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UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” IA – Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes – Mestrado em Artes MIGUEL ARCANJO PRADO DE OLIVEIRA O discurso de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo sobre Cacilda!!! Glória no TBC do Oficina e Édipo na Praça do Satyros, peças que buscaram dialogar com as "Jornadas de Junho" de 2013 São Paulo - SP - Brasil 2018 UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes - IA Programa de Pós-Graduação em Artes – Mestrado em Artes MIGUEL ARCANJO PRADO DE OLIVEIRA O discurso de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo sobre Cacilda!!! Glória no TBC do Oficina e Édipo na Praça do Satyros, peças que buscaram dialogar com as “Jornadas de Junho” de 2013 Dissertação submetida ao Instituto de Artes da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial exigido pelo Programa de Pós- Graduação em Artes, área de concentração em Artes Cênicas, linha de pesquisa Estética e Poéticas Cênicas, sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Luiz Mate, para obtenção do título de Mestre em Artes. São Paulo - SP - Brasil 2018 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP O48d Oliveira, Miguel Arcanjo Prado de, 1981- O discurso de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo sobre Cacilda!!! Glória no TBC do Oficina e Édipo na Praça do Satyros, peças que buscaram dialogar com as Jornadas de Junho de 2013 / Miguel Arcanjo Prado de Oliveira. - São Paulo, 2018. 113 f. : il. color. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Luiz Mate. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Teatro - Aspectos políticos. 2. Teatro político brasileiro. 3. Jornais. 4. Crítica teatral. I. Oliveira, Miguel Arcanjo Prado de. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 792.0981 (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) MIGUEL ARCANJO PRADO DE OLIVEIRA O discurso de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo sobre Cacilda!!! Glória no TBC do Oficina e Édipo na Praça do Satyros, peças que buscaram dialogar com as “Jornadas de Junho” de 2013 Dissertação submetida ao Instituto de Artes da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como requisito parcial exigido pelo Programa de Pós-Graduação em Artes, área de concentração em Artes Cênicas, linha de pesquisa Estética e Poéticas Cênicas, sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Luiz Mate, para obtenção do título de Mestre em Artes. Banca Examinadora: ____________________________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Luiz Mate (orientador) – Instituto de Artes – UNESP ____________________________________________________________________ Prof. Dr. Danilo Júnior de Oliveira – CELACC – ECA – USP ____________________________________________________________________ Prof. Dr. Dennis de Oliveira – ECA – USP Suplentes: ____________________________________________________________________ Profa. Dra. Lúcia Regina Vieira Romano – IA – UNESP ____________________________________________________________________ Profa. Dra. Simone Carleto – Pesquisadora independente Dedicatória Para Juan Manuel Tellategui, que me faz bem. Nina Rose Prado Honorato, de quem sou primeiro e orgulhoso fruto. Rafael e Gabriel, irmãos nesta aventura chamada viver. Cecilia, que desponta cheia de esperança e futuro. Cleber, Gizelle e Alê, que somaram-se aos nossos. Agradecimentos Prof. Dr. Alexandre Luiz Mate, instigante mentor repleto de afeto e ensinamentos. Prof. Dr. Dennis de Oliveira, nosso grande baluarte. Prof. Dr. Danilo Júnior de Oliveira, encorajador, sempre inteligente, desta pesquisa. Bob Sousa, irmão de aventuras teatrais e padrinho desta dissertação. Maíra Carvalho de Moraes, amiga-irmã imprescindível na vida e na academia. Marcelo Gonçalves, amigo-irmão desde os primeiros livros da adolescência. Viviane Pistache, pelo intercâmbio mineiro na neurótica Selva de Pedra. Companheiros do grupo de pesquisa Amorada, pelas trocas férteis. Professores, funcionários e colegas do Instituto de Artes da UNESP, onde tanto cresci, representados na figura de Cassiano Fraga, amigo fiel neste processo de mestrado. Zé Celso, Beto Mettig, Ivam Cabral, Rodolfo García Vázquez, Phedra D. Córdoba, Cléo De Páris, Robson Catalunha e todos artistas do Oficina e do Satyros, que sempre me acolhem com carinho e respeito ao diálogo profundo entre teatro e jornalismo que estabelecemos. Todos os queridos colegas da graduação na UFMG e da especialização na USP. Meus mestres no jornalismo: Marcílio Lana, Alessandra Costa, Angela Carrato, Carmen Vieira, Vera França, Rachel Barreto, Josie Jeronimo, Roberto Almeida, Elias Santos, Tacyana Arce, Paulo Valladares, Renê Astigarraga, José Amaro Siqueira, Thomaz Souto Corrêa, Alice Cruz, Wania Capelli, Denise Gianoglio, Félix Fassone, Rosana Costa, Denis Russo Burgierman, Mônica Bergamo, Otavio Frias Filho, Silvana Garzaro, Sérgio Ripardo, Ligia Braslauskas, Ricardo Feltrin, Fabíola Reipert, Cleide Floresta, Marina Yakabe, Luiz Carlos Duarte, Nilson Camargo, César Camasão, Antonio Rocha Filho, Mariana Poli, Aline Rocha Soares, Ailton Nasser Mineiro, Nathalia Boscolo, Lidiane Shayuri, Antonio Guerreiro, Douglas Tavolaro, Luiz Pimentel, Lela Ribeiro, Rafael Perantunes, Claudio Cordeiro, Tellé Cardim, Guta Nascimento, Ana Paula Padrão, Vitor Almeida, Natalia Sousa, Carolini Almeida, Bruna Ferreira, Elba Kriss, Ana Paula de Freitas, Paola Corrêa e Luiza Camargo. Nina Rose Prado Honorato, mãe pronta a dizer que tudo vai dar certo desde o início. Gabriel Prado, irmão