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1 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 2 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 3 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores Unesp - Universidade Estadual Paulista Reitor: Prof. Dr. Pasqual Barretti Vice-Reitora: Profa. Dra. Maysa Furlan Ibilce – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas Campus de São José do Rio Preto – SP – Brasil Diretor: Prof. Dr. Júlio César Torres Vice-Diretor: Prof. Dr. Fernando Barbosa Noll Programa de Pós-Graduação em Letras Coordenador: Prof. Dr. Pablo Simpson Kilzer Amorim Vice-Coordenador: Prof. Dr. Claudio Aquati A presente publicação foi realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Processo n. 2018/0747, por meio do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP de São José do Rio Preto. Grupo de Pesquisa Narrativas maravilhosas, míticas ou populares Líder: Profa. Dra. Maria Celeste Tommasello Ramos Vice-líder: Prof. Me. Guilherme Augusto Louzada Ferreira de Morais Conselho editorial e Revisão geral: Cláudia Maria Ceneviva Nigro Gisele de Oliveira Bosquesi Guilherme Augusto Louzada Ferreira de Morais Maria Celeste Tommasello Ramos Patrícia Aparecida Gonçalves de Faria Editoração eletrônica e Arte da capa: Carlos Cesar Corrêa - cesarius38@hotmail.com (capa sobre obra do pintor John-William-Waterhouse 1849/1917) Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 4 Maria Celeste Tommasello Ramos (Organizadora) São José do Rio Preto - SP UNESP/IBILCE 2021 Adriana Aparecida de Jesus Reis Adriana Lins Precioso Cláudia Maria Ceneviva Nigro Eucimara Regina Santana Segundo Gisele de Oliveira Bosquesi Guilherme Augusto Louzada Ferreira de Morais Karin Volobuef Leandro Passos Luana Passos Maria Celeste Tommasello Ramos Matheus dos Santos Bueno Patrícia Aparecida Gonçalves de Faria Patrícia Helena Mazucchi-Saes Pedro Henrique Pereira Graziano Regiane Rafaela Roda Therezinha Maria Hernandes Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 5 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores C755 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores [recurso eletrônico] / Maria Celeste Tommasello Ramos (Organizadora) ; Adriana Aparecida de Jesus Reis... [et. al.]. - São José do Rio Preto : UNESP/IBILCE, 2021 268 p. E-book Requisito do sistema: Software leitor de pdf Modo de acesso: <https://omaravilhosoeseusarredores.wordpress.com Ou PPG Letras: https://www.ibilce.unesp.br/#!/pos-graduacao/programas- de-pos-graduacao/letras/publicacoes-do-ppg/ ISBN 978-65-990334-8-3 1. Literatura - História e crítica. 2. O maravilhoso na literatura. 3. Contos. 4. Romances. I. Ramos, Maria Celeste Tommasello. II. Reis, Adriana Aparecida de Jesus. III. Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. CDU – 8-344.09 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto Bibliotecária: Luciane A. Passoni CRB-8 7302 As ideias e opiniões expressas em cada texto são de responsabilidade exclusiva de seu(s) respectivo(s) autor(es). Copyright 2021 - Grupo de Pesquisa Narrativas maravilhosas, míticas ou populares Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. UNESP/IBILCE Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas Câmpus de São José do Rio Preto Rua Cristóvão Colombo, 2265 - Jardim Nazareth São José do Rio Preto/SP CEP 15054-000 www.ibilce.unesp.br Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 6 SUMÁRIO Prefácio .........................................................................................................08 O maravilhoso em literaturas nacionais 1) O conto maravilhoso no Brasil: folclore e literatura, de Karin Volobuef ..15 2) O maravilhoso em narrativas curtas italianas: as fiabe pelos séculos, de Maria Celeste Tommasello Ramos ................................................................28 3) O maravilhoso político no herói/heroína inglês/a, de Cláudia Maria Ceneviva Nigro ..............................................................................................45 4) Os contos maravilhosos franceses e os Contos da mamãe gansa de Charles Perrault, de Guilherme Augusto Louzada Ferreira de Morais .......................56 O maravilhoso traduzido e comentado 5) “O pássaro Belverde”: tradução comentada de “L’augel bel verde do pioneiro do conto maravilhoso literário Giovan Francesco Straparola, de Eucimara Regina Santana Segundo e Maria Celeste Tommasello Ramos ....72 6) Giambattista Basile, O conto dos contos e a tradução comentada de “O cadeado”: o maravilhoso na Itália barroca, de Adriana Aparecida de Jesus Reis e Maria Celeste Tommasello Ramos ...............................................................90 Analisando o maravilhoso e seus arredores 7) O maravilhoso e o mitológico de Alberto Moravia em “Il vitello marino”, de Gisele de Oliveira Bosquesi ....................................................................106 8) O maravilhoso e o mítico no conto roseano “Nada e a nossa condição”: da narrativa literária à cinematográfica, de Patrícia Helena Mazucchi-Saes .... 119 9) Graciliano Ramos e a manifestação do maravilhoso mitológico na caracterização de Dom Quixote em sua crônica “O Dr. Jacarandá”, de Patrícia Aparecida Gonçalves de Faria .....................................................................131 10) Luciano de Crescenzo e o maravilhoso topológico em Così parlò Bellavista, de Matheus dos Santos Bueno ...................................................143 7 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 11) Os desdobramentos do alegórico e do fantástico na Contística de Caio Fernando Abreu, de Pedro Henrique Pereira Graziano ..................................164 12) Revisitando os contos de fadas: o amor sertanejo em Primeiras estórias de João Guimarães Rosa, de Adriana Lins Precioso ..........................................174 13) Maravilhoso e Realismo Animista reflexivos em Marina Colasanti e Conceição Evaristo, de Leandro Passos .......................................................193 14) A descida aos infernos e a ascensão aos céus: o percurso mítico de um herói humano nA divina comédia, de Regiane Rafaela Roda ......................207 15) Por que as sereias penteiam os cabelos? Uma viagem de Sedna a Rusalka e A Sereiazinha de Andersen, de Therezinha Maria Hernandes ..................233 16) Realismo animista no conto afro-brasileiro “N’Jô e o pé de feijão, Fradinho”, de Luana Passos .........................................................................254 Sobre os autores .........................................................................................265 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 8 PREFÁCIO Aqui reunimos estudos literários que enfocam o maravilhoso e seus arredores na Literatura brasileira, na Literatura italiana, na Literatura inglesa e na Literatura francesa. Alguns analisam narrativas curtas constituídas por representações do maravilhoso, entendido como a manifestação do sobrenatu- ral no interior do texto literário, onde é visto como normal, o que já acontece desde a Antiguidade na representação literária dos mitos. Desde as eras mais remotas até hoje, o sobrenatural continua despon- tando em produções literárias, seja em forma de contos maravilhosos, contos de fadas, mitos, narrativas revisionistas, etc. Como afirma Marinho (2009, p. 32), em Poéticas do maravilhoso no cinema e na literatura, “podemos consi- derar o maravilhoso como um grande gênero narrativo que estendeseus tentá- culos através dos séculos, justamente porque ele abrange uma diversidade de obras”, chegando até as narrativas cinematográficas. Pensando assim, reunimos estudos realizados tanto pelos membros do Grupo de Pesquisa “Narrativas maravilhosas, míticas ou populares” (cadastra- do no CNPq, sob a liderança de Maria Celeste Tommasello Ramos e Guilher- me Augusto Louzada Ferreira de Morais) quanto por convidados que partici- param como conferencistas na disciplina “Vertentes e expressões de Literatura Estrangeira: o conto maravilhoso”, oferecida durante o segundo semestre de 2020, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP de Rio Preto (sob a responsabilidade de Maria Celeste Tommasello Ramos e Cláudia Maria Ceneviva Nigro) e por convidados que participaram da série de programas gravados promovida pelo Grupo de Pesquisa sob título “Passeios pelo maravi- lhoso”, divulgada por meio de canal no Youtube. Os estudos literários aqui reunidos circulam entre o maravilhoso e seus arredores como o mitológico, o fantástico, o realismo animista, o viés mara- vilhoso topológico, etc., e estão divididos em três partes, sendo a primeira delas intitulada “O Maravilhoso em literaturas nacionais”, com destaque para as Literaturas brasileira, italiana, inglesa e francesa. A segunda parte contem- pla “O Maravilhoso traduzido e comentado” e traz duas traduções comentadas de contos maravilhosos italianos. Para encerrar, a terceira parte, que recebe o título “Analisando o maravilhoso e seus arredores”, apresenta os estudos que analisam textos literários seja pelas perspectivas do Maravilhoso ou por aque- las que estão nos seus arredores. Assim, o primeiro estudo recebe o título “O conto maravilhoso no Bra- sil: folclore e literatura”, de autoria da especialista em estudos sobre os contos de fadas literários Karin Volobuef, docente da FCL – UNESP de Araraquara, que delineia a coleta de contos maravilhosos e outros materiais folclóricos no 9 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores Brasil e no resto do mundo, mostrando que tal atividade recebeu um impulso decisivo em nosso país quando diversos escritores e