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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS FERNANDO EDUARDO STRABELLI A IGREJA, A CATEQUESE E A VIDA ÍNTIMA DO COLONO (SÉCULOS XVII E XVIII) Franca 2018 FERNANDO EDUARDO STRABELLI A IGREJA, A CATEQUESE E A VIDA ÍNTIMA DO COLONO (SÉCULOS XVII E XVIII) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Área de Concentração: História e Cultura. Orientador: Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França Franca 2018 Strabelli, Fernando Eduardo. A Igreja, a catequese e a vida íntima do colono (Séculos XVII e XVIII) / Fernando Eduardo Strabelli. – Franca : [s.n.], 2018. 93 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Orientador: Jean Marcel Carvalho França 1. Brasil - História - Período colonial, 1500-1822. 2. Catequese - Igreja Católica. 3. Comportamento sexual. I. Título. CDD – 981.03 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira – CRB8/8773 FERNANDO EDUARDO STRABELLI A IGREJA, A CATEQUESE E A VIDA ÍNTIMA DO COLONO (SÉCULOS XVII E XVIII) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré- requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História e Cultura Social Orientador: Jean Marcel Carvalho França BANCA EXAMINADORA PRESIDENTE: _____________________________________________________________ Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França (UNESP/Franca) 1º EXAMINADOR: __________________________________________________________ Prof. Dr. José Carlos Barreiro (UNESP/Assis) 2º EXAMINADOR: __________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira (UNESP/Franca) Franca, ___ de __________ de 2018 Agradecimentos Agradeço à Fapesp que, por meio de uma bolsa de mestrado (Processo nº 2016/02408- 5), financiou a presente pesquisa, ao meu Orientador, Dr. Jean Marcel Carvalho França, pela inestimável ajuda, e aos colegas do Grupo Temático Escritos sobre o Novo Mundo (Processo nº 2013/14786-6), especialmente à Clara Braz dos Santos, Waslan Araújo Sabóia e Ana Carolina Viotti, sem o auxílio dos quais esta pesquisa não teria sido possível. Grande é a cegueira dos homens mundanos, que se deixam levar da vaidosa vida temporal. Porque estando vendo completarem-se os anos, passarem os meses, correrem as semanas, voarem os dias, contarem- se as horas, em nada disto reparam. e cada vez se metem mais nos gostos e deleites do mundo, como se tivessem por certo que, acabada a vida, sem fazerem penitência, haviam de gozar da bem-aventurança. Nuno Marques Pereira, Compêndio Narrativo [...], p. 251. Resumo A expansão marítima e a colonização das terras americanas, daquelas que viriam a ser denominada Brasil, desde o princípio estiveram intimamente vinculadas à propagação da fé e da moral católicas e da conversão de novas almas para a Igreja de Cristo. Inicialmente, o alvo de tal missionarismo foram os gentios, seres descritos como rudes e ignorantes que, segundo os padres –– jesuítas, sobretudo ––, cedo se mostraram impermeáveis aos ensinamentos da Igreja, incapazes de compreender os princípios da fé católica e avessos a adotar uma conduta moral condizente com tais princípios. Diante dessa barreira, os padres, à medida que as ordens religiosas iam se consolidando na colônia, as cidades litorâneas crescendo e os nativos desaparecendo das zonas habitadas pelos brancos, voltaram suas atenções para os colonos, os quais, diziam os religiosos, levavam uma vida tão pecadora quanto os gentios, com o agravante de que não eram ignorantes do verdadeiro Deus. Era urgente intervir para cristianizar as suas vidas semibárbaras, para salvá-los da perdição eterna, e intervir significava, naquele momento, reformar os seus hábitos, sobretudo aqueles relacionados ao sexo e ao casamento, pois os excessos e a vida a dois em pecado, sem as bênçãos da Igreja, eram regra. Este trabalho pretende oferecer um pequeno esboço deste processo que vai da catequização do gentio à moralização do colono, com especial ênfase para aqueles aspectos da moral relacionados à vida íntima dos colonos, entre os séculos XVII e XVIII. Palavras-chave: Igreja; Brasil colonial; sexo. Abstract The overseas expansion and colonization of American lands, specially of the lands that would be called Brazil, were, since these early days, associated with the spread of the Catholic faith and the conversion of new souls to the Church of Christ. Initially, missions’ targets were the so-called Gentiles, rude and ignorant who, according to the priests – mostly Jesuits –, showed themselves impermeable to the teachings of the Church, disempower the principles of the Catholic faith and averse to adopt a moral conduct consistent with principles. Therefore, the priests, as long as Christian religiosity has become usual in Portuguese settlement, the coastal cities were growing, and the indigenous disappeared from the areas inhabited by the whites, they turned to the attention to the colonists, who, religious said, had a life as a sinner, with the aggravation that they were not ignorant of the true God. It was urgent to intervene to Christianize their half-barbarous lives, to save them from eternal damnation, and, above all, to reform their habits, especially those related to sex and marriage, as the excesses and conjugal life in sin, without the blessings of the Church, were the rule. This dissertation aims to offer an panoramic view of a process that goes from the catechization of the native to the moralization of the colonists, highlighting the moral aspects related to their private life, between the seventeenth and eighteenth centuries. Keywords: Church; Colonial Brazil; sex. Sumário Apresentação ..................................................................................................................................... 8 I. CATEQUIZAR O ÍNDIO OU MORALIZAR O COLONO? ............................................. 10 1.1 Evangelizar o “negro da terra” .......................................................................................... 10 1.2 O redirecionamento da missão ................................................................................................. 22 II. A FORMAÇÃO DOUTRINAL E MORAL DOS COLONOS ........................................ 28 2.1 As casas religiosas e o ensino católico ...................................................................................... 28 2.2 Seminários e recolhimentos ......................................................................................................35 2.3 Leituras devotas ........................................................................................................................ 41 2.4 A pregação da fé ........................................................................................................................ 49 2.5 O sínodo diocesano da Bahia e a sistematização das normas tridentinas no Brasil colonial ........................................................................................................................................................... 54 III. OS PECADOS DA CARNE ............................................................................................... 60 3.1. O combate ao amancebamento ............................................................................................... 60 3.2 Extirpar os vícios ....................................................................................................................... 70 Considerações finais ........................................................................................................................ 78 IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS .............................................................................. 82 Documentação: ................................................................................................................................ 82 Estudos: ............................................................................................................................................ 85 8 Apresentação Pero Vaz de Caminha, o primeiro cronista das terras que viriam a ser conhecidas como Brasil, disse, na sua renomada carta, que os seres com "bons rostos e bons narizes" que por aqui viviam demonstravam um pendor todo especial para crer em Deus, daí a predisposição de espírito que teriam para receber o deus verdadeiro, o Deus cristão. Dizia o escrivão que, segundo a sua opinião, "outra coisa não falecia a essa gente, para ser toda cristã", do que entenderem a língua dos portugueses. Foi imbuído de tal espírito que, em 1549, desembarcaram na Bahia de Todos os Santos, ao lado do primeiro Governador Geral, Tomé de Souza, o padre Manuel da Nóbrega, à frente de um punhado de soldados da recém-fundada Companhia de Jesus. Os padres vinham com o propósito de assistir aos ainda poucos colonos que se dispunham a mudar-se para uma terra distante e desconhecida, mas vinham sobretudo dispostos a converter novas almas para a fé católica, as almas dos gentios, e criar uma cristandade renovada no Novo Mundo. Encerrado o primeiro século de colonização, no entanto, a missão jesuíta não avançava: os colonos estavam desassistidos e os gentios, que desde o início se mostravam refratários à catequização, tinham praticamente desaparecido das zonas de colonização, retirando-se cada vez mais para dentro do território, para o sertão. Já no início do século XVII, quando as cidades litorâneas ganhavam corpo