amado e grande apoiador nesta arte de viver a vida. Juan Manuel Tellategui, pela paciência e amor incondicional neste processo. Título: O discurso de O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo sobre Cacilda!!! Glória no TBC do Oficina e Édipo na Praça do Satyros, peças que buscaram dialogar com as “Jornadas de Junho” de 2013 Autor: Miguel Arcanjo Prado de Oliveira Resumo: A dissertação analisa, com base em teóricos da comunicação, da linguagem e da cultura, a cobertura feita pelos jornais paulistanos de circulação nacional no Brasil O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, bem como seus respectivos discursos, sobre as peças Cacilda!!! Glória no TBC da Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona e Édipo na Praça da Cia. de Teatro Os Satyros. As produções teatrais buscaram dialogar com as “Jornadas de Junho” no ano de 2013. Após apresentar o contexto histórico no qual tais peças surgiram, dois meses após a eclosão das grandes manifestações conhecidas como “Jornadas de Junho”, desencadeadas por um aumento na tarifa do transporte público na cidade de São Paulo, a pesquisa apresenta e analisa o discurso dos jornais sobre tais espetáculos, descortinando seu viés ideológico e político na cobertura jornalístico-cultural de tais peças. Palavras chave: jornalismo, teatro, Oficina, Satyros, Jornadas de Junho. Resúmen: Esta disertación analiza, con base en teóricos de la comunicación, del lenguaje y de la cultura, la cobertura hecha por los diarios paulistanos de circulación nacional en Brasil O Estado de S. Paulo y Folha de S. Paulo, así como sus respectivos discursos sobre las obras Cacilda!!! Glória no TBC (Cacilda!!! Gloria en el TBC) de la Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona e Édipo na Praça (Edipo en la Plaza) de la Cia. de Teatro Os Satyros. Las producciones teatrales buscaron dialogar con las“Jornadas de Junio” en el año 2013. Después de presentar el contexto histórico en lo cual dichas obras surgieron, dos meses después de la eclosión de las grandes manifestaciones conocidas como “Jornadas de Junio”, desencadenadas por el aumento de la tarifa del transporte público en la ciudad de San Pablo, la pesquisa presenta y analiza el discurso de los diarios sobre tales obras teatrales, descortinando su mirada ideológica y política en la cobertura periodística-cultural de estas obras. Palabras clave: periodismo, teatro, Oficina, Satyros, Jornadas de Junio. Abstract: This dissertation analyzes, based on communication, language and culture theorists, the coverage done by the newspapers from São Paulo: O Estado de S. Paulo and Folha de S. Paulo, as well as their respective discourses, about the plays: Cacilda!!! Glória no TBC (Cacilda!!! Gloria in the TBC) of the group Oficina and Édipo na Praça (Édipo in the Square) of the group Satyros, productions that dialogued with the “Journeys of June” in 2013, triggered by an increase in the public transportation fare in the city of São Paulo. After presenting the historical context in which such pieces appeared, two months after the outbreak of the great manifestations known as "Journeys of June", the research presents and analyzes the discourse of the newspapers about such shows, revealing their ideological and political bias in jornalistic- cultural coverage of the plays of the two groups studied. Key words: journalism, theater, Oficina, Satyros, Journeys of June. SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................10 CAPÍTULO 1 – APONTAMENTOS SOBRE AS “JORNADAS DE JUNHO” DE 2013 NA CIDADE DE SÃO PAULO..........................................................................21 1.1 – Redes e ruas no século XXI: da Primavera Árabe às “Jornadas de Junho” no Brasil...............................................................................................................................22 1.2 – “Jornadas de Junho” de 2013: os 20 centavos que eclodiram um país..................26 1.3 – “Jornadas de Junho”: um movimento que influenciou um país.............................34 CAPÍTULO 2 – ASSOCIAÇÃO TEAT(R)O OFICINA UZYNA UZONA E COMPANHIA DE TEATRO OS SATYROS: UTILIZAÇÃO DE EXPEDIENTES TEATRAIS EM DIÁLOGO COM A HITÓRIA RECENTE DO BRASIL............37 2.1 – Teatro: aspectos gerais...........................................................................................37 2.2 – Oficina: teat(r)o, antropofagia e tropicalismo........................................................39 2.3 – Os Satyros: underground sem tabus.......................................................................47 CAPÍTULO 3 – LINGUAGEM, DISCURSOS, JORNALISMO E IDEOLOGIAS, PLURALIDADES A SERVIÇO DE............................................................................55 3.1 – Linguagem e discurso.............................................................................................55 3.2 – O jornal ..................................................................................................................58 3.3 – A notícia.................................................................................................................60 3.4 – O acontecimento.....................................................................................................61 3.5 – Teatro como acontecimento no jornal....................................................................64 3.6 – Construção do discurso jornalístico.......................................................................66 3.7 – O jornalismo cultural..............................................................................................71 