folcloristas se sentiram inspirados pelos estudos realizados pelos irmãos Grimm na Alemanha, durante o Romantismo. Entre nós, o folclore narrativo fluiu para as obras literárias de autores como José de Alencar, Bernardo Guimarães e outros. A reunião de contos populares foi empreendida sob diversas perspectivas e por grande número de pesquisadores, dos quais recebem atenção especial as contribuições de Couto de Magalhães, Silvio Romero, Lindolfo Gomes e Câmara Cascudo. O segundo estudo recebe o título “O maravilhoso em narrativas cur- tas italianas: as fiabe pelos séculos”, de autoria de Maria Celeste Tommasello Ramos, docente da UNESP de São José do Rio Preto e pesquisadora PQ do CNPq, que traça um panorama do conto maravilhoso na Itália, sob a ótica do gênero de narrativas chamado fiaba em língua italiana, e discorrendo sobre dez autores italianos bastante significativos na produção nesse gênero. Ao mesmo tempo em que autores e obras são apresentados, um conto maravilhoso per- tencente a cada uma das obras é mencionado, para exemplificar um pouco os enredos que se centram no mágico na literatura. O terceiro estudo, intitulado “O maravilhoso político no herói/heroína inglês/a”, de autoria de Cláudia Maria Ceneviva Nigro, docente da UNESP de São José do Rio Preto, aponta que na mitologia clássica o conceito de herói constrói-se sobre o homem cujo berço divino ou poderoso está esquecido e precisa ser resgatado. Trata-se do semideus, do príncipe, ou do homem valo- roso, injustiçado ou esquecido. Essa personagem fará sua jornada espinhosa e terá finalmente a glória estabelecida; um percurso individual de sofrimento que termina em notoriedade, reconhecimento ou conquista. Apesar dessa mitologia abarcar nossa sociedade ocidental, no mundo anglófono há uma mistura da mitologia hebraico-cristã com a mitologia celta, dentre outras. O objetivo deste estudo incide sobre as dissonâncias do modelo clássico em heróis e heroínas da Grã-Bretanha, apontando como o maravilhoso na ilha é revestido do políti- co. Para esse percurso, o ponto de partida reside em obras literárias lendárias, aquelas em que o mito e a verdade histórica se interligam. O quarto estudo, intitulado “Os contos maravilhosos franceses e os Contos da mamãe gansa de Charles Perrault”, é de autoria de Guilherme Au- gusto Louzada Ferreira de Morais, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP de São José do Rio Preto. Parte-se da consideração de que os contos de fadas, antes mesmo de serem reunidos em livros, eram trans- mitidos de geração em geração por meio da oralidade. A partir do Renasci- mento, começaram a circular pela Europa antologias e coletâneas que, como sabemos, são o resultado do trabalho de eruditos que registraram essas antigas histórias de magia. O estudo envolve a produção literária relacionada à França e aos contos maravilhosos, e dentre aqueles escritores franceses que recorre- Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 10 ram às histórias do folclore nacional para preservá-las e/ou utilizá-las como fonte de criação literária, dando-lhes as tintas de sua personalidade e tempo, a perspectiva principal recai sobre Charles Perrault e sua produção literária. Sua principal obra é conhecida como Contos da mamãe Gansa, e é considerada por estudiosos um divisor de águas no que diz respeito à História dos contos de fadas e da Literatura Infantil. Iniciando a parte que traz as traduções comentadas de contos maravilho- sos, apresentamos “‘O pássaro Belverde’: tradução comentada de ‘L’augel bel verde’ do pioneiro do conto maravilhoso literário Giovan Francesco Straparo- la”, Eucimara Regina Santana Segundo, (pós-graduanda em Letras da UNESP de São José do Rio Preto) e Maria Celeste Tommasello Ramos apresentam a tradução para o português de um dos mais conhecidos contos do pioneiro italiano, contido em sua obra prima Le piacevoli notti (Noites agradáveis). Tal tradução é introduzida por explicações, comentada em notas e seguida por um enigma, também presente na obra original. Por fim, são tecidas considerações a respeito de questões interpretativas e ligadas à tradução literária dessa história para público infantil e adulto, realizada a partir de um original escrito há quase quinhentos anos. Em seguida, em “Giambattista Basile, O conto dos contos e a tradução comentada de ‘O cadeado’: o maravilhoso na Itália barroca”, de autoria de Adriana Aparecida de Jesus Reis (pós-graduanda do Programa de Pós-Gradua- ção em Letras da UNESP de São José do Rio Preto) e Maria Celeste Tomma- sello Ramos que apresentam considerações a respeito da produção literária de Giambattista Basile (1575-1632) e sua inserção no Barroco italiano, além da tradução comentada do conto “O cadeado” (fiaba IX, giornata II) presente no livro Lo cunto de li cunti (O conto dos contos), também chamado de Pentame- rone (Pentamerão), desse escritor napolitano. Tal narrativa traça certa relação intertextual com o mito de Cupido/Eros e Psiquê, narrado nos livros IV, V e VI do romance romano O asno de Ouro ou Metamorfoses, escrito por Lucio Apuleio no século II d. C. As autoras/tradutoras tecem reflexões a respeito do sentimento da inveja, ponto importante na trama do conto traduzido, após a apresentação da tradução e do original em italiano. Assim, a intenção das estudiosas é divulgar o escritor napolitano no Brasil e sua relação com a mito- logia greco-romana, apresentar uma tradução da narrativa curta estudada e, ao mesmo tempo, apresentar considerações a respeito da inserção do escritor no Barroco e questões relativas à inveja. O estudo que abre a parte dedicada às análises sobre o Maravilhoso e seus arredores, sétimo na ordem geral desta publicação, recebe o título “O maravilhoso e o mitológico de Alberto Moravia em ‘Il vitello marino’”,e é de autoria de Gisele de Oliveira Bosquesi, docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em Porto Alegre, que nos apresenta uma análise do conto 11 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores “Il vitello marino”, do escritor italiano Alberto Moravia, presente na coletânea Racconti surrealisti e satirici. A análise volta-se para a maneira como o autor mobiliza os temas da fantasia em sentido amplo, incluindo o maravilhoso e a mitologia, para construir uma reflexão consoante com o caráter crítico da obra. Veremos que os elementos maravilhosos presentes ou citados no conto, o bezerro marinho, a mulher-gato e a sereia, são referências a um universo que, além de se contrapor ao estrito realismo praticado pelo autor na maioria de suas obras, colabora para que seja posto em realce o papel da convenção cole- tiva e da tradição literária na efetiva legitimação destes seres enquanto parte do paradigma de mundo dos personagens. No oitavo estudo, intitulado “O maravilhoso e o mítico no conto ro- seano ‘Nada e a nossa condição’: da narrativa literária à cinematográfica”, de autoria de Patrícia Helena Mazucchi-Saes, docente da UNIP de São José do Rio Preto, o objetivo foi refletir sobre a representação do maravilhoso e do mítico no conto roseano “Nada e a nossa condição” na sua versão literária e na transmutação fílmica Outras estórias, de Pedro Bial (1999). Para tanto, a autora investigou o processo de transposição do literário ao fílmico, por meio da análise do conto, para determinar quais os eixos de leitura que o texto li- terário verbal motivou na ordenação e construção da representação fílmica. O percurso analítico demonstra que o texto original e a recriação fílmica permi- tem leituras míticas, além de conduzirem o leitor, pela narrativa, ao mundo maravilhoso da história romanesca. Na sequência, Patrícia Aparecida Gonçalves de Faria, docente da UNISAGRADO de Bauru – SP, em “Graciliano Ramos e a manifestação do maravilhoso mitológico na caracterização de Dom Quixote em sua crônica ‘O Dr. Jacarandá’”, faz investigação comparativa entre as narrativas “O Dr. Jacarandá”, de Graciliano Ramos, publicada na obra póstuma Viventes das Alagoas (1962) e Dom Quixote de La Mancha (1605 e 1615), escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes Saavedra a fim de observar a manifestação aspectos do mito literário de Dom Quixote na caracterização do protagonista da crônica “O Dr. Jacarandá”. No décimo estudo, intitulado “Luciano de Crescenzo e o maravilhoso topológico em Così parlò Bellavista”, de autoria de Matheus dos Santos Bue- no, Mestre em Letras pela UNESP de São José do Rio Preto, ficamos sabendo que o registro artístico sobre Nápoles é profícuo entre os artistas napolitanos. Luciano De Crescenzo é um deles que, em Così parlò Bellavista: Napoli, amo- re e libertà (1977), descreve a cidade exaltando suas qualidades mais célebres. Desse modo, os diálogos presentes no romance entre o professor Bellavista e seus outros colegas napolitanos revelam ao leitor como tal espaço pode ser vislumbrado pelo viés do mítico e do maravilhoso, se observarmos que, me- diante a exaltação dos atributos da cidade, principalmente pelo uso do tom hi- Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 12 perbólico presente nas falas de Bellavista usadas para convencer seus colegas de que Nápoles é incomparável, e por meio da recordação positiva e afetiva em relação à cidade, no que concerne aos outros personagens, percebe-se a categorização do topológico por meio do mítico e do maravilhoso. Em “Os desdobramentos do alegórico e do fantástico na Contística de Caio Fernando Abreu”, de autoria de Pedro Henrique Pereira Graziano, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP de São José do Rio Preto, é analisado o conto “O ovo”, do livro de contos Inventário do