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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO NILSON HEBERT NUNES PONTES ESTUDO SOBRE A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE NAS REVOGAÇÕES DE ISENÇÕES GERAIS FORTALEZA 2021 NILSON HEBERT NUNES PONTES ESTUDO SOBRE A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE NAS REVOGAÇÕES DE ISENÇÕES GERAIS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito à obtenção do Título de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Tributário. Orientador: Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo FORTALEZA 2021 NILSON HEBERT NUNES PONTES ESTUDO SOBRE A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE NAS REVOGAÇÕES DE ISENÇÕES GERAIS Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito à obtenção do Título de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Tributário. Orientador: Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo Aprovado em: ___ /___ /_____. BANCA EXAMINADORA ______________________________________ Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo (Orientador) Universidade Federal do Ceará (UFC) ______________________________________ Prof. Dr. Carlos César Sousa Cintra Universidade Federal do Ceará (UFC) ______________________________________ Lucas Antunes Santos Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) A Deus. À minha família AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a minha mãe, Rosângela, por todo amor, apoio e dedicação, os quais jamais encontraram limites. O constante incentivo pela leitura e mesmo a mudança de cidade para me acompanhar foram fundamentais. Também ao João, por sempre ter se oferecido a ajudar. Agradeço também à Cinthia, ao Marcelo, à Alice e, mais recentemente, ao Gustavo, cuja casa passou a ser cada vez mais frequentada por mim ao longo do tempo pelo bem-estar e conforto que sempre foram característicos – é o núcleo jovem, como apelidado carinhosamente. Hoje em dia, também é onde mais vejo a Francileide, que muito estimo e espero retribuir os incansáveis esforços. À Maryssa, pelo amor, carinho, companheirismo e por todos os momentos vivenciados juntos nesse período. Por sempre me fazer feliz com seu jeito único de ser e por ser meu oposto que a cada dia me ensina mais. Agradeço à banca examinadora, por ter aceitado este convite. Ao Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo, cujos estímulos por um pensamento crítico já se iniciaram ao longo das cadeiras de Tributário I até a orientação deste trabalho. Ao Prof. Dr. Carlos Cintra, que muito me ensinou ao longo da monitoria, não apenas Direito, mas especialmente sobre sempre tratar os demais com boa vontade. E ao Mestrando Lucas Antunes, a quem agradeço pelo auxílio e disposição desde sua participação em Tributário I. Ao Dr. Henrique, por tanto ter me ensinado ao longo do estágio e mesmo depois dele, bem como por ter elevado minhas expectativas para qualquer novo estágio por ter iniciado em um com tantas qualidades. À Dra. Vanessa, por ter mantido essas expectativas e garantido muito aprendizado. E à Dra. Lia, nesse último período, que, apesar do menor tempo, também muito me influenciou. Em comum, mostraram um cotidiano diligente, porém leve. Aos meus amigos da faculdade e colegas de estágio, pelo companheirismo e pela convivência no dia a dia, de contribuição inestimável. Em especial, ao grupo de colegas do 2020.2, cuja presença foi constante e marcante nessa trajetória. Finalmente, ao grupo que nem sei mais como classificar, pelas sucessivas alterações e inclusões, sobretudo: Maryssa, Fred, Luize, Mari, Tetê, Rômulo, Thais, Mateus, Bia, Gabriel, Gisele, Aline, Clara, Larissa, Leite, Bochi, Vitim, Sophia e Ocelo. Tive o prazer de compartilhar diversos momentos de alegrias ao longo dos últimos anos – ainda que o conjunto esteja inominado, mais relevante é a vivência com cada um dos citados. “A bondade é o único investimento que nunca vai à falência” Henry David Thoreau RESUMO Este trabalho tem por objetivo analisar a aplicabilidade do princípio da anterioridade tributária aos casos de revogação de isenção, como forma de potencializar a segurança jurídica dos particulares, na medida em que é tema envolto por diversas incertezas. Com base em metodologia qualitativa, bibliográfica, direta, exploratória e descritiva, que envolve o estudo detalhado da literatura jurídica, das leis e da jurisprudência, este estudo apresenta visão crítica dos institutos mencionados, examinando os argumentos favoráveis e contrários, bem como sua evolução diante das transformações normativas. Partindo da controvertida conceituação de isenção, na qual se disputam definições clássicas e modernas, passando por uma reinterpretação do conceito das expressões “patrimônio e renda” constantes no art. 104 do Código Tributário Nacional, assim como da análise sobre a recepção do inciso III desse artigo, é possível perceber o intrincado cenário que se precisa atravessar até chegar à resposta central que conduz toda a cognição aqui estabelecida. Paralelamente, as sucessivas alterações promovidas no texto constitucional com o fim de imprimir novas nuances ao Princípio da Anterioridade demonstram a conflituosidade ao seu redor, o que finda gerando questionamentos sobre seu alcance, notadamente quando são consideradas as razões subjacentes que conduziram sua formulação. A par das questões envolvendo esses dois institutos isoladamente, é no seu entrelaçamento que se observa a maior divergência, não havendo opinião uníssona acerca da aplicabilidade da anterioridade na situação de revogação de isenção. Assim, conjugando a visão acadêmica dos fenômenos jurídicos envolvidos com seus aspectos pragmáticos, de notória interferência no cotidiano da sociedade, é que se espera fornecer contribuição na matéria, no sentido de se reconhecer a aplicabilidade do princípio em questão quando houver revogação de isenção, de modo a tratar de forma semelhante a majoração direta e indireta. Palavras-chave: Isenção Tributária. Revogação. Princípio da Anterioridade ABSTRACT This paper seizes to analyze the application of the tax anteriority principle in cases of revocation of tax exemption, as a way to enhance legal certainty of individuals, since this theme is surrounded by many uncertainties. With a qualitative, bibliographical, direct, exploratory and descriptive methodology, which involves a detailed study of legal literature, laws and jurisprudence, this work presents a critic view on the mentioned institutes, by examining arguments both for and against, as well as their development in face of legislative changes. Starting from the controversial definition of exemption, between classic and modern ideas, going through a reinterpretation of the expressions “patrimony” and “income” used in article 104 of the National Tax Code, as well as a reflection on the reception of that article’s third item, it is possible to see the complex horizon that needs to be gone through until getting to the key answer that leads to the whole idea established here. At the same time, the various changes in the Constitution to promote new shapes to the tax anteriority principle demonstrate the conflict surrounding it, which produces issues about its range,especially when the underlying reasons for its creation are taken into consideration. Aware of the matters involving each of those two institutes separately, it is in their intertwining that the greatest divergence is noted, and there is no unanimous point of view about the application of the tax anteriority principle in the situation of revocation of tax exemption. Therefore, it is by binding the academic judgement of those legal phenomena with their pragmatic aspects, which have a huge impact on society’s daily life, that is expected to offer some contribution to this theme, thus recognizing the possibility to apply the tax anteriority principle when there is a revocation of tax exemption, in order to treat both direct and indirect surcharges equally. Keywords: Tax exemption. Revocation. Tax anteriority principle. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................11 2. ISENÇÃO TRIBUTÁRIA E SEU CONCEITO..........................................................13 2.1. Definição de isenção.....................................................................................................14 2.1.1. Corrente clássica sobre a incidência da norma isentiva............................................15 2.1.2. Correntes modernas sobre a Isenção.........................................................................18 2.2. Isenção X Imunidades...................................................................................................25 2.3. Isenção e Isonomia........................................................................................................28 3. