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A EVOLUÇÃO DO CONHECIMENTO GEOGRÁFICO PARADIGMAS DA GEOGRAFIA TRADICIONAL: A OBRA DE RATZEL E O EXPANSIONISMO ALEMÃO Alvacy Lopes do Nascimento Durante a elaboração das obras de Humboldt e Ritter, na primeira metade do século XIX, vimos que a unificação do Estado alemão ainda estava por se realizar, de forma que grande parte dos temas e teorias explorados na organização científica da Geografia eram reflexos dos problemas vivenciados pela sociedade alemã. Em vista disso, ressalta Pereira (1989, p. 106) que a Geografia nasce na Alemanha para atender a duas necessidades básicas: a unificação do seu território e a posição do país no mundo. Ela já surgia politicamente comprometida, ainda que fortemente marcada pelo iluminismo, pelo romantismo e pelo idealismo, que caracterizavam a filosofia alemã. Em 1871, a unificação da Alemanha estava concretizada. A Geografia, integrada nos meios universitários como uma ciência sistematizada, viria a se estender a todo o ensino escolar. Mas, se os problemas internos do país estavam resolvidos, afirmando-se a Alemanha como Estado-Nação, com o poder centralizado e um governo forte e militarizado, a questão externa não estava resolvida, ou seja, as pretensões expansionistas estavam por se concretizar, alimentadas pelo desenvolvimento do país. Entre as guerras de conquista visando à expansão do império, destacou-se a franco-prussiana, em 1870. Nesta, a França perde para a Alemanha (ainda Prússia) Alsácia e Lorena, dois territórios economicamente importantes por possuírem as maiores reservas de carvão. O capitalismo já se encontrava em sua fase industrial ou imperialista, mas problemas políticos e econômicos internos vividos pela Alemanha retardaram o projeto de colonização desse país, deixando-o em grande desvantagem em relação à Inglaterra e à França. Isso ficou bem evidente na partilha colonial entre as potências européias, visando aos seus interesses econômicos. Para dar andamento a seus planos de expansão, a Alemanha precisava de um substrato científico com conotações ideológicas, e mais uma vez a Geografia deu esse respaldo. As formulações geográficas de Humboldt e Ritter, inspiradas nos ideais iluministas, para serem operacionalizadas, objetivando os projetos do expansionismo alemão, teriam que sofrer as influências do Positivismo, mais adequado, naquele momento, aos interesses da burguesia. A obra de Friedrich Ratzel (1844-1904), professor de Geografia na Universidade de Lípsia, dá o apoio científico a esses projetos. Assim, em 1882, ele publica seu principal livro: Antropogeografia: fundamentos da aplicação da Geografia à História. Ratzel (assim como Humboldt) viajou bastante para dar embasamento empírico ao seu trabalho geográfico, tendo em vista, em seu caso, a relação homem/natureza. Atendia, desse modo, a uma exigência positivista, que priorizava o método indutivo na elaboração de trabalhos científicos. 2 Influenciado pela obra de Charles Darwin, A evolução das espécies, Ratzel, ao percorrer a Europa e as Américas do Norte e Central, procurava explicações que justificassem a concentração demográfica em certos pontos da superfície da Terra, examinando, particularmente, a influência que as condições naturais exercem nas migrações humanas, na distribuição populacional, nos indivíduos e na sociedade. Segundo Ferreira & Simões, ele dá grande destaque em seu trabalho a essa influência, que se refletiria tanto no corpo quanto nas condições psicológicas dos indivíduos e, conseqüentemente, nas sociedades, “tendo concluído, que o homem vivia sujeito às leis da natureza e que as diversas culturas resultavam das condições do ambiente natural” (FERREIRA & SIMÕES, 1986, p. 69). Desse modo, a constituição social, a riqueza e o nível de progresso material seriam decorrentes das condições naturais, dos recursos disponíveis no território ocupado. Essa disponibilidade favoreceria ou não a expansão de um povo ou o seu contato maior ou menor com outros povos. O trabalho de Ratzel é um desdobramento da abordagem de Ritter no que concerne à ênfase que ele dá, na Geografia, às relações do homem com o ambiente natural, mas com influências filosóficas diferentes. Diz Moreira (1988, p. 29), que “Friedrich Ratzel já existe embrionariamente em seus antecessores, mais visivelmente em Ritter. Todavia, é com ele que o comprometimento da Geografia com os desígnios imperialistas da burguesia alemã mostrar-se-á com maior transparência”. A identificação de sua obra com a de Humboldt é bem menor, já que este enfatizou os fenômenos naturais numa abordagem global, enquanto a de Ritter ressalta a relação homem–natureza, daí extraindo ilações de cunho antropocêntrico. Na Antropogeografia, o Estado − por suas relações com o território – é uma categoria de grande relevância, pode-se