e o número de colonos aumentava de dia para dia –– de colonos e de escravos africanos, os “negros de Guiné” ––, os religiosos começaram a redirecionar a sua missão e a dar mais atenção ao fiel que tinha à mão, o colono branco. Agora, início do Seiscentos, não interessava mais tanto trazer almas selvagens, resgatadas do demônio, para o seio da Igreja católica e colaborar para a colonização da nova terra, interessava, sim, ajudar a manter e prosperar uma colônia católica, temente a Deus e ao Rei de Portugal. Catequizar o colono, transformá-lo num bom cristão e num bom súdito, passou a ser o objetivo central dos religiosos. Para tal investiram na formação intelectual do colono –– todos as instituições de ensino do período colonial são religiosas –– e, sobretudo, da sua formação moral e espiritual, através de missas, procissões, sermões, confissões, orientações, etc. Dos diversos aspectos do cotidiano do colono, a sua vida íntima mereceu especial atenção dos religiosos. Dizia-se que os moradores da terra viviam uma vida de pecados, amancebados e entregues à luxúria, aos desregramentos carnais, o que os afastava das leis de Deus e provocava desordem na sociedade. Esta pesquisa, lançando mão de cartas sermões, relatórios de visitadores, manuais de confissões e outros escritos doutrinários produzidos entre os séculos XVI e XVIII, procura 9 mapear a perspectiva que os religiosos da colônia legaram nesses escritos do referido processo de formação moral do colono, especialmente daqueles aspectos relacionados às suas práticas carnais e à sua vida matrimonial. Para atingir tal objetivo, percorremos o seguinte caminho. Inicialmente, procuramos descrever os primeiros esforços dos jesuítas e de outros religiosos no sentido de converter os gentios e aumentar o rebanho católico. Buscamos aí, sobretudo através da análise da correspondência jesuítica do período, evidenciar como os religiosos passaram da euforia ao desânimo no que diz respeito à conversão do gentio, e gradativamente, ajudados pelo concomitante desaparecimento do gentio das áreas colonizados e pela diminuição de sua importância no processo de colonização –– os africanos vieram tomar o seu lugar ––, substituíram a atividade de conversão de pagãos por aquela de formação do colono católico e de seus escravos africanos. O segundo capítulo é dedicado à descrição dos meios de que se serviram os religiosos para que suas ideias e prescrições atingissem o colono e atuassem eficazmente sobre o seu cotidiano. Onde os religiosos se formavam e onde ofereciam formação aos colonos que queriam e podiam apreender as letras? De que instrumentos lançavam mão para atingir os devotos que não frequentavam seus colégios e conventos? Que leituras recomendavam ao seu rebanho? Quais meios utilizavam para chegar ao colono analfabeto, isto é, à maioria dos colonos? Foram essas as questões que tentamos aí responder. O terceiro e último capítulo tenta mapear as prescrições relativas ao sexo e ao matrimônio que os religiosos pretendiam ver acolhidas e adotadas pelos colonos e, na medida do possível, pelos seus escravos africanos, ao menos por aqueles que viviam em maior contato com a casa do branco. Buscaremos, através do esquadrinhamento de sermões, livros de moral e devoção, documentos doutrinários da Igreja colonial e outros escritos religiosos do período, estabelecer que prescrições eram estas, de que modo eram transmitidos e como foram sistematizados pela igreja no início do século XVIII, na conhecida Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, organizada pelo padre Sebastião Monteiro da Vide. 10 I. CATEQUIZAR O ÍNDIO OU MORALIZAR O COLONO? 1.1 Evangelizar o “negro da terra” Ao longo do processo de expansão ultramarina, foi corrente entre nobres e eclesiásticos portugueses a ideia de que os descobrimentos ocorreram por obra da intervenção divina e que, dentre os muitos povos da cristandade, Deus escolhera justamente os portugueses para produzir riquezas materiais e “espirituais” no Novo Mundo, isto é, conquistar novas almas para o catolicismo.1 Com essa ideia em consideração, desembarcaram no Brasil, em 1549, religiosos da Companhia de Jesus,2 ao lado do primeiro Governador Geral Tomé de Souza. O Fundador da Província do Brasil, o padre Manuel da Nóbrega,3 logo depois de sua chegada na Bahia de Todos os Santos e de instalar-se minimamente na terra –– que tinha recebido os padres de braços abertos e com muito contentamento, segundo relata ––, escreveu uma missiva4 ao padre mestre Simão Rodrigues de Azevedo relatando, entre outras coisas, a situação espiritual em que encontrara os moradores da terra (colonos e nativos), na qual não esconde as muitas esperanças que depositava naquela grandiosa empresa missionária que se iniciava: O primeiro domingo que dissemos missa foi a quarta dominga da quadragésima. Disse eu missa cedo e todos os padres e irmãos confirmamos os votos que tínhamosfeito e outros de novo com muita devoção e conhecimento de Nosso Senhor, segundo pelo exterior é lícito. Eu prego ao governador e a sua gente na nova cidade que se começa, e o padre Navarro à gente da terra. Espero em Nosso Senhor fazer-se fruto, posto que a gente da terra vive em pecado mortal, e não há nenhum que deixe de ter muitas negras das quais estão cheios de filhos e é grande mal. Nenhum deles se vem confessar; ainda queira Nosso Senhor que o façam depois. O irmão Vicente Rijo ensina a doutrina aos meninos cada dia e também tem escola de ler e 1 BOXER, C.R. A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770). São Paulo: Martins Fontes, s.d. 2 AGNOLIN, Adone. Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séculos XVI-XVII). São Paulo: Humanitas/FAPESP, 2007. 3 O padre Manuel da Nóbrega foi Fundador da Província do Brasil. Nasceu a 18 de outubro de 1517 em Portugal e morreu no colégio do Rio de Janeiro, a 18 de outubro de 1570. Bacharel em cânones pela Universidade de Coimbra (1541). Entrou na Companhia, já sacerdote, na mesma cidade, a 21 de novembro de 1544. Fez a peregrinação a Santiago de Compostela e exercitou-se em missões apostólicas rurais até ser escolhido para a empresa do Brasil. Com apenas 31 anos de idade ia ser o primeiro jesuíta e chefe de jesuítas na América. Embarcou de Lisboa em 1549 com cinco companheiros, na armada do primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Sousa, de quem foi amigo e conselheiro, como o foi e ainda mais, do terceiro e grande governador da Bahia Mem de Sá. Assistiu e colaborou na fundação da cidade do Salvador da Baía; concorreu eficazmente para a fundação do Rio de Janeiro; e fundou São Paulo. Percorreu todas as capitanias do Brasil de então, desde Pernambuco a São Vicente, promovendo a catequese e liberdade dos índios e a instrução e educação dos meninos. Primeiro Superior e primeiro Provincial do Brasil. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo IX. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006, p. 03. 4 Sobre a intensa troca de correspondências entre os padres da Companhia, ver, entre outros: FERNANDES, Francisco Assis Martins. A comunicação na pedagogia dos Jesuítas na era colonial. São Paulo: Edições Loyola, 1980. 11 escrever; parece-me bom modo este para trazer os índios desta terra, os quais tem grandes desejos de aprender e, perguntados se querem, mostram grandes desejos.5 Havia muito o que fazer para quebrar a resistência dos gentios e a displicência dos colonos. O mesmo Nóbrega, em carta ao governador Tomé de Souza, relata que a situação moral e espiritual do colono era péssima e conspirava contra a obra de Deus: “(...) porque nesta terra todos são para estorvar o serviço de Nosso Senhor, e um só não se acha para favorecer o negócio de salvar almas”.6 Apesar de tais dificuldades, no entanto, as novas terras e povos descobertos pelos portugueses a Ocidente eram vistos pelos padres como uma possibilidade única de expandir a fé e de arrebatar novas almas para a cristandade,7 como bem explica o padre Diego Laynes, em carta endereçada aos “padres e irmãos do Brasil e da Índia”, escrita em 1558: A importância da obra [que Portugal estava fazendo no Novo Mundo] se vê quanto seja, tratando não somente de conservar e ajudar os cristãos que já tem o princípio de sua salvação, como por aqui se faz, porém trazer muitos outros novos, que eram servos do demônio e com ele filhos da ira e da perdição.8 É interessante notar que, na carta de Laynes, o foco principal da missão espiritual a que se propunham os jesuítas era converter novas almas, uma vez que os cristãos já conheciam o princípio da salvação. É também imbuído de tal perspectiva –– a prioritária conversão e catequização do “gentio”, as tais novas almas –– que o Padre Antônio Blasquez escreve ao Padre Diego Laynes no ano seguinte, dizendo que os irmãos que se encontravam na Bahia gozavam de um bom estado de saúde e de espírito e prosseguiam na empresa de conversão da gentilidade, isto é, com o trabalho de livrá-los dos costumes pecaminosos que cultivavam e de agrega-los ao grêmio da Igreja.9 Blasquez, apesar de lamentar das enormes dificuldades encontradas pelos religiosos e pactuantes da moral cristã na conversão dos nativos, dizia: Porém o Senhor tendo condolência de tanta perdição de almas, abria as portas e caminhos para a sua conversão, dando sempre depois destes princípios 5 NÓBREGA, Manuel da. I. Ao padre mestre Simão Rodrigues de Azevedo (1549). In: _______. Cartas do Brasil, 1549-1560. Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/ Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.72. 6 NÓBREGA, Manuel da. Carta do P. Manuel da Nóbrega a Tomé de Sousa antigo governador do Brasil (Baía, 5 de julho de 1559). In: Leite, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Vol. III. Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, p. 76. 7 CHARMOT, F, S.J. La Pedagogia de los Jesuitas: sus principios - su actualidad. Madrid: Sapientia Ediciones, 1952. 8 LAYNES, Diego. Carta do P. Diego Laynes aos padres e irmãos do Brasil e da Índia (Roma, 1 de dezembro de 1558). In: Leite, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Vol. III, p. 8. 9 BLASQUEZ, Antônio. Carta do P. Antônio Blasquez por comissão do P. Manuel da Nóbrega ao P. Diego Laynes (Bahia, 10 de setembro de 1559) In: Leite, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Vol. III, p. 130. 12 prósperos sucessos, dilatando o ânimo e coração dos agricultores com o novo fruto que cada dia colhiam da vinha do senhor.10 A missão, porém, como logo se percebeu, não era tão simples e trazia dificuldades que, como mais tarde diria o padre Antônio Vieira,11 nem mesmo os primeiros apóstolos tinham enfrentado.12 A extensão do território, as doenças que ceifavam vidas de padres e índios, a carência de padres e pregadores capazes e mesmo a ausência de colégios, conventos e até igrejas, somados à crescente e constante resistência do colono –– interessado em escravizar o indígena e não em cristianizá-lo –– tornavam a conversão da “gentilidade” uma missão complicada e difícil.13 Os religiosos, no entanto, não desanimaram. Ainda em 1549, Nóbrega, em carta ao mencionado Simão Rodrigues de Azevedo, explica: Desta maneira ir-lhes-ei ensinando as orações e doutrinando-os na fé até serem hábeis para o batismo. Todos estes que tratam conosco, dizem que querem ser como nós, senão que não tem com que se cubram como nós, e este só inconveniente tem. Se ouvem tanger à missa, já acodem e quanto nos vem fazer, tudo fazem, assentam-se de giolhos, batem nos peitos, levantam as mãos ao céu e já um dos principais deles aprende a ler e toma lição cada dia com grande cuidado e em dois dias soube o A, B, C todo, e o ensinamos a benzer, tomando tudo com grandes desejos. Diz que quer ser cristão e não comer carne humana, nem mais de uma mulher e outras coisas; somente que há de ir a guerra, e os que cativar, vende-los e servir-se deles, porque estes desta terra sempre têm guerra com outros e assim andam, todos em discórdia, comem uns aos outros, digo os contrários. É gente que nenhum conhecimento tem de Deus. Tem ídolos, fazem tudo quanto lhes dizem.14 Uma década mais tarde, em 1559, em carta dirigida ao próprio Padre Manuel da Nóbrega, o irmão Antônio Rodrigues15 ainda se mostrava contente com os resultados do seu 10 BLASQUEZ, Antônio. Carta do P. Antônio Blasquez por comissão do P. Manuel da Nóbrega ao P. Diego Laynes (Bahia, 10 de setembro de 1559) In: Leite, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Vol. III, p. 131. 11 O padre, escritor e orador português da Companhia de Jesus, Antônio Vieira nasceu em Lisboa no ano de 1608,aprendeu durante a adolescência a língua brasílica, tupi, e outras depois na Amazónia, e sempre estimulou a sua aprendizagem como instrumento útil de contato e de conversão. Foi nomeado visitador Geral do Brasil e do Maranhão no ano de 1688, iniciou seu governo com um ato em favor de missões do Maranhão e Pará. Foi um grande conhecedor do território brasileiro e defendeu que o trabalho jesuítico fosse voltado, como tradicionalmente, para o alargamento do território cristãos em direção as florestas. Faleceu no ano de 1697 em Salvador. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo VII. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006, p. 73-78. 12 Cf. RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização. A representação dos índios de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. 13 Ver NEVES, Luis Felipe Baêta. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios: colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978. 14 NÓBREGA, Manuel da. I. Ao padre mestre Simão Rodrigues de Azevedo (1549). In: _______. Cartas do Brasil, 1549-1560, p. 72-73. 15 O pregador e missionário Antônio Rodrigues nasceu por volta de 1589 na Ilha de S. Miguel, Açores. Foi estudante de teologia moral e mestre em artes, quando entrou na Companhia no Colégio da Baía em 1618. Após concluir o noviciado passou ao Colégio de São Paulo; e quando voltava à Baía em 1624 foi capturado por Holandeses e levado para Amesterdã onde ficou em cárcere. Voltou ao Brasil no dia 3 de maio de 1636. Foi 13 esforço para capturar “novas almas”, e contava que, depois de pacientemente explicar aos gentios acerca “da criação do mundo e da nossa, acerca da glória, etc.”, os ouvintes ficaram tão edificados que “se fizeram cristãos”.16 O mesmo padre Rodrigues, em outra carta, fazia questão de celebrar as novas almas que trouxera para Deus: “Já temos nesta casa pela bondade do Senhor mais de duzentos meninos indiozinhos que continuamente se ocupam na doutrina e coisas pertencentes a fé”.17 Pela mesma época, por volta de 1560, o padre Rui Pereira também se referia às dificuldades encontradas para a conversão dos índios na Bahia, mas, do mesmo modo que seus colegas, salientava que tais empecilhos não eram insuperáveis e que, com o devido esforço e a sempre presente ajuda de Deus, o trabalho de conversão do nativo seguia em frente: “quanta razão temos para nos alegrar, vendo que além do fruto de nosso trabalho, que em glória esperamos, vemos na terra criarem-se plantas para o Céu, e que gosta Deus delas tanto”.18 O otimismo prosseguiu, sobretudo durante o governo Mem de Sá (1558-1572), que, em consonância com os padres discípulos de Loyola, tratou de promover a política de aldeamentos, política que muito colaborou para o esforço catequético dos religiosos. Esperançoso, o padre Luiz da Grã19 escrevia em 1561 ao Padre Doutor Torres, da Cidade de Salvador: Esta terra está em tanta paz que não se pode mais imaginar, e com isso enxergar-se tanto fruto, que se nela faz acerca da conversão, que, com termos sete igrejas feitas em sete povoações muito grandes, é tanto o requerimento que os índios fazem por padres que os vão doutrinar, que não somente a nós mas a todos os portugueses faz desejar e pedir ao senhor que inspire em V. R. a que nos mande quem nos ajude; e assim, como os que cá são, ando buscando todos os meios que posso para remediar tão santa fome como esta gente tem de pão espiritual. E, com atenção e esperanças de nos V. R. socorrer, aceitaremos agora 4 povoações que virão negociadas para quando, em boa hora, chegar os padres irmãos.20 pregador; trabalhou nas aldeias; foi superior de Porto Seguro e Vice-Reitor do Colégio do Rio de Janeiro. Faleceu no Rio, a 28 de setembro de 1653. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo IX. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006, p. 83. 16 NÓBREGA, Manuel da. VIII. Para os irmãos do colégio de Jesus de Coimbra (1551). In: _______. Cartas do Brasil, 1549-1560, p.119. 17 RODRIGUES, Antônio. Carta do Ir. Antônio Rodrigues ao P. Manuel da Nóbrega (Bahia, setembro de 1559) In: Leite, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Vol. III, p. 126 18 PEREIRA, Rui. Carta do P. Rui Pereira aos padres e irmãos de Portugal (Bahia, 15 de setembro de 1560). In: Leite, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Vol. III. p.298. 19 O jesuíta Luiz da Grã nasceu cerca de 1523 em Lisboa e morreu a 16 de novembro de 1609. Estudou em Coimbra artes e direito e entrou na Companhia na mesma cidade a 20 de junho de 1543. Foi reitor do colégio de Coimbra. Embarcou para o Brasil em 1553, como colateral do padre Manuel da Nóbrega. Como sucessor de Nóbrega, assumiu o cargo de provincial em 1559. Fez a profissão solene em São Vicente, no dia 26 de abril de 1556, recebendo-a Manuel da Nóbrega, e foi a primeira no Brasil. Promoveu o estudo da língua brasílica, a catequese e os aldeamentos sobretudo os da Bahia e de Piratininga. Além de governar o colégio da Bahia foi superior de São Vicente 4 anos, reitor do colégio de Pernambuco 13 e provincial 11. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VIII Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006, p. 284. 20 GRÃ, Luís da. In: LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Volume III, p. 429. 