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE..........................................................................31 3.1. Da anualidade para a anterioridade...............................................................................33 3.2. Sobre a anterioridade e seu termo “cobrar”...................................................................36 3.3. A anterioridade no CTN: o art. 104...............................................................................39 3.4. A expansão da noventena..............................................................................................42 3.5. A anterioridade e a segurança jurídica..........................................................................44 4. ANTERIORIDADE E ISENÇÃO................................................................................47 4.1 A solução do Supremo Tribunal Federal........................................................................47 4.1.1 O caso dos benefícios fiscais.......................................................................................51 4.2 A solução apresentada pela doutrina..............................................................................55 4.3 Análise da posição doutrinária e jurisprudencial............................................................58 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................64 11 1. INTRODUÇÃO O estudo e análise da Isenção Tributária, conquanto antigo, permanece atual e necessário. É comum que os profissionais do direito manejem, em seu cotidiano, aspectos relacionados ao tributo e, paralelamente, à isenção. Enquanto ao primeiro é dedicada extensa atenção sobre sua definição e alcance, a segunda se mantém relegada a um segundo plano, não havendo a mesma profundidade de conhecimento difundida. Com efeito, no lado do estudo do tributo há certa pacificação doutrinária e jurisprudencial sobre os aspectos gerais, como seu conceito – objeto, inclusive, de elogiada definição legal – e forma de constituição, existindo ampla difusão do conhecimento acerca do procedimento de conversão de uma obrigação tributária em crédito tributário, bem como as circunstâncias que geram sua suspensão, extinção e exclusão. Os litígios surgem, muitas vezes, por deturpações do ordenamento jurídico que são de logo denunciadas pelos estudiosos da matéria. No lado inverso – o das isenções tributárias –, todavia, não é dedicado o mesmo nível de atenção, pairando sobre ele a sensação de certeza sobre sua definição, limite e alcance que gera uma aparente pacificação em torno do assunto. Entretanto, acaso se considere que o nível de estudo deve ser proporcional à intensidade dos conflitos que podem surgir, haverá certa incongruência nisso, pois “[t]antos problemas suscita o tributo, em seu lado positivo – isto é, enquanto gera obrigações de pagamento – surgem paralelamente outros tantos, sob diverso perfil, na sua face negativa – enquanto dá origem à isenção do pagamento”1. No particular, questão que evidencia essas lacunas é relativa à indagação se o Princípio da Anterioridade alcança não apenas as situações em que ocorre majoração direta do tributo, mas também aquelas em que dito aumento ocorre de forma indireta, sobretudo no caso da revogação de isenção. Recente decisão do Supremo Tribunal Federal envolvendo benefícios fiscais – gênero do qual a isenção concedida em caráter não geral é espécie – propiciou um cenário de diálogos mais intensos em torno da matéria, notadamente pela indicação de alteração da jurisprudência assentada. A decisão supracitada não alcança as isenções concedidas em caráter geral, deixando ainda em aberto a conclusão do Poder Judiciário. Em âmbito doutrinário, por sua vez, também não se mostra pertinente afirmar haver um desfecho e uma resposta definitiva à pergunta central deste projeto – se a isenção tributária deve ser limitada pela Anterioridade quando sofre revogação –, porquanto balizadas opiniões são vistas defendendo pontos 1 BORGES, José Souto Maior. Isenções Tributárias. 1ª ed. São Paulo, SP: Sugestões Literárias, 1969, p. 154. 12 diametralmente opostos; mesmo nas circunstâncias em que convergem na conclusão, existem divergências nas premissas que conduziram até ela. Partindo da controvertida conceituação de isenção, na qual se disputam definições clássicas e modernas, passando por uma reinterpretação do conceito das expressões “patrimônio e renda” constantes no art. 104 do Código Tributário Nacional, assim como da análise sobre a recepção do inciso III desse artigo, é possível perceber o intrincado cenário que se precisa atravessar até chegar à resposta central que conduz toda a cognição aqui estabelecida. Sobre o Princípio da Anterioridade, tentou-se analisar seu percurso legal, analisando os contornos que as sucessivas alterações constitucionais lhe conferiram. Do mesmo modo, não foram olvidadas as contribuições fornecidas pelos doutrinadores que almejaram aperfeiçoar sua incidência no cotidiano da sociedade. Finalmente, após concluído o estudo apartado desses dois institutos, proceder-se-á à análise conjugada, com o fim de concluir acerca da aplicabilidade ou não do Princípio da Anterioridade na hipótese de revogação de isenção tributária. Não obstante as numerosas dúvidas inerentes ao tema, pretende-se desenvolver pesquisa monográfica apta a identificar soluções viáveis aos variados conflitos jurídicos demonstrados acima. Sobre a metodologia adotada, o trabalho é feito com o cotejo das informações constantes na doutrina especializada, abordando os posicionamentos díspares; também se investiga a evolução da interpretação feita pelos Tribunais Superiores sobre a matéria e seus fundamentos. Do mesmo modo, aborda-se as normas constantes do Código Tributário Nacional e da Constituição Federal tratando do tema, de forma a realizar a devida interpretação sistemática e compatibilizar o disposto nas duas leis. Nessa perspectiva, percebe-sepredominância da técnica bibliográfica para investigação da temática, utilizando-se o tipo de pesquisa qualitativa para compreender os motivos subjacentes às decisões jurisdicionais e às manifestações de opinião doutrinárias acerca do tema e, a partir disso, obter a conclusão adequada. Ademais, adota-se modo de investigação direto. Além disso, o estudo é realizado de modo exploratório, aprofundando a análise dos temas discutidos nas obras de referência para, a partir dessa abordagem, buscar as soluções mais adequadas para os questionamentos e conflitos jurídicos que conduzem esta pesquisa. Ainda, seu objeto é conduzido de forma descritiva, explorando e explicando os institutos jurídicos em comento. 13 2. ISENÇÃO TRIBUTÁRIA E SEU CONCEITO “Esclarecer é explicitar as premissas”2. Como bem sinalizado por Alfredo Becker, o cerne de relevantes controvérsias jurídicas reside, muitas vezes, naquilo que se supõe óbvio, mas que, em realidade, apenas não foi destinada a devida atenção a ponto de se analisar metodologicamente. É dizer: a priori, jamais houve consenso genuíno, apenas não se desenvolveram estudos suficientes para originar as dúvidas; nessa omissão dialética, num aparente paradoxo, as controvérsias se instalam e permanecem não resolvidas. Dito isso, o presente estudo pretende iniciar por seu princípio, analisando cada instituto envolvido na questão condutora desta monografia de forma isolada e simples para, somente depois de estabelecidas e explicitadas essas premissas teóricas, partir para uma compreensão sistêmica desses elementos. É por esse caminho que se almeja esclarecer a aplicabilidade, ou não, do princípio da anterioridade tributária às situações de revogação de isenção. Talvez seu principal componente, e pelo qual se começa, seja justamente a isenção, em que até mesmo sua definição ainda não se mostra pacificada, tampouco seu modo de incidir. Embora a construção de uma teoria jurídica sobre as isenções já tenha seu caminho iniciado por José Souto Maior Borges ainda na década de 1960 e continuada por autores de destaque, certo é que o instituto ainda não experimentou o estudo coletivo que a tributação sempre foi alvo3; dadas as semelhanças entre ambos, era de se esperar tratamento menos díspar. Como bem sintetizado por José Souto Maior Borges: “O poder de isentar apresenta certa simetria com o poder de tributar. Tal circunstância fornece a explicação do fato de que praticamente todos os problemas que convergem para a área do tributo podem ser estudados sob ângulo oposto: o da isenção. Assim como existem limitações constitucionais ao poder de tributar, há limites que não podem ser transpostos pelo poder de isentar, porquanto ambos não passam do verso e reverso da mesma medalha”4. Com efeito, respeitadas as limitações constitucionais, a isenção se apresenta como uma decisão política discricionária, em que, dentro da competência tributária, é facultado ao ente federativo optar tanto pela tributação, como pela isenção de determinada manifestação de 2 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 5ªed. São Paulo: Noeses, 2010. pag. 12. 3 “No campo do direito tributário, poucos assuntos foram tratados com tanta superficialidade teórica como o da incidência. Esta superficialidade é responsável pelos erros em que incorreu a análise das isenções”. (BORGES, José Souto Maior. Isenções Tributárias. p. 176) 4 Ibidem. p. 11. 14 riqueza5. Precisará, contudo, observar os princípios da legalidade, isonomia etc, pois, simetricamente à tributação, a isenção, da mesma forma que beneficia seus destinatários, tem a potencialidade, caso utilizada indevidamente, de prejudicar a parcela da população não contemplada por sua incidência. Não obstante esse amplo panorama, a constatação originalmente feita de deficiência exploratória é reforçada em simples investigação dos precedentes dos tribunais superiores, os quais ainda estão na fase de supor concordâncias obtidas sem o crivo da dialeticidade acerca das isenções, prendendo-se a concepções há muito debatidas e superadas pela doutrina majoritária. Nesse sentido, matéria enraizada no Judiciário, mas que enfrenta resistência da moderna literatura jurídica, é a conceituação de isenção, ponto cuja caminhada teórica é rica em detalhes e merece detida atenção. 