coerente e exigindo a observação das relações semânticas existentes entre elas. Dada a complexidade da produção textual a aprendizagem da escrita é um processo feito ao longo da vida, num processo de aprendizagem e aperfeiçoamento constantes. A escola é o local privilegiado para o desenvolvimento da escrita formal que deve ser laboriosamente aprendida nas suas etapas iniciais. Uma vez automatizada, passa a constituirum meio de expressão e desenvolvimento pessoal e um mediador insubstituível que facilita a organização, retenção e recuperação da informação. Algumas destas questões serão objecto de reflexão ao longo deste capítulo. Assim, a complexidade do processo de escrita, as suas dificuldades de aprendizagem, a importância de ensinar/aprender a escrever na aula de Português e a urgência de caminhar para uma didáctica da escrita constituirão o fio condutor do nosso discurso. CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 12 1. Concepções teóricas de aprendizagem da escrita A aprendizagem da língua materna nos seus vários domínios reveste-se de algumas dificuldades. Por um lado, a invisibilidade do sistema linguístico e a identificação do sujeito com a língua enquanto falante, por outro, o facto dos instrumentos para análise da língua serem o próprio objecto de análise, pois, é com palavras que se estudam palavras, o que justifica a necessidade de criar uma distância entre o indivíduo e a língua. Se a utilização do código oral parece estar facilitada pela capacidade inata da linguagem que o sujeito possui, o mesmo não se poderá dizer do uso do código escrito que necessitará de uma aprendizagem como se de outra actividade qualquer se tratasse. A complexidade e plasticidade da escrita obriga a uma análise e reflexão teórica das concepções de escrita nos vários domínios da investigação. Estes domínios vão desde a psicologia cognitiva, como teoria da aprendizagem e modelo de apropriação dos conhecimentos e da construção do raciocínio, à epistemologia, necessária para definir o objecto do conhecimento, operar escolhas e reflectir sobre a relação das propostas científicas, passando pelo domínio da metodologia3 como meio de acção para servir a didáctica, até aos estudos linguísticos. Na opinião de Mattoso Câmara Jr. (citado por Souza e Silva e Koch, 1991:5) cabe à linguística pura ou teórica a descrição das estruturas das diferentes línguas e à linguística aplicada a adequação dessa descrição ao ensino. Historicamente os estudos linguísticos eram baseados na gramática greco-latina, que partindo de princípios lógicos procurava deduzir os factos da linguagem através do estabelecimento de normas de comportamento linguístico. No século passado, os estudiosos da linguagem insurgiram-se contra essa concepção estática da língua e enfatizaram a mudança da língua, através de um processo dinâmico e coerente, surgindo a gramática comparativa e a linguística histórica.4 Deve-se a Saussure o rompimento com a visão historicista e atomista dos factos linguísticos, ao conceituar a língua como um sistema e ao preconizar o estudo descritivo 3 A metodologia só tem valor se criada em função do aluno. 4 A gramática comparativa comparava entre si os elementos das línguas com o objectivo de depreender- lhes as origens comuns e de reconstituir a prolíngua de que se originaram. A linguística histórica, procura explicar a formação e a evolução das línguas. As mudanças linguísticas eram consideradas como fenómenos naturais em contraposição à fixidez preconizada pela gramática greco-latina (Souza e Silva e Koch, 1991:7). CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 13 desse sistema, surgindo, assim, o estruturalismo como método linguístico (Souza e Silva e Koch, 1991:8). Saussure foi o primeiro a definir com clareza a língua como objecto da linguística, através do estabelecimento de várias dicotomias: língua/fala, sincronia/diacronia, sintagma/paradigma, que deram origem a escolas e teorias. Foi a partir de Saussure que os estudos linguísticos se concentraram no estudo do mecanismo segundo o qual uma dada língua funciona como meio de comunicação entre os seus falantes e na descrição da estrutura que a caracteriza. Já desde a Grécia antiga que o homem se preocupa com a língua humana, aproximando as hipóteses da sua aquisição às concepções sobre a sua natureza. E é da especificidade da sua natureza