ir-remediável, do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, com o objetivo de verificar como o escritor se vale de uma espécie de fantástico alegórico, que estaria, de certa maneira, incluído no grande leque do maravilhoso, para retomar questões sociais do Brasil nos anos de 1970, apontando aconteci- mentos do período militar brasileiro. Com base nas considerações de Genette (1979), Ceserani (2006) e Benjamin (1984), demonstra-se como a construção do conto trabalha com uma série de alegorias, fazendo com que o leitor esteja constantemente participando do jogo entre a confirmação ou a dissolução do fantástico que é sugerido ao longo do texto com base nos acontecimentos insólitos que são progressivamente descritos. No estudo seguinte, cujo título é “Revisitando os contos de fadas: o amor sertanejo em Primeiras estórias de João Guimarães Rosa “, de Adriana Lins Precioso, docente da UNEMAT de Sinop MT, são analisados os con- tos “Substância” e “Sequência”, da obra Primeiras estórias (1962) de João Guimarães Rosa. Na análise, verifica-se que ambos revisitam os contos ma- ravilhosos apropriando-se das invariantes contidas em sua estrutura clássica, sendo que o primeiro recupera traços sêmicos do conto da Gata Borralheira de Perrault, e o segundo organiza-se em torno do motivo arquetípico da viagem. O arcabouço teórico dessa análise baseia-se em Coelho (2008), Bosi (1994), Nunes (1970), Pacheco (2002), Frye (1977), Motta (1999) entre outros. Para além do processo de revisitação cujas funções das personagens e seus traços sêmicos são conservados, ocorre a atualização da configuração do espaço, do tempo e das personagens junto ao chão do interior do Brasil, circunscrito no sertão mineiro. A essência mítica dos arquétipos dos contos de fadas se projeta nesses contos, por meio da alquimia integradora do plano da expressão e do conteúdo, entrelaçada à isotopia temática do amor de acordo com a vertente platônica. No décimo terceiro estudo, intitulado “Maravilhoso e Realismo Ani- mista reflexivos em Marina Colasanti e Conceição Evaristo”, de Leandro Passos, docente do IFMS de Três Lagoas, são analisados os contos “Entre a espada e a rosa” de Marina Colasanti (1992, primeira publicação), e “A moça de vestido amarelo” de Conceição Evaristo (2016). O objetivo é apontar de que modo as autoras se valem da estética do conto maravilhoso e do Realismo 13 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores Animista para suscitar reflexão crítica sobre gênero e cultura afro-brasileira. São utilizados como base teórica os estudos de Todorov (2012), Garuba (2012) dentre outros. Por ser muito indicada para o público infanto-juvenil, no caso de Colasanti, e por serem pouco discutidas, ainda, questões sobre o Realismo Animista de cosmovisão africana, justificam-se os apontamentos neste texto. No décimo quarto estudo, intitulado “A descida aos infernos e a ascen- são aos céus: o percurso mítico de um herói humano nA divina comédia”, de Regiane Rafaela Roda, docente do IFMS de Corumbá, o olhar concentra-se sobre a Divina Comédia, do autor Dante Alighieri, cujo protagonista Dante conta sua visita ao mundo do além, guiado, principalmente, por Virgílio. Per- dido na selva do pecado, recebeu o privilégio de conhecer o destino do homem após a morte, assim como foi incumbido da missão de levar tal conhecimento àqueles que ainda poderiam ser salvos. Em seu percurso, Dante é testado, pu- rificado dos pecados, imerso nas águas divinas e seu conhecimento místico é provado pelos santos benfeitores. Considerado digno, ascende uma vez mais para contemplar a Divindade. Seu percurso mítico de ascensão, passando pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, demonstrou a elevação de sua alma e o trans- formou no herói mítico e maravilhoso, com uma característica superior que o destacou diante dos demais e o qualificou como exemplo e guia de toda a humanidade. No estudo seguinte, intitulado “Por que as sereias penteiam os cabelos? Uma viagem de Sedna a Rusalka e A Sereiazinha de Andersen”, de autoria de Therezinha Maria Hernandes, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em EstudosLiterários da UNESP de Araraquara, há a proposta de leitura do “mito da mulher das águas”, desde a tradição popular até suas herdeiras literárias no século XIX, porém desvinculando-as da ótica eurocêntrica, androcêntrica e etnocêntrica das análises tradicionais. Essa abordagem se faz a partir das descrições caracterizadoras escritas, mas também leva em conta a iconografia existente sobre personagens como as sereias homéricas, Ondina, Melusina e outras tantas. Com o intuito de diferenciá-las, o texto parte de dois critérios básicos: primeiramente, a relação dessas figuras femininas com o grande eixo temático da oposição vida/morte; em segundo lugar, a comparação de seus atributos, ponderando suas possivelmente distintas origens no imaginário de várias culturas. A partir desses dois fundamentos, pode-se constatar que pen- tear os cabelos não é da essência dessas figuras femininas, a não ser em uma única narrativa: a de Sedna, a grande Senhora das Águas da cultura Inuíte, indígena do extremo norte da América do Norte e parte do Ártico. Com isso, o texto espera oferecer uma visão do feminino ligada à concepção de mundo animista, cujo maior propósito é a manutenção do equilíbrio do ser humano com a natureza. O último estudo é de autoria de Luana Passos, doutoranda do Progra- Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 14 ma de Pós-Graduação em Letras da UNESP de São José do Rio Preto, e tem como título “Realismo Animista no conto afro-brasileiro ‘N’Jô e o pé de fei- jão, Fradinho”. O conto de autoria de Leandro Passos (2019) é analisado com perspectiva atrelada à reflexão a respeito do gênero maravilhoso em relação ao realismo animista. O objetivo da análise é apontar de que modo a cosmovisão africana-banto está imbricada nestes gêneros na narrativa do escritor afro-bra- sileiro. Para tanto, são utilizados os estudos de Todorov (2004), Garuba (2012) e Paradiso (2015), dentre outros. São dezesseis estudos aqui reunidos que se concentram nas questões relacionadas ao Maravilhoso na Literatura ou tocam nelas por girarem em seus arredores. Dessa forma, como já fica bem perceptível a partir dos resumos con- tidos neste prefácio, acolhemos reflexões feitas por variados olhares teórico- -metodológicos, visando contribuir para os estudos feitos no Brasil, a respeito deste fértil terreno de investigação. Nós do Grupo de Pesquisa “Narrativas maravilhosas, míticas ou popu- lares” agradecemos sinceramente ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP – IBILCE – CSJRP, na pessoa de seu Coordenador o Prof. Dr. Pablo Simpson Kilzer Amorim, e à CAPES (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Nível Superior – Brasil) pelo apoio à presente publicação em formato e-book por meio do Processo n. 2018/0747 vinculado ao PPGL – UNESP de São José do Rio Preto. Enfim, desejamos a todos nossos leitores uma excelente leitura de nos- sas considerações sobre o maravilhoso, com um olhar aberto, descortinando nossos objetos e seus arredores! Conselho Editorial 15 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 1 O CONTO MARAVILHOSO NO BRASIL: FOLCLORE E LITERATURA Karin Volobuef Contos populares: da contação à erudição Desde tempos imemoriais o ser humano conta histórias e ouve histórias sendo contadas. Sobre experiências que foram vividas ou presenciadas, sobre coisas pressentidas ou imaginadas, sobre tudo aquilo que fez acelerar o cora- ção ou os pés correrem mais rápido. Como bem demonstrou Sherazade, vive mais quem tem mais histórias para contar. Circulando no anonimato e na oralidade por séculos e milênios, as nar- rativas populares ou folclóricas driblaram montanhas, desertos e mares, desa- fiaram diferenças de línguas, costumes e tradições, e foram aninhar-se no fol- clore de todos os povos e culturas. Contos e canções folclóricos caracterizam todos os povos de todas as épocas e lugares. O caráter flexível da cultura folclórica contrasta com o da cultura eru- dita – plantada em livros e colhida na escola –, cuja índole canônica e douta sempre lhe garantiu a hegemonia sobre as narrativas populares. Mesmo assim, pontes entre as duas matrizes – popular e erudita – sempre permitiram a mútua fertilização. Seja em feiras ou quermesses, seja no pátio dos castelos ou nas tavernas à beira da estrada, menestréis e contadores de histórias certamente compartilharam seus saberes em inúmeras situações e oportunidades. Homero, Shakespeare, a literatura picaresca, o tema de Fausto são alguns exemplos des- se frutífero intercâmbio. Mesmo nas elegantes trovas dos Lais Bretões de Ma- rie de France ou na plangente história de Tristão e Isolda (Chrétien de Troyes), que entretiveram ouvidos aristocráticos no século XII, os versos nasceram em berço popular e, conforme aponta Coelho (2003, 63-64), os protagonistas se- guem pelo mesmo caminho também trilhado por heróis míticos (como Perseu) e pelos heróis dos contos de fadas. A matriz celta enredou-se com outras ma- trizes – greco-romana, germânica, cristã, etc. – e engendrou uma formulação que se infiltrou dos mais baixos aos mais altos escalões da literatura canônica e não canônica. Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 16 Mesmo fornecendo tantas colheitas literárias, a narrativa popular man- teve ao longo de séculos um status inferior, sendo desvalorizada com a pe- cha de ser rude, inculta e simplória. Contra isso justamente empenharam-se os Irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, que deixaram impressos seus nomes na História não apenas pela coleta de narrativas populares na Alemanha (a partir de 1812/1815)1, mas por seus estudos e pesquisas, com os quais deram funda- mental impulso para o surgimento de disciplinas como a Filologia, a Literatura Comparada, o Folclorismo e outras. Nessa época, início do século XIX, a maioria da população vivia no campo (na Alemanha, assim como em toda Europa) e as narrativas populares ainda eram transmitidas oralmente, sendo contadas de memória. Conscientes de que esse material corria o risco de logo ser esquecido, caso não fosse re- gistrado e conservado em livros, os Grimm dedicaram anos à reunião de seus contos de fadas – assim como de lendas e mitos germânicos. Mais do que a simples coleta, os Irmãos defenderam a inestimável ri- queza histórica, linguística e artística dessa herança narrativa. [...] notamos que, de tanta coisa florida doutras eras, nada mais restou, apa- gando-se dela toda a lembrança, a não ser algumas canções, uns poucos livros e lendas, e estes inocentes contos familiares. [...] É tão maravilhosa a tradição – eis algo que a poesia tem de comum com a imortalidade –, que até a contragosto a amamos. É fácil perceber que a tradição só perdura onde há vivo interesse pela poesia [...] Esta a razão de, com a presente coletânea, pretendermos não só prestar re- levante serviço à história da poesia e da mitologia, mas também mostrar a poesia que sobrevive nas lendas e deixar que ela atue sobre os corações, di- vertindo, ao mesmo tempo que ilustrando as inteligências. (GRIMM, 1961, p.6-7 – ortografia atualizada) Os Irmãos destacaram-se, assim, pela percepção e ênfase a aspectos fundamentais para a pesquisa e revalorização dos contos: seu caráter poético, sua conexão com os mitos, e sua relevância tanto emocional quanto intelectual. Empenhados nessa defesa, advogaram, em ensaios, cartas e prefácios, pela necessidade de conservação e apreciação do folclore nacional, e, assim, esti- mularam a coleta e publicação em todos os rincões do planeta. A partir desse estímulo, o folclore narrativo começou a ser recolhido e divulgado: Peter Christen Asbjørnsen e Jørgen Moe lançaram os Contos de fadas noruegueses (1841); Aleksandr Afanasev publicou em oito volumes os Contos de fadas russos (1855-1863); Laura Gozenbach reuniu Contos sicilia- nos (1868); Paul Sébillot trouxe Contos populares da Alta-Bretanha (1881); 1 A obra Contos de fadas para o lar e as crianças teve sua primeira edição divididaem dois livros: em 1812 saiu o 1º volume e em 1815 o 2º volume; e, por ocasião da última edição (1857) reunia um total de 200 contos maravilhosos e 10 lendas infantis. 17 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores Joseph Jacobs reuniu Contos de fadas ingleses (1890), e as Obras completas (1857-1890) do etnógrafo Oskar Kolberg sobre folclore polonês alcançaram trinta e três volumes (acrescidos de mais três, póstumos)2. Em Portugal, Adolfo Coelho (1879) e Teófilo Braga (1883) foram os pioneiros, seguidos de Zófimo Consiglieri Pedroso e José Leite de Vasconcelos. E as pesquisas não se limita- ram à Europa, alcançando todos os continentes. Mas também em Portugal os Grimm foram respeitados como os pioneiros da investigação científica da literatura e mitologia populares, e não ape- nas os Kinder- und Hausmärchen, mas também as Deutsche Sagen [Lendas alemãs] e a Deutsche Mythologie [Mitologia alemã] constituíram obras de referência fundamental. Sobretudo Teófilo Braga e Adolfo Coelho sobres- saem, cada um a seu modo, como os receptores mais interessantes dos Ir- mãos Grimm [...]. (CORTEZ, 2001-2, p. 3) No Brasil, a mesma tendência não se fez esperar, e o estímulo dado pelos Grimm foi enfatizado por Adelino Brandão: [...] raro teria sido o grande autor nacional que tratou do Folclore e do fol- clore brasileiro, seja como teórico, seja como pesquisador, analista ou coletor dos fatos de nossa literatura oral, que não tenha sido motivado, inicialmente, pelos exemplos dos Irmãos Grimm. (1995, p. 37) A lição fornecida pelos Grimm nada tinha em comum com as pito- rescas estrofes campestres do Arcadismo, que também tinha se aninhado desse lado do Atlântico. Para os Irmãos, tratava-se de uma deliberada busca pelos primórdios culturais: Para além dos estudos linguísticos – objeto inicial da pesquisa com o fol- clore germânico –, Jacob e Wilhelm Grimm acabam por intuir que toda aquela massa de contos populares, sagas, contos maravilhosos, lendas etc. continha tal riqueza de invenção e imaginário que necessariamente teria resultado de uma imensa e complexa criação coletiva. E, seguindo essa in- tuição, abrem caminho para a descoberta do folclore como genuína criação popular que partiu de fontes comuns. (COELHO, 2003, p. 101 – ortografia foi atualizada) Assim, embora tenham saído em busca de material especificamen- te germânico, os Irmãos Grimm acabaram desenterrando um tesouro muito maior, deparando-se com os remanescentes de um arsenal narrativo herdado de eras muito anteriores que, em sua fonte arcaica, alinhava uma pluralidade de povos e línguas numa matriz compartilhada por continentes. Encontrados esses primeiros sinais, ficou lançada para a posteridade 2 Tamanha produção encontra equivalentena múltipla produção de Câmara Cascudo no Brasil. Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 18 a chamada de novas e mais extensas buscas. Aqui, no Brasil, essa chamada também foi recebida e seguida. E nosso tesouro de histórias começou a aflorar ainda em pleno período romântico. Primórdios da coleta de contos maravilhosos no Brasil O Romantismo – com sua ênfase na individualidade e originalidade criativas – foi um movimento literário que notoriamente buscou a renovação estética e a rebeldia contra normas que buscassem colocar na trincheira a sin- gularidade poética. Em consonância com essa ânsia por liberdade e inovação, a cultura popular recebeu grande atenção. Na Europa, românticos como Ludwig Tieck, Friedrich de la Motte Fou- qué, Robert Burns, Walter Scott, Almeida Garrett, Alexandre Herculano, etc. buscaram inspiração no folclore e na dicção populares. Tendo absorvido os impulsos do século XVIII, como os de James Macpherson (Ossian, de 1860) e J.G. Herder (Vozes dos povos em canções, 1778-1779), os românticos viram na cultura popular um importante reservatório poético, do qual poderiam sor- ver rimas, temas, imagens e uma visão de mundo desconectada dos ditames neoclassicistas que enrijeciam as páginas da literatura canônica da época. O material literário folclórico marcava-se pelo tom natural, pelos sentimentos fortes e autênticos, pelo sabor arcaico dos antigos contadores e bardos das eras pré-capitalistas. No Brasil, começando com José de Alencar e arregimentando a seguir autores como Joaquim Manuel de Macedo, Bernardo Guimarães, Casimiro de Abreu, Visconde de Taunay, Franklin Távora, nossa literatura auscultou a gen- te simples, provavelmente em suas conversas nas ruas e mercados, cozinhas e quintais, notando seus falares, suas crendices, sua memória. Os frutos dessa sondagem do povo pontuam largamente a prosa romântica, conforme exem- plificam a figura do pai Benedito em O tronco do ipê (Alencar); a “A história das lágrimas de amor” de Aí e Aoitin em A moreninha (Macedo); ou ainda o protagonista de “Juca, o tropeiro”, viajante que gosta de contar as narrativas que foi ouvindo em suas andanças pelo sertão (Histórias brasileiras, Taunay). Dependendo da inclinação literária de cada autor, o recurso à narrativa popular pode conferir uma dimensão prototípica ao texto romântico, ou re- produzir os ares de oralidade da contação de histórias na roça, ou ainda servir ao propósito de espelhar a múltipla riqueza da diversidade cultural da gente espalhada pelos sertões. Do mítico ao coloquial, da observação racional à per- cepção carregada de emoções, a narrativa e o imaginário popular servem de bússola para o encontro entre o erudito e o rústico. E, nesse encontro, o Romantismo explorou várias vertentes. É o caso de José de Alencar, que em 1874 publicou seu ensaio Nosso cancioneiro. Na 19 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores forma de quatro cartas, veiculadas no jornal O globo em quatro dias espaçados, Alencar toma sob a lupa canções populares cearenses, analisando-as quanto a sua inserção no gênero épico e quanto ao emprego de figuras de lingua- gem. Conforme comentários e informações de Eduardo Vieira Martins (2002, p.181-182), Alencar reuniu diversas versões truncadas e, a partir dessas fontes parciais, reconstituiu a cantiga O Rabicho da Geralda. Juntamente com O Boi Espácio, também cantiga popular cearense, elas são o objeto das reflexões de Alencar. Para Martins (2002, p.183-184), duas matrizes norteiam a leitura de Alencar da poética popular: a primeira, de natureza geográfica, que se pauta na concepção de especificidade da “cor local” (o material poético pode tran- sitar de lugar a lugar, mas sempre ganha novo colorido e se molda conforme os costumes e a linguagem do entorno); a segunda, de natureza retórica, que revela preocupações estéticas, mais especificamente, no que se refere à flexibi- lidade do poema, que apresenta traços de gêneros diversos, próprios de épocas também diversas. Conforme Martins (2002, p. 189-193 e 196), as duas canti- gas estão no alicerce do romance O sertanejo, fornecendo os ingredientes, por exemplo, para a criação do boi Dourado (que ataca Dona Flor), representado com dimensão heroica e mítica e transformado em paradigma da exuberância e força indômita que Alencar atribuía às terras do Novo Mundo em oposição às terras já extenuadas do Velho Mundo. Em Bernardo Guimarães, muitos textos