2.1. Definição de isenção Ordinariamente, ao iniciar o estudo de determinado fenômeno jurídico, parte-se de sua conceituação, definindo do que se trata para, somente em seguida, definir seu tratamento jurídico, as consequências de sua infração, bem como a relação com outros elementos do sistema. Em geral, essa tarefa também não se apresenta demasiadamente dificultosa, sendo prontamente resolvida pelos cientistas do direito. Contudo, quando se trata de isenção, percebe-se que é justamente a delimitação de “o que é” esse instituto o ponto mais controvertido, havendo lenta e gradual caminhada teórica ao seu redor, ainda que com nítida evolução no campo doutrinário. Paradoxalmente, os outros passos – tratamento jurídico, critérios para enquadramento e revogação – foram, ao menos teoricamente, traçados pelo legislador infraconstitucional, de modo que, por não haver a unanimidade sobre “o que é”, vão surgindo problemáticas casuísticas no campo teórico, como a que conduz a formulação desta monografia. Assim, é fundamental iniciar pela pergunta sobre o que é a isenção. Previamente à apresentação das correntes formadas sobre a matéria, diga-se que o elemento diferenciador entre elas é, em relevante medida, a visão sobre a forma como ocorre a incidência da norma isentiva no mundo fenomênico. Conquanto siga, substancialmente, o mesmo procedimento de subsunção frequente nos diversos ramos do direito, houve certas 5 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 28ª ed. red. amp. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 976. 15 distorções no enfrentamento da matéria que corromperam sua compreensão. É o que se passa a descrever. 2.1.1 Corrente clássica sobre a incidência da norma isentiva Tradicionalmente, prevaleceu em sede jurisprudencial e doutrinária a visão de que a isenção constituiria uma “dispensa do dever legal de pagar o tributo”. Apregoava-se existir a obrigação tributária, a qual, por uma questão de benesse estatal, não precisaria ser adimplida pelo particular diante do fato de o Estado, editando a norma de isenção, haver escusado unicamente seu pagamento, mantendo a obrigação tributária em estado de latência. Sob essa óptica, existiria uma sequência lógico-temporal de aplicação da norma de tributação e da norma de isenção, como se ambas incidissem sobre o mesmo suporte fático e ao mesmo tempo, resultando na existência de uma obrigação tributária despida de exigibilidade. José Souto Maior Borges bem explana essa questão sequencial: “1º momento. A lei tributária incide concretamente sobre o fato gerador hipoteticamente nela previsto. 2º momento. Como decorrência da incidência da lei sobre o fato gerador, surge a respectiva obrigação tributária. 3º momento. A lei dispensa o pagamento do tributo, limitando-se, pois, a excluir a exigibilidade do crédito tributário; vale dizer que, por uma metamorfose jurídica, a lei tributária transforma o fato gerador em fato isento”6. Esse posicionamento, conquanto não possua a ressonância na doutrina atual como outrora obteve, foi o que orientou os dispositivos do Código Tributário Nacional no disciplinamento do assunto. Ao tratar a isenção como hipótese de exclusão tributária, ao lado da anistia, pressupôs a obrigação tributária e dispensou o lançamento tributário, resultando na falta de exigibilidade7. Seguindo a mesma linha de raciocínio, o Supremo Tribunal Federal firmou suajurisprudência no mesmo sentido, identificando a isenção como a dispensa do dever legal de pagar o tributo e reconhecendo esse estado de latência da obrigação tributária cuja subsunção 6 BORGES, José Souto Maior. Isenções Tributárias. 1ª ed. São Paulo, SP: Sugestões Literárias, 1969. p. 163. 7 Nesse sentido: “Este posicionamento doutrinário e jurisprudencial encontra embasamento no próprio CTN que, no art. 175, qualifica a isenção como uma das hipóteses de exclusão do crédito tributário, ao lado da anistia. Para os que assim entendem, a isenção não afasta a incidência tributária, não impede a ocorrência do fato gerador, nem tampouco obsta o nascimento da obrigação tributária; apenas exclui o crédito, tornando desnecessária sua constituição mediante a atividade de lançamento tributário”. PAIVA, Paulo Alves da Silva. A natureza jurídica da isenção tributária. REPATS, Brasília, V. 3, nº 1, p.330-357, Jul-Dez, 2016. ISSN: 2359-5299. Disponível em: < https://portalrevistas.ucb.br/index.php/REPATS/article/view/7736/pdf>. Acesso em: 11 jan. 2021. p. 05. 16 teria ocorrido anteriormente à norma isentiva8. Havia, como bem esclarece Paulo de Barros Carvalho, a noção de que essa dispensa representaria um favor fiscal outorgado ao particular: “Clássica é a tese de que a isenção é um favor legal consubstanciado na dispensa do pagamento do tributo devido. Sensível a reclamos de ordem ética, social, econômica, política, financeira etc., a autoridade legislativa desonera o sujeito passivo da obrigação tributária de cumprir o dever jurídico de recolher o gravame, mediante dispositivo expresso de lei. Toma-se como premissa que o fato jurídico ocorre, normalmente, nascendo o vínculo obrigacional. Por força da norma isentante, opera- se dispensa do débito tributário”9. Levando às últimas consequências sua compreensão de benesse fiscal, a resposta dada pelo Judiciário sobre a aplicabilidade do princípio da anterioridade em situações semelhantes à isenção e com efeitos práticos similares – desoneração tributária – sempre se orientou por sua inaplicabilidade, inclusive mediante enunciado sumular10. Afinal, como existia a obrigação, quando a norma que impedia sua exigibilidade era revogada, cessaria o estado de latência e seria possível a cobrança do tributo. O aguardo pelo próximo exercício financeiro iria além do esperado pela benesse estatal; o lapso temporal em que ele vigeu já seria suficiente. Voltar-se-á a discutir a construção desse posicionamento no interior da Corte Suprema. Contudo, mesmo que prevalecesse em sede doutrinária e jurisprudencial, esse modo de interpretar o ordenamento jurídico não ficou imune de críticas. De início, é possível observar incongruências com a forma pela qual ocorre a incidência das normas em geral e é descrito pela ciência do direito11, sem razões subjacentes aptas a conferir validação à distinção operada. Por exemplo, o próprio procedimento lógico de subsunção e surgimento da obrigação tributária, essencialmente a contraface da isenção, é descrito em cenário divergente. No caso da obrigação, edita-se, primeiramente, a lei descrevendo uma situação hipotética e com potencialidade de ocorrência no mundo fenomênico; após, ocorre o fato, 8 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário. 170.412/SP. T2., voto do rel. min. Carlos Velloso, j. 24-9-1996, DJ de 13-12-1996. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=218492>. Acesso em: 11 jan. 2021. 9 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 25ªed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 445. 10 Súmula 615 do STF: O princípio constitucional da anualidade (§ 29 do art. 153 da Constituição Federal) não se aplica à revogação de isenção do ICM. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula nº 615. Brasília, DF, [1984]. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=2280>. Acesso em: 11 jan. 2021. 11 Para visão geral sobre o instituto da incidência, passagem bastante didática é fornecida por Geraldo Ataliba: “Com as cautelas que as comparações impõem, é fenômeno parecido com uma descarga elétrica sobre uma barra de ferro. Recebendo a descarga, a barra passa a ter a força de atrair metais. Substancialmente, a barra persistirá sendo de ferro. Por força, entretanto, da descarga, adquirirá a propriedade de ser apta a produzir esse específico efeito de ímã. Incidência é a descarga elétrica”. (ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 45) 17 completando a subsunção e gerando a obrigação tributária12. Assim, a subsunção seria precisamente a similitude entre o fato e sua descrição hipotética, cujo acontecimento cumpre rigorosamente o disposto no comando normativo13. Não há, como se nota, nenhum intermediário entre a norma e o fato, nem há duas normas ou dois fatos no mesmo fenômeno da incidência; no caso da obrigação tributária, portanto, a doutrina tradicional sempre expôs um procedimento simples e lógico. O mesmo não aconteceu com a norma isentiva, a qual seguiu o que foi explicado anteriormente. A sua compreensão como “dispensa do dever legal de pagar”, como já dito, constituiu, em última análise, distorção que apenas complicou a compreensão da matéria. A incidência de duas normas, a que faz nascer a obrigação e a que institui a isenção, sobre o mesmo fato não se mostra, no plano lógico, como situação permitida pela ciência do direito, representando uma aparente antinomia. A esse respeito, Luciano Amaro destaca: “Todavia, trata-se de conceituação equivocada. Dispensa legal de tributo devido é conceito que calharia bem para a remissão (ou perdão) de tributo, nunca para a isenção. Aplicado à isenção, ele suporia que o fato isento fosse tributado, para que, no mesmo instante, o tributo fosse dispensado pela lei. Esse raciocínio ilógico ofende o princípio da não contraditoriedade das normas jurídicas: um fato não pode ser, ao mesmo tempo, tributado e não tributado”14. No mesmo sentido é a observação de José Souto Maior Borges, para quem a conversão de fato gerador em fato isento representaria uma contradição, resultando em que, na existência de duas proposições contraditórias, não poderiam ser ambas válidas15. Em verdade, dispor a norma isentiva como dispensa legal não se mostra tecnicamente elogiável, para além da questão da contraditoriedade, por fazer que duas normas de igual hierarquia incidam simultaneamente sobre o mesmo objeto. É situação ímpar no direito brasileiro, afinal, o que se aplica são normas hierarquicamente escalonadas: Constituição Federal, norma infraconstitucional e atos infralegais; jamais normas no mesmo patamar na pirâmide kelseniana, ressalvada a solução pela especialidade, no entanto, nessa linha, o que existiria seria justamente o recorte na regra de incidência, e não a sucessão de subsunções preconizada – como se verá, o critério da especialidade foi pontualmente a solução apontada pela doutrina atual. Tratando de matéria similar, Augusto Becker explica: 12 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 55. 