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1 Khilver Doanne Sousa Soares & IESC VI Síndromes Dispépticas Também conhecida como “má digestão”, é caracterizada pela presença recorrente ou persistente de dor ou desconforto epigástrico – obviamente não relacionado ao uso de AINES. Pode vir acompanhado de sensação de saciedade precoce, náuseas, vômitos, pirose, regurgitação e excessiva eructação. A dispepsia pode ser classificada em: Dismotilidade: vômitos 1x/mês ou mais, distensão abdominal, dor agravada por alimentação, dor aliviada por eructações e anorexia; Úlcera: dor aliviada por alimentação, antiácidos, dor antes da alimentação e dor noturna que faz despertar; Refluxo: pirose 1x/semana ou mais e regurgitação ácida 1x/semana ou mais. Etiologia Os possíveis diagnósticos etiológicos são: Dispepsia funcional: 60% dos casos, caracterizada por sintomas presentes por pelo menos 3 meses + ausência de alterações estruturais; Úlcera péptica: a bactéria Helicobacter pylori está associada à sua patogênese; Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE). Obs.: é importante lembrar que sintomas dispépticos podem ser causados por AINES, antagonistas do cálcio, bifosfonados, biguanidas, corticoides, nitratos e teofilina. Na endoscopia cerca de 60% dos achados são menores ou nenhuma alteração, 19% é esofagite e os outros dois mais comuns (5% de prevalência cada) são úlcera gástrica e duodenal. Anamnese & Exame Físico É importante direcionar a história para os sinais de alerta e sintomas que alertem para diagnósticos diferenciais da síndrome dispépticas (causas cardíacas ou biliares). Lembrar de diferenciar a frequência dos sintomas e sua correlação com hábitos alimentares (bebidas alcoólicas, tabagismo, alimentos específicos, refeições em excesso), pois nesses casos a sintomatologia é comum e não motivo de uma patologia a ser medicada. Ok, mas quando indicar uma endoscopia digestiva alta? Imediatamente quando houver sangramento gastrointestinal significativo e eletivamente quando houver uma das seguintes apresentações: disfagia progressiva, perda de peso involuntária, massa epigástrica, anemia ferropriva, vômitos persistentes, persistência dos sintomas após tratamento empírico com IBP e erradicação de H. pylori. Importante: embora os sintomas não sejam bons preditores para patologias orgânicas, as pessoas os contextualizam de acordo com suas crenças e experiências pessoais. O exame físico geralmente é normal ou com dor discreta na região epigástrica. A presença de massas abdominais pode indicar malignidade. Exames Complementares Os mais comuns são a Endoscopia Digestiva Alta (EDA) e testes para detecção de H. pylori. O padrão ouro é a EDA para diagnóstico de lesões estruturais da dispepsia. Só está indicada 2 Khilver Doanne Sousa Soares como abordagem inicial em casos que há sinais de alerta para exclusão de doença orgânica grave. Obs.: indivíduos com + de 55 anos e dispepsia de início recente ou contínua não apresentam associação com CA gastrintestinal à endoscopia, logo, solicitar o EDA nessa faixa etária apenas quando os sintomas dispépticos persistem. A repetição da EDA está indicada somente naqueles que apresentam quadro pior que o do exame e intervenção anterior. Obs.: IBPs e antagonistas H2 devem ser suspensos 2 semanas antes da realização da EDA – pode haver diminuição da sensibilidade para detecção do H. pylori. E a detecção do H. pylori sem a realização da EDA? As técnicas mais utilizadas são o teste respiratório com 13C ureia e o exame sorológico. O primeiro apresenta sensibilidade de 88 a 95% e especificidade de 95 a 100%, sendo incomuns resultados falso-positivos. A sorologia detecta anticorpos IgG específicos para H. pylori. É um exame mais sensível (90-100%) e de menor custo, mas permanecerá positivo mesmo após a erradicação da bactéria. Tratamento A estratégia inicial na dispepsia não investigada é o tratamento empírico com IBPs, que apresentou melhor resposta e custo- efetividade quando comparado aos antagonistas H2 e antiácidos. A erradicação da bactéria aumenta a taxa de melhoras dos sintomas. Como os exames para detecção do H. pylori ainda são poucos disponíveis, e sua prevalência no Brasil é muito alta, uma segunda alternativa é o tratamento empírico para erradicação da bactéria. O esquema mais recomendado para erradicação do H. pylori é amoxicilina, 1 g, e