CAPÍTULO 4 – O DISCURSO DE O ESTADO DE S. PAULO E FOLHA DE S.PAULO SOBRE CACILDA!!! GLÓRIA NO TBC DO OFICINA E ÉDIPO NA PRAÇA DO SATYROS, PEÇAS QUE BUSCARAM DIALOGAR COM AS “JORNADAS DE JUNHO” DE 2013..........................................................................76 4.1 – Cacilda!!! Glória no TBC e Édipo na Praça em O Estado de S. Paulo................76 4.2 – Cacilda!!! Glória no TBC e Édipo na Praça na Folha de S. Paulo......................79 4.3 – Apontamentos sobre o discurso de O Estado de S.Paulo e Folha de S. Paulo sobre Cacilda!!! Glória no TBC do Oficina e Édipo na Praça do Satyros, peças que buscaram dialogar com as “Jornadas de Junho” de 2013................................................................86 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................96 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................104 ANEXOS.......................................................................................................................106 10 INTRODUÇÃO O autor da presente reflexão pretende apresentar, nesta pesquisa, uma análise do discurso midiático hegemônico impresso, no caso o dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, sobre a as peças Cacilda!!! Glória no TBC, da Associação Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, e Édipo na Praça, da Companhia de Teatro Os Satyros. Ambos os grupos, sediados na cidade de São Paulo, levaram para espaços representacionais, sob forma de diálogo artístico cênico, os significativos atos populares ocorridos em junho de 2013 na cidade de São Paulo. Tais atos-manifestacionais foram desencadeados, em tese, pelo aumento de 20 centavos na tarifa do transporte público. A partir dos protestos na capital paulista, as manifestações acabaram por ser realizadas em outras partes do país, conhecidas como “Jornadas de Junho”. Ambas as peças estavam em processo de ensaio quando ocorreu a intensa movimentação social. Desse modo, ambas as equipes de criação resolveram levar à cena o que ocorria nas ruas, já que muitos dos artistas, das duas companhias — e de diferentes formas — participaram ativamente dos protestos. Nesse último particular, inclusive a sede do Satyros serviu de abrigo a manifestantes que, em determinado momento, fugiram da truculência policial em um dos protestos que culminou com violência na região da rua da Consolação e praça Roosevelt. Quando das estreias de ambos espetáculos, ocorridas no mesmo dia, a sexta-feira 16 de agosto de 2013, os dois trabalhos obtiveram cobertura dos dois tradicionais jornais paulistanos, representantes da imprensa escrita brasileira hegemônica, bem como posteriormente receberam também crítica teatral para os espetáculos nestes veículos. A análise de tais textos publicados sobre os espetáculos caracteriza-se no cerne desta pesquisa, que — a partir de certos recortes — trabalhará com conceitos de linguagem, discurso midiático, jornalismo e ideologia presentes nos textos analisados sobre as peças de ambos os grupos. Por intermédio do tema em epígrafe e seus recortes objetiva-se traçar um panorama da relação entre teatro e mídia/jornalismo naquele período que já entrou para a recente história do Brasil, face que os efeitos sociopolíticos das “Jornadas de Junho” são sentidos até os dias de feitura desta dissertação. Os objetos desta pesquisa qualitativa são dois veículos midiáticos, representantes do meio impresso hegemônico, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, que serão nesta pesquisa tratados por Folha e Estadão, de forma sucinta. Ambos os jornais detêm circulação de impacto 11 nacional e são amplamente respeitados, principalmente por certos estratos sociais, sobretudo por sua longevidade e tradição de estarem há décadas nas bancas, influenciando - de alguma forma - o pensamento paulista e nacional: o Estadão circula desde 1875, enquanto que a Folha, desde 1921. No ano de 2013, quando ocorreram as “Jornadas de Junho” e os espetáculos dos gruposem epígrafe estiveram em cartaz e os textos analisados foram produzidos, a Folha teve circulação média diária de 294.811 exemplares, enquanto que o Estadão teve uma circulação média diária de 232.385 exemplares, segundo dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC). Tais números colocam a Folha no segundo lugar e o Estadão no quarto entre os jornais que mais circularam no Brasil em 2013, ano do recorte desta pesquisa. Devido a essa importância no jornalismo brasileiro de ambos os jornais, os dois maiores, mais tradicionais e de maior circulação e impacto na cidade de São Paulo, foram os veículos escolhidos para a análise do discurso midiático no jornalismo impresso hegemônico sobre tais peças que dialogaram com as “Jornadas de Junho”. O pesquisador é formado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em dezembro de 2006. É um jornalista atuante na cobertura cultural e teatral da cidade de São Paulo desde o ano de 2007, em diversos veículos de comunicação e em blog dedicado à cobertura teatral que leva seu nome. Em 2013, o pesquisador também assistiu e cobriu jornalisticamente as duas montagens, entrevistando na época seus diretores e equipe, além de ter participado da cobertura jornalística das “Jornadas de Junho”. Tal experiência serve como elemento enriquecedor desta pesquisa, bem como o fato de já ter analisado a presença de ambos os grupos nos jornais citados em seu trabalho de conclusão de curso e obtenção do título de Especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), em monografia defendida em setembro de 2014 na ECA-USP, intitulada Teatro no Jornal: O Olhar do Estadão e da Folha para os Grupos Oficina e Satyros, sendo esta atual pesquisa um desdobramento daquela, com novo recorte e maior aprofundamento no discurso dos veículos sobre as peças dos grupos que dialogaram com as “Jornadas de Junho”. 