exploram a situação de orali- dade, dando oportunidade não apenas para enredos centrados no imaginário popular, como também para o registro do falar típico. No conto “A dança dos ossos” (Lendas e romances), um grupo de viajantes encontra-se na estrada, e logo inicia-se a contação de “causos” sobre assombrações encontradas à noite no mato. O viajante – de cidade grande e cético – logo presenteia suas expli- cações racionais para um episódio que acabou de ser relatado, e, para justificar sua incredulidade, conta também uma experiência que teria vivido. Veja-se um trecho com essas falas que antecedem essa segunda narração: O velho barqueiro ria com a melhor vontade, zombando de minhas expli- cações. — Qual, meu amo, disse ele, résteade luar não tem parecença nenhuma com osso de defunto, e bicho do mato, de noite, está dormindo na toca, e não anda roendo coco. E pode Vm. ficar certo de que, quando eu tomo um gole, aqui é que minha vista fica mais limpa e o ouvido mais afiado. — E’ verdade, e, a tal ponto, que até chegas a ver e ouvir o que não existe. — Meu amo tem razão; eu também, quando era moço, não acreditava em nada disso por mais que me jurassem. Foi-me preciso ver para crer; e Deus o livre a Vm. de ver o que eu já vi. — Eu já vi, Cyrino; já vi, mas nem assim acreditei. — Como assim, meu amo?... — É que nesses casos eu não acredito nem nos meus próprios olhos, senão Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 20 depois de estar bem convencido, por todos os modos, de que eles não me enganam. Eu te conto um caso que me aconteceu. Eu ia viajando sozinho — por onde não importa — de noite, por um caminho estreito [...] (GUI- MARÃES, 1900, p. 228 – com ortografia atualizada) Bernardo Guimarães, como se vê nesse excerto citado, dá amplo espaço aos diálogos, permitindo que a voz e visão de mundo do sertanejo ou caipira se manifeste diretamente. Conforme análise de Cabala (2018, p. 78), trata-se de uma forma de colocar o negro e o índio em primeiro plano, e de “suavizar distâncias entre o ponto de partida dos hábitos e culturas de um povo, de um lado, e uma criação imaginativa que privilegia o exotismo e o suspense, de outro” (2018, p. 79). Esses exemplos atestam o quanto o Romantismo brasileiro esteve aten- to às manifestações populares folclóricas. Na historiografia literária, esse traço ficou marcado como regionalista, a despeito de estudiosos como Alfredo Bosi (1994) apenas identificarem o advento do regionalismo na literatura brasileira a partir de autores como Valdomiro Silveira (conto “Rabicho”, 1894), Afonso Arinos (Pelo sertão, 1898), Simões Lopes Neto (Contos gauchescos, 1912), fi- cando os românticos reduzidos a “sertanistas”. Podemos dizer que a diferença aqui reside na concepção de “regionalismo”. Enquanto Bosi o concebe como um registro in loco de características físicas e culturais (paisagem, sociedade e indivíduo), o regionalismo romântico foi imbuído de um espírito muito mais afeito ao trabalho dos Grimm, concentrando-se na recuperação de uma “tradi- ção folclórica”, muitas vezes a partir de fontes impressas3. Em outras palavras, os românticos voltaram-se às histórias, crenças, superstições e outros frutos da imaginação popular, enquanto os regionalistas do final do século 19 retrataram – em um viés já próprio do Realismo – quadros da realidade do sertão, tal como vivido pelo Homem do interior. Procedendo à maneira dos Grimm – que recolheram contos porque viam neles um reser- vatório cultural, poético e simbólico com sedimentação antiga e profunda à maneira dos arquétipos –, os românticos brasileiros foram movidos por um interesse pelas raízes e pelo âmago da cultura popular, guiando-se mais por um senso filosófico e filológico, do que o sociológico e político-econômico dos realistas posteriores. Mas, ao contrário dos Grimm, autores como Alencar, Guimarães, Ma- cedo não tiveram por meta a recolha e publicação das narrativas populares per se. Essa meta esteve na pauta de coletores como Silvio Romero e Câmara Cascudo – de que trataremos no próximo item. Os autores românticos, ao invés disso, guiaram-se pelo mesmo espírito que 3 Também os Grimm coletaram parte de seus contos de fadas em fontes impressas. Exemplo disso é o conto “Branca de Neve e Rosa Vermelha”, extraído da antologia Narrativas, fábulas e contos de fadas para crianças (1818), publicada por Caroline Stahl (SCHERF, 1982, p. 333). 21 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores já havia imbuído românticos europeus, como Achim von Arnim e Clemens Bren- tano, os quais usaram cantigas populares como base inspiradora de sua coletânea de poemas A cornucópia encantada do menino [Des Knaben Wunderhorn, em três volumes de 1805-1808], ou ainda como Ludwig Tieck, que empregou o conto popular (já coligido na França por Perrault no final do século XVII e, mais tarde, ouvido na Alemanha pelos Grimm no século XIX) para escrever sua comédia tea- tral O gato de botas (1797). Os brasileiros estiveram, assim, insuflados da mesma postura do Roman- tismo na Europa, que colocou a liberdade poética acima de tudo, defendendo a autonomia do autor sobre a obra. E, tal como na Europa, outros esforços – pos- teriores ao Romantismo – foram direcionados à coleta, sistemática ou não, do folclore literário para fins de estudo e conservação, conforme veremos a seguir. Contos e cantos de todos os cantos do Brasil A recolha de contos populares não se fez esperar no Brasil. Das obras pioneiras, talvez a que podemos considerar primogênita é O selvagem (1876), do General Couto de Magalhães. O livro nasceu das viagens do militar pelo interior do Brasil a mando do Duque de Caxias, ocasiões em que convivia com soldados de etnia indígena, dos quais coletou as narrativas (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p.14). Couto de Magalhães realizou um estudo bastante extenso sobre as po- pulações ameríndias: a divisão em tribos e sua distribuição geográfica, suas línguas, religião, costumes, etc. Couto de Magalhães apresenta suas reflexões sobre o sentido simbólico da mitologia e das histórias narradas por esses po- vos, acrescentando 23 contos ou lendas que lhe foram narrados: 1. Como a noite apareceu 2. O jabuti e a anta do mato 3. O jabuti e a onça 4. O jabuti e o veado 5. O jabuti encontra-se com macacos 6. O jabuti e de novo a onça 7. O jabuti e outra onça 8. O jabuti e a raposa 9. O jabuti e a raposa 10. O jabuti e o homem 11. O jabuti e o gigante 12. O veado e a onça 13. A moça que vai procurar marido I - A moça e o gambá Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 22 II - A moça e o corvo III - A moça e o gavião 14. Lendas da raposa 15. A raposa e o homem 16. A raposa e a onça 17. A onça e os cupins 18. A onça varre o caminho da raposa 19. A raposa e a onça 20. A raposa e a onça 21. A raposa e a onça 22. Outras lendas acerca da raposa 23. Lenda acerca da velha gulosa Esses contos apresentam alguns aspectos inusitados ou surpreendentes (em contraposição aos contos dos Grimm, por exemplo): 1) vários contos têm títulos repetidos (8-9; 19-20-21); 2) vários contos podem ser lidos isoladamente, mas também como continuação do conto an- terior; 3) a maioria dos contos possui personagens animais, que falam e, por vezes, rivalizam de maneira semelhante ao que vemos em fábulas europeias (como as de La Fontaine, por exemplo); 4) animais e homens convivem como se fossem criaturas da mesma espécie, inclusive mantendo relações sexuais e casando entre si; 5) muitos contos trazem um ensinamento: por exemplo, de que o fraco inteligente é capaz de matar o forte sem inteligência. O interesse de Couto de Magalhães não se dirigia especificamente aos contos maravilhosos: seu propósito voltava-se a retratar e tentar entender me- lhor a população indígena brasileira. O material narrativo é, assim, apenas um dos aportes de que se valeu para apresentar um quadro o mais completo e coerente possível. Depois de Magalhães, Silvio Romero distingue-se, então, pela extensão e diversidade de sua coleta, e por dedicar atenção exclusiva ao material folcló- rico em suas duas coletas: • Cantos populares do Brasil (1883) - com rimas e poemas, divididos nas categorias: 1) romances e xácaras; 2) reinados e cheganças; 3) versos ge- rais; 4) orações. • Contos populares do Brasil (1885) – com 88 contos maravilhosos, dos quais 51 seriam de origem europeia, 21 de origem indígena e 16 de origem africana e mestiça Os contos reunidos por Romero caracterizam-se por uma linguagem en- xuta e pontuada com expressões regionais, conforme exemplifica um trecho do conto “Maria Borralheira”, variante do conto também encontrado pelos irmãos Grimm, mas com uma profusão de aspectos próprios:23 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores No dia que a madrasta de Maria quis que se matasse a vaquinha, a moça se ofereceu para ir lavar o fato no rio. A madrasta lhe disse com desprezo: “Oxente! Quem havia de ir se não tu, porca?” Morta a vaca, a Borralhei- ra seguiu com o fato para o rio; lá achou nas tripas a varinha de condão, e guardou-a. Depois de lavado o fato botou-o na gamela e largou-a pela correnteza abaixo, e a foi acompanhando. Adiante encontrou um velhinho muito chagado e morto de fome e sujo. Lavou-lhe as feridas, e a roupa, e deu-lhe de comer. Este velhinho era Nosso Senhor. Seguiu com a gamela. Mais adiante encontrou uma casinha muito suja e desarrumada, e com os cachorros e gatos e galinhas muito magros e mortos de fome. Maria Bor- ralheira deu de comer aos bichos, varreu a casa, arrumou todos os trastes e escondeu-se atrás da porta. Daí a pouco chegaram as donas da casa, que eram três velhas tatas. (ROMÉRO, 