14 Uma síntese tardia mas ilustrativa dessa crença disseminada na missão divina subjacente à empresa colonizadora portuguesa, e também da esperança de que, mesmo com enormes barreiras, a catequese do gentio, alvo maior dos padres da Companhia, seguia ainda o seu caminho, é a obra Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil (1658),21 escrita pelo padre jesuíta Simão de Vasconcelos (1596-1671).22 Aí, o ex-reitor dos colégios da Bahia e do Rio de Janeiro, que tem uma das maiores produções escritas entre os poucos letrados do Brasil seiscentista, conta detalhadamente a história de sua ordem no Brasil em paralelo com uma história geral da colônia, isto é, o jesuíta unifica a história da catequese e a da colonização, e escreve uma narrativa a sobre a colônia, sua gradativa ocupação e conquista, do ponto de vista religioso. Vasconcelos narra como os varões nobres de Portugal e os religiosos discípulos de Loyola adentraram regiões inóspitas do território colonial brasileiro com o propósito não somente de obter riqueza e glória, mas, sobretudo, para levar a palavra do Deus cristão aos “gentios” e arrancá-los das garras do demônio, onde a ignorância os havia colocado.23 Em suas próprias palavras: “Ei de escrever a heroica missão que empreenderam os Filhos da Companhia, a fim de conquistar o poder do inferno, senhoreado por seis mil e tantos anos do vasto império da gentilidade brasílica”.24 A conversão do “gentio”, centro da missão Divina de Portugal no Novo Mundo, é insistentemente descrita pelo jesuíta. Vasconcelos, em geral, retrata a “gentilidade” como bárbara: são nações sem fé, sem lei e sem rei, composta por homens que “parecem mais brutos em pé, do que humanos racionais”.25 Eram gentes sem jurisdição, “vagabundos” que viviam ora em uma parte ora em outra, com costumes de “feras”, “sem polícia, sem prudência, sem quase rastro de humanidade”.26 Tamanho barbarismo, segundo Vasconcelos, não afetou o ímpeto missionário dos padres, ao contrário, tornou ainda mais vivo o sentimento de que era 21 VASCONCELOS, Simão de. Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil [...]. Lisboa: Officina de Henrique Valente de Oliveira, Impressor del Rei, 1663. 22 Simão de Vasconcelos nasceu por volta de 1596 na cidade do Porto. Veio ainda adolescente para o Brasil e entrou na Companhia de Jesus em 1615, recebeu o grau de mestre em artes em 1636. Ensinou humanidades, teologia especulativa e moral. Em 1641 e foi a Portugal comoProcurador Geral na embaixada de fidelidade do Brasil à Restauração, com o padre António Vieira, saindo da Baía para Lisboa. Retornou ao Brasil em 1642 e devia retomar o cargo de Secretário da província na visita do Sul com o Provincial Manuel Fernandes, no ano de 1643 foi Vice-Reitor. Em janeiro de 1646 tornou posse do cargo de Reitor do Rio de Janeiro. Iniciou por esta época a Vida do Padre João de Almeida. Promoveu também as missões do sertão baiano (Jacobina) e Rio das Contas. Foi eleito procurador a Roma e partiu para Lisboa em 1660. Retornou ao Brasil em 1663 na mesma nau do Vice-Rei Conde de Óbidos, e iniciou a escrita da Vida de Anchieta. Faleceu no Colégio de Rio de Janeiro, no cargo de Reitor a 29 de setembro de 1671. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VIII, p. 26-28. 23 PAMPALONI, Massimo. A “forma” do jesuíta: os exercícios espirituais. In: ROMEIRO, Adriana; MELLO, Magno Moraes. Cultura, arte e história: a contribuição dos jesuítas entre os séculos XVI e XIX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014, p. 34. 24 VASCONCELOS, Simão de. Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil [...]. Introdução. 25 VASCONCELOS, Simão de. Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil [...]. p. 76. 26 VASCONCELOS, Simão de. Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil [...], p. 76. 15 imprescindível superar os obstáculos, arrebatar aquelas almas das mãos do demônio e trazê-las para o seio da Igreja Católica: E se Deus não der o esforço, ou eles não quiserem, não bastarão todos os colégios da Europa. Um só soldado basta, um só vale por grandes exércitos, aonde entra o esforço de Deus, e o querer dos homens. Um só brado de um Batista foi bastante para catequizar tantas gentes, para o recebimento de Cristo: Um só Apóstolo era bastante em cada qual das províncias do mundo. Haja em nós espírito de Apóstolos, e bastará a pregação de qualquer para converter a gentilidade toda do Brasil. Não pergunta esta, quanto são os que vem? Mas, que é que diz, o que prega? E basta que este os convença para que logo fiquem ganhados.27 Vasconcelos, no entanto, que escrevia na metade do Seiscentos, contava de um tempo heroico que, àquela altura, 1658, ficara no passado. É verdade que, até a expulsão da Ordem, em 1759, a conversão dos gentios ainda era mencionada nas cartas ânuas e demais correspondência da Companhia, sobretudo quando o tema abordado dizia respeito ou às missões na região do Grão Pará e Maranhão ou àquelas situadas no extremo no sul do Brasil. Todavia, ainda durante o governo do mencionado Mem de Sá, os jesuítas começaram a perceber que a conversão do gentio talvez não fosse somente difícil, mas impossível. Os sinais de desânimo, extensivos às outras ordens que se instalaram na colônia na esteira dos jesuítas, como franciscanos,28 beneditinos29 e carmelitas,30 manifestaram-se cedo e foram suscitados por razões diversas. Em primeiro lugar, lamentavam os padres, faltavam religiosos dispostos a se instalarem nos aldeamentos ou a penetrarem pelos sertões, vencendo os problemas, o caminho difícil e as doenças para pregarem aos que se encontravam distantes do litoral. Manuel da Nóbrega, em carta de 1559, endereçada aos padres e irmãos de Portugal e enviada meses depois do desembarque do governador Mem de Sá, lamentava-se: Depois da vinda de Mem de Sá, o governador, se fizeram três igrejas em três povoações de índios e muitas mais se fizeram, se houvera padres e irmão para nelas residirem; outras duas ou três juntas de índios estão juntas esperando por padres para os doutrinarem: estas são visitadas de nós quando podemos por se deterem assim até serem socorridos. A primeira igreja que se fez, a uma légua 27 VASCONCELOS, Simão de, op. cit., Introdução, p. 39. 28 FREYRE, Gilberto. A Propósito dos Frades: Sugestões em Torno da Influência de Religiosos de São Francisco e de Outras Ordens Sobre o Desenvolvimento de Modernas Civilizações Cristãs, Especialmente das Hispânicas nos Trópicos. Salvador, Aguiar & Souza, 1959. In: WILLEKE, Venâncio. Missões Franciscanas no Brasil (1500- 1975). Petrópolis: Vozes, 1974. 29 BARBOSA, D. Marcos. Os Beneditinos na Europa e no Brasil. In: ALMEIDA, D. Emanuel de (org.). Coletânea II, Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1991. 30 HONOR, André Cabral. O envio dos carmelitas à América portuguesa em 1580: a carta de Frei João Cayado como diretriz de atuação. Tempo. Vol. 20, n. 36, 2014, p. 1-19. 16 desta cidade, chama-se São Paulo; a segunda, São João, três léguas; a outra Sancti Spiritus [...]31 A aridez dos caminhos, as dificuldades que impunham ao corpo e a carência de religiosos dispostos a superar tudo isso e levar adiante a palavra de Deus não eram, contudo, as causas maiores da desilusão jesuíta.32 O motivo central do pessimismo jesuíta encontra-se exemplarmente explicitado numa obra clássica dos tempos da colonização, o Diálogos do Padre Manuel da Nóbrega sobre a Conversão dos Gentios. Aí Nobrega descreve detalhadamente aquele que seria o grande problema da catequese do gentio: a natureza do próprio gentio. Bruta, impenetrável e refratária aos dogmas do cristianismo e ao modo de vida que deveria ser adotado pelo verdadeiro cristão, era ela uma das principais barreiras a vencer. É certo que, antes e depois das reflexões pessimistas de Nóbrega, não houve padre metido pelas terras do Brasil que não tivesse reclamado da rudeza dos costumes nativos e do caráter anticristão da vida que levavam. Anchieta, por exemplo, em 1584, lamentava-se: Os impedimentos que ha para a conversão e perseverar na vida cristã de parte dos índios, são seus costumes inveterados, como em todas as outras nações, como o terem muitas mulheres; seus vinhos em que são muito contínuos e em tirar-lhes há ordinariamente mais dificuldade que em todo o mais, por ser como seu mantimento, e assim não lhes tiram os Padres de todo, senão o excesso que neles ha, porque assim moderado quase nunca se embebedam nem fazem outros desatinos. Item as guerras em que pretendem vingança dos inimigos, e tomarem nomes novos, e títulos de honra; o serem naturalmente pouco constantes no começado, e sobretudo faltar-lhes temor e sujeição, porque, como em todos os homens, assim nestes muito mais initium sapicntice timor Domini est, o qual lhes ha de entrar por temor da pena temporal, porque havendo isto tomam o jugo da lei de Deus e perseveram nele ao menos com muito menos pecados que os Portugueses, pois já o tornarem atrás da fé de maravilha se viu neles, porque, como nada adoram, facilmente creem o que se lhes diz que hão de crer: mas por outra parte, como não têm muito discurso, facilmente se lhes meterá em cabeça qualquer cousa, ao menos de maus costu- mes. Ajunta-se a isto que são de uma natureza tão descansada que, se não forem sempre aguilhoados, pouco bastará para não irem à missa nem buscarem outros remédios para a sua salvação.33 Nóbrega, no entanto, levou as suas considerações um pouco mais longe, levantando a hipótese de que talvez os gentios, salvo exceções, estivessem de uma vez por todas perdidos para o cristianismo. O seu ponto de partida é o mesmo dos outros irmãos jesuítas que haviam escrito sobre o tema, como explicita no diálogo com Gonçalo Álvares: 31 NÓBREGA, Manuel da. XIX. Aos padres e irmãos de Portugal (1559). In: _______. Cartas do Brasil, 1549- 1560, p.178-179. 32 HANSEN, José Adolpho. A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das letras, 1998. 33 INFORMAÇÃO do Brasil e de suas Capitanias – 1584. In: ANCHIETA, José de. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões, p. 341. 