12 O mês de junho de 2013, como veremos no capítulo 1, foi marcado na cidade de São Paulo, e posteriormente em todo o Brasil, por grandes manifestações populares nas ruas que atraíram milhares de participantes para, inicialmente, protestar contra o aumento da tarifa no transporte público paulistano, que havia subido de R$ 3,00 para R$ 3,20. A grande mobilização popular chamou de imediato a atenção da mídia e tornou-se pauta nos diferentes veículos, que, num primeiro momento, condenaram de forma veemente as manifestações. De forma conservadora, os veículos analisados, Estadão e Folha, chegaram, inclusive, a publicar editoriais rechaçando o movimento popular nas ruas. Muitas manifestações registraram confrontos violentos entre policiais e manifestantes, com duras cenas de repressão — inclusive com agressão à imprensa que fazia a cobertura das marchas —, muitas delas comparadas aos tempos da ditadura civil-militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985 (COSTA JUNIOR, 2016). A grande mobilização popular também chegou a ser comparada às manifestações pelas Diretas Já, de 1983-1984, e também ao movimento Fora Collor, de 1992, em razão do grande número de pessoas nas ruas, que foi aumentando gradativamente a cada um dos sete atos convocados nas redes sociais pelo Movimento Passe Livre (MPL), deflagrador das “Jornadas de Junho” (ESPÍRITO SANTO, 2014). Tal efervescência de manifestação política nas ruas paulistanas chamou a atenção de dois grupos localizados na região central de São Paulo: Oficina, com sede na rua Jaceguai, 520, no Bixiga, e Satyros, com sede na praça Roosevelt, 222, no centro da capital. Como veremos no capítulo 2, dedicado às companhias, trata-se de dois grupos teatrais longevos da cidade, o primeiro fundado em 1958, e o segundo, em 1989. 13 Localização da sede da Cia. de Teatro Os Satyros, na praça Roosevelt, região central de São Paulo – Fonte: Google Maps 14 Localização da Associação Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, no bairro do Bixiga, região central de São Paulo – Fonte: Google Maps 15 Ambos os grupos estavam em processos de criação de seus novos espetáculos e, “antenados” ao seu tempo e cidade, resolveram incorporar as “Jornadas de Junho” ao enredo de suas peças, no caso Cacilda !!! Glória no TBC, que retomou a trajetória da vida da atriz Cacilda Becker (1921-1969), um dos grandes nomes da história do teatro brasileiro, focando em seu período de glória do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), terceiro capítulo da "saga" sobre a artista iniciada na década de 1990 pelo Oficina, sob direção de José Celso Martinez Corrêa; e Édipo na Praça, do Satyros, sob direção de Rodolfo García Vázquez, a partir da lendária história da mitologia grega. Afinal, como afirma o pesquisador Alexandre Mate em artigo no livro Teatro e Vida Pública, “[...] teatro de grupo, na condição de sujeito histórico, sempre existiu” (DESGRANGES e LEPIQUE, 2012, p. 74). A atriz Cléo De Páris como Jocasta em Édipo na Praça na Praça Roosevelt, SP, 2013 – Foto: Bob Sousa 16 No período de análise dos textos dos jornais, o segundo semestre de 2013, o Teat(r)o Oficina voltou a contar a saga da atriz Cacilda Becker, que começou na década de 1990, estreando no segundo semestre de 2013, logo após as “Jornadas de Junho”, a peça Cacilda!!! Glória no TBC, em 16 de agosto de 2013, após apresentações nas semanas anteriores em unidades do Sesc no interior de São Paulo: Sesc São José dos Campos, Sesc Araraquara e Sesc Sorocaba. O Oficina (CORRÊA, 2013) — apesar de certa paralisação, fruto de processos persecutórios, decorrentes da ditadura civil-militar brasileira — é um dos mais longevos grupos teatrais em atividade no mundo, já que surgiu em 1958, completando 60 anos de atuação em 2018, ano da defesa desta pesquisa, permanecendo, desde sua criação, sob comando ininterrupto do diretor paulista José Celso Martinez Corrêa, conhecido como Zé Celso. No mesmo período em análise, a Cia. de Teatro Os Satyros celebrou os 25 anos de sua fundação, com a estreia em 16 de agosto de 2013 da peça Édipo na Praça, sua versão para o clássico grego sob direção do paulistano Rodolfo García Vázquez, fundador do grupo em 1989 ao lado do ator paranaense Ivam Cabral. A obra buscou dialogar com as “Jornadas de Junho” e também com a praça Roosevelt, onde fica sua sede e cuja recuperação social o grupo está intimamente ligado — esta foi a primeira peça do grupo que saiu de sua sala teatral e teve parte da obra encenada na praça, onde se localiza a sede da companhia. Desde 2000, o Satyros está instalado na praça Roosevelt, no centro de São Paulo (GUZIK, 2006), onde possui duas salas teatrais, sendo um dos responsáveis pela revitalização do lugar, que foi também um dos cenários de confrontos violentos durante as “Jornadas de Junho”, entre a polícia militar e manifestantes (capitaneados por agremiações de extrema direita para ações de violência), com direito a protestantes escondidos na sede do grupo durante os ensaios para se abrigarem das bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha lançadas pela força policial. As peças — suas estreias, que ocorreram no mesmo dia, e consequentes temporadas — ganharam cobertura da imprensa, com notas, reportagens e críticas, incluindo aí os cadernos culturais dos jornais selecionados: Folha de S. Paulo, Ilustrada; e O Estado de S. Paulo, Caderno 2, tradicionais veículos do jornalismo cultural brasileiro. Portanto, a Ilustrada e o Caderno 2 caracterizam-se nos objetos escolhidos para esta pesquisa de análise do discurso midiático sobre tais peças. 