que decorre a existência de várias teorias da aquisição. A teoria inatista de Chomsky considera que quer o conhecimento, quer o comportamento linguístico seriam geneticamente determinados. Também a visão biológica de Lenneberg (1964) argumenta a favor da teoria inatista, no entanto, considera que a fala e o andar são actividades geneticamente herdadas e escrever é para ele uma actividade culturalmente aprendida. Baseado em vários critérios tira algumas conclusões, como por exemplo que falar é uma capacidade inata e que escrever/ler não são, pois, não se ensina a andar, a criança anda sozinha, mas ler e escrever só através do treino formal a criança adquire essas habilidades, não significando a sua ausência deficiência biológica (Kato, 1987:102). A teoria evolucionista de Bickerton (1981) não é mais do que uma variante da teoria inatista de Chomsky, ao especificar no seu bioprograma linguístico um limite inferior e outro superior para a capacidade linguística, dado que a língua culturalmente adquirida não pode distanciar-se de forma imprevisível da língua primitiva bioprogramada (Kato, 1987:103). A tese funcionalista considera que quando se acrescentam novas formas elas se justificam pelas necessidades comunicacionais. Estudos realizados por Laberge, Sankoff e Brown (1976), ao focalizarem o papel dos factores culturais funcionais no desenvolvimento da linguagem, observam que quando aumentam as necessidades comunicativas são também acrescentadas novas formas. Da mesma maneira, Halliday (1975) nos estudos que fez sobre a aquisição da linguagem na criança, mostra que a ampliação de funções ocasiona mudanças formais. Também Vigotsky (1962) e Slobin (1980) consideram que é uma forma velha que origina uma função nova e uma forma nova se adquire através de uma função conhecida. CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 14 Para estes autores a capacidade linguística superior é determinada pelas necessidades de comunicação, pois como advoga Kato (1987:106) “foi a necessidade de transmissão de conhecimentos colectivos que levou o homem a “inventar” a forma escrita dissertativa, substituindo a forma homílica. Portanto, são necessidades reais, funcionais que levam o homem a escrever e a procurar novas formas dentro dessa necessidade”. A tese cognitivista-funcionalista de Bever (1970) procura definir o limite superior da capacidade linguística em termos cognitivos, sendo que para ele o limite da gramaticalidade é o limite da compreensibilidade e da produtibilidade, isto é, não se pode aprender ou produzir o que é inaprendível, o que determina a agramaticalidade não são as regras autónomas da gramática, mas a nossa capacidade de processamento e de produção (Kato, 1987:106-107). A tese de Bever toma certo relevo na explicação de problemas de compreensão e produção da escrita microestrutural. A tese construtivista de Piaget, considera que o comportamento resulta de uma actividade estruturadora por parte do sujeito, geradora de esquemas de acção, através da interacção do sujeito com o objecto da aprendizagem, esta teoria tem afinidades com algumas das teorias citadas anteriormente. Sobre a tese de Chomsky ressalta a importância dos dados ambientais para a aquisição; as estratégias heurísticas de Bever podem ser aproximadas aos esquemas de acção de Piaget; para Slobin e Piaget os princípios cognitivos gerais estão em jogo na construção da língua natural da criança. Quanto à aprendizagem da escrita, tanto as abordagens de Piaget como as de Bever são importantes por delas se tirarem as bases para edificar princípios operacionais ou estratégiasde acção do aprendente em interacção com o objecto de aprendizagem. A tese associacionista encara a aprendizagem segundo a qual quando um estímulo ambiental x está presente, tende a provocar uma resposta y, se esta levar um esforço positivo. Para esta teoria o significado de frases não pode ser aprendido por resposta automática e, além disso, o significado de palavras pode também ser aprendido por dedução5. Destas abordagens um elemento parece consensual: o facto do homem nascer com algum material inato, que lhe permite interagir com os objectos do seu meio e dar-lhes significado. Partindo do princípio que a escrita é um elemento desse ambiente, ela será aprendida de forma natural para ser usada como instrumento de comunicação. 