17 Por demais é trabalhar com estes! São tão bestiais,que não lhes entra no coração coisa de Deus! Estão tão encarniçados em matar e comer, que nenhuma outra bem-aventurança sabem desejar! Pregar a estes é pregar em deserto a pedras.34 A constatação não era inédita, mas, na maior parte das vezes, aparecia sempre acompanhada da ideia de que, com tempo, paciência e dedicação, tamanha resistência poderia ser superada. Nóbrega não é mais, àquela altura, tão otimista. Em diálogo com o padre Mateus Nogueira, explica: Se tiveram rei, puderam-se converter ou se adoraram alguma coisa. Mas como não sabem que coisa é crer nem adorar, não podem entender a pregação do Evangelho, pois ela se funda em fazer crer e adorar a um só Deus e a esse só servir; e como este gênio não adora nada, nem crê nada, tudo o que lhe dizeis se fica nada.35 Segundo Nóbrega, havia uma incompatibilidade essencial do nativo com a pregação, que lhe entrava pelas orelhas mas não no coração, e menos ainda na alma. Os indígenas, nessa perspectiva, eram encarados como seres “sem juízo”, sem meios mentais de absorver os mistérios do Deus cristão e entender as consequências morais da adoção da fé católica. Eram almas rasas e volúveis, que mudavam de opinião e de crença como o vento de direção, lançando no vazio todo o empenho dos padres na conversão das suas almas.36 Ao mesmo Nogueira, Nóbrega desabafa: Ouvi eu já um evangelho a meus padres, onde Cristo dizia: “ Não deis o Santo aos cães, nem deiteis as pedras preciosas aos porcos”. Se alguma geração há no mundo por quem Cristo Nosso Senhor isto diga, deve ser esta, porque vemos que são cães em se comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem. E esta deve ser a razão porque alguns padres que no reino vieram, os vejo resfriados, porque vinham cuidando de converter a todo brasil em uma hora, e veem-se que não podem converter um, em um ano, por sua rudeza e bestialidade.37 Diante de quadro tão cinzento, o jesuíta não propunha muitas saídas. Era necessário alterar de algum modo os meios de conversão utilizados pelos padres, reduzir o número de gentios a serem catequizados, já que a pretensão de converter todas as almas era excessiva e, sobretudo, melhorar a estrutura de colégios e aldeias, essenciais para o esforço missionário. As mudanças, contudo, não vieram do modo que se esperava e os rumos da catequese 34 NÓBREGA, Manuel da. Diálogo sobre a conversão do gentio. Lisboa: União Gráfica, 1954, p.74. 35 NÓBREGA, Manuel da. Diálogo sobre a conversão do gentio, p.74. 36 VIVEIROS DE CASTRO, E. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 35, 1992, p. 21-74. 37 NÓBREGA, Manuel da. Diálogo sobre a conversão do gentio, p.75. 18 gradativamente tomaram outra direção. É, ainda, Nóbrega quem dá uma pista sobre tal mudança. Em carta de 1560, endereçada ao governador Tomé de Souza, ele recorda: Desde que nesta terra estou que vim com vossa mercê, dois desejos me atormentaram sempre: um, de ver os cristãos destas partes reformados em bons costumes e que fossem boa semente transplantada nestas partes, que desse cheiro de bom exemplo; e outro, ver disposição no gentio para se lhe poder pregar a palavra de Deus e eles fazerem-se capazes da graça e entrarem na igreja de Deus, pois Cristo Nosso Senhor por eles também padeceu; porque para isso fui com meus irmãos mandado a esta terra, e esta foi a intenção de nosso rei, tão cristianíssimo, que a estas partes nos mandou, e porque para ambas estas coisas eu via sempre por esta costa toda mau aparelho.38 Pelos nativos, “gente de condição mais de feras bravas que de gente racional”,39 Nóbrega sabia pela experiência que pouco poderia ser feito, mas talvez ainda houvesse esperança para o colono e para uma personagem que cada vez mais marcava presença nos engenhos e cidades: o escravo africano. A troca de prioridades deu-se aos poucos e não se deveu somente ao esmorecimento da ação dos padres diante da constante impenetrabilidade do gentio. Das cidades do litoral, onde os religiosos instalaram seus principais colégios e concentravam o maior contingente de irmãos, os gentios, ao longo do século XVII, praticamente desapareceram. Muitos tinham sido mortos –– pelas doenças, pelo trabalho compulsório estranho às suas práticas culturais e pelas guerras movidas pelos colonos ––, outros, temendo pela vida e pela liberdade, embrenharam-se nas matas e sumiram sertão adentro. Acerca das doenças, apenas para citar um breve exemplo, Anchieta,40 referindo-se a uma epidemia de bexigas que atingiu a Bahia em 1563, destaca: (...) 1563 foi a grande morte das bexigas tão geral em todo o Brasil, de que morreu muito gentio, de que também levou muita parte de que havia nas igrejas em que os padres residiam, e depois da doença ser passada, e os índios se irem gastando pouco e pouco, com parecer do governador Mem de Sá, por a igreja de São Paulo ter já pouca gente, se repartiu essa que havia pelas outras, e assim não ficariam mais de 4, que conservaram por alguns anos.41 Os poucos gentios que escaparam da devastação e ficaram com os brancos, todos já devidamente cristianizados, prestavam pequenos serviços pelas ruas e portos das cidades 38 NÓBREGA, Manuel da. XX. A Thomé de Sousa (1559). In: _______. Cartas do Brasil, 1549-1560, p. 192. 39 NÓBREGA, Manuel da. XVIII. Para o provincial de Portugal (1557). In: _______. Cartas do Brasil, 1549- 1560, p. 174. 40 Para mais, ver: CHAVES, D. A. Anchieta, sua enfermidade e suas atividades médicas. In: CONFERÊNCIAS anchietanas. RJ: Cia. Editora Americana, 1969.; LEITE, Serafim. Os jesuítas no Brasil e a medicina. Lisboa: Separata da Revista Petrus Nominus, 1936; NAVA, Pedro. Capítulos de história da medicina no Brasil. Cotia: Ateliê Editorial; Londrinha: Eduel; São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2003, p. 87-88.; RODRIGUES, Lopes. Anchieta e a medicina. Belo Horizonte: Edições Apolo, 1934. 41 INFORMAÇÃO dos primeiros aldeiamentos da Baía. In: ANCHIETA, José de. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p.367. 19 litorâneas, e levavam uma vida modesta, arredia e apagada. O poeta e aventureiro inglês Richard Flecknoe (1600? -1678),42 que visitou o Rio de Janeiro por volta de 1657, traça dos poucos que viu pelas ruas –– barqueiros, escravos domésticos e vendedores de redes, sobretudo –– um quadro bastante negativo, indicando que pouco papel desempenhavam na vida cidade; diz o inglês: Tanto os homens como as mulheres andam geralmente nus, usando apenas um pequeno trapo para esconder as partes genitais - o que, de resto, ninguém desejaria ver, já que aquilo que está à mostra é bastante repugnante. São todos cristãos, o que me faz imediatamente pensar na seguinte frase: o Senhor salva a todos, homens e animais. Essa máxima, para essa gente que não possui inteligência bastante para cultivar vícios engenhosos nem temperança suficiente para evitar os mais brutais, é, sem dúvida, adequada. Digo isso baseando-me naqueles que vivem entre os portugueses. Quanto aos demais, imagino que a diferença seja a mesma que há entre os animais domésticos e os selvagens.43 A situação não era muito diversa nos engenhos espalhados pelas imediações da costa. À medida que o século XVI avançava, a ocupação da terra ampliava-se e o comércio de escravos vindos da África, os então denominados pretos da Guiné, ganhava proporções realmente significativas, os engenhos também passaram a contar com cada vez menos gentios em seus plantéis.44 Anchieta, em dois escritos de 1584, já dá notícias desse desaparecimento. Lê-se aí que, com o desembarque crescente de novos colonos vindos do reino, passou a haver uma grande procura porterras, parte das quais foram tomadas dos gentios ou surrupiados dos aldeamentos em que viviam, o que, juntamente com a ameaça da escravização, os obrigou a afastarem-se cada vez mais para o interior. O resultado foi o seu gradativo desaparecimento também das propriedades rurais. Inúmeras são as passagens nas quais o padre, em visita aos engenhos, não encontra um único “negro da terra” para converter, batizar ou casar, mas tão somente colonos europeus ou descentes destes e, cada vez mais, “negros da guiné”. Aos olhos 42 Richard Flecknoe nasceu em Londres, estudou em colégio jesuíta mas nunca chegou a fazer os votos. Como viajante ele visitou Bruxelas, Paris, Marselha, Gênova, Provença e Hyéres. Em 1648 foi a Cascais em Portugal, partindo no mesmo ano para o Brasil, na mesma embarcação que levou Sebastião Brito, governador do Rio de Janeiro. Flecknoe desembarcou em terras brasileiras em 1649, onde passou oito meses. FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro Colonial: antologia de textos (1531-1800). Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p.40. 43 FLECKNOE, Richard. A relation of tem years travells in Europe, asia, affrique, and America. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro Colonial: antologia de textos (1531-1800), p.49. 44 Consultar o importante estudo SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 20 do preocupado jesuíta, a situação era tal que, na capitania da Bahia, os engenhos e fazendas praticamente não contavam mais com “negros da terra”,45 com gentios. Diz Anchieta: A gente que de 20 anos a esta parte é gastada nesta Bahia, parece coisa que se não pode crer; porque nunca ninguém cuidou que tanta gente se gastasse nunca, quanto mais em tão pouco tempo; porque nas 14 igrejas, que os padres tiveram, juntaram 40.000 almas, estas por conta, e ainda passaram delas com a gente, com que depois se forneceram, das quais se agora as três igrejas que há tiverem 3.500 almas será muita. [...] De seis anos a esta parte, sempre os portugueses desceram gente para suas fazendas, quem trazia 2.000 almas, quem 3.000, outro mais, outros menos: veja-se de seis anos a esta parte o que isto podia somar, se chegam ou passam de 80.000 almas. Vão ver agora os engenhos e fazendas da Bahia, achá-los-ão cheios de negros de Guiné, e mui poucos da terra e se perguntarem por tanta gente, dirão que morreu, donde se bem mostra o grande castigo de Deus dado por tantos insultos como são feitos, e se fazem a estes índios, porque os portugueses vão ao sertão e enganam esta gente, dizendo-lhe que se venham com eles para o mar, e que estarão em suas aldeias, como lá estão em sua terra, e que seriam seus vizinhos. 