13 Ibidem, p. 69. 14 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 309-310. 15 BORGES, José Souto Maior. Isenções Tributárias. 1ª ed. São Paulo, SP: Sugestões Literárias, 1969. p. 163. 18 “Para que duas regras jurídicas sejam distintas, isto é, sejam duas e não uma só, não é necessário que tanto a regra, como a hipótese de incidência, tenham conteúdo diferente. Para que haja dualidade de regras jurídicas é suficiente que a regra ou a hipótese de incidência tenha conteúdo diferente. Nada impede que o mesmo fato ou complexo de fatos forme o conteúdojurídico das hipóteses de incidência de duas ou mais regras jurídicas e sofra, simultaneamente, a incidência daquelas múltiplas regras jurídicas (ex.: comercial e tributária), cuja hipótese de incidência tem como conteúdo o mesmo fato ou complexo de fatos”16. Vê-se, no entanto, que ambas as normas são de igual conteúdo, apenas de sinal trocado, não se apresentando pertinente a ideia de que incidam concomitantemente sobre o mesmo objeto. Hugo de Brito Machado, apresentando interpretação capaz de manter, ainda que parcialmente, a definição da isenção como “dispensa do dever de pagar”, modifica o momento, no plano lógico da incidência, da ocorrência da dispensa, pois ocorreria ainda no campo hipotético, antes de se falar em fato gerador, subsunção ou incidência. Ou seja, observar-se-ia em sede de interpretação do ordenamento jurídico: “Os que sustentam que a isenção é a dispensa de um tributo devido talvez se refiram ao tributo no plano da abstração, antes da incidência da norma de tributação – vale dizer, antes da ocorrência do fato gerador respectivo. A isenção seria, assim, a dispensa de tributo que não chega a existir no plano da concreção jurídica”17. Em que pese essas críticas, a posição do Supremo Tribunal Federal sempre se manteve no sentido de considerar a isenção como dispensa do tributo. No campo doutrinário, ao seu turno, floresceram outras correntes para explicar o assunto, cada qual com uma roupagem ligeiramente diferente, mas que, em seu âmago, se complementam. 2.1.2 Correntes modernas sobre a Isenção No cenário de profusão de críticas sobre a concepção clássica da incidência de isenção, despontaram doutrinas com visões distintas sobre esse fenômeno jurídico, evoluindo a explicação do “passo a passo” de sua ocorrência. Apesar de apresentarem pequenas especificidades diferenciadoras, muitas vezes houve simplesmente a demonstração do mesmo objeto por ângulos diversos, complementando-se mutuamente, como será visto doravante. 16 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 5ªed. São Paulo: Noeses, 2010. p. 342. 17 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 38 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 231. 19 Nesse contexto, almejando reformular e, por conseguinte, construir uma teoria jurídica em torno da isenção, José Souto Maior Borges principiou, justamente, pela reconsideração da fundamentação acerca de como operava a norma isentiva. Abandonou a ideia de subsunção de duas normas, cronologicamente espaçadas, sobre o mesmo objeto e retornou seu modo de ocorrer para o que se vê nas normas jurídicas em geral. Assim, não cogitou mais a existência de uma obrigação tributária com dispensa de pagamento. O que há é, puramente, a não incidência da regra de tributação em razão da norma isentiva, de modo que tanto a obrigação tributária jamais se forma, como sua exigibilidade não sofre uma simples “dispensa”, mas é, intrinsecamente considerada, inviável de cobrança, por não ser cogitável a exigência do inexistente. José Souto assim se pronuncia: “A norma que isenta é, assim, uma norma limitadora ou modificadora: restringe o alcance das normas jurídicas de tributação; delimita o âmbito material ou pessoal a que deverá estender-se o tributo ou altera a estrutura do próprio pressuposto de sua incidência”18. Para melhor compreensão, basta imaginar o seguinte exemplo: determinado tributo incide originalmente sobre o grupo A, B, C e D; posteriormente, dentro da discricionariedade política, o ente federativo edita norma isentando a letra “D”. Nessa situação, com base nesse novo entendimento, não houve a simples dispensa de o grupo “D” pagar uma obrigação tributária “adormecida”; o que aconteceu, em vez disso, é que a regra de tributação não incidiu – jamais originando a obrigação –, prevalecendo unicamente a incidência da isenção. A um só tempo, resolvem-se os problemas da dupla incidência de normas de igual hierarquia e a distorcida visão de incidência cronologicamente espaçada da norma de tributação e de isenção. Por essa cognição, os institutos da isenção e da imunidade, cujos efeito no cotidiano do cidadão bastante se assemelham, também se aproximam, como bem é demonstrado por José Souto: “Tal distinção é criticável de vez que a isenção, contrariamente ao que pretende a quase generalidade da doutrina, configura hipótese de não-incidência legalmente qualificada, como a imunidade configura hipótese de não-incidência constitucionalmente qualificada”19. Prosseguindo seu raciocínio, ainda completa com a distinção entre a isenção e a não-incidência pura. Enquanto aquela assim é reconhecida pela superveniência de uma lei 18 BORGES, José Souto Maior. Isenções Tributárias. 1ª ed. São Paulo, SP: Sugestões Literárias, 1969. p. 190. 19 Ibidem. p. 182. 20 infraconstitucional que faz a norma de tributação não incidir, esta é puramente uma decorrência lógica da interpretação da própria lei regente do tributo, pois se ele pode ser cobrado de determinada manifestação de riqueza, significa que todas as demais estão excluídas de seu alcance20. Alfredo Becker bem explica essa questão: “A expressão ‘caso de não-incidência’ significa que o acontecimento deste ou daqueles fatos são insuficientes, ou excedentes, ou simplesmente estranhos para a realização da hipótese de incidência da regra jurídica tributária”21. Esses contornos entre a isenção e a não-incidência pura findam fundamentando, por via transversa, a permanência de obrigação acessória para os isentos e a inexistência delas para aqueles que simplesmente não se enquadram na regra de incidência da norma tributária. Insista- se, contudo, que apenas a obrigação acessória se mantém; a principal não consegue se originar por ausência de sustentáculo normativo. Paralelamente e em adição às contribuições prestadas por José Souto, Alfredo Becker, mantendo esse mesmo olhar sobre o modo de ocorrência da incidência das normas de tributação e de isenção, se pronunciou sobre o assunto: “Na verdade, não existe aquela anterior relação jurídica e respectiva obrigação tributária que seriam desfeitas pela incidência da regra jurídica de isenção. Para que pudesse existir aquela anterior relação jurídica tributária, seria indispensável que, antes da incidência da regra jurídica de isenção, houvesse ocorrido a incidência da regra jurídica de tributação. Porém, esta nunca chegou a incidir porque faltou, ou excedeu, um dos elementos da composição de sua hipótese de incidência, sem o qual ou com o qual, ela não se realiza. Ora, aquele elemento faltante, ou excedente, é justamente o elemento que, entrando na composição da hipótese de incidência da regra jurídica de isenção, permitiu diferença-la da regra jurídica de tributação, de modo que aquele elemento sempre realizará uma única hipótese de incidência: a da isenção, e desencadeará uma única incidência: a da regra jurídica da isenção, cujo efeito jurídico é negar existência de relação jurídica tributária. A regra jurídica de isenção incide para que a de tributação não possa incidir. A regra jurídica que prescreve a isenção, em última análise, consiste na formulação negativa da regra jurídica que estabelece a tributação”22. Sua doutrina, entretanto, partindo de ponto diverso, chega em posição semelhante à de José Souto, afirmando que a isenção seria uma regra não-juridicizante, enquanto que a 20 Em suas palavras: “Somente a qualificação jurídica, através da Constituição (imunidades) de leis ordinárias ou complementares (isenções), resolve-se num direito do contribuinte e não em uma circunstância puramente negativa como acontece com não-incidência, considerada como o equivalente ao campo remanescenteou residual do campo da tributação”. (BORGES, José Souto Maior. Isenções Tributárias. 1ª ed. São Paulo, SP: Sugestões Literárias, 1969. p. 184). 21 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 5ªed. São Paulo: Noeses, 2010. p. 326. 