5 Sobre as teorias aqui apontadas ver Kato (1987:100-120) que faz uma análise crítica/comparativa destas diferentes abordagens da aquisição, cuja incidência maior é sobre a aprendizagem da escrita. CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 15 As teorias da aquisição da fala ganham relevância na explicação de problemas da aprendizagem da escrita, dado que, os processos de compreensão e produção na escrita seguem os mesmos princípios postulados para a fala, por conseguinte, a linguagem escrita é parcialmente isomórfica com a fala (Kato, 1987:120-121). Num quadro teórico, o que significa falar de linguagem escrita e de aprendizagem da linguagem escrita? Alguns psicólogos falam de uma função ou de um sistema psicológico independente chamado “langage écrit” (Schneuwly,1988:45). De entre outros autores citamos Vigotsky (1985:259) que se refere à linguagem escrita como : “Une fonction verbale tout à fait particulière, qui, dans sa structure et son mode de fonctionnement, ne se distingue pas moins du langage parlé que le langage intérieur ne se distingue du langage extériorisé”. Mas para precisar melhor esta questão da especificidade da linguagem escrita é preciso distinguir bem a linguagem escrita, num sentido restrito, como “maîtrise du code de l’écrit” e de maneira mais alargada, como “activité langangière spécifique” (Schneuwly,1988:46). Deste ponto de vista, este autor concebe a escrita como “la possibilité de représenter la langue orale par un système visuel; le langage écrit se définirait alors comme la capacité d’utiliser ce système”. São muitos os estudos realizados por grupos internacionais de especialistas sobre os processos de aquisição da leitura e da escrita. Estudos como os de L. Vigotsky (1962, 1978), M. A. K. Halliday (1975) e S. B. Heath (1981) citados por Goodman (1987) ajudaram a compreender que crianças pequenas desenvolvem a sua escrita dentro de um contexto sócio-cultural que deve ser tido em consideração quando se investiga o contributo pessoal da criança para a aprendizagem. Goodman (1987:86) apresenta três princípios que regem o desenvolvimento da escrita: princípios funcionais, princípios linguísticos, princípios relacionais. Estes princípios começam a ser desenvolvidos ainda antes da criança entrar na escola, aquilo a que Vigotsky chama “a pré-história da linguagem escrita na criança”. Sendo também o período menos estudado é, no entanto, o estado mais puro dos processos construtivos que aparecem antes do sujeito se apropriar do conhecimento dos outros. CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 16 Emília Ferreiro6 (1987: 102) partilha da opinião de que a escrita é anterior à entrada da criança na escola, ao afirmar que “historicamente falando não restam dúvidas de que a escrita tem uma origem extra-escolar; que o início da sua organização enquanto objecto de conhecimento precede às práticas escolares”7. Estudos realizados por esta autora com crianças de meios sociais diferentes levaram-na a compreender melhor os processos de apropriação da escrita socialmente constituída. Uma das conclusões a que chegou foi a de que a construção da escrita na criança não é alheia à epistemologia, se for considerado que o problema da criança não é identificar esta ou aquela grafia em particular (...) senão compreender a estrutura própria do sistema (Ferreiro, 1987:122-123). Segundo as novas teorias da emergência da literacia, a aprendizagem da escrita não sucede necessariamente à da leitura, tal como esta não sucede o domínio da oralidade. Elas são capacidades susceptíveis de desenvolvimento simultâneo, cuja interacção reforça a aquisição de cada uma delas (Teale e Sulzby, 1992). Tradicionalmente a aprendizagem da leitura e da escrita era considerada como um 6 As teorias desenvolvidas por esta autora e pelos seus colaboradores deixam de se fundamentar em concepções mecanicistas sobre os processos de alfabetização e seguem os pressupostos construtivistas/interacionistas de Vygotsky e Piaget. Os níveis estruturais da linguagem escrita podem explicar as diferenças individuais e os diferentes ritmos dos alunos. Segundo Emília Ferreiro esses níveis são: 1) Nível Pré-Silábico- não se busca correspondência com o som; as hipóteses das crianças são estabelecidas em torno do tipo e da quantidade de grafismo. A criança tenta nesse nível: diferenciar entre desenho e escrita