17 É importante ressaltar que já há pesquisas que investigaram as “Jornadas de Junho” em seus aspectos políticos, comunicacionais, mas esta pesquisa é pioneira no diálogo das “Jornadas de Junho” e o discurso que a imprensa hegemônicafez sobre sua representação no teatro. Esta pesquisa busca contribuir neste encontro entre o jornalismo e o teatro paulistano quando de um importante momento histórico brasileiro recente. A atriz Camila Mota e o diretor Zé Celso em cena de Cacilda!!! Glória no TBC, SP, 2013 – Foto: Jennifer Glass Pretende-se, ainda, contribuir para preencher a lacuna de estudos sobre a imbricação entre teatro e jornalismo no Brasil, abordando peças de dois importantes e longevos grupos teatrais brasileiros e suas respectivas leituras pela imprensa hegemônica impressa. Há uma carência de estudos que abordem aspectos do discurso midiático sobre o teatro brasileiro contemporâneo. Busca-se, assim, contribuir, por intermédio deste estudo, nesta área. Além disso, tal pesquisa deixa ao próprio teatro uma reflexão sobre o discurso que certa mídia hegemônica faz sobre o mesmo, sobretudo quando este se vê obrigado a deparar-se e dialogar em suas obras com manifestações de cunho popular e políticas. 18 Durante o processo de pesquisa, buscou-se analisar quais recursos a mídia hegemônica utiliza para chamar a atenção de seu público para os espetáculos teatrais, a partir do recorte selecionado e como estes recursos podem interferir na relação dos artistas com seu público. Trata-se, como se buscará sublinhar, de destacar os modos como a mídia e seu olhar ideológico, interessado e mascarado por certa e tendenciosa verdade, ao discursar sobre as peças reportadas a seus leitores, utilizando-se de ferramentas típicas da sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997). Pretende-se, portanto, apresentar um (re)descortinamento do olhar que a mídia analisada imprimiu sobre as respectivas montagens e grupos em epígrafe, no intuito mesmo de chamar atenção para a procura de novas alternativas de comunicação com seu público sobre seus trabalhos. Trata-se, portanto, de instaurar — a partir de evidências, que serão apresentadas em assuntos ou tópicos específicos — o mascaramento ideológico de certos veículos de comunicação no sentido de buscar arejamento e certa independência do discurso midiático hegemônico, tendo no meio digital um caminho para buscar um contato mais direto com o público, cujo sentido tem se ressignificado, exatamente, por novos expedientes e canais de comunicação e de troca. Saber como a mídia cobriu as peças de dois importantes grupos do teatro brasileiro, Oficina e Satyros, quando de seus diálogos com as “Jornadas de Junho” de 2013 contribui para entender o espaço do teatro na sociedade brasileira contemporânea. Além disso, ao evidenciar certos procedimentos discurssivos (abrigantes de um ideológico significadamente mascarado) a pesquisa pode fornecer, também, ferramentas para que esses e outros integrantes de grupos teatrais possam perceber o que há nos discursos midiáticos sobre os mesmos, estimulando-os a pensar novas formas de comunicação de seus trabalhos junto ao chamado grande público. Além do apontado, a pesquisa busca registrar, de certa forma, como este momento importante da história recente brasileira, que acabou por influenciar nos rumos posteriores da política no país, influenciou os palcos, sendo perceptível e noticiado midiaticamente, lembrando que as influências das “Jornadas de Junho” ainda seguem sendo sentidas e estudadas em diversas áreas do conhecimento no Brasil contemporâneo. Apresentar sua influência nos palcos e sua recepção midiática pode caracterizar-se em significativa contribuição histórica. Na medida em que há poucas pesquisas acadêmicas que abordam a relação do teatro brasileiro com a mídia hegemônica na contemporaneidade, por meio da reflexão aqui desenvolvida, busca-se estabelecer as bases da análise do discurso midiático sobre as peças do 19 Oficina e do Satyros que dialogaram com as “Jornadas de Junho”, foco central deste trabalho e esmiuçado no capítulo 4. Mas, antes, é preciso o cotejamento por referências teóricas que norteiam tal análise. Assim, no capítulo 3, apresentam-se certos apontamentos e proposições teóricas sobre linguagem, jornalismo, discurso e ideologia presente na comunicação midiática. Para melhor compreensão do discurso em si, o trabalho utilizará as premissas de Eni Puccinelli Orlandi no livro A Linguagem e Seu Funcionamento: As Formas do Discurso (2001), no qual a autora estabelece o discurso como a linguagem em interação e ainda critica o discurso autoritário vigente na linguagem, com só o eu locutor prevalecendo. Mikhail Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2004), também servirá de base ao apontar como o discurso é ideologia, formada por signos, e que este desenvolve-se, sempre, em determinado contexto histórico- social e, evidentemente, a partir de interesses de classe determinados. Trata-se de pesquisa qualitativa por meio da qual busca-se apresentar as premissas teóricas da comunicação e do jornalismo (ROSSI, 1998), com apresentação sucinta de conceitos como notícia (TRAQUINA, 2001; LUSTOSA, 1996; LAGE, 2003) e acontecimento (RODRIGUES, 1993, LUSTOSA, 2003), explicitando como fatos e acontecimentos podem se misturar no discurso jornalístico (FRANÇA e ALMEIDA, 2006). Por intermédio de (FAUSTO NETO, 1991) pretende-se analisar a construção da realidade, bem como as especificidades do jornalismo cultural (PIZA, 2003; BARRETO, 2005), área do jornalismo onde se dará o discurso analisado nesta pesquisa. As questões concernentes a uma visão crítica do jornalismo, revelando que este se dá imerso de ideologia, desvelando o mito da imparcialidade, tomará algumas teses (MARCONDES FILHO, 1986) e ainda a concentração do poder comunicacional no Brasil fortemente atrelado à elite econômica no país sua participação no processo histórico nacional (KUCINSKI, 1998). No capítulo 4, são apresentados e analisados os textos dos dois jornais sobre as duas peças que dialogaram com a “Jornadas de Junho”, buscando ainda referências sobre a cultura da mídia, revelando posturas políticas e ideológicas nesta (KELLNER, 2001) e ainda a relação de mediação que os meios de comunicação de massa estabelecem com seus receptores (THOMPSON, 2014). A criação de um discurso espetacular sobre as peças, típico da sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997). Debord (1997) afirma que o espetáculo inicia-se nele e encerra-se nele mesmo, transformado na principal produção da sociedade atual. Para o autor, a sociedade, ao tornar-se mera espectadora, se distancia do conhecimento de sua própria 20 existência. Assim, o espetáculo é uma fabricação concreta de alienação, na medida que põe fim aos limites do eu bem como suprime os limites entre verdadeiro e falso, já que a realidade vivida fica pequena diante da presença real da falsidade garantida pela organização da aparência. Por fim, como ferramenta das considerações finais apontadas nesta pesquisa recorre-se à proposição de uma prática jornalística para além do poder hegemônico, em busca de uma emancipação, como apresentado em Jornalismo e Emancipação de Dennis de Oliveira (2017), no qual é apresentado a ligação da mídia hegemônica ao controle social e ao modo de produção capitalista, apresentando como saída um jornalismo como ação cultural pela emancipação, feito como mídia alternativa. 21 CAPÍTULO 1 – APONTAMENTOS SOBRE AS “JORNADAS DE JUNHO” DE 2013 NA CIDADE DE SÃO PAULO Há muito tempo o Brasil não via manifestações populares em suas ruas como se mostraram as “Jornadas de Junho” de 2013. Elas foram deflagradas, primeiramente, em razão do aumento na tarifa do transporte público da cidade de São Paulo, maior metrópole do país, no caso, de R$ 3,00 para R$ 3,20. No período democrático que se instalou no Brasil em 1985, após 21 anos de ditadura civil-militar, apenas o movimento Fora Collor, que terminou no impeachment do presidente Fernando Collor de Mello (PRN, atual PTC) em 1992 acusado de corrupção, se comparou às “Jornadasde Junho”; antes da democracia, o movimento Diretas Já, que clamou nas ruas, com milhares de pessoas em protesto pelo direito a voto entre 1983 e 1984 em grandes comícios que marcaram a história, também havia levado milhares de pessoas às ruas das principais cidades brasileiras. Em junho de 2013, milhões de pessoas tomaram as ruas do país, em um movimento que todavia segue sendo estudado em diversas áreas das ciências humanas na busca de ser melhor compreendido e cujos efeitos foram sentidos nos anos posteriores, influenciando a história brasileira contemporânea. As “Jornadas de Junho” impactaram não só a política, mas a sociedade como um todo, incluindo aí também o teatro e, mais especificamente, o teatro feito na cidade de São Paulo, onde elas foram deflagradas. Como se verá ao longo desta pesquisa, os grupos Oficina e Satyros, que estavam em salas de ensaio quando as “Jornadas de Junho” eclodiram, decidiram dialogar com o movimento nas ruas, incorporando as manifestações às suas respectivas cenas, em um diálogo estético-artístico-político-social. Ambos os grupos estrearam suas peças no mesmo dia 16 de agosto de 2013, dois meses após o ápice das manifestações. O Oficina lançou Cacilda!!! Glória no TBC, enquanto que o Satyros apresentou Édipo na Praça. Em ambas as peças, cenas inspiradas nas ruas de junho faziam parte da narrativa cênica. Os dois maiores jornais impressos da cidade de São Paulo, onde as duas companhias têm sede, Folha de S. Paulo, ou, simplesmente, Folha, e O Estado de S. Paulo, ou apenas Estadão, tendo em vista a dimensão do ocorrido e seu apelo noticioso e artístico, cobriram tais espetáculos. E é o discurso de ambos os jornais ao comentar tais espetáculos que dialogaram 22 com as “Jornadas de Junho” que se caracteriza no tema central deste trabalho. Mas, antes, é preciso compreender melhor o que foram as “Jornadas de Junho”. Ato das “Jornadas de Junho” no Largo da Batata, em São Paulo, 2013 – Foto: Eduardo Enomoto 1.1 – Redes e ruas no século XXI: da Primavera Árabe às “Jornadas de Junho” no Brasil O século XXI viveu em seus primeiros anos a proliferação do acesso de parte significativa da população mundial à internet, cada vez mais comum em aparelhos móveis, bem como o desenvolvimento de potentes redes sociais interligadas, conectando as pessoas em todo o planeta em forma instantânea de comunicação social, como Twitter, Facebook e Instagram, capazes de difundir e reverberar múltiplas vozes instantaneamente. Maria Ouriveis do Espírito Santo em Lutas Sociais e Ciberespaço: O Uso da Internet pelo Movimento Passe Livre nas Manifestações de Junho de 2013 em São Paulo (2014) aponta que o pioneirismo neste aspecto da chamada Primavera Árabe, que começou na Tunísia, em 2010, com protestos contra a violência policial, e depois ganhou espaço no Egito, em 2011. Ela lembra que tais manifestações também foram expressões contra a corrupção policial e o desemprego, inaugurando no mundo uma série de mobilizações sócio-políticas que utilizaram a internet como instrumento de articulação e de divulgação de informações. 