22 Ibidem. p. 326-327. 21 norma de tributação seria regra juridicizante23. Como não existe incidência prévia à da norma isentiva – aqui também se nega a dupla subsunção defendida pela doutrina prevalente na época –, ela não é regra desjuridicizante, uma vez que não há relação prévia a ser desconstituída; ela é simplesmente não-juridicizante, visto que da incidência da norma de isenção não surge nenhuma obrigação de pagar. Apesar da nomenclatura distinta, percebe-se que, substancialmente, tratam da matéria sob o mesmo olhar. Ao originar a obrigação tributária, a regra jurídica seria juridicizante, pois cria um dever ao indivíduo. Por outro lado, se esse fenômeno, com potencial de ocorrência, fosse, porém, impedido por uma lei infraconstitucional, e não simplesmente por estarem fora do campo destinatário, falar-se-ia em regra não-juridicizante, porquanto, em tese, não haveria nenhuma exigência de pagamento. Essa visão de a isenção não ser geradora de obrigação somente pode ser aceita parcialmente, pois, como já afirmado, conquanto não nasça a obrigação principal, o particular permanece devendo cumprir as acessórias, sob pena, inclusive, de poder ver desfeita sua não tributação. Ocorreu, como se vê, notável avanço no estudo dos dispositivos tributários, devido, em grande parte, à reinterpretação do instituto da isenção. Contudo, na opinião de Paulo de Barros de Carvalho, conquanto tenha evoluído, ainda não havia alcançado o estágio ideal de compreensão da matéria. Em sua visão: “Quando assevera que a regra de isenção incide para que a de tributação não possa incidir, outorga maior celeridade ao processo de percussão do preceito isencional, que deixa para trás a norma do tributo, na caça ao acontecimento do mundo físico exterior. Inverte, como se vê, a dinâmica de juridicização do evento que, ao invés de sofrer primeiramente o impacto da regra de tributação, como queria a tese tradicional, recebe a incidência da norma isentiva. No curso do mesmo raciocínio, não entendemos que o conceito de isenção como hipótese de não incidência legalmente qualificada seja a mais adequada para exprimir o fenômeno de que tratamos. Padece do vício da definição pela negativa”24. Por esse caminho adotado, a conceituação formulada por Souto Maior e Alfredo Becker cometeriam o mesmo equívoco que era apontado sobre a definição clássica: pretender que duas normas concorressem pela incidência sobre o mesmo acontecimento fenomênico, vencendo por questão de cronologia25. Ademais, em adição, ainda seria definição insuficiente, pois, supostamente, não declararia “o que é”, mas apenas “o que não é”. 23 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 5ªed. São Paulo: Noeses, 2010. p. 324- 325. 24 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 25ªed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 448. 25 Carvalho, por exemplo, tal como ambos os doutrinadores, efetuava a mesma crítica sobre os estudiosos clássicos ao afirmar que a ideia de “dispensa do dever legal de pagar”: “Traduz, na verdade, uma cadeia de expedientes imaginativos, para amparar uma inferência absurda e contrária ao mecanismo da dinâmica normativa. 22 Alicerça, então, sua teoria na distinção entre regras de comportamento e regras de estrutura, sendo as primeiras direcionadas diretamente às pessoas – cuja hipótese prescreve uma ação ou omissão que, violada, gerará a sanção –, e as últimas endereçadas mais precisamente ao próprio ordenamento jurídico ou, em última instância, ao legislador, pois tratam do modo como as normas de conduta interagirão entre si, serão produzidas e modificadas26. Sob essa óptica, as normas de isenção constituiriam espécie do gênero das regras de estrutura, visto que, em vez de impor condutas aos indivíduos, ela se relacionaria com as demais regras tributárias, de modo que, ao modificar o ordenamento jurídico, afetaria o regime jurídico dos contribuintes apenas por via transversa27. Assim, compreende que a isenção, integrante desta categoria, faz um recorte na regra de incidência tributária –atua no plano normativo –, seja no antecedente, seja no consequente; explica, finalmente, como ocorre essa interação: “E assim por diante, sempre o mesmo fenômeno: o encontro de duas normas jurídicas, sendo uma a regra-matriz de incidência tributária e outra a regra de isenção, com seu caráter supressor da área de abrangência de qualquer dos critérios da hipótese ou da consequência da primeira (regra-matriz)”28 . Em seu raciocínio, a alíquota zero, por exemplo, se enquadra como isenção por força do recorte realizado no critério quantitativo do consequente29. Essa análise puramente normativa dos institutos, tentando evitar que os eventos disciplinados interferissem na conceituação do plano legal, contribui para a compreensão da matéria ao fornecer definição positiva da isenção, passando a ser vista como a mutilação parcial da regra matriz de incidência do tributo. Em verdade, a despeito das críticas de Paulo de Barros, seus ensinamentos não são substancialmente distintos dos apresentados por Souto Maior e Alfredo Becker, apenas seguiram o caminho por sentido inverso. Isso porque, ao final, a conclusão extraída, perfilhando Não há cronologia na atuação de normas vigorantes num dado sistema, quando contemplam idêntico fato do relacionamento social. Equivaleria a atribuir maior velocidade à regra-matriz de incidência tributária, que chegaria primeiro ao evento, de tal sorte que, quando chegasse à norma de isenção, o acontecimento do mundo real já se encontrasse juridicizado”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 25ªed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 447). 26 Ibidem. p. 449. 27 Em reforço: “Esse preâmbulo tem um escopo bem determinado, porque as normas de isenção pertencem à classe das regras de estrutura, que intrometem modificações no âmbito da regra-matriz de incidência tributária, esta sim, norma de conduta”. (Ibidem. p. 449-450). 28Ibidem. p. 451. 29 Ibidem. p. 451. 23 qualquer das duas correntes, é que, ao incidir a isenção, não há a subsunção da regra de tributação. Para Carvalho, isso é procedimentalizado pelo recorte da regra matriz de incidência, o que é feito ainda no plano normativo. Para Souto Maior e Alfredo Becker, conquanto não se expressem pelos mesmos termos, certo é que a ideia subjacente é simétrica: há a alteração normativa da regra de tributação e, diante do recorte efetuado, permite a incidência unicamente da isenção. Não existe nenhuma corrida nem cronologia de subsunção de duas normas sobre o objeto, como criticado por Carvalho; sucede meramente a natural incidência da norma especial em lugar da geral, representando, essencialmente, o próprio recorte da regra matriz do tributo. Em outras palavras, a mutilação é o que resulta na aplicação da especialidade, pois a regra segmentada origina a norma geral e especial; aquela seria a de tributação e esta representaria a de isenção. Portanto, analisando, intrinsecamente, as contribuições ofertadas, porém ignorando, em parte, os termos utilizados, percebe-se que concebem a mesma significação para a norma isentiva. Quanto à segunda crítica, versando sobre a conceituação pela negativa, é mister reconhecer que apenas percorreram o sentido inverso da definição. Naturalmente, quando definiram a isenção como “regra de não-incidência legalmente qualificada”, assim foi feito porque o foco residia na norma de tributação, de modo que o que não incide é a hipótese originadora da obrigação tributária. Simetricamenteé o que se vê pela conceituação da isenção como “mutilação da regra matriz”, cujo foco transmuda-se para a própria norma isentiva, mas que resulta, da mesma forma, a não incidência da hipótese de tributação. Isso foi bem notado por Carrazza: “Como quer que seja, os dois conceitos (o de Souto Maior e o de Barros Carvalho) não se excluem; antes, se completam. Apenas captam o fenômeno da isenção tributária por ângulos diversos. Conjugados, permitem uma melhor visualização deste interessante e ainda tão pouco explorado assunto”30. Portanto, por mais essa razão, percebe-se que as doutrinas, apesar de suas peculiaridades, servem de complemento mútuo. Ao final, pode-se extrair o entendimento de que, ao incidir a norma de tributação, haverá o comando “pague”; ao revés, se houver o recorte pela norma isentiva, de sua incidência decorrerá o preceito “não pague”. Constituem o verso e o anverso da mesma moeda. 30 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 28ª ed. red. amp. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 990. 