utilizar no mínimo duas ou três letras para poder escrever palavras reproduzir os traços da escrita, de acordo com o seu contacto com as formas gráficas (imprensa ou cursiva), escolhendo a que lhe é mais familiar para usar nas suas hipóteses de escrita percebe que é preciso variar os caracteres para obter palavras diferentes 2) Nível Silábico- pode ser dividido entre Silábico e Silábico Alfabético: Silábico- a criança compreende que as diferenças na representação escrita estão relacionadas com o "som" das palavras, o que a leva a sentir a necessidade de usar uma forma de grafia para cada som. Utiliza os símbolos gráficos de forma aleatória, usando apenas consoantes, ora apenas vogais, ora letras inventadas e repetindo-as de acordo com o número de sílabas das palavras. Silábico- Alfabético- convivem as formas de fazer corresponder os sons às formas silábica e alfabética e a criança pode escolher as letras ou de forma ortográfica ou fonética. 3) Nível Alfabético- a criança agora entende que: a sílaba não pode ser considerada uma unidade e que pode ser separada em unidades menores a identificação do som não é garantia da identificação da letra, o que pode gerar as famosas dificuldades ortográficas a escrita supõe a necessidade da análise fonética das palavras 7 Ana Teberosky (1987, 124-125).) através dos seus trabalhos tem tentado demonstrar que “ antes de saber ler e escrever no sentido convencional do termo, as crianças pré-escolares podem compartilhar e confrontar com outras crianças suas concepções acerca do sistema, através da interacção com o objecto e entre os sujeitos” Investigações realizadas por esta autora e Emília Ferreiro(1979), mostram que existe uma “ história pré-escolar da escrita”. CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 17 processo psicológico. Hoje, duas dimensões da lectoescrita ganham interesse: a dimensão linguística e a dimensão social. Esta relação entre leitura/escrita desperta-nos para outra relação dicotómica, oralidade/escrita. Não é possível falar de linguagem escrita sem considerar a relação que esta mantém com a linguagem oral. Sendo a oralidade e a escrita duas modalidades discursivas de uma mesma língua, cada uma apresenta particularidades que as distinguem, tornando-as duas práticas linguísticas independentes. Sobre a problematização das concepções de oralidade e de escrita falaremos a seguir. 2. O discurso oral eo discurso escrito Uma língua escrita não é a transcrição da língua oral e sim um novo fenómeno linguístico e cultural. Emília Ferreiro Ao longo da história da moderna linguística, alguns estudiosos defendiam a linguagem oral como primária e a linguagem escrita simplesmente o reflexo da linguagem oral. Esta concepção foi sobejamente contestada por muitos investigadores em educação, entre outros Grabe &Kaplan (1996:15) que consideram, “the writing language is a true representation of the correct forms of language and should be valued and practised”. Apesar da linguagem escrita manter com a linguagem oral relações de vária ordem, elas constituem modos linguísticos diferentes de expressar o pensamento. Não se trata apenas de diferenças do âmbito físico, entre o sistema fonológico e o sistema grafológico ou ortográfico, as suas diferenças vão muito para além disto. O indivíduo descobre a escrita ainda antes da escolarização, porém ela desenvolve-se pela aprendizagem formal que mobiliza de forma exigente os conhecimentos linguísticos do sujeito, e vai ser construída com base numa relação com a linguagem oral. Vigotsky (1986:137) nas suas investigações demonstra que o desenvolvimento da escrita não repete o historial evolutivo da fala, já que a escrita requer um alto nível de abstracção. Assim, para este autor, “quando aprende a escrever, a criança deve desembaraçar-se dos aspectos sensoriais da fala e substituir as palavras por imagens de si mesmas”. Ao fim de algum tempo de escolarização o sujeito toma consciência das particularidades de cada uma destas modalidades e aprende a dominá- las. O conhecimento da especificidade da construção verbal sob forma escrita, vai permitir utilizar a expressão escrita ao serviço dos requisitos colocados pela situação de CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 18 comunicação e dos objectivos que se pretende atingir. Este conhecimento pode ser implícito, inconsciente, permitindo