claritromicina, 500 mg, por 7 dias, em duas tomadas diárias, associadas ao IBP em dose plena. A efetividade é estimada em 80 a 85%. Apesar de não ser clara a associação entre tabagismo, sobrepeso, dieta inadequada e ingestão de álcool e café com dispepsia, sugere- se recomendar modificações nos hábitos de vida. Os pacientes em tratamento prolongado devem tentar reduzir o uso das medicações, diminuindo primeiro as doses e depois passando a fazer uso livre conforme a demanda até o retorno ao autocuidado, com uso somente de antiácidos como sintomáticos. Quando Referenciar Aqueles com achados suspeitos de malignidade à endoscopia deverão ser referenciados ao especialista; se não houver EDA na APS as pessoas com dispepsia e indicação do exame são referenciadas também. -------------------------------- Doença do Refluxo Gastroesofágico Define-se por doença do refluxo gastresofágico (DRGE) a presença de sintomas, lesões teciduais, ou ambas as situações, resultantes de refluxo do conteúdo gástrico para o esôfago. Também pode ser definido como: Uma afecção crônica, decorrente do fluxo retrógrado de parte do conteúdo gastroduodenal para o esôfago e/ou órgãos adjacentes a ele, acarretando um espectro variável de sintomas e/ou sinais esofagianos e/ou extraesofagianos, associados ou não a lesões teciduais. Estima-se que nos países ocidentais a pirose seja a queixa mais comum relacionada ao TGI. Estudos comprovaram a associação da doença com o sexo feminino e aumento da idade e estresse. A patogenia está correlacionada à barreira existente na junção esofagogástrica, que permite a passagem dos alimentos para o estômago e dificulta o refluxo do conteúdo gástrico para o 3 Khilver Doanne Sousa Soares esôfago. Uma das influências é o esfíncter esofágico inferior (EEI), localizado na porção inferior do esôfago. O EEI é constituído por musculatura lisa especial, capaz de manter uma pressão mais elevada do que a intragástrica, habitualmente é um tônus de 15 a 30 mmHg, que relaxa com a chegada da onda peristáltica desencadeada pela deglutição. No entanto o EEI também apresenta relaxamento transitório, frequentemente associado ao RGE. A ineficácia do mecanismo de barreira na junção esofagogástrica é o principal fator patogênico do RGE. As teorias dominantes para explicá-la são: Relaxamento transitório do EEI sem anormalidade anatômica concomitante; Alteração anatômica da junção esofagogástrica, provavelmente associada à hérnia hiatal; Hipotonia do EEI, sem alteração anatômica associada. A gravidade da lesão da mucosa esofágica é determinada pelo tempo que o esôfago fica exposto ao ácido e pelo pH do material refluído do estômago. Os sintomas do RGE surgem quando o equilíbrio entre os fatores agressivos e defensivos desequilibra em favor aos primeiros. As complicações + frequentes do RGE são: esofagites leves, moderadas e graves. Suas classificações endoscópicas variam entre os parâmetros internacionais de Savary-Miller (grau 1 - leve; graus 2 e 3 - moderada; graus 4 e 5 - grave) e de Los Angeles (grau A - leve; grau B - moderada; graus D e E - grave). Portadores de DRGE a longo prazo podem apresentar complicações como esôfago de Barrett (EB) – pode evoluir para adenocarcinoma -, estenose péptica e hemorragia. Anamnese & Exame Físico A história clínica do paciente deve ser voltada às principais manifestações clínicas da DRGE (pirose e regurgitação ácida). A pirose se define como sensação de queimação retroesternal que se irradia domanúbrio do esterno à base do pescoço, podendo atingir a garganta. Ocorre geralmente 30 a 60 minutos após a ingesta alimentar. A pirose pode ter localização baixa, irradiando-se para a região epigástrica. A frequência e duração dos sintomas é importante. Pessoas com sintomas de frequência mínima de duas vezes por semana, há cerca de 4 a 8 semanas, devem ser consideradas possíveis portadoras da DRGE. Importante: a respeito da correlação entre a DRGE e o EB e adenocarcinoma de esôfago é maior, quando maior o tempo de duração dos sintomas! ATENÇÃO às manifestações atípicas / de alarme: Esofagianas: dor torácica sem evidência de enfermidade coronariana (dor torácica não cardíaca); Pulmonares: asma, tosse crônica, hemoptise, bronquite, bronquiectasia e pneumonias de repetição; Otorrinolaringológicas: rouquidão, pigarro (clareamento da garganta), laringite posterior crônica, sinusite