24 Finalmente, avançando na trilha teórica traçada em torno da conceituação do fenômeno jurídico da isenção, é pertinente realçar a posição defendida por Roque Antonio Carrazza. Nesse ponto, aludido doutrinador faz valiosa repartição entre texto e norma, inovando o trato da matéria. Em seu entender, a norma isentiva não recorta ou impede a incidência da regra de tributação, mas, aglutinando-se a ela, altera sua conformação para que, de forma conjunta, o formato da hipótese incidente se altere e abarque um novo conjunto de fatos. Assim se expressa: “Em suma, submetemos à meditação dos doutos a seguinte ideia: a lei isentiva e a lei tributante convivem harmonicamente, formando uma única norma jurídica tributária (diferente da que existia antes de a isenção ser criada). Portanto, isenção é uma limitação legal do âmbito de validade da norma jurídica tributária, que impede que o tributo nasça. Ou se preferirmos, é a nova configuração que a lei dá à norma jurídica tributária, que passa a ter seu âmbito de abrangência restringido, impedindo, assim, que o tributo nasça in concreto (evidentemente, naquela hipótese descrita na lei isentiva)”31. Esse novo estágio desqualifica qualquer tendência de aplicação cronologicamente distinta de ambas as normas e fortifica o papel do intérprete, na medida em que exige sua cognição na tentativa de descobrir a norma resultante da interação dos dispositivos legais tratando da tributação e da isenção; essa operação dinâmica sucede àquela estática anteriormente vista, que se concentrava mais nos textos legais. Essa questão é bem debatida em estudo sobre texto e norma efetuada por Augusto Fiel: “Não há que se falar em uma norma de incidência e em uma norma de dispensa de pagamento que convivam e coexistam harmonicamente no ordenamento jurídico, porque, uma vez cotejadas essas duas normas hipotéticas pelo intérprete, ele verificará que uma é norma geral e a outra é específica, existindo, na realidade, no ordenamento jurídico, uma única norma pela não incidência do tributo para aquela determinada mercadoria. Desse modo, na hipótese de isenção, verifica-se que o que existe são dois textos legais, um que prevê a incidência geral e outro que prevê a dispensa do pagamento para determinado caso, mas uma única norma, pela não incidência em determinado caso. A existência de duas normas só é concebível no plano anterior à atividade de interpretação dos textos legais”32. Na doutrina tributária clássica, há interessante passagem de Geraldo Ataliba sobre o assunto. Conquanto no geral tenha perfilhado a tese da “dispensa do pagamento” para a 31 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 28ª ed. red. amp. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 992. 32 D’OLIVEIRA, Augusto Fiel Jorge. Distinção entre Texto e Norma e a Necessária Aplicação da Regra da Anterioridade à Hipótese de Revogação de Isenção de ICMS. Revista Direito Tributário Atual, n.41. ano 37. p. 67-84. São Paulo: IBDT, 1º semestre 2019. e-ISSN: 2595-6280. Disponível em: < https://ibdt.org.br/RDTA/wp- content/uploads/2019/06/augusto-fiel.pdf >. Acesso em: 11 jan. 2021. p. 11. 25 isenção, ao abordar a incidência da norma tributária – rememore-se que, na época, o modo de subsunção da isenção e do tributo eram vistos de forma distinta –, dispõe: “Pois esta categoria ou protótipo (hipótese de incidência) se apresenta sob variados aspectos, cuja reunião lhe dá entidade. Tais aspectos não vêm necessariamente arrolados de forma explícita e integrada na lei. Pode haver – e tal é o caso mais raro – uma lei que os enumere e especifique a todos, mas, normalmente, os aspectos integrativos da hipótese de incidência estão esparsos na lei, ou em diversas leis, sendo que muitos são implícitos no sistema jurídico. Esta multiplicidade de aspectos não prejudica, como visto, o caráter unitário e indivisível da hipótese de incidência. Percebe-o o jurista, utilizando o instrumental da ciência do direito”33. Nesse sentido, a posição do intérprete e aplicador do direito tributário é reforçado, visto que, aplicando as diversas técnicas disponíveis, notadamente a interpretação lógico- sistemática, reconhecerá a norma resultando dos diversos dispositivos legais tratando de determinado tributo. Sem olvidar a inapropriada limitação à interpretação literal das regras de isenção veiculada pelo Código Tributário Nacional – não acatada pelo Superior Tribunal de Justiça34 –, o exegeta poderá extrair a regra de tributação mais consentânea com os valores dirigentes do ordenamento jurídico, tais como segurança jurídica, proporcionalidade e isonomia. 2.2 Isenção X Imunidade O legislador dispõe de certa gama de institutos jurídicos para desonerar uma classe de agentes dentro do conjunto tributado que, não fosse o mecanismo utilizado, sofreria a incidência, surgindo a obrigação tributária. Nesse contexto, destacam-se a isenção e a imunidade, cujas semelhanças práticas podem causar confusão no estudioso do direito tributário; uma vez que já se estudou “o que é” a isenção, passa-se a alinhar breves comentários sobre “o que não é” o preceito isentivo. Enquanto a isenção atua no plano infraconstitucional, as imunidades operam, previamente, no âmbito da Constituição Federal, mais precisamente na competência tributária que é outorgada aos entes federativos. Disso decorre a corrente definição desta como sendo um 33 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 76. 34 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial. 1.196.500/MT. T2. Rel. Min. Herman Benjamin, j. 02.12.2010, DJ de 04. 02. 2011. Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201000976900&dt_publicacao=04/02/20 11>. Acesso em: 19. mar. 2021. https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201000976900&dt_publicacao=04/02/2011 https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201000976900&dt_publicacao=04/02/2011 26 “recorte”, “supressão” da competência tributária, como se percebe dos ensinamentos de Luciano Amaro: “A imunidade tributária é, assim, a qualidade da situação que não pode ser atingida pelo tributo, em razão de norma constitucional que, à vista de alguma especificidade pessoal ou material dessa situação, deixou-a fora do campo sobre que é autorizada a instituição do tributo”35. Os Estados, desde seus primórdios e mesmo antes de se organizarem em torno de uma Constituição, obtiveram a maior parte dos recursos necessários a atender suas necessidades mediante a instituição de tributos. Diante dos abusos perpetrados historicamente,passou-se a adotar a instituição de normas cujo intuito, longe da intenção de conferir poderes ao ente público, era limitar e legitimar a cobrança das exações36. Assim, procurou-se definir espaços de competência dentro do qual o Poder Público se encontraria autorizado a atuar tributariamente; esses contornos jurídicos, cuja atuação em seu interior é lícita, são a “competência tributária”37. Essa delimitação é observada na Constituição Federal, de forma que ao ente federativo somente é facultado – não é compulsório – a cobrança dos tributos autorizados por ela. Ocorre que, tal como se procede na legislação ordinária, há dispositivos excepcionando determinadas espécies do grupo do qual a cobrança da exação foi permitida. Às normas com esse conteúdo, de performance no texto constitucional, dá-se o nome de “imunidades” e, por “criar brechas” no potencial campo de incidência da espécie tributária, a doutrina a definiu como “hipótese de não-incidência constitucionalmente qualificada”38 – em paralelo com a conceituação dada à isenção – ou “limitação da competência tributária”39 conforme visto. Assim se mantendo, a compreensão dos dois institutos – isenção e imunidade – seguiria certa uniformidade, porquanto a maior distinção residiria no plano de atuação. Apesar dessa conveniência didática e concordando com suas premissas, diverge-se da conclusão trazida para as imunidades. Esse ponto foi bem levantado por Paulo de Barros Carvalho: 35 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 176. 36 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Manual de direito tributário. 9ed. red., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2017. p. 16-17. 37 Para fins de aprofundamento: “Organizado juridicamente o Estado, com a elaboração de sua Constituição, o poder tributário, como o poder político em geral, fica delimitado e, tratando-se de Confederações ou Federações, dividido entre os diversos níveis de governo. No Brasil, o poder tributário é partilhado entre a União, os Estados- membros, o Distrito Federal e os Municípios. Ao poder tributário juridicamente delimitado e, sendo o caso, dividido dá-se o nome de competência tributária”. (MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 38 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 28). 38 BORGES, José Souto Maior. Isenções Tributárias. 1ª ed. São Paulo, SP: Sugestões Literárias, 1969. p. 208. 39 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 38 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 288. 27 “Ora, o que limita a competência vem em sentido contrário a ela, buscando amputá- la ou suprimi-la, enquanto a norma que firma a hipótese de imunidade colabora no desenho constitucional da faixa de competência adjudicada às entidades tributantes. Dirige-se ao legislador ordinário para formar, juntamente com outros mandamentos constitucionais, o feixe de atribuições entregue às pessoas investidas de poder político”. Semelhantemente ao defendido sobre as isenções, tem-se que as normas de imunidade não fazem um recorte da regra de competência, mas atuam ambas em conjunto. Não há, também aqui, atividade cronologicamente distendida40 – existe uma só cognição empreendida –, de forma que, pela integração normativa dos diferentes textos, resulta uma só norma de competência com novo desenho conformador da atuação do ente federativo. Por isso, mostra-se prudente tratar a imunidade tributária como “singelas regras que colaboram no desenho do quadro das competências”41. Sobre as imunidades constituírem “hipótese de não incidência”, considerando serem elas normas que se ocupam de outras normas, enquadrando naquelas ditas de “estrutura”, não há como conceber, ainda, a ideia de incidência. A Constituição apenas autoriza a instituição do tributo, de modo que por ausência de lei efetivamente o criando, não se cogita ainda de sua subsunção. Realmente, ela impede a incidência, mas isso ocorre por via transversa, pois ela proíbe a edição do mandamento “pague”, veiculado por lei ordinária, e, apenas por isso, impede sua incidência. Em termos menos congestionados: obsta a incidência porque nega a edição da lei, atuando apenas indiretamente. Paulo de Barros Carvalho se pronunciou sobre a matéria, afirmando que as imunidades: “Formam o corpo das perfaladas leis sobre leis tributárias, que, assim consideradas, não são portadoras de alusões diretas e imediatas ao tópico da incidência, tema exclusivo dos enunciados normativos que criam, propriamente, os tributos. As regras de imunidade são normas de estrutura, enquanto as de incidência são preceitos de conduta”42. Nessa linha de raciocínio, “não se trata de uma amputação ou supressão do poder de tributar, pela boa razão de que, nas situações imunes, não existe (nem preexiste) poder de tributar”43. As imunidades, portanto, não podem ser tratadas como “hipóteses de não- incidência”. As isenções, por sua vez, conquanto também se insiram como normas de estrutura, 40 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 25ªed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 183. 