desenrolar-se automaticamente ou então um conhecimento reflectido, consciente, que permite ao sujeito a tomada de decisões. No discurso oral, preso irremediavelmente a um aqui-agora, a maior parte das vezes, locutor e alocutário estão em presença, partilhando o mesmo contexto situacional. O discurso pode ser entendido através da interacção entre os intervenientes e para compreensão de parte do significado pode recorrer a recursos e elementos não linguísticos e paralinguísticos (gestos, expressões faciais) que nem sempre têm tradução na escrita. Na comunicação escrita e devido ao seu carácter disjuntivo e diferido entre o momento da produção e o momento da recepção decorre aquilo a que Bereiter e Scardamalia8 chamam o carácter autónomo da produção do texto escrito. Durante este período o produtor pode ter dificuldade em resolver eventuais problemas de comunicação que facilmente podem ser resolvidos na comunicação oral. Apesar disso, esta autonomia permite a quem escreve que possa pensar e organizar o discurso pausadamente, longe do imediatismo da comunicação oral. Para além destas diferenças entre estes dois discursos, outra ocorre também que, na opinião de Carvalho (1998:151), se prende com a diferença do contexto situacional entre os momentos da produção e da recepção, com a presença/ausência do referente da mensagem e com o universo de conhecimento que autor e destinatário partilham da mensagem. A este respeito, Nystrand (citado por Carvalho, 1998:152) diz haver um contexto de produção, a ocasião em que o texto é produzido, e um contexto de situação ou de uso, quando é descodificado pelo ouvinte ou leitor. Na situação de comunicação oral há coincidência destes dois contextos. Em contrapartida, o texto escrito tem de integrar um contexto próprio para tornar possível a sua leitura. De todas estas diferenças da situação de comunicação decorrem implicações importantes ao nível da produção escrita do texto, que exige a quem escreve a antecipação de um leitor ausente, a quem foi preciso fornecer um certo volume de informação imprescindível à compreensão da mensagem. Para além destes aspectos, há outros que ganham importância ao nível do contexto escolar. Assim, ao falarmos destes dois códigos, oral e escrito, ocorre-nos chamar aqui o conceito de variação linguística, seguindo de perto a visão dada por Gagné (1983:464) 8 Citados por Carvalho (1999:45) CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 19 referindo-se à língua francesa, mas que podemos também adaptar em relação ao Português. Para este autor, numa língua há numerosas variações que permitem aos falantes usar formas linguísticas diferentes para dizerem o mesmo: “La langue française ne constitue pas un tout homogène. Au contraire, elle présente de nombreuses variations de sorte qu’il y a rarement une seule façon d’exprimer la même chose. Pour exprimer une même réalité, il existe plusieurs variantes, c’est-à-dire des formes linguistiques différentes qui véhiculent le même sens. Ces variations tiennent d’abord aux différences entre le français écrit et le français parlé et ce dernier présente à son tour des variations d’ordre linguistique, géographique, social ou de registre”. Estas variações dos dois códigos têm necessariamente de ser tidas em consideração no contexto pedagógico, pelas possibilidades de expressão que permitem aos falantes. Sobre esta questão, há autores que alertam para a importância do professor ter conhecimento dos usos e da estrutura da linguagem oral, bem como da variação linguística na análise dos textos escritos dos alunos. Porque, ao produzir o texto, a criança tende a transpor para a escrita as suas expressões da modalidade oral e as suas experiências de fala. A escola tem tido, desde sempre, alguma preocupação com a variação do léxico, essencialmente, no que respeita o enriquecimento estilístico da expressão linguística dos alunos (Gadet, 1992:37), passando, talvez, essa preocupação a ser mais forte quando se trata da produção escrita do que em relação ao discurso oral, como advoga Gagné (1983:479). Estudos realizados mostram que o código oral espontâneo regista as mais altas frequências, quer nas palavras gramaticais, quer num reduzido número de itens lexicais muito polissémicos (Pereira & Garcia, 1994:43). Estas autoras, num estudo por elas realizado, constataram a observância de uma certa