46 O mesmo notou Fernão Cardim,47 ao longo de suas andanças pelas capitanias da Bahia e de Pernambuco. Pelos engenhos que passou, entre 1584 e 1590, engenhos grandes e pequenos, o quadro era o mesmo, os negros de Guiné cresciam em número e os gentios minguavam: Tornando aos engenhos cada um deles é uma máquina e fábrica incrível: uns são de água rasteiros, outros de água copeiros, os quais moem mais e com menos gastos; outros não são d’agua , mas moem com bois, e chamam-se trapiches; estes tem muito maior fábrica e gasto, ainda que moem menos, moem todo o tempo do ano, o que não tem os d’agua, porque às vezes lhes falta. Em cada um deles, de ordinário há seis, oito e mais fogos de brancos, e ao menos sessenta escravos, que se requerem para o serviço ordinário; mas os mais deles tem cento e duzentos escravos de guiné e da terra.48 45 Ver MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo, Companhia das Letras, 1994. 46 INFORMAÇÃO dos primeiros aldeiamentos da Baía. In: ANCHIETA, José de. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões, p. 386. 47 O padre e missionário jesuíta Fernão Cardim nasceu em Viana de Alvito, arcebispado de Évora, provavelmente em 1548-49 (?), e morreu na Bahia, a 27 de janeiro de 1625. Em 1582 foi designado secretário do padre visitador Cristóvão de Gouveia, embarcando para o Brasil com o governador Manuel Telles Barreto, o visitador e outros padres jesuítas, a 5 de março de 1583. Viveu quase meio século no Brasil e ocupou diversos cargos na Companhia de Jesus. A obra Tratados da terra e gente do Brasil de 1925 foi organizada por Rodolfo Garcia, Capistrano de Abreu e Afrânio Peixoto, e compreende a reunião dos manuscritos produzidos por Cardim durante a sua visita ao Brasil: dois tratados intitulados, respectivamente de Do Clima e Terra do Brasil e Do Princípio e Origem dos Índios do Brasil (1584); e duas cartas reunidas sob o título de Narrativa epistolar de uma missão jesuítica ou Informação da Missão do Padre Cristóvão de Gouveia às partes do Brasil (1585-1590). LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VII, p.04-06. 48 CARDIM, Fernão. Informação da missão do P. Christovão de Gouvêa às partes do Brasil anno de 83, ou Narrativa Epirtolar de uma Viagem e Missãi Jesuitica Pela Bahia, Ilheos, Porto Seguro, Pernambuco, S. Vicente, (S. Paulo), etc., desde o ano de 1583 ao de 1590, indo por visitador o P Christovão de Gouvêa Escripta em duas Cartas ao P. Provincial em Portugal. In: _______. Tratados da terra e gente do Brasil. Introduções e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolpho Garcia. Rio de Janeiro: J. Leite & Cia, 1925, p.320. 21 Nem mesmo os aldeamentos próximos às cidades, que tanta esperança havia trazido aos padres quando de sua implantação sistemática durante o governo de Mem de Sá, mostraram-se proveitosos com o tempo. Os índios não queriam mais ser mantidos agrupados e os que permaneciam eram capturados e escravizados pelos colonos, que cresciam em número e careciam de mão de obra para as suas propriedades: Visitei algumas aldeias deles e acho-lhes bons desejos de conhecer a verdade; e instavam para que ficasse no meio deles, se se bem que seja difícil fazer desarraigar aos mais velhos as suas más usanças com os meninos, porém, se pode esperar muito fruto, porque não se opõem quase nada a nossa lei e assim me parece que esteja aberta a porta para muito ajudar as almas nesta terra (ainda que aqueles que dicunt bonum, malum, et malum bonum, pensem diversamente), pois que não tem feito resistência nem matado aos que queriam fazê-los cristãos e se deixam arrastar para a fé, conquanto não sejam induzidos pelos cristãos que aqui vem com o exemplo ou com a palavra ao conhecimento de Deus, mas antes os chamam cães e fazem-lhes todo o mal. E toda a intenção que trazem é de os enganar, de os roubar, e por isso permitem que vivam como gentios sem a ciência da lei e tem praticado muitos desacatos e assassinatos, de sorte que quanto mais males fazem vidente obsequium se prœstare Deo e assim é todo perdido nesta terra o zelo e a caridade para com as almas que tanto ama o Senhor.49 Eis um breve quadro da situação que se vivia, aos olhos dos religiosos, no tocante à catequese indígena. Os gentios, alvo prioritário da missão evangélica no Novo Mundo, eram, salvo exceções, incapazes de compreender e, consequentemente, absorver a doutrina católica; eram, igualmente, muito volúveis e, ainda que parecessem convertidos e seguidores dos costumes católicos, retornavam sempre aos seus antigos hábitos bárbaros (antropofagia, poligamia, nudez, etc.), inspirados pelo demônio. Paralelamente a tais constatações, notou-se também que, dia após dia, o seu número minguava nas cidades e imediações; que nem mesmo nos engenhos, onde eram mantidos como escravos e empregados na lavoura e nos serviços domésticos, sua presença era mais tão exuberante. O medo de serem escravizados levaraaqueles que tinham sobrevivido às guerras e às doenças a migrarem para o sertão, distantes do olhar dos colonos. Os colonos, por sua vez, que aumentavam a olhos vistos, trataram de encontrar meios mais eficientes de obter mão de obra para suas lavouras, e encontraram uma mão de obra mais cara mas mais produtiva, mais resistente às intempéries e às doenças, com menos possibilidades de fuga –– o território lhe era desconhecido e hostil –– e, sobretudo, mais adaptada ao labor agrícola: os então denominados “negros da Guiné”, força de trabalho importada do continente 49 NÓBREGA, Manuel da. VI. Ao padre Simão Rodrigues (1550). In: _______. Cartas do Brasil, 1549-1560. p. 107-108 22 africano. Tudo isso, somado ao fracasso dos aldeamentos, fez com que os padres –– os jesuítas, à frente, mas também os franciscanos,50 beneditinos e carmelitas –– aos poucos deixassem de lado os gentios e voltassem sua atenção51 para o outro grupo de fiéis que necessitava do seu auxílio: os colonos brancos católicos, que àquela altura estavam, segundo os padres, mergulhados numa vida de pecados e necessitavam tanto ou mais do que o gentio de ajuda espiritual. 1.2 O redirecionamento da missão Tal constatação levou a um gradativo abandono das atividades missionária, que deslocou-se para os lugares mais distantes da colônia e passou a atrair cada vez menos religiosos, os quais preferiam a vida nos colégios e conventos urbanos ou situados nas imediações das cidades.52 É compreensível, pois, que passados alguns anos, em 1792, o inglês George Staunton, de passagem pela cidade do Rio de Janeiro, depois de tecer um comentário sobre o número realmente prodigioso de religiosos que encontrara perambulando pelas ruas da cidade, escreva: Nenhuma ameaça real ou imaginária é capaz de abalar o gosto carioca de todas as classes pela alegria e pelo divertimento. Comenta-se que, nos conventos da cidade, três para homens e dois para mulheres, não se pratica nem a austeridade nem a abnegação de si mesmo, fins primeiros de instituições desse gênero. Os portugueses, se não fosse o desejo de converter os gentios ao cristianismo, não teriam tão rapidamente empreendido a conquista do Brasil. Muitas foram as providências tomadas em favor dos monges encarregados de pregar o evangelho a esses infiéis. Nos dias que correm, porém, os religiosos não se ocupam mais dessa perigosa, aborrecida e, talvez, inútil missão. Somente uns poucos missionários italianos ainda insistem nessa tarefa, procurando conquistar, através de presentes e exortações, alguns nativos que frequentam a cidade para, posteriormente, enviá-los ao interior do país a fim de converterem os seus compatriotas.53 A bem da verdade, a catequese do colono branco, como lembrou Nóbrega numa das passagens anteriormente citadas, nunca deixou de ser uma das metas prioritárias dos jesuítas e 50 Cf. RÖWER, B. O Convento de Santo Antônio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 51 HOORNAERT, Eduardo. A Igreja Católica no Brasil Colonial. In: BETHELL, Leslei (org.). História da América Latina: A América Latina Colonial. 1. 2ed. São Paulo/Editora da Universidade de São Paulo; Brasília/Fundação Alexandre Gusmão, 1998. 52 Para mais, ver: HOORNAERT, Eduardo. A Igreja no Brasil-Colônia (1550-1800). São Paulo: Brasiliense, 1982.; HOORNAERT, Eduardo (coor.). História Geral da Igreja na América Latina: História da Igreja no Brasil. v1. Petrópolis: Vozes, 1979. 53 STAUTON, George Leonard. A embaixada de lorde Macartney à China. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Visões do Rio de Janeiro Colonial: antologia de textos (1531-1800), p.237. 