23 Imagem do começo da Primavera Árabe na Tunísia em 2011 – Foto: Franck Prevel/Getty Images Espírito Santo (2014) lembra que na Tunísia e no Egito provedores de internet foram derrubados pelos respectivos governos como tentativa de cessar as manifestações arquitetadas pelas redes sociais, mas não houve como freá-las. Elas logo se espalharam por países como Líbia, Iêmen, Síria, Argélia, Marrocos, Bahrein, Jordânia e Omã, criando a chamada Primavera Árabe, que teve desdobramentos políticos e ainda segue tendo resultados esperados na região. No mundo árabe o início das movimentações se deu na Tunísia, em dezembro de 2010, quando Mohamed Buazizi, jovem de 26 anos, vendedor de hortaliças, decidiu pela autoimolação depois de ter sido agredido por policiais ao se negar a pagar propina para comercializar seus produtos. Sua morte, um ato de protesto contra o abuso de poder policial, ganhou o mundo depois que foi relatada na internet pelo Facebook, juntamente com imagens do protesto organizado por seus amigos em frente à prefeitura da cidade de Sidi Bouzid, onde moravam. [...] O Edito seguiu o mesmo caminho. Alguns meses antes uma situação parecida havia acontecido com um jovem de 28 anos que documentava ações de policiais corruptos. O rapaz, Jalid Said, foi espancado até a morte e, por meio da internet, em especial das redes sociais, a população foi sendo informada e convidada a protestar. [...] Alguns governantes acataram os pedidos vindos das ruas e promoveram mudanças na tentativa de acalmar a população. Outros conseguiram derrubar seus líderes políticos. Mas, de forma geral, a região ainda espera ver o resultado dessa Primavera (ESPÍRITO SANTO, 2014, p. 17-8). 24 Mapa mostra países influenciados pela Primavera Árabe – Fonte: Band.com.br Logo após a Primavera Árabe, a Europa também conheceu a capacidade das redes sociais em mobilizar gente para as ruas em grandes manifestações políticas. Na Espanha, em 15 de maio de 2011, houve um gigantesco protesto organizado pelo movimento Democracia Real Ya!, que resultou com mais de 100 espaços públicos espanhóis ocupados pela população, protesto que ficou conhecido como Indignados (ESPÍRITO SANTO, 2014, p. 18). Depois, o movimento chegou ao continente americano também. Nos Estados Unidos, a onda de protestos impulsionados pelas redes sociais também logo eclodiu. Lá, as manifestações organizadas pelas redes sociais começaram em setembro de 2011, quando o Zuccoti Park, próximo a Wall Street, em Nova York, foi ocupado com pessoas insatisfeitas com a gigante desigualdade econômica estadunidense, exigindo que o 1% mais rico da população distribuísse a renda com os 99% mais pobres, no movimento que ficou conhecido como Occupy, que logo também se espalhou por outras cidades dos EUA (ESPÍRITO SANTO, 2014, p. 19). No Brasil, a força das redes sociais como ferramenta de mobilização popular para grandes protestos mostrou seu impacto em junho de 2013. Neste mês, em razão do aumento da tarifa do transporte público paulistano de R$ 3,00 para R$ 3,20, o Movimento Passe Livre (MPL), definido como autônomo, horizontal, apartidário e independente e com o lema “por 25 uma vida sem catracas”, convocou em eventos no Facebook grandes atos populares reais em espaços públicos de São Paulo. O número de manifestantes foi crescendo a cada ato e à medida em que a violência policial repressiva se ampliava, abordada de modos diferentes pelo prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad (PT), e pelo governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), já que o preço das tarifas do transporte público na capital paulista é interligado entre rede estadual de transporte (metrô e trens) e municipal (ônibus). Ambos os políticos estavam unidos pelo aumento da tarifa. A forte repressão policial, visível em postagens nas redes sociais, passou a indignar, também, de maneiras diversas, a população, que passou a se somar aos atos, cada vez com mais gente. Isso fez crescer gradualmente a cada novo ato o número de manifestantes, sobretudo após o 4º Grande Ato, no fatídico dia 13 de junho de 2013, quando houve dura repressão, com muitos feridos pelos policiais, que agiram — como soe acontecer — de forma truculenta, atacando inclusive transeuntes que não estavam nas manifestações, jornalistas e fotógrafos, fazendo com que o discurso midiático, até então condenatório às Jornadas de Junho, mudasse prontamente, em uma grande virada midiática. Com acesso direto aos vídeos da repressão policial nas redes sociais, muitos deles feitos por moradores de prédios da própria rua da Consolação (Cerqueira César, próximo da região central da cidade), onde houve o confronto mais sangrento no dia 13 de junho de 2013, a população mudou sua percepção sobre osmanifestantes, até então chamados de “baderneiros” e “vândalos” pela mídia hegemônica e pelos governantes. Isso fez com que muitos se somassem ao 5º Grande Ato, que lotou o Largo da Batata (Pinheiros, região oeste da cidade) em 17 de junho de 2013, quando jornalistas da Globo chegaram a ser expulsos do local por manifestantes. Diante disso, houve a mudança do discurso da grande mídia sobre os atos, até então condenados por ela (ESPÍRITO SANTO, 2014, p. 27). A grande repressão no 4º Grande Ato fez com que milhares de pessoas fossem ao 5º Grande Ato, que terminou com a sede do Governo de São Paulo, no bairro do Morumbi, zona sul de São Paulo, cercada pelos manifestantes. No 