dizer a de maior destaque, visto como um guardião deste, por isso seus interesses estariam acima da sociedade. Para Ratzel, o território representa as condições de trabalho e existência de uma sociedade. A perda de território seria a maior prova de decadência de uma sociedade. Por outro lado, o progresso implicaria a necessidade de aumentar o território logo, de conquistar novas áreas (MORAES, 1993, p. 56). Deduz-se, prontamente, desta assertiva, o interesse do geógrafo alemão em justificar, através de sua teoria geográfica, as pretensões expansionistas do Estado germânico. E, para dar maior embasamento à sua tese, Ratzel, inspirado nas teorias evolucionistas, especialmente naquela contida na obra de Darwin, elabora o princípio do espaço vital (um dos pontos mais conhecidos do seu trabalho), segundo o qual as potencialidades de progresso de uma sociedade dependeriam de uma relação de equilíbrio entre sua capacidade de atender às próprias necessidades e os recursos naturais disponíveis em seu território, do que dependeria a urgência ou não de expandi-lo. O comprometimento de sua obra com a questão espacial e o avanço imperialista pode ser avaliado neste trecho de suas formulações: “Semelhante à luta pela vida, cuja finalidade básica é obter espaço, as lutas dos povos são quase sempre lutas pelo mesmo objeto. Na história moderna, a recompensa da vitória sempre foi – ou tem pretendido ser – um proveito territorial” (SODRÉ, 1989, p. 50). 3 Observa-se, também na passagem acima, assim como em grande parte da Antropogeografia de Ratzel, o esforço teórico para justificar a necessidade de certos povos em expandir seu território, sob pena de entravar o progresso, ou, até mesmo, ter sua sobrevivência ameaçada. Percebem-se as diferenças entre a sua obra e as de seus antecessores, Humboldt e Ritter, já que estes se apoiaram em outros parâmetros filosóficos, para formular suas teses. Comparando-se a obra de Ratzel com a de Ritter, da qual ela é um desdobramento, inclusive pelos princípios etnocêntricos e de dominação que ambas contêm, nota-se que, em Ritter, os argumentos são atenuados por ponderações teleológicas e idealistas enquanto em Ratzel, a argumentação, impregnada da visão naturalista-positivista, tem a crueza da lógica do avanço imperialista-capitalista. Na Antropogeografia, coerentemente com a lógica que dá sustentação ao discurso do seu autor, o objeto da Geografia é “o estudo das influências que as condições naturais exercem sobre a evolução das sociedades”. Observe- se que não se fala vagamente na relação homem/natureza, mas sim, nas influências que a natureza exerce sobre as sociedades, como que sugerindo a prevalência dessas influências, sua determinação. Sua metodologia associa a observação com a descrição, mas procurando, também, situar os lugares ou as regiões na perspectiva de uma conexão mundial. Possivelmente, na tentativa, através da dedução, de estabelecer leis gerais na Geografia Humana, nas quais fenômenos locais ou particulares pudessem ser enquadrados, aprioristicamente.É oportuno assinalar que o Positivismo, cuja influência foi decisiva na formação dos paradigmas da ciência tradicional, preconizava a descoberta de leis gerais, que determinariam os fenômenos naturais e os fenômenos humanos. Além disso, os positivistas não admitiam separação entre ciências naturais e ciências humanas, o que implicaria emprego de recursos metodológicos assemelhados para esses dois tipos de ciência, garantindo a ambos o mesmo grau de confiabilidade em suas elaborações. Afinal, para os positivistas (ou para os mais radicais, como o próprio Comte), todos os fenômenos naturais e humanos dependeriam de leis físico-químicas, ponto de vista que, evidentemente, provocou muita polêmica no meio das nascentes ciências sociais. A abordagem naturalista da proposta de Ratzel, inspirada nas teorias evolucionistas, particularmente na obra de Darwin, é uma tentativa de enquadrar a Geografia, nas diretrizes positivistas. Tem raízes históricas a doutrina do determinismo geográfico, segundo a qual o desenvolvimento das sociedades dependeria das condições naturais, que as teorias de Ratzel suscitaram, provocando muitas polêmicas e críticas da Escola Francesa, até à primeira metade do século XX. Sodré (1989, p. 37) diz que Hipócrates, Aristóteles, Heródoto e outros, na Antigüidade, tinham idéias deterministas. Na Idade Média, os árabes, herdeiros da cultura grega, também tinham tais idéias. No final da Idade Moderna, Montesquieu, em seu famoso livro O Espírito das Leis, faz uma profunda associação entre os elementos naturais (destacando os climas) e diferentes povos do mundo, relativamente à riqueza e à pobreza, aos temperamentos, aos costumes, à moral, ao caráter, às virtudes. No trabalho de sistematização da Geografia como ciência, já se encontram na obra de