1885, p. 54 – com ortografia atualizada) Romero escreveu uma “Introdução”, na qual expressa sua visão acerca da importância dos contos e dialoga com outros estudiosos de seu tempo. Assim, ele conhecia o material de Couto de Magalhães e comenta a relação entre os contos de origem ameríndia que coletou e aqueles trazidos por seu antecessor. Vale a pena destacar alguns aspectos do pensamento de Romero (1885): • “conto popular” não é entendido por ele como significando “conto narrado pelo povo”, mas sim “conto criado pelo povo”, havendo uma contun- dente rejeição do “aproveitamento criativo” da cultura popular pelo Romantis- mo, entendido como falsificação dos textos populares originais; • ele dá ênfase à importância dos contos africanos para o folclore brasileiro; • na sua visão, o indígena estaria fadado a extinguir-se, e sua contribui- ção seria mais pálida do que a dos outros grupos étnicos. Essa exígua presença no folclore brasileiro da contribuição indígena é atribuída por Angela Leite de Souza à relação entre colonizador e colonizado: o distanciamento do branco, mantendo-se longe da esfera cultural do outro, seria uma das práticas destinadas a inferiorizar e objetificar o indígena. Parte [do] acervo de lendas e fábulas nos veio através do mameluco, fruto da convivência inicial mais estreita entre brancos e índios nas bandeiras de mineração ou nas plantações. O resto, e trata-se da parte que ficou do- cumentada, nos vem dos padres e catequistas, que chegaram a escrever no idioma tupi e a ensinar aos nativos sua própria gramática. Os mitos, que são a maior parcela de contribuição indígena – supe- rior, inclusive, à participação mitológica do negro africano –, chegaram até nós pela via distorcida do missionário. E este tratou de transformá-los numa corte demoníaca. Quando não é a visão apressada de algum indianista que vai confundindo o Caapora com o Curupira... A proporção dos mitos, fábulas e lendas indígenas na literatura oral brasi- leira decresce exatamente nessa ordem. E o pequeno volume das lendas se explica: ligadas a um fundo religioso, explicando as origens do mundo, elas seriam objeto de revelação mais rara, quase em confidência. Por isso, não Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 24 têm presença viva no folclore oral e sim dentro das próprias tribos. Saindo dali pelas mãos de naturalistas e catequistas, elas perdem o caráter popular, tornam-se literárias, isto é, desfiguram-se. Como, de resto, vem acontecen- do no correr de cinco séculos, com a nossa cultura ameríndia condenada à extinção. (SOUZA, 1996, p. 54-55) Quanto aos seus propósitos e concepção da literatura popular, Romero afirma nos Estudos sobre a poesia popular do Brasil: Nós possuímos uma poesia popular especificamente brasileira, que, se não se presta a bordaduras de sublimidades dos românticos, tem contudo enorme interesse para a ciência. Um estudo mais aturado e desprevenido trouxe-me, durante os últimos quatro anos, esta convicção. Minhas pesqui- sas foram até muito além de meu cálculo. Pretendia em algumas províncias do país, por onde tinha de passar, fazer uns apanhados de cantos e contos de nosso povo, como base para uma refu- tação ao escrito de José de Alencar, O nosso cancioneiro, e a demora na de Pernambuco, onde aliás já havia habitado durante o meu curso acadêmico, na de Sergipe, minha terra natal, que mais aturadamente estudei, e na do Rio de Janeiro, onde atualmente resido, forneceu-me o ensejo de reunir toda a coleção que ora submeto ao juízo público. (ROMERO, 1977, p. 32 – grifos no original) A seguir, e dedicando-se especificamente ao espaço mineiro, Lindolfo Go- mes publica seus Contos populares em 1918. A segunda edição, vinda à luz em 1931, totaliza 67 narrativas. Mais adiante lança edição com novo título e 106 Con- tos populares brasileiros (1948). Decisiva para os estudos do folclore no Brasil é a ampla e diversificada coleta e pesquisa do folclore e cultura popular realizada por Câmara Cascudo. Seus Contos tradicionais do Brasil (1946) compreendem 100 narrativas, das quais 77 foram coletadas pelo próprio Cascudo, e 23 vieram de pesquisadores prévios, como Lindolfo Gomes e João da Silva Campos (ALMEIDA & QUEI- ROZ, 2004, p.70). As narrativas são divididas nas categorias: 27 Contos de encantamento 16 Contos de exemplo 15 Contos de animais 14 Facécias 8 Contos religiosos 7 Contos etiológicos 4 Demônio logrado 3 Contos de adivinhação 2 Natureza denunciante 25 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 2 Contos acumulativos 1 Ciclo da Morte 1 Tradição Como se vê nessa relação, o rol de contos cobre não apenas narrativas às quais se aplicaria a teoria de Propp (do tipo “contos de encantamento/ma- gia” ou “maravilhosos”), como ainda outros tipos, como os contos acumula- tivos (também denominados de “contos de nunca acabar”) ou as facécias, que muitas vezes sequer possuem elementos sobrenaturais de qualquer espécie. Nessa amplitude Cascudo segue o exemplo dos Irmãos Grimm, que também recolheram narrativas desses vários formatos. No grupo dos “contos de encantamento” reunidos por Cascudo estão narrativas que de alguma maneira soam familiares aos nossos ouvidos, como “O Chapelinho Vermelho”, “A Bela e a Fera” ou “A princesa do sono-sem- -fim”. Grande parte, porém, pode abrir novos e inesperados mundos mágicos aos leitores do século XXI. Em “Couro de piolho” temos uma princesa com piolho nos cabelos; em “A rainha e as irmãs”, três crianças nascem, cada qual com uma estrela de ouro na testa; em “Os três companheiros”, um bombeiro, um soldador e um ladrão são amigos e possuem um cavalo mágico. Nesse mundo muitos príncipes têm infâncias inusitadas: em “A banda da coroa” o menino nasce abandonado com a rainha numa ilha e aprende a ler e escrever riscando as palavras na areia da praia; noutro conto, o protagonista fica órfão, sendo então adotado por uma burra (“O filho da burra”). As mocinhas também vivem aventuras surpreendentes: uma delas recebe a visita de um papagaio sem- pre ao bater da meia-noite (“O papagaio real”); outra resolveu fugir da madrasta cruel e foi procurar emprego vestida com uma longa capa de palha que deixa à mostra apenas os olhos (“Bicho de palha”); ainda outra foi encantada, surgindo aos viajantes como assombração em uma gruta à beira da estrada (“A princesa de Bambuluá”). Aqui, dragões, gigantes e veados de plumas contracenam com a Mãe D’Água e a Moura Torta. Ninguém pode se esconder da princesa com um espelho encantado que mostra todos os recantos da terra (“O espelho mágico”); e quem revelar a profecia anunciada por três rolinhas é transformado em estátua de mármore (“O fiel Dom José”). A recolha de Câmara Cascudo identifica o contador que informou cada conto e a cidade onde foi ouvido. Também há anotações de Cascudo que rela- cionam o conto a outras variantes, presentes em antologias pelo mundo afora. Além dos contos populares reunidos, o acervo de Cascudo ainda reúne produções em formade poesia, como os trava-línguas: “Quem a paca cara compra, cara a paca pagará” (CASCUDO, 1984, p. 332) Outro exemplo de poesia popular coligida por Cascudo é a adivinha ou charada: Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 26 Ziguezague vai voando Com vontade de comer; O que come bota fora, engolir não pode ser. (CASCUDO, 1984, p. 68 – resposta: tesoura) Câmara Cascudo é considerado, hoje, um estudioso seminal do folclore brasileiro, tendo contribuído com estudos antropológicos dos mais variados. Enfim, esses poucos exemplos e comentários evidenciam que o cenário do folclore no Brasil é imensamente largo e multifacetado. Tão amplo que um levantamento não exaustivo de coletâneas e coletores pode cobrir diversas páginas (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004, p. 169-174). Diante disso, o presente estudo por força há de se ressentir da ausência de grande lista de nomes. Um desses nomes seria o de Cornélio Pires, nascido em Tietê-SP e que trouxe a lume as Conversas ao pé do fogo (1921) e As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho, o Queima-Campo (1924). Seu papel foi decisivo para a concepção de “caipira” e das “histórias de mentiroso”. Do Nordeste faltou-nos Théo Brandão, natural de Viçosa-AL, que foi buscar junto à viola os versos reunidos em Trovas populares de Alagoas (1951). Seu papel foi tão marcante que, desde 1975, a Universidade Federal de Alagoas abriga o Museu Théo Brandão de Antropologia e Folclore. Também deveríamos ter tratado de Nair Starling, proveniente de Santa Luzia-MG, que costuma ser lembrada pelas Nossas lendas (1968), mas que dedicou amplo trabalho à literatura de cordel – que é outro vasto campo e que merece um estudo à parte. Resta-nos, no pouco espaço que temos, ainda desejar que estas páginas sirvam de convite à leitura e pesquisa de nosso folclore! E que mais e mais lei- tores (e ouvintes!) se aventurem por suas histórias e sonoridades tão coloridas. Referências ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: as edições da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte: A Autêntica; FALE/UFMG, 2004. Disponível em http://www.letras.ufmg.br/site/e-livros/Na%20Captura%20 da%20Voz%20-%20As%20edi%C3%A7%C3%B5es%20da%20narrati- va%20oral%20no%20Brasil.pdf. Acesso em: 11 jan. 2021. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1994. BRANDÃO, Adelino. A presença dos irmãos Grimm na literatura infantil e no folclore brasileiro. São Paulo: IBRASA, 1995. (Biblioteca literatura e arte, 75). CABALA, Frederico van Erven. Romantismo e oralidade em “A dança dos ossos”, de Bernardo Guimarães. Cadernos literários, Porto Alegre (FURG- -PGLetras), v. 26.1, p. 69-80, 2018. 