23 das outras ordens que se instalaram na colônia ao longo dos séculos XVI e início do XVII –– franciscanos, beneditinos e carmelitas. Desde o início de suas atividades em terras americanas, os religiosos perceberam que a gente instalada na terra estava tão entregue aos pecados54 quanto os gentios e que era preciso atacar o problema com energia, pois os maus hábitos do branco, inclusive, contaminavam moralmente os nativos, dificultando a sua adesão aos ditames da religião católica –– como poderiam aderir à vida virtuosa se viam os supostos cristãos comportarem-se sistematicamente como pecadores. Diante de situação tão difícil, Nóbrega, logo que desembarcou na Bahia e inteirou-se do estado das coisas no lugar, tomou as providências que estavam naquele momento ao seu alcance: Eu prego ao governador e a sua gente na nova cidade que se começa, e o padre Navarro à gente da terra. Espero em Nosso Senhor fazer-se fruto, posto que a gente da terra vive em pecado mortal, e não há nenhum que deixe de ter muitas negras das quais estão cheios de filhos e é grande mal. Nenhum deles se vem confessar; ainda queira Nosso Senhor que o façam depois. O irmão Vicente Rijo ensina a doutrina aos meninos cada dia e também tem escola de ler e escrever; parece-me bom modo este para trazer os índios desta terra, os quais tem grandes desejos de aprender e, perguntados se querem, mostram grandes desejos.55 A vida de pecados dos colonos, no entanto, demandava atenção e cuidados extras. Os vícios, que eram muitos, estavam cristalizados e exigiam, para serem coibidos, um empenho constante de evangelização, de pregação sobre as leis de Deus e sobre os castigos reservados aos pecadores, único modo de trazer aquelas almas desgarradas de volta à vida cristã. Já em 1551, dois anos depois do desembarque dos primeiros irmãos da Companhia de Jesus, o padre Leonardo Nunes,56 escrevia aos confrades de Coimbra: Anse apartado muchos ombres de peccados públicos en que estavan, dado que ay muchos muy enduricidos. Algunos hombres de los que estavão amancebados con indias se casavan con ellas, que será 15 ó 16 y ahora andan otros 7 ó 8 para hazer lo mismo; y otros que eran casados allá en el Reyno se 54 Cf. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989. 55 NÓBREGA, Manuel da. I. Ao padre mestre Simão Rodrigues de Azevedo (1549). In: _______. Cartas do Brasil, 1549-1560, p. 72. 56 O missionário e professor Leonardo Nunes nasceu em São Vicente da Beira, bispado da Guarda, e morreu a 30 de junho de 1554. Entrou na Companhia, em Coimbra, já sacerdote, no dia 6 de fevereiro de 1548. No ano seguinte embarcou para o Brasil, com Nóbrega, e nesse mesmo ano, fins de 1549 ou princípios de 1550, chegou a São Vicente dando começo a uma espécie de seminário ou colégio, onde os filhos da terra aprendiam português, a ler a escrever e alguns mais hábeis latim. Por este título é o fundador da instrução no atual estado de São Paulo. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo IX, p. 16 24 apartaran aquá de llas mancebas, y otros solteros después de lexar las indias o escravas se casaron con hijas de hombres blancos.57 Nóbrega, no mesmo 1551 e escrevendo aos mesmos irmãos de Coimbra é ainda mais enfático e não poupa nem mesmo os sacerdotes instalados na terra, carentes, eles também, de conhecerem a palavra do Senhor e de se guiarem pelos seus mandamentos. Logo que desembarca em Pernambuco, vindo da Bahia de Todos os Santos, o líder dos jesuítas no Brasil registra na sua missiva: Havia cá mui pouco cuidado de salvar as almas; os sacerdotes que cá havia estavam todos nos mesmos pecados dos leigos, e os demais irregulares, outros apóstatas e excomungados. Alguns conheceram seu pecado e principalmente um pediu perdão a todo o povo com muita edificação. Alguns foram contumazes não dizem missa e andam como encartados sem aparecerem, por seus erros serem mui públicos e escandalosos; outros nos amam de muito. Estavam todos os homens cá em grande abusão que nãocomungavam quase todos por estarem amancebados e, todavia, os absolviam sacramentalmente, de maneira que pelas Constituições ficavam excomungados e homens havia 20 anos que estavam nesta terra sem comungarem. Tudo vai se remediando como Nosso Senhor ensina.58 Nóbrega retorna ao tema meia década mais tarde, ainda se lamentado do quanto os colonos continuavam engolfados nos vícios e o quão pouco os padres, ocupados que estavam com mil afazeres, sobretudo com a conversão do gentio, eram incapazes de atendê-los adequadamente. Em carta enviada da Bahia para Lisboa em 1557, o padre comenta: Com os cristãos fazemos cá pouco, porque aos mais temos cerradas as portas das confissões, e de milagre achamos um, que seja capaz da absolvição, como por vezes lá é escrito, e não sinto poder-se a estes dar remédio; senão o que me parece, que não se há de por, é para nós grande.59 O visitador Fernão Cardim, por volta de 1590, também se mostra atento ao problema e comenta no seu relatório que o comportamento dos colonos quase não se alterara desde à chegada da Companhia, que os homens livres da terra persistiam mergulhados em vícios e pecados, e que o amparo que os religiosos lhes davam era insuficiente e intermitente, pois os poucos padres disponíveis não tinham tempo e energia suficientes para atender as almas 57 NUNES, Leonardo. DO P. Leonardo Nunes aos padres e irmãos de Coimbra. S. Vicente 20 de junho de 1551. In: LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. Volume I. São Paulo: Comissão do IV Centenário da cidade de São Paulo, 1954, p. 233. 58 NÓBREGA, Manuel da. VIII. Para os irmãos do colégio de Jesus de Coimbra (1551). In: _______. Cartas do Brasil, 1549-1560, p. 119. 59 NÓBREGA, Manuel da. XVIII. Para o provincial de Portugal (1557). In: _______. Cartas do Brasil, 1549- 1560, p. 172. 25 desgarradas e os gentios –– àquela altura, o alvo principal da catequese jesuíta no Novo Mundo. O quadro, segundo comenta Cardim, exigia uma intervenção urgente, pois era preocupante: Os encargos de consciência são muitos, os pecados que se cometem neles não tem conto; quase todos andam amancebados por causa das muitas ocasiões; bem cheio de pecados vai esse doce, porque tanto fazem: grande é a paciência de Deus, que tanto sofre. 60 Por essa altura, inclusive –– ocaso do século XVI ––, os padres, ainda que não contassem com os meios necessários para atender devidamente as necessidades espirituais dos colonos e dividissem os poucos meios de que dispunham entre o atendimento destes e a conversão dos gentios, sabiam exatamente quais os problemas mais imediatos deveriam ser combatidos para melhorar a qualidade moral dos colonos. Pelos menos três aspectos pareciam-lhes centrais. Primeiramente, batizar os não batizados e traze-los para a vida católica, obrigando-os a ouvir missa, participar de procissões e pregações, confessar frequentemente e, sobretudo, a instruírem-se sobre as leis de Deus. Uma vez atraídos para a vida cristã, era preciso erradicar entre os colonos o amancebamento, já que era raro entre eles os que mantinham com suas companheiras, muitas já mães de seus filhos, relações reconhecidas e abençoadas pela igreja. Recorramos novamente ao padre Fernão Cardim que, em diversas passagens de seu detalhado relatório acerca do estado dos colégios e missões da Companhia no Brasil, destaca o incansável esforço que os padres vinham fazendo nesse sentido: Muitas missões se fizeram por ordem do padre visitador nestes dois anos pelos engenhos e fazendas dos portugueses; nelas se colheu copioso fruto e se batizaram passante de três mil almas, e se casaram muitos em lei de graça, tirando-os de amancebamentos, ensinando-lhes a doutrina, pondo os discordes em paz, e se fizeram outros muitos serviços a Nosso Senhor. Quanto os nossos padres vão a estas missões são mui bem recebidos de todos, bem providos do necessário, com grande amor e caridade.61 Era preciso combater igualmente a vaidade e o luxo, vícios que impediam o cristão de levar uma vida desprendida do mundo e devotada a Deus. O mundanismo, a propósito, era, segundo os padres, um mal muito comum nesta terra, uma terra de muitos escravos e de 60 CARDIM, Fernão. Informação da missão do P. Christovão de Gouvêa às partes do Brasil anno de 83, ou Narrativa Epirtolar de uma Viagem e Missãi Jesuitica Pela Bahia, Ilheos, Porto Seguro, Pernambuco, S. Vicente, (S. Paulo), etc., desde o ano de 1583 ao de 1590, indo por visitador o P Christovão de Gouvêa Escripta em duas Cartas ao P. Provincial em Portugal. In:_______. Tratados da terra e gente do Brasil. Introduções e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolpho Garcia. Rio de Janeiro: J. Leite & Cia, 1925, p.321 61 CARDIM, Fernão. Informação da missão do P. Christovão de Gouvêa às partes do Brasil anno de 83, ou Narrativa Epirtolar de uma Viagem e Missãi Jesuitica Pela Bahia, Ilheos, Porto Seguro, Pernambuco, S. Vicente, (S. Paulo), etc., desde o ano de 1583 ao de 1590, indo por visitador o P Christovão de Gouvêa Escripta em duas Cartas ao P. Provincial em Portugal. In: _______. Tratados da terra e gente do Brasil, p.322. 