crônica, otalgia; Orais: desgaste do esmalte dentário, halitose e aftas. Exames Complementares A investigação complementar deve ser solicitada nas seguintes condições: Ausência de resposta ao tratamento; Manifestações de alarme: disfagia, odinofagia, anemia, hemorragia digestiva e emagrecimento, história familiar de câncer, náuseas e vômitos, dor torácica, além de sintomas de grande intensidade e/ou de ocorrência noturna; 4 Khilver Doanne Sousa Soares Sintomas crônicos (lembrar-se da possibilidade de EB); Necessidade de tratamento continuado. Endoscopia Digestiva Alta É o método + utilizado para avaliar RGE. O exame endoscópico apresenta uma sensibilidade de cerca de 60% e é essencialmente morfológico: identifica as alterações causadas pelo refluxo, presença de hérnia hiatal ou exclui outras enfermidades (ainda permite realização de biópsia da mucosa – necessário para diagnóstico de EB). Obs.: a EDA é o método mais sensível e específico para o diagnóstico de esofagite erosiva, mas não de refluxo. A ausência de alterações endoscópicas não exclui o diagnóstico de DRGE. pHmetria Prolongada de 24 Horas A pHmetria prolongada monitora por 24 horas o pH intraesofágico e considera-se RGE quando ocorrer queda do pH abaixo de 4 por + de 4% do tempo total da duração do exame. É um exame de boa reprodutibilidade e sensibilidade específica de 96% para DRGE. Também é utilizada para confirmar presença de RGE em pacientes com sintomas persistentes e sem lesões esofágicas à endoscopia, dor torácica não cardíaca, manifestações pulmonares ou da via aérea superior associadas ao RGE. É considerada padrão ouro para diagnóstico da DRGE! Há indicação de pHmetria de 24 horas para: Pessoas com sintomas típicos de DRGE que não apresentam resposta satisfatória ao tratamento com inibidor da bomba de prótons (IBP) e que não apresentam dano à mucosa esofágica ao endoscópio; Pessoas com manifestações atípicas extraesofágicas sem presença de esofagite. Esofagomanometria É o registro das pressões geradas no interior do esôfago. Não tem papel diagnóstico no RGE, mas é utilizada para avaliar a peristalse e a competência do EEI. A alteração + característica é a redução da pressão de repouso do EEI a valores abaixo de 10 mmHg (abaixo de 6 mmHg há alta especificidade para o diagnóstico da doença). Atualmente sua principal indicação se dá quando se precisa realizar a investigação de peristalse ineficiente do esôfago em pessoas com indicação de tratamento cirúrgico. Exame Radiológico Contrastado do Esôfago Não está indicado na rotina de investigação da DRGE, pois apresenta baixa sensibilidade, em particular nos casos de esofagite leve. As principais informações que o exame radiológico pode oferecer se referem à avaliação da anatomia esofágica. Tratamento Clínico O diagnóstico do RGE é clínico e objetiva o alívio dos sintomas, cicatrização das lesões e a prevenção de recidivas e complicações. Obs.: é fundamental que a pessoa saiba que é portadora de uma enfermidade crônica e que haja parceria com o médico para que as medidas possam ser adotadas. Em pessoas cujos únicos (ou predominantes) sintomas sejam pirose e/ou regurgitação, não se faz investigação complementar: são tratados empiricamente e se houver melhora do quadro, assume-se que tenham RGE. Pacientes com + de 40 anos, manifestações típicas de frequência inferior à 2x/semana a menos de 4 semanas, recebem conduta inicial terapêutica com IBPs em dose plena + medidas 5 Khilver Doanne Sousa Soares comportamentais. Se houver resposta clínica, assume-se o diagnóstico de RGE. Medidas Comportamentais no Tratamento do RGE O RGE inclui TODOS os sintomas e formas de dano tecidual secundários do refluxo do conteúdo gástrico para o esôfago; a esofagite de refluxo se refere a UM GRUPO DE PESSOAS COM RGE que apresentam alterações histopatológicas da mucosa; e por fim o ácido gástrico como elemento-chave no desenvolvimento de sintomas e lesões na mucosa em pessoas com DRGE. A intervenção farmacológica + comum em todas estas é o uso de antagonistas de H2 ou IBPs. Na DRGE o tratamento de primeira escolha são os IBPs: inibem a produção de ácido pelas céls parietais do estômago e reduzem a agressão ao esôfago. Os IBPs em dose plena devem constituir o tratamento de escolha inicial por período de 4 a 8 semanas; o omeprazol é o IBP + empregado no país. Os antagonistas dos receptores H2 da histamina