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SOUZA, Angela Leite de. Contos de fada: Grimm e a literatura oral no Brasil. Belo Horizonte: Editora Lê, 1996. (Coleção Apoio). 4 Na edição impressa aqui elencada encontram-se os contos apenas em tradução para o português; já na edição disponibilizada online, os contos também constam na versão original, em idioma tupi. Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 28 2 O MARAVILHOSO EM NARRATIVAS CURTAS ITALIANAS: AS FIABE PELOS SÉCULOS Maria Celeste Tommasello Ramos A língua italiana possui um vocábulo específico para definir o conto maravilhoso, é o substantivo feminino “fiaba” que designa as narrativas curtas que tiveram origem oral séculos atrás e narram acontecimentos mágicos, reali- zados e/ou vividos por seres humanos e seres sobrenaturais como ogros, feiti- ceiras, magos, bruxas, fadas, duendes, gnomos e outros personagens mágicos como gatos falantes e astutos, pássaros mágicos benfazejos, etc., sem a obriga- toriedade de terem explícita ou implicitamente uma finalidade exemplar. Essas narrativas curtas nasceram no meio do povo, na contação oral de histórias, e foram passando de boca em boca até serem coletadas por um estudioso que as transcreveu e à versão literária que fez delas atribuiu sua autoria – gênero que os italianos chamam de fiaba d’autore, ou seja, contos maravilhosos literários (que possuem autor explícito). Não raro, esse escritor até mesmo melhorou a forma de apresentação da fiaba com um nível de linguagem mais elevado. Suas primeiras versões literárias muitas vezes inspiraram outras pes- soas a recontarem essas histórias oralmente outras vezes, e tanto a versão es- crita quanto a oral, eventualmente, levaram diversos autores a registrarem na Literatura novamente aquela trama, com algumas modificações, pois, como já anunciou a sabedoria popular: “quem conta um conto aumenta um ponto”. Contos maravilhosos são aqui entendidos como narrativas curtas que narram acontecimentos fantásticos, nos quais a ou o protagonista e demais personagens contornam, com inteligência e/ou astúcia, obstáculos criados por uma magia especial, e são, frequentemente, auxiliados por outros personagens, na grande parte das vezes também maravilhosos. Os personagens dessas his- tórias costumam ser bruxas, fadas, feiticeiros, duendes, objetos encantados, reis, rainhas, príncipes e princesas, etc., em seus enredos ocorrem metamorfo- ses, transmutações, etc. Há, assim, a intervenção do mágico maravilhoso como uma possibilidade plausível dentro daquela realidade criada no texto literário, que se assemelha ao mundo empírico dos homens, mas não estranha de forma alguma a intervenção do maravilhoso nesse mesmo mundo imaginário descrito 29 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores no interior da narrativa. Contos maravilhosos e contos de fadas estão muito próximos na definição, os dois lançam mão do imaginário fantástico para ca- racterização de personagens e acontecimentos, mas o conto de fadas possui, como o nome diz, fadas entre seus personagens, e, na maioria das vezes, nar- ram o percurso de um ou uma protagonista que, auxiliado pelo maravilhoso, vence os desafios e tem um casamento real que o promove socialmente como recompensa pelas peripécias. Assim, em decorrência da proximidadee ampli- tude, o conto maravilhoso pode também englobar o conto de fadas. As fiabe italianas englobam tudo isso, mas elas não devem ser enten- didas como fábulas, pois não são narrativas curtas que possuem personagens animais com características humanas, que agem e falam como homens ou mu- lheres, e que possuem, via de regra, uma moral explícita, pois ilustram um pos- tulado moral ligado à vida em sociedade e se concluem com sua apresentação clara – no final há sempre a moral da história. Para tal gênero de prosa breve a língua Italiana atribuiu o nome de favola. No Brasil, temos a diferenciação dos conceitos entre conto maravilho- so, conto de fadas e fábula, apesar de estarem muito interligados entre si, por conta da presença constante do imaginário fantástico, principalmente nos dois primeiros tipos de narrativa curta. Certamente essas produções literárias têm origem na linguagem oral, na transmissão de boca em boca das histórias con- tadas entre o povo, que um dia são coletadas por um estudioso do folclore nacional, que as registra, garantindo sua permanência por meio da forma lite- rária. Na Itália, conto maravilhoso e conto de fadas se encontram no conceito de fiaba. Não obstante a existência da concentração de possibilidades num só conceito, pode-se encontrar também racconto di meraviglie ou novella (que significa narrativa curta, em geral). Foi buscando traçar um panorama da manifestação desse tipo de nar- rativa curta na Itália que fomos encontrar Fiabe italiane, livro que resultou da coleta realizada por Italo Calvino, pelas bibliotecas italianas, de duzentas narrativas curtas que pudessem representar as diversas regiões italianas, nas produções dos últimos cem anos (foi publicada em 1956, de forma que o pe- ríodo que enfoca está localizado entre a última metade do século XIX e a pri- meira do XX). Seu subtítulo também conta muito de seu processo de produção: Fábulas italianas coletadas da tradição popular durante os últimos cem anos e transcritas em língua a partir dos diversos dialetos por Italo Calvino, que utilizamos na tradução brasileira realizada por Nilson Moulin. Interessou-nos muitíssimo a Introdução que Calvino intitula “Uma viagem entre as fábulas” (CALVINO, 1992, p. 9-43), na qual o escritor e estudioso da Literatura Italia- na aponta, desde o segundo parágrafo e parágrafos seguintes (p. 9 a 11), uma sequência de nomes de escritores e obras italianas que fixaram o gênero fiaba na Itália: Giovan Francesco Straparola, Giambattista Basile, Carlo Gozzi, Do- Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 30 menico Comparetti, Carlo Collodi, Gherardo Nerucci, Luigi Capuana, Antonio Baldini e Gabriele D’Annunzio. No entanto, Calvino somente os cita, não se detendo minimamente sobre suas vidas, não cita as obras que escreveram no gênero abordado, e deixa de elencar importantes escritores como Emma Perodi e Gianni Rodari. Conside- rando ser necessário fazer conhecer ao público de Língua Portuguesa um pouco mais a respeito das fiabe d’autore na Itália, propomos aqui um panorama um pouco mais completo, que contém o próprio Italo Calvino. Nós nos baseamos, para tanto, nos próprios apontamentos breves de Calvino, para começar, e os preenchemos com nossas leituras de diversos estudos a respeito das manifesta- ções desse gênero na Itália. Assim apresentamos aqui um panorama das fiabe ita- lianas um pouco mais completo e detalhado, que vai desde os primeiros registros literários de autoria assumida (a fiaba d’autore), no século XVI, até a segunda metade do século XX e contém uma reduzida historiografia sobre o escritor, sua principal obra que toca o maravilhoso e algum detalhe que se destaca nela. Ao longo de nossos anos de atuação profissional na docência e pesquisa de e em Literatura Italiana no Curso de Licenciatura em Letras numa Univer- sidade Estadual Brasileira, pudemos verificar que a maioria dos estudos publi- cados sobre a Literatura Italiana no geral, como os de Pazzaglia (1997, 3 vols.) por exemplo, publicados na obra Scrittori e critici della Letteratura Italiana: antologia con pagine critiche e un profilo di storia letteraria, ou Asor Rosa (1994), em Storia della letteratura italiana, ou ainda Squarotti (1989), em Li- teratura italiana: linhas, problemas e autores, elegem os autores de romances e de poesias para detalhar mais, tanto na apresentação historiográfica quanto no enfoque das obras, deixando de se deter nos escritores de contos ou narra- tivas curtas. Assim, quando enfocamos um escritor de contos maravilhosos, por exemplo, temos acesso a pouca ou nenhuma informação nesses estudos de fôlego apontados acima, e temos que ir buscar mais informações em enciclopé- dias de confiança como a Enciclopedia della letteratura Garzanti (GARZAN- TI, 1997) e a Enciclopedia online Treccani de ciências, letras e artes, editada desde 1925 pelo Istituto dell’enciclopedia Italiana, ligado ao governo italiano, considerada por muitos como o maior empreendimento em âmbito cultural do século XX, na Itália, atualizada constantemente e disponível gratuitamente em seu site, na internet. Em alguns casos, fomos diretamente às obras dos autores apontados, e pudemos obter importantes informações em seus Prefácios ou Advertências iniciais. Desta forma, construímos a seguir uma visão panorâmi- ca a respeito da tradição das fiabe d’autore pelos séculos, na Itália. O início das fiabe d’autore no Século XVI O italiano Giovan Francesco Straparola foi o primeiro que se tem notícias a registrar literariamente uma fiaba. De sua vida se sabe pouco, 31 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores somente que nasceu em Caravaggio, na região italiana da Lombardia, por volta de 1480, e faleceu em Veneza, na região vizinha chamada Vêneto, por volta de 1557. Com certeza seu sobrenome era artístico, derivado do verbo straparlare, ou seja, falar além da conta. Disso ele realmente entendia, pois ficou famoso em sua época pela publicação de sua obra-prima Le piacevoli notti (Noites agradáveis – visto que, na obra, durante várias noites agradáveis, personagens contam histórias diversas) que foi publicada pela primeira vez em Veneza, em duas partes, como já afirmamos em publicação em co-autoria (RAMOS & SEGUNDO, 2020, p. 305). A primeira parte surgiu em 1550, reunindo as narrativas curtas