26 enriquecimento rápido, cujo modo de vida dos colonos livres e abastados, excessivamente dispendioso e ostentatório, quase não deixava lugar para as coisas do espírito, para os negócios de Deus. Ilustrativo, nesse sentido, é uma passagem da Informação da missão do P. Cristóvão de Gouvêa às partes do Brasil ano de 83, ou Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão Jesuítica Pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, São Vicente, São Paulo, etc., onde o padre Fernão Cardim descreve a pompa em que viviam os colonos ricos de Pernambuco: A gente da terra é honrada: há homens muito grossos de 40, 50 e 80 mil cruzados de seu: alguns devem muito pelas grandes perdas que tem com escravaria de Guiné, que lhe morrem muito, e pelas demasias e gastos grandes que tem em seu tratamento. Vestem-se, e as mulheres e filhos de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisto tem grandes excessos. As mulheres são muito senhoras, e não muito devotas, nem frequentam as missas, pregações, confissões etc.: os homens são tão briosos que compram ginetes de 200 e 300 cruzados, e alguns tem três, quatro cavalos de preço. São mui dados a festas. Casando uma moça honrada com um vianez, que são os principais da terra, os parentes e amigos se vestiram uns de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco e outras sedas de várias cores, e os guiãos e selas dos cavalos eram das mesmas sedas de que iam vestidos. Aquele dia correram touros, jogaram canas, pato, argolinha, e vieram dar vista ao colégio para os ver o padre visitador; e por esta festa se pode julgar que o farão nas mais, que são comuns e ordinárias. São sobretudo dados a banquetes, em que de ordinário andam comendo um dia dez ou doze senhores de engenhos juntos, e revezando-se desta maneira gastam quanto tem, e de ordinário bebem cada ano 50 mil cruzados de vinhos de Portugal; e alguns anos beberam oitenta mil cruzados dados em rol. Em fim em Pernambuco se acha mais vaidade que em Lisboa.62 Desde o desembarque em companhia do primeiro Governador Geral Tomé de Souza, os jesuítas sabiam, pois, que os colonos estavam vivendo uma vida de pecados e que, por razões diversas, não contavam com o amparo religioso necessário para abandoná-la. O problema tornou-se mais saliente à medida que a colonização e a catequização avançaram. O alvo principal da atividade missionária, o gentio, mostrava-se impermeável aos princípios da religião católica e frustrava todo o esforço de conversão. Passados alguns anos, não havia nem mesmo gentios à mão para converter, pois, os que não tinham morrido, tinham se retirado parao sertão, longe das cidades, dos engenhos e da vista dos padres missionários. A distância tornou o já difícil e pouco satisfatório trabalho de conversão do gentio ainda menos atrativo para os religiosos, que começavam a desfrutar de uma vida mais estável e confortável nos colégios e residências erguidos no interior das cidades litorâneas –– São Paulo de Piratininga, como se 62 CARDIM, Fernão. Informação da missão do P. Christovão de Gouvêa às partes do Brasil anno de 83, ou Narrativa Epirtolar de uma Viagem e Missãi Jesuitica Pela Bahia, Ilheos, Porto Seguro, Pernambuco, S. Vicente, (S. Paulo), etc., desde o ano de 1583 ao de 1590, indo por visitador o P Christovão de Gouvêa Escripta em duas Cartas ao P. Provincial em Portugal. In: _______. Tratados da terra e gente do Brasil, p.334-335. 27 sabe, é uma exceção –– ou nas suas imediações. Colonização e conversão do gentio não seguiam mais a mesma trilha. O gradativo apagamento do gentio deu-se em paralelo a consolidação e crescimento dos núcleos urbanos –– espaços pouco frequentados pelos nativos ––, e a vida nas cidades trouxe para o centro das atenções dos religiosos63 –– jesuítas, franciscanos, beneditinos e carmelitas – – um mundo de problemas que não diziam respeito aos gentios, mas estavam intimamente relacionados ao avanço da colonização e à propagação da fé católica, problemas relacionados ao atendimento das necessidades materiais –– socorrer os enfermos, acolher os órfãos, alimentar os famintos que perambulavam pelas ruas, etc. –– e espirituais dos colonos –– educa-los, de modo que pudessem entender a doutrina católica, e ampará-los moralmente, corrigindo os inúmeros vícios que cultivavam e que os afastavam de Deus e do caminho da salvação. A consolidação dos núcleos urbanos64 e o desaparecimento dos gentio –– cada vez mais afastado da civilização –– mudou o objetivo dos religiosos, melhor, levou a uma troca de prioridades: ao invés de angariar milhões de novas almas para o reino de Deus na terra, importava agora construir uma colônia cristã e ordeira no Novo Mundo, uma colônia onde os colonos e seus escravos africanos respeitassem o Rei e seus representantes, e fossem tementes a Deus e às suas leis, representados ali pelos religiosos. A nova meta, contudo, também não era simples de ser alcançada. O colono era arredio e acostumava-se rapidamente a viver como um gentio, a sua capacidade de aprender e absorver a doutrina católica era quase tão limitada quanto a dos nativos e os meios que se dispunham os religiosos não pareciam suficientes. A missão não se tornou menos árdua com o passar do tempo, mas, a partir do início do século XVII, com o avanço da colonização, os meios se tornaram mais abundantes e a formação moral e religiosa do colono, o novo eixo de atenção dos religiosos, pode avançar e prosperar. É esse processo de consolidação dos meios e avanço da formação moral católica entre os colonos que abordaremos no próximo capítulo. 63 VEIGA, Eugênio de Andrade. Os Párocos no Brasil no Período Colonial (1500-1822). Salvador: Editora Cidade do Salvador, 1977. 64 AZEVEDO, Aroldo de. Vilas e cidades do Brasil Colonial: ensaio de geografia urbana retrospectiva. Anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros Tomo I (09), 1954-55, São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros, 1957, p. 147-162.; DEFFONTAINES, P. Como se Constituiu no Brasil a Rêde de Cidades. Rio de Janeiro: Boletim Geográfico, v. 2 (14), 1944, p. 139-151.; GEIGER, Pedro P. Evolução da Rede Urbana Brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – Ministério da Educação e Cultura, 1963.; HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. Brasília: UnB, 1963.; NOVAIS, F. A. Condições da privacidade na colônia. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da Vida Privada: cotidiano na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 13-40.; OLIVEIRA, Francisco de. O Estado e o Urbano no Brasil. São Paulo: Espaço & Debates, n.06, 1982, p. 27-41. 28 II. A FORMAÇÃO DOUTRINAL E MORAL DOS COLONOS 2.1 As casas religiosas e o ensino católico Desde 1560, os colégios instituídos pela Companhia de Jesus no Brasil já possuíam como propósito principal a formação de colonos religiosos e leigos, e constituíram-se até meados do século XVIII, quando os jesuítas foram expulsos dessas terras, como os principais centros de formação sacerdotal e dos quadros administrativos e militares da colônia.65 Ainda que não fosse obrigação dos colégios jesuítas aceitarem estudantes externos, pois, segundo os próprios religiosos, eles lecionavam por “caridade” e “amor ao próximo”, tais instituições possuíram caráter público e foram fundamentais para a formação doutrinal e moral dos habitantes do Brasil, em particular, dos colonos. Antes, porém, de ingressarem nos colégios, os filhos de portugueses nascidos nos trópicos realizavam seus primeiros estudos nas casas jesuítas inauguradas em 1549, quando os primeiros inacianos aportaram no Brasil, e que serviam como uma espécie de prolongamento da catequese para índios e colonos, pois buscavam ensinar os meninos a ler, escrever e cantar.66 Todavia, durante o século XVI, o objetivo último do ensino jesuíta, e que justificava a fundação de casas e, sobretudo, dos colégios, “não foi abrir estudos para os filhos dos portugueses, senão criar ministros para a conversão”.67 Foi a partir do século XVII que os colégios jesuítas começaram a investir sistematicamente na formação dos colonos, por se tratar de um período no qual o contingente de portugueses e escravos de Guiné aumentava cada vez mais, produzindo uma sociedade mais heterogênea, complexa, e com outras demandas, que não mais se restringiam ao ministério dos índios, os quais, a essa altura, eram concebidos pelos missionários da Companhia como uma “vinha estéril”.68 Em 1605, o padre Pero Rodrigues encarava com otimismo os progressos dos alunos das instituições jesuítas presentes na capitania da Bahia, cabeça do Estado do Brasil. Dizia o religioso que, no recôncavo, havia “estudos públicos das faculdades que os padres costumavam 65 LAGE, Lana. As constituições da Bahia e a reforma tridentina do clero no Brasil. In: FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifest, 2001, p. 161. 66 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo II. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006. p. 79-80. 67 SOARES, Gabriel. Capítulos, Bras. 1, 386 v (26,27) apud LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006, p. 470. 68 É importante ressaltar que, embora os jesuítas do Brasil comecem a investir na educação doutrinal e moral dos colonos católicos, o trabalho com os índios aldeados não é deixado de lado. As estratégias de conversão e doutrinação são repensadas, bem como a forma como os jesuítas passam a conceber o seu lugar na colônia. A propósito do fracasso do projeto missionário dos jesuítas e da maneira como esses religiosos começaram a encarar a conversão os índios na passagem do século XVI para o XVII, conferir: L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Bauru: Edusc, 2006. 29 ensinar que são ler, escrever, contar, lições de humanidades, curso em que se graduam em mestre em Artes e Teologia moral e especulativa, donde saem muitos bons filósofos, artistas e pregadores”.69 Além do colégio da Bahia, – o primeiro fundado nessas paragens, e o que mais contribuiu com a formação dos colonos – os jesuítas fundaram ou reorganizaram, a partir do Seiscentos, outros
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