41 Ibidem. p. 182. 42 Ibidem. p. 183-184. 43 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 176. 28 já atuam concomitantemente ao exercício da competência tributária, permitindo sua interferência na incidência. Essa diferença básica entre elas, “em que a primeira atua no plano da definição da competência, e a segunda opera no plano do exercício da competência”44 impede a definição escalonada ofertada por José Souto Maior Borges. Com isso em mente, procurando não tropeçar nos mesmos obstáculos antevistos para as definições pretéritas, é que se adota a seguinte definição de imunidade, formulada por Paulo de Barros Carvalho: “Classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição da República, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas”45. Resolvendo os mesmos entraves de outrora, tem o aditivo de também considerar a distinção entre texto e norma, utilizada previamente quando do estudo apartado das isenções, de modo que, por imperativo de congruência, a aglutinação mencionada no campo normativo é que traduz o comando “não pague” – dirigido apenas mediatamente aos particulares – das imunidades, verdadeira regra de incompetência. 2.3 Isenção e Isonomia Não se tem mais, ao menos em nível de destaque, discussão quanto à necessidade de a tributação ser efetuada com vistas a promover a isonomia material dos sujeitos – para além da igualdade formal, espera-se que se busque a aproximação substancial dos contribuintes, de modo que o legislador deve tratar os desiguais conforme sua desigualdade. A isenção, como sua contraface, também precisa ter impresso, de modo subjacente à sua formulação, a marca do ideal da isonomia, na medida em que, caso mal utilizada, tem o potencial, tal como a obrigação tributária, de prejudicar a sociedade em geral. Embora seja valor a ser sempre perseguido, a isonomia precisa, necessariamente, distinguir, dentro do universo de contribuintes, aqueles que se encontram em situação similar ou assimétrica a partir de determinado parâmetro, sob pena de, novamente, ao invés de concretizá-lo, distanciar-se de sua efetivação no cotidiano da comunidade. Essa consequência social é determinada pela reciprocidade de ação e reação na forma de comportamento da 44 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 177. 45 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 25ªed. São Paulo: Saraiva,2013. p. 190-191. 29 sociedade frente às alterações promovidas no campo tributário, pois, ao agravar ou aliviar a cobrança sobre certa atividade, isso estimulará ou inibirá, em maior ou menor medida e direta ou indiretamente, as tomadas de decisões no interior da comunidade afetada46. Nesse sentido, considerando que o Direito Tributário age por sobre as manifestações de riquezas dos agentes econômicos, é preciso correlacionar essa característica com a forma de concretização da igualdade substancial. Reflexo dessa linearidade, conclui-se que, ao menos para os tributos fiscais, o signo distintivo a ser eleito pelo Legislador como norte da busca do valor da igualdade é a capacidade contributiva dos indivíduos – não se afirma ser esse o único sinal para os tributos extrafiscais, pois, em vista dos inúmeros estímulos que se pretendem imprimir por meio deles, diversos podem ser também os parâmetros de desigualação. Assim, Aliomar Baleeiro se expressa: “Por que tal indivíduo é obrigado a pagar um tributo? Porque, vinculado pessoalmente, ou por seus interesses, a um grupo político, a sua capacidade econômica o indicia, através de fatos previstos em lei, como capaz de suportar uma parcela do custo dos serviços públicos, organizados pelo governo daquele grupo, no interesse direto ou indireto de todos os membros que o constituem. Em última análise, paga ‘porque’ tem capacidade contributiva. A capacidade contributiva é o atributo que deve qualificar alguém aos olhos do legislador para sujeito passivo da relação tributária. O ‘fato-condição’ apenas exterioriza esse atributo, revelando-o ao Fisco”47. Mas essa capacidade contributiva pode se apresentar por sobre um indivíduo isoladamente considerado ou um dado território, cujo somatório produtivo se apresenta aquém do seu potencial ou do que é visto em outra região geográfica sob o mesmo regime jurídico. Ambas as situações ocasionam ou mantém a desigualdade social no seio da comunidade, merecendo, portanto, a atenção do Poder Público para remediar esse cenário. Entre as diversas técnicas disponíveis, está justamente a isenção, que, se bem manejada, servirá de estímulo à região deficitária ou de alívio ao cidadão em situações precárias. O Legislador, nessa ordem de ideias, da mesma forma que consegue, em um sentido, progredir as alíquotas para alcançar a maior capacidade contributiva dos sujeitos passivos, também pode, na outra extremidade, originar o comando normativo “não pague” àqueles que 46 Meditando sobre a influência mútua entre o Fisco e a sociedade, Aliomar Baleeiro se manifestou: “As receitas públicas dependem fundamentalmente da capacidade, volume, valor e ritmo da produção do povo ao qual são exigidas – ninguém de bom-senso o ignora. Mas nem sempre o homem da rua demorou a meditar em que a produção, o consumo, a circulação, a ocupação, o desenvolvimento e outros quadros econômicos, por sua vez, são influenciados decisivamente pelas despesas, receitas e empréstimos do Estado”. (BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 5 ed. rev., de acordo com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, e com o C.T.N. Rio de Janeiro, Forense, 1977. p. 308-309). 47 Ibidem. p. 357. 30 manifestam reduzidas potencialidade econômicas. Nesse contexto, “o tratamento fiscal, em função dessas condições pessoais, varia através de reduções e agravações, podendo excluir totalmente a aplicação do tributo, como no caso do mínimo existencial”48. Conclui Aliomar Baleeiro: “Num mundo de iniquidades de toda ordem, umas oriundas de condições personalíssimas do indivíduo, outras da estrutura econômica, jurídica e social, o anseio de igualdade e justiça que, desde séculos, acompanha os tributos, só se poderá tornar mais próximo do alvo se o legislador instituir um sistema de contrapesos aos desequilíbrios mais manifestos. Tratar desigualmente os desiguais constitui a fórmula mais intuitiva da realização da Justiça possível, já que, sobretudo em matéria fiscal, ela é inacessível em forma absoluta e completa”49. Com efeito, essa visão pragmática da isenção, ao lado das considerações puramente jurídicas, é significativa para a solução das problemáticas que a envolvem. Conquanto não seja fator único na determinação de conclusões judiciais sobre as questões litigiosas – da qual é exemplo a pergunta central dessa monografia –, certo é que os efeitos práticos devem influenciá-las, pois o Direito, longe de se isolar da realidade que o origina, a ela se integra, devendo buscar moldá-la no sentido mais favorável possível à sociedade. 48 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 5 ed. rev., de acordo com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, e com o C.T.N. Rio de Janeiro, Forense, 1977. p. 363. 49 Ibidem. p. 364. 31 3. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE O texto constitucional consagra, nos arts. 150, III, b e c e 195, §6º, o princípio da anterioridade do exercício e a noventena, em que a topografia escolhida, salvo a situação específica das contribuições sociais, é o Capítulo destinado às limitações tributárias, seguindo, como não poderia deixar de ser, o ideal de conformar a atuação estatal ao tolerável pelos nacionais. Contudo, a história normativa brasileira nem sempre disciplinou o assunto tal como é regrado hodiernamente, de modo que se mostra pertinente, para melhor compreender os dispositivos em vigor, observar os traçados conferidos pelos parlamentares a esse instituto ao longo do tempo. Alguns comentários prévios, no entanto, são cabíveis para impedir que um estudioso desatento não faça ilações inapropriadas quanto a esse “princípio”. Conquanto seja larga a utilização, na jurisprudência e na doutrina, de princípios – cujo incremento da importância nos tempos modernos incentive professores a adjetivar o momento atual como Estado Principiológico50 –, distinguindo-os das regras, é cediço que nem sempre há convergência pelo critério delimitador entre eles. Nesse diapasão, com o intuito de evitar que se aplique técnicas destinadas aos princípios segundo certo parâmetro, mas que somente o são assim classificados se tomado outro elemento de distinção, é importante principiar pelo critério escolhido pelo constituinte originário em sede dos princípios constitucionais tributários. A compartimentalização entre princípios e regras é mais comumente vista segundo o conteúdo e o modo de aplicação das normas, cujo desenvolvimento se deu, predominantemente, pelos estudos de Dworkin e Alexy. Sobre o assunto, Humberto Ávila explica: “A segunda corrente doutrinária, capitaneada pelos estudos de Dworkin e Alexy, sustenta que os princípios são normas que se caracterizam por serem aplicadas mediante ponderação com outras e por poderem ser realizadas em vários graus, contrariamente às regras, que estabelecem em sua hipótese definitivamente aquilo que é obrigatório, permitido ou proibido, e que, por isso, exigem uma aplicação mediante subsunção”51. Há, portanto, notória divergência no modo de se perceber a atuação dessas normas no cotidiano dos cidadãos. Enquanto os princípios podem ser aplicáveis em graus distintos a depender da situação concreta e de acordo com a ponderação realizada diante de outras normas 50 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo, SP: Malheiros, 2014. p. 43. 51 Ibidem. p. 112. 32 valorativas no ordenamento jurídico, as regras, por conterem comando mais preciso ao particular – afinal, obriga, permite ou proíbe certa conduta bem definida –, não sofrem dita gradação, ocorrendo, ou não, a subsunção, de acordo com o dispositivolegal que melhor se compatibiliza aos acontecimentos fenomênicos. Assim, Ávila prossegue: “A diferença quanto ao modo de aplicação é a seguinte: enquanto as regras estabelecem mandamentos definitivos e são aplicadas mediante subsunção, já que o aplicador deverá confrontar o conceito do fato com o conceito constante da hipótese normativa e, havendo encaixe, aplicar a consequência, os princípios estabelecem deveres provisórios e são aplicados mediante ponderação, na medida em que o aplicador deverá atribuir uma dimensão de peso aos princípios diante do caso concreto”52. Essa, como afirmado, é apenas uma das possibilidades encontradas pelos doutrinadores para catalogar os princípios e regras, em que o fundamento reside na estrutura normativa53; não é, aprioristicamente, a melhor nem a única a ser considerada pelo intérprete do direito, porquanto o legislador elege, em certas ocasiões, parâmetros outros. Nesse sentido, inclusive, é o que se vislumbra no que se convencionou chamar de princípios constitucionais tributários. Perfilhando os ensinamentos de Dworkin e Alexy, algumas de suas espécies não se enquadrariam como princípios, mas sim como regras. Em verdade, sua classificação se originou, em maior medida, pela importância de que se revestem para o Direito Tributário como um todo, de forma que “em face da essencialidade e da importância dessas limitações, consagrou-se, dentro de uma terminologia já tradicional na literatura jurídica nacional, chama-las de ‘princípios’”54. Com efeito, se de acordo com a fundamentalidade o Princípio da Anterioridade pode ser assim nominado, o mesmo não pode ser dito quando perscrutado conforme sua estrutura normativa. Hugo de Brito Machado Segundo, analisando o assunto, afirma: “Caso se examinem e classifiquem as normas não pelo seu conteúdo, mas pela forma como prescrevem condutas, forma que associa a determinadas hipóteses o cumprimento de certas consequências, ou se apenas determina a promoção de determinadas metas, objetivos, valores ou estados ideias de coisas, dizendo-se que as primeiras são regras, e as segundas, princípios, concluir-se-á que a norma veiculada no art. 150, III, ‘b’ da Constituição, que trata da anterioridade tributária, é uma regra, e não um princípio”55. 52 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 15. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo, SP: Malheiros, 2014. p. 112. 53 Ibidem. p. 113. 54 MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Manual de direito tributário. 9 ed. ref., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2017. p. 56. 55 Ibidem. p. 57. 33 Seja como for, se regra ou princípio, o núcleo essencial da anterioridade se mantém incólume, com o mesmo âmbito protetivo; o enquadramento em um ou em outro gênero não altera o fim colimado pelo legislador. O que poderia afetar a aplicação do aludido “princípio” seria, em vez disso, a tentativa de se aplicar a técnica da ponderação, destinada aos princípios que seguem a linha de Dworkin e Alexy, aos casos em que, pelas mesmas premissas, seriam regras, situação na qual a anterioridade se enquadra. Nesse diapasão, não poderia o aplicador do direito, por entender que, em certa ocasião, o valor subjacente à noventena já se encontra suficientemente atendido pelo aguardo de tão somente 60 dias, ponderar essa “regra” com a capacidade contributiva daquele que manifestou riqueza. Afinal, mantendo a linearidade, é mister utilizar, conforme explicado, a subsunção do princípio da anterioridade nonagesimal em sua integralidade, não se mostrando pertinente a gradação de sua incidência segundo os valores postos em conflito. Passado esse esclarecimento preliminar, inicia-se a alinhar breves comentários acerca da evolução da anualidade para a anterioridade, bem como houve o constante fortalecimento do princípio como mecanismo de conferir maior tônica à segurança jurídica. Noções históricas e sistemáticas como essas têm notória função na delimitação de sua aplicabilidade, como sucede, entre outros casos, na revogação da isenção, cuja solução demanda conhecimento sobre os valores norteadores da norma em comento. 3.1 Da anualidade para a anterioridade Se a expansão da aplicabilidade da noventena para os tributos em geral – no texto originário da CF/88 era restrita às contribuições sociais –, representou valorização da segurança jurídica, o passo anterior realizado pelo legislador, a passagem da anualidade para a anterioridade, configurou, em verdade, sua minoração. Passa-se, portanto, numa tentativa de aclarar essa afirmação, a explanar em que se constitui a anualidade e como ocorreu sua sucessão pela anterioridade, de forma a alicerçar as bases permissivas da conceituação de “o que é” o princípio vigente na Constituição Cidadã. Diferentemente da anterioridade, o Princípio da Anualidade possuía laços mais estreitos com o orçamento anual. Com efeito, para que determinado tributo pudesse ser cobrado, além da edição da norma com essa previsão, era preciso, adicionalmente, a autorização de sua cobrança na lei orçamentária, tal como ocorre para as despesas. Assim, ano a ano, conquanto a norma tributária permanecesse em vigor e nada em seu comando fosse alterado, ainda assim 34 era necessária nova autorização para sua permanência. Aliomar Baleiro, sobre o assunto, dispôs: “O princípio da anualidade, expresso na C.F. de 1946, restitui ao Congresso a velha arma da representação parlamentar na batalha de séculos idos contra a desenvoltura dos monarcas absolutos: as leis de impostos continuam válidas e em vigor, mas só se aplicam e só vinculam a competência dos funcionários do Fisco, para criação dos atos administrativos do lançamento ou das arrecadações, se o orçamento mencionar a autorização naquele exercício. Esta costuma ser dada por um dispositivo da lei orçamentária que faz remissão a todas as leis tributárias arroladas em quadro anexo – o chamado ementário da legislação da receita”56. Seu principal alicerce, nesse sentido, “é o princípio de que os representantes do povo concedem x de receitas porque aprovam x de despesas para fins específicos e só estes”57. Traduzem, assim, relevante limitação aos poderes conferidos ao Executivo, ao mesmo tempo que lhes impunham o dever de compatibilizar, de fato, o orçamento às políticas públicas a serem prestadas, pois as receitas precisariam corresponder às despesas. Representa, além disso, relevante vetor de democratização do orçamento público, porquanto haveria maior deliberação dos parlamentares – representantes do povo – sobre a pertinência das exações propostas pelos administradores58. Todavia, essa organização não conseguiu ser cumprida. Dado o costume de elaborar as normas majoradoras de tributos apenas ao final do ano, aliado ao fato de a autorização pelo Congresso Nacional à lei orçamentária possuir data definida pelas normas constitucionais – e geralmente seu termo vem antes da promulgação dos aumentos tributários –, quedou-se de ocorrerem situações em que a lei tributária era promulgada posteriormente à edição da lei orçamentária, de modo que sua autorização nela não constava. Nesse cenário: “Foi quando o STF entendeu que bastava a lei ter sido publicada antes do início do ano, para que nele o tributo já pudesse ser cobrado, ainda que sem previsão no orçamento, previsse que nesse caso se dispensava porque o orçamento havia sido 56 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 5 ed. rev., de acordo com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, e com o C.T.N. Rio de Janeiro, Forense, 1977. p. 17. 57 Ibidem. p. 8. 58 Não por outra razão, aliás, que Hugo de Brito Machado explica: “Também não se há de confundir o princípio da anterioridade com o da anualidade, segundo o qual a cobrança de
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