relativas às cinco primeiras noites, e a segunda, composta por mais oito noites, foi publicada em 1553, sendo que a última teria sido escrita em virtude do grande êxito de sua precedente. Squarotti (1989, p. 257) afirma que “Straparola contagia a novela com a fábula, indo beber num patrimônio de tradições mais autenticamente populares (embora reelaboradas em chave culta)”. Há uma homologia estrutural entre a composição da obra de Straparola e a obra Decamerão, de Giovanni Boccaccio, escrita duzentos anos antes, na qual dez jovens se reúnem, cada um contando uma história por dia, durante dez dias, reunindo assim cem contos. Na obra de Straparola, damas e cavalheiros reunidos em um palácio narram histórias em forma de pequenos contos sob o comando de uma senhora, é essa a trama da narrativa que emoldura as outras. Esses contos, em número variável a cada noite, são narrados durante treze noites, até reunirem o total de setenta e quatro contos (esse número varia, de acordo com as edições). Cada conto é intraficcionalmente narrado por um personagem da narrativa, é finalizado pela proposta de um enigma, e todos os contos são envolvidos por uma narrativa moldura que os conecta em uma única narrativa maior composta pelo encadeamento das narrativas curtas costuradas e enquadradas pela moldura. Seus temas são muito diversos, várias histórias são de origem popular, como já dissemos no início. Dentre seus contos estão as primeiras versões que se conhece de “O gato de botas”, “A bela e a fera”, “O pássaro Belverde”, “A bela adormecida” e outros contos famosos. Em sua obra, encontramos tramas que foram retomadas porvários escritores posteriores como Giambattista Basile, Charles Perrault, os Irmãos Grimm, e que despertam, até hoje, o interesse de folcloristas e etnografistas por todo o mundo. Existem cogitações a respeito de as obras de Straparola e de Giambattista Basile (1566-1632) terem sido fonte literária para alguns contos do escritor francês Charles Perrault, mas não encontramos comprovações diretas. Escreveram contos que foram lidos e recontados oralmente, e a repetição dessas histórias deve ter se propagado por muitas direções, seja por meio das publicações literárias, seja por meio da narração popular oral. Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 32 As fiabe em pleno Barroco (Século XVII) Certo é que a obra do italiano Giambattista Basile (1575-1632), da região da Campânia, segundo escritor no panorama de escritores que compu- seram contos maravilhosos na Itália, influenciou contos dos Irmãos Grimm, que tiveram contato com seus escritos para a tradução de sua obra-prima em alemão, edição para a qual fizeram o prefácio, como afirma o pesquisador An- drea Lombardi (2015, p. 52). Lo cunto de li cunti (O conto dos contos), a obra prima de Basile, foi publicada pela primeira vez postumamente, entre 1634-1636, em dialeto na- politano, pela irmã do autor Adriana Basile, famosa cantora de ópera da Itália seiscentista (século XVII). Por apresentar uma estrutura narrativa análoga ao Decameron, de Boccaccio – assim como a obra prima de Straparola – Lo cun- to de li cunti foi chamado de Pentamerone (em referência às cincos jornadas presentes na divisão interna da obra) pelo crítico e filósofo italiano Benedetto Croce, que traduziu a obra para o italiano standard, em 1925. Como já dissemos em publicações anteriores (REIS & RAMOS, 2019 e RAMOS & REIS, 2019), o trabalho de Croce foi responsável por dar maior visibilidade à obra de Basile na península itálica, visto que a publicação ori- ginalmente em dialeto napolitano, língua falada na porção meridional da Itá- lia, na região da cidade de Nápoles, dificultou muito e quase inviabilizou sua divulgação no restante da península e, por consequência, Basile não atingiu grande notoriedade no campo da Literatura Infantil se comparado a outros au- tores europeus, como Charles Perrault ou os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, por exemplo. O escritor italiano desempenhou papel político durante sua vida adulta, o que o levou a realizar viagens pelo interior não somente da Campânia, mas também por toda a península itálica, e lhe proporcionou contato com a cul- tura popular, ou seja, com a histórias narradas oralmente pelo povo simples. Tal contato lhe rendeu o conhecimento dos contos populares, relacionados ao modo “maravilhoso”, ou seja, as fiabe. Assim, ao longo dos anos, ele escreveu quarenta e nove contos maravilhosos emoldurados por um outro conto que também envolvia o elemento mágico e narrava a história de Zoza. Ela era uma bela moça que, por ter recebido a maldição de uma velha senhora, havia sido obrigada a procurar o local onde jazia um príncipe ador- mecido por encanto, e a moça teve que chorar uma ânfora de lágrimas para o acordar. Infelizmente para ela, quando estava prestes a terminar de completar a ânfora, Zoza adormeceu e uma escrava moura, que a via realizar a tarefa que libertaria o príncipe do encanto, colocou-se em seu lugar e completou a ânfora com o líquido proveniente de seu choro. Desperto do encanto, o príncipe to- mou a escrava como sua salvadora e se casou com ela. 33 Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores Assim que se recuperou do grande cansaço e acordou, Zoza se deu conta de ter sido enganada, assim como o príncipe também o foi e, por meio de sua própria magia, fez nascer na escrava tornada princesa o desejo ardente de ouvir histórias contadas oralmente. A nova princesa convenceu o príncipe a chamar dez velhas contadoras de histórias que tinham apelidos bizarros (característica do grotesco barroco) e vieram então Zeza (cujo apelido significava “aleijada”), Antonella (a “babosa”), Cecca (a “torta”), Ciulla (a “beiçuda”), Meneca (a “queixuda”), Paola (a “vesga”), Tolla (a “nariguda”), Ciommetella (a “tinho- sa”), Popa (a “corcunda”) e Iacova (a “merdosa”), que passaram a contar um conto maravilhoso cada uma por dia, durante cinco jornadas – daí o nome da obra que os reúne ser Pentamerone, que significa “cinco jornadas”. Ao final da quinta e última jornada, depois de ouvirem quarenta e nove contos maravilhosos, Zoza, por meio de magia, substitui a última velha narra- dora e conta sua própria história como última narração. O príncipe fica saben- do do engano que foi levado a cometer, condena à morte a escrava moura e se casa com Zoza. Assim o enredo da obra se encerra, condensando dentro de si cinquenta contos maravilhosos emoldurados pelo que inicia as narrativas e as finaliza, bem ao modelo do Decamerone, de Giovanni Boccaccio, que poucas centenas de anos antes, havia recolhido cem contos verossímeis (novelle) em uma narrativa moldura de dez jovens que contavam, durante dez dias, um con- to cada um para passar o tempo. Não obstante Basile não ser conhecido mundialmente, muitos de seus contos do Pentamerone, serviram de inspiração para contos clássicos infantis como “Cinderela” (“La gatta cenerentola”); “Rapunzel” (“Petrosinella”); “O gato de botas” (“Cagliuso”); “Branca de Neve” (“La Schiavottella”); “A bela adormecida” (“Sole, Luna e Talia”) e “João e Maria” (“Ninnilo e Nennela”). O que não impediu Calvino (1992, p. 9) de afirmar que a obra prima de Basile é “como o sonho de um disforme Shakespeare partenopeu, obcecado por um fascínio pelo horrendo para o qual não há ogros nem bruxas que bastem e por um gosto pela imagem alambicada e grotesca em que o sublime se mistura ao vulgar e ao sujo”, referindo-se às evidentes características barrocas do escritor de fiabe que produziu em pleno século XVII, a partir das narrativas populares coletadas por ele. Fiabe no teatro no século XVIII Outro escritor italiano que merece ser lembrado no panorama do conto maravilhoso, e que viveu um século depois de Basile foi Carlo Gozzi, que le- vou os contos maravilhosos para o palco, por meio de sua Commedia dell’arte. Ele viveu em Veneza, de 1720 a 1806 e dentre as muitas obras que produziu está L’amore delle tre melarance o Analisi riflessiva della fiaba, encenada em Considerações sobre o maravilhoso na literatura e seus arredores 34 1761. Essa obra foi seguida por uma série de peças teatrais baseadas em fiabe como Il corvo (1762), Re cervo (1762), La donna serpente (1763), Zobeide (1763), I pitocchi fortunati (1764), Il mostro turchino (1764), L’augellino bel verde (1765) e Zeim, re de’ geni (1765), entre outras. Gozzi não era seguidor das ideias de Carlo Goldoni, que foi o provoca- dor da reforma no Teatro da época, pois acreditava que Goldoni, assim como Chiari (outro reformador do teatro), cada um à sua maneira, tinham “colocado em cena temas muito realistas e plebeus” (GARZANTI, 1997, p. 438, tradução nossa)5. Essa oposição às novas ideias colocadas em prática no teatro, em sua época, não impediu Gozzi de utilizar, como afirma Squarotti (1989, p. 356) “um modelo prestigioso e funcional de comédia harmonicamente construída, não evasiva, com a verdade do privado e do social e alimentada por uma firme, embora nem sempre explícita, intenção de intervir política e ideologicamente”. É o que parece ocorrer em L’amore delle tre melerance, obra teatral que inaugura sua série de obras baseadas em contos maravilhosos. Sua trama, segundo a Enciclopédia Treccani6, enfoca as ações do Príncipe Tartaglia, filho do Rei de Copas, que obstaculizado pela fada Morgana, consegue ser ajudado por Truffaldino e, depois de se aventurar, liberta a bela Ninetta, que tinha sido aprisionada por três frutas encantadas (mela-arance, corresponde a “maçã- laranjas”, ou seja, tipo de fruta mágica, que comparece em algumas narrativas como pomos
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