regularidade nas variações encontradas, se bem que também confirmaram que o código escrito apresenta uma maior variação lexical em relação ao código oral9. Estas diferenças levam a tratamento diferenciado dentro do contexto da sala de aula e em especial da disciplina de Português. Não é por acaso que o discurso oral goza de uma certa hegemonia nas práticas pedagógicas na sala de aula. Esta hegemonia surge com a linguística moderna, que advoga a primazia do estudo da linguagem oral, em oposição à gramática tradicional, 9 Cf Pereira & Garcia (1994:51-52). CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 20 por esta conceber a língua proveniente da linguagem literária. Mais recentemente, a sociolinguística, a psicolinguística e a análise do discurso, fazendo uso de dados contextualizados, vieram permitir uma comparação efectiva da fala e da escrita. O facto de falar ser a forma mais directa de exprimir o pensamento e a expressão oral da própria organização mental (Reis e Adragão, 1992:39), é também um dos meios mais imediatos que o professor tem para ajudar o aluno a pensar e a consciencializar-se do seu próprio pensamento, no entanto, é por meio da produçãoescrita que o aluno materializa o seu pensamento. Estudos realizados sobre o desenvolvimento da linguagem têm mostrado que o género do texto condiciona o grau de complexidade sintáctica e, além disso, a sintaxe do escrevente é sensível à proximidade psicológica do receptor do texto, sendo que quanto mais distante for o leitor, maior será a complexidade sintáctica do texto escrito. Por outro lado, estudos feitos por Britton mostram que o género expressivo (discurso em primeira pessoa) é, sobretudo, a fala transcrita, sendo neste género que a criança começa por escrever, pese embora a escrita expressiva ser diferente da fala. Na fala há uma situação presencial, com reacção imediata de ambas as partes, enquanto a escrita é um acto solitário e o escrevente tem de se preocupar com o seu virtual leitor e o intervalo temporal. Para este autor a relativa isomorfia entre fala e escrita é determinada pelo género, maior para o género expressivo e menor para o género referencial. São, por conseguinte, as condições de produção que fazem com que estas duas modalidades se distanciem (Kato, 1987:25-26). Na década de setenta eclodiu a “ moda do oral”, cujos exageros levaram a que hoje se reconheça a importância do regresso da escrita à sala de aula. No entanto, só uma reflexão sobre o funcionamento dos dois discursos superará esta “concorrência”10, porque tanto o discurso oral como o discurso escrito apresentam diferenças significativas quer a nível organizacional, estrutural e de conteúdo. Dadas as diferenças entre estes dois códigos tem a escola de encontrar formas inovadoras de coexistência, sem hegemonizar um em detrimento do outro, para que o desenvolvimento da competência linguística, nos seus diferentes domínios, se realize com sucesso. Saber como se processa a evolução das estruturas sintácticas na produção escrita de crianças e adolescentes é o assunto que iremos tratar a seguir. 10 Para aprofundar a oposição entre estes dois modos de enunciação ver Fonseca, F.I. (1994:110-111). CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 21 2.1. A evolução das estruturas sintácticas no texto escrito Como vimos no ponto anterior a linguagem escrita reveste-se de características muito peculiares quando comparada com a linguagem oral. As suas diferenças actuam em diferentes níveis: físico, formal, organizacional, estrutural e funcional. As características do discurso escrito advêm, em parte, do facto da recepção do texto escrito se dar, normalmente, num momento diferente e posterior ao da sua emissão. Quer isto dizer, que o emissor vai ter tempo para burilar a sua mensagem, reforçando-a e reformulando-a as vezes que for necessário para a tornar clara e limpa de ambiguidades. Consequentemente, e na opinião de Carvalho (2003:28) “isso vai reflectir-se a nível da organização do discurso e das estruturas gramaticais predominantes”. Sendo o discurso oral caracterizado pela espontaneidade, nele são comuns as repetições, as frases soltas e muitas vezes sem ligação, as frases coordenadas sobre as subordinadas, o que leva a considerá-lo um discurso com menor grau de estruturação do que o discurso escrito. Neste, e devido à sua natureza indeferida, nota-se