e os procinéticos são considerados medicações de segunda escolha: bloqueiam receptores da histamina nas céls parietais reduzindo a secreção de ácidos. Os mais usados são a ranitidina, a famotidina, a cimetidina e a nizatidina. Quanto aos procinéticos, aceleram o esvaziamento gástrico, mas não exercem ação sobre os relaxamentos transitórios do EEI. Os + empregados são a metoclopramida e a domperidona. Atualmente, os bloqueadores da bomba de prótons são considerados como os mais eficazes para o tratamento dos sintomas, a cura da esofagite e a prevenção da recorrência do RGE! Se houver resposta clínica insatisfatória, indica-se a realização de EDA; se não for visualizado nenhuma alteração da mucosa, a pHmetria de 24 hrs pode ser realizada. Fármacos empregados no tratamento do refluxo gastroesofágico; Antiácidos ou alcalinos (compostos de hidróxido de alumínio e/ou hidróxido de magnésio); Bloqueadores dos receptores H2 da histamina: cimetidina, ranitidina, famotidina e nizatidina; IBPs: omeprazol, lansoprazol, pantoprazol, rabeprazol; Procinéticos: cisaprida, domperidona e metoclopramida. Quanto às atividades preventivas e de educação, além de combater o sobrepeso e a obesidade, é importante evitar grandes volumes às refeições e deitar nas primeiras 2 horas seguintes. Algumas 6 Khilver Doanne Sousa Soares pessoas se beneficiam de dormir em uma cama com a cabeceira elevada em 15 cm em média. No controle dos sintomas evitar bebida alcoólica, não deglutir líquidos muito quentes, ingerir um mínimo de líquidos durante ou logo após as refeições, evitar a ingestão de chá-preto e café puro com estômago vazio são de grande auxílio. Fluxograma do Diagnóstico e Tratamento do RGE Cirúrgico É reservado para casos muito específicos. Pode ser considerado nas seguintes situações: Pessoas que não respondem satisfatoriamente ao tratamento clínico, cujo refluxo foi devidamente comprovado; Pessoas para as quais é exigido tratamento de manutenção com IBP, 7 Khilver Doanne Sousa Soares especialmente aquelas com menos de 40 anos de idade; Casos em que não é possível a continuidade do tratamento de manutenção; A cirurgia antirrefluxo pode ser convencional ou laparoscópica (ambas são equivalentes no desaparecimento dos sintomas) e ambas são operações de fundoplicatura. Quando Referenciar Nos casos de EDA com diagnóstico de esofagite de classificações endoscópicas graus 2, 3, 4 e 5 de Savary-Miller ou graus B, C e D de Los Angeles,o médico de família coordena o cuidado da pessoa, por meio da referência e da contrarreferência ao especialista focal (gastrenterologista). Isso pela necessidade de exames + complexos nestes casos e possibilidade das possíveis complicações: EB, estenose esofágica, úlceras e sangramento esofágico. Esôfago de Barrett É definido como a substituição do epitélio estratificado e escamoso do esôfago pelo epitélio colunar com células intestinalizadas ou mistas, em qualquer extensão do órgão. O EB é uma condição secundária à maior exposição da mucosa do esôfago ao conteúdo gástrico. O principal risco potencial de pacientes portadores de EB é o risco de desenvolvimento de adenocarcinoma de esôfago. Não há tratamento eficaz para EB que realize a regressão do epitélio metaplásico! O tratamento visa o controle da sintomatologia. O acompanhamento do EB é realizado através de biópsias endoscópicas. Sem sinais de displasia em 2 biópsias endoscópicas consecutivas? Realizar acompanhamento endoscópico a cada 3 anos; Displasia de baixo grau? Endoscopia anual até que não haja displasia; Displasia de alto grau? Repetição da endoscopia OU intervenção cirúrgica. * Recomendações do American College of Gastroenterology (ACG). Estenose do Esôfago É fundamentalmente uma complicação de resolução cirúrgica. Recomenda-se avaliação prévia do refluxo. A intervenção depende da extensão e localização da estenose + avaliação motora do órgão (esofagomanometria). Úlcera (s) e Sangramento (s) Esofágico (s) Costuma ser lento e insidioso e muitas vezes é responsável por quadros de anemia crônica. O tratamento clínico é a melhor opção terapêutica. _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ _____________________________________________________ GUSSO, Gustavo; LOPES, José Mauro Ceratti; DIAS, Lêda Chaves. Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2019.
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