Ritter, conforme Moraes, vários trechos em que o determinismo é, de 4 algum modo, cogitado explicitamente: [...] o processo de desenvolvimento da humanidade é tributário da existência de uma harmonia com a organização da Terra [...] pondo de lado a questão das origens étnicas [...] podemos ver a influência exercida pelo meio natural como um fator que contribui para condicionar o desenvolvimento da personalidade dos povos; [...] Os caracteres da natureza regional diferenciados, influindo na guerra e na paz, no indivíduo e na coletividade, na barbárie e na civilização. [...] a personalidade dos povos é influenciada pelo fator meio natural, é uma segunda natureza, [...] as condições naturais são o motor da história humana, determinando o destino do homem e da sociedade. [...] O fato de os continentes possuírem superfícies diferentes explica o poderio dos povos e a possibilidade que lhes é dada de dominar (MORAES, 1989, p. 187-189). Ritter, como se pode observar pelos trechos acima, apesar de ter elaborado sua proposta de Geografia com influências filosóficas diversas das de Ratzel (o primeiro, do idealismo kantiano, o segundo, do naturalismo), tinham ambos sentimentos etnocêntricos: para eles, a civilização européia seria superior às demais, já teria avançado mais rápido e conquistado grau mais elevado de progresso. Visão positivista do mundo, perfeitamente concorde com os interesses imperialistas europeus e, particularmente, com os da Alemanha. As formulações geográficas de Ratzel também deram respaldo à Geopolítica, um ramo do conhecimento voltado ao estudo da dominação dos territórios pelos Estados; portanto, diretamente ligado aos interesses imperialistas. Seus teóricos, quase sempre militares, preocupavam-se não apenas com a defesa e manutenção dos territórios ocupados por um povo, de que se constitui um Estado- Nação, mas iam além, postulando sobre a necessidade de se conquistar mais territórios ou até de dominar os de outros povos. Por seu desdobramento e suas implicações bélicas, chegando até a influenciar os projetos nazistas, o termo Geopolítica foi proscrito dos meios científicos depois da Segunda Guerra Mundial. Mas, na atualidade, vem sendo resgatado com conotações não comprometedoras do ponto de vista científico, o que se justifica, porquanto, mesmo num mundo globalizado, a questão territorial ainda suscita graves problemas, haja vista o eterno conflito entre palestinos e judeus. O encaminhamento lógico-dedutivo, que principalmente Ratzel e seus discípulos procuraram dar à existência de uma possível vinculação determinista entre o meio natural e as características das sociedades humanas, parece ter sido também uma tentativa para se estabelecer leis gerais na Geografia Humana, segundo o modelo de ciência elaborado pelo Positivismo. Aliás, a descoberta de leis gerais foi uma das dificuldades da Geografia Tradicional quanto aos fenômenos humanos, sendo mais fácil (compreensivelmente) em referência aos fenômenos físicos. Daí, o grande desenvolvimento dos trabalhos com enfoques locais, regionais, valendo-se do método indutivo. A obra Ratzel, apesar de ter provocado muita polêmica, por suas implicações políticas e por suas concepções acerca da relação do homem com a natureza, ensejando a elaboração da doutrina do determinismo geográfico, tem o mérito de ter sido a primeira proposta científica de Geografia Humana. 5 Em seu trabalho, o homem é sempre focalizado como um ser intimamente ligado à natureza, inevitavelmente sujeito às suas influências, mas mediadas pelas condições históricas e econômicas. Mediação que seus discípulos mais radicais minimizaram ou ignoraram em favor da tese determinista. Sua abordagem sugere a unidade entre a Geografia Física e a Humana, contrariando a separação entre elas, que continua sendo um problema até hoje, mesmo depois da renovação teórico-metodológica da ciência geográfica. Por sua visão unitária da relação homem/natureza, Ratzel foi um precursor da Escola ambientalista, que, embasada na Ecologia, desenvolveu-se bastante em nosso tempo, sem o radicalismo determinista. (Texto extraído de NASCIMENTO, Alvacy Lopes do. A evolução do conhecimento geográfico: da antiguidade à era da globalização. Maceío: Edufal, 2003) Referências FERREIRA, Conceição Coelho ; SIMÕES, Natércia Neves. A evolução do pensamento geográfico. Lisboa: Gradiva, 1986. MORAES, Antônio Carlos Robert. Geografia: pequena história crítica. 12.ed. São Paulo: HUCITEC, 1993. MOREIRA, Ruy. O que é geografia. 9. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. PEREIRA, Raquel Maria de Amaral. Da geografia que se ensina à gênese da geografia moderna. Florianópolis: Editor da UFSC, 1989. SODRÉ, Nelson Wernech. Introdução à Geografia: geografia e ideologia. 7. Ed.Petrópolis: Vozes, 1989.
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