menor redundância, maior grau de densidade lexical e variedade vocabular. A articulação das frases faz-se essencialmente pelo uso da subordinação, sendo a organização do texto muito maior. Isto resulta do facto do texto escrito poder ser pensado, produzido e reformulado com tempo. Por outro lado, o carácter constante do texto escrito permite ao receptor/leitor ter mais tempo e mais liberdade na sua descodificação. A linguagem escrita requer também uma certa capacidade de abstracção e o domínio de algumas relações de tempo e de espaço, visto que o acto comunicativo ocorre na ausência do seu referente e é dirigido, grande parte das vezes, a um interlocutor ausente. Vygotsky (1979)11 considera a linguagem escrita como a forma de discurso mais elaborada, dado que a comunicação é conseguida através do recurso exclusivo às palavras e suas combinações, devido à falta de apoios situacionais. A aprendizagem da linguagem escrita obriga a criança à compreensão não apenas do funcionamento do sistema alfabético, mas exige-lhe certos mecanismos intelectuais, certos padrões de raciocínio, que só se adquirem na fase operacional-concreta 11 Citado por Carvalho (2003:29). CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 22 (capacidade de inclusão de classe, classificação múltipla, seriação, ordenação, orientação e conservação)12. Na fase inicial da aprendizagem, a criança apresenta algumas dificuldades em actividades de comunicação escrita, porque na opinião de Carvalho (2003:31): “Há todo um conjunto de aspectos que envolvem a representação de imagens mentais, o domínio dos padrões estruturais e organizacionais do discurso, a consciencialização das relações espacio-temporais com o referente, que condiciona a expressão escrita no momento em que a criança nela é formalmente iniciada”. A iniciação ao acto de escrita é de tal forma demorado que leva dezoito vezes mais tempo que a iniciação à actividade oral,13 o que demonstra bem a complexidade deste tipo de linguagem. Para Martlew (1983)14 na comunicação escrita devem ser aplicados procedimentos cognitivos, com a consciencialização dos aspectos nela envolvidos. A criança depois de ter autonomizado aspectos relativos a operações consideradas de nível inferior (ortografia, pontuação, delimitação de frase), deve passar para operações de nível superior, que dizem respeito à organização do discurso e aos objectivos do acto de comunicação. Esta autora considera que o acto da escrita tem de ser visto como um processo com vários estádios: em primeiro lugar, o conhecimento do assunto; em segundo, a diferenciação, selecção, avaliação do material e estruturação e por último, a tradução para a representação linguística, apelando a opções sintácticas e semânticas. Cooper e Matsuhashi (1983)15 consideram o acto de escrever como um processo psico-linguístico que apela à participação activa da memória e da consciência na tomada de decisões no seguimento de um plano e organização do discurso. Para estes autores, o plano divide-se em nove fases: formulação, estruturação, colocação, direcção, ligação, transformação, apresentação, armazenamento e transcrição. No desenvolvimento da comunicação escrita a criança vai autonomizando tarefas consideradas mais primitivas (as últimas fases do plano), para poder dar mais atenção às outras tarefas de nível mais profundo (fases iniciais do plano). Para Martlew (1983) a evolução da escrita dá-se à medida que a criança passa de um nível concreto para a consciência lógica que é visível no aumento da complexidade sintáctica. Falhas na produção escrita, em especial na construção e articulação das frases no texto, podem ser observadas em escritos tanto em crianças como adolescentes. Analisar 12 Sequeira (1989), citado por Carvalho (2003:30). 13 Jean Simon (1973), citado por Carvalho (2003:31). 14 In Carvalho (2003:32). 15 Citados por Carvalho (2003:33). CAPÍTULO I – A Escrita: complexidades de um processo _____________________________________________________________________________ 23 a evolução das estruturas sintácticas no texto escrito foi o propósito de uma investigação realizada por Carvalho (1989). Neste estudo transversal, foram testadas crianças entre os sete/oito e entre os treze/catorze anos de idade16, no qual se procurou estabelecer uma relação entre a evolução dessas estruturas e o desenvolvimento
Compartilhar