6º Grande Ato, no dia 18 de junho, foi a vez de a Prefeitura de São Paulo, na região central da cidade, ser cercada pelos protestantes. Após este ato, em decisão conjunta, em 19 de junho de 2013, a Prefeitura de São Paulo e o Governo do Estado de São Paulo revogaram o aumento da tarifa. Contudo, isso não parou os atos, como esperavam os governantes de partidos rivais, mas de postura semelhante durante as “Jornadas de Junho”. O MPL convocou o 7º Grande Ato para 26 20 de junho de 2013, na Avenida Paulista, bairro Cerqueira César, feito logo após a revogação do aumento da tarifa. Já não havia mais a pauta pelo cancelamento do aumento da tarifa, já conquistado, contudo, mesmo assim, a rua foi invadida por questionamentos dos mais diversos, da extrema esquerda à extrema direita. Entretanto, um fato marcante determinou a força histórica deste dia: a expulsão da Avenida Paulista com ameaça de violência por muitos manifestantes de militantes caracterizados com camisetas e bandeiras de partidos políticos e movimentos sociais organizados. Diante da confusão e de uma virada à extrema direita das manifestações, o MPL resolveu, com os rumos tomado neste sétimo ato, se retirar das Jornadas de Junho que ele mesmo havia criado. Contudo, os protestos continuaram sem uma liderança ou pauta clara de reivindicações e, já sem o MPL nas semanas seguintes, manifestações seguiram-se não só em São Paulo como se espalharam por todo o Brasil, abarcando uma profusão heterogênea de reinvindicações, incluindo muitas de extrema direita, como manifestantes proibindo e ameaçando a presença de partidos políticos e movimentos sociais e suas bandeiras nos atos que se seguiram. 1.2 – “Jornadas de Junho” de 2013: os 20 centavos que eclodiram um país O Brasil parecia tranquilo até as “Jornadas de Junho” de 2013, que eclodiram na cidade de São Paulo em razão do aumento conjunto de 20 centavos na tarifa do transporte público de âmbito da Prefeitura (ônibus) e do Estado de São Paulo (metrô e trem) e depois se espalharam por cidades em todo o país, com cerca de 1,5 milhão de manifestantes em mais de 120 cidades, segundo estimativas apresentadas pela Polícia Militar em reportagens da imprensa na época. Após dois mandatos consecutivos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), entre 2003 e 2010, quando o Brasil viveu um período de crescimento do consumo interno, pagamento da dívida externa e pujança econômica, junho de 2013 marcava o terceiro ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff, também do PT, primeira mulher da história brasileira à frente da Presidência da República que havia sido eleita com o apoio de Lula. Na esfera estadual, Geraldo Alckmin, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), estava no terceiro ano de seu terceiro mandato não-consecutivo como governador de 27 São Paulo. Na esfera municipal, Fernando Haddad, do PT, estava em seu primeiro ano como prefeito da cidade de São Paulo, cargo que ocupava pela primeira vez. Em junho de 2013, em ação conjunta da Prefeitura (responsável pelos ônibus) com o Governo de São Paulo (responsável por trens e metrô), foi decretado o aumento da tarifa do transporte público de R$ 3,00 para R$ 3,20. Os 20 centavos a mais provocaram indignação da população, o que sempre ocorre quando há aumento de tarifas públicas como esta, mas nada indicava até então que isso deflagraria a maior movimentação político-social nas ruas vividas pelo Brasil até então no começo do século XXI. Contudo, as “Jornadas de Junho” de 2013, em sua irrupção, guardavam uma grande distância das Diretas Já e do Fora Collor, despertando inquietação e distintas interpretações por parte de políticos e estudiosos das ciências humanas. Ao contrários das marchas até então realizadas no Brasil, as “Jornadas de Junho” não tinham ligação direta com algum partido ou movimento social. E uma novidade importante: as marchas eram organizadas pela internet, com ampla difusão nas redes sociais. A pauta inicial das “Jornadas de Junho”, lembra Espírito Santo (2014, p. 19), foi a luta contra o aumento dos transportes públicos na cidade de São Paulo, como divulgado pelo MPL no 1º Grande Ato, em 6 de junho, com 2.000 manifestantes que fecharam as av. 9 de Julho, 23 de Maio e Paulista (região sul da cidade), com 50 pessoas feridas e 15 presas. Mesmo assim, tanto o prefeito Fernando Haddad quanto o governador Geraldo Alckmin se recusaram a revogar o aumento da tarifa. E os atos se seguiram, cada vez maiores e com mais repressão policial, apoiada pela grande mídia, inclusive os jornais analisados por esta pesquisa. O 2º Grande Ato foi no dia 7 de junho, com 5.000 manifestantes que bloquearam a Marginal Pinheiros. Assim como no 1º Grande Ato, houve repressão policial com bombas de gás e balas de borracha. É nesta segunda manifestação, lembra Espírito Santo (2014, p. 30) que surgem os militantes do Black Bloc, com seus rostos cobertos e que enfrentam os policiais. Os Black Blocs são fortemente condenados pela mídia, sobretudo pela depredação de estabelecimentos públicos, como bancos, e parte da população rechaça os protestos. 28 Imagem das “Jornadas de Junho” em São Paulo, 2013 – Foto: Fabio Braga/Folhapress Espírito Santo (2014) lembra ainda que surgem também os hackers, denominados Anonymous, que invadem o site da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo para convocar o 3º Grande Ato, em 11 de junho, quando 12 mil pessoas aderiram à manifestação que passou pela Avenida Paulista e centro da cidade. Houve depredação de prédios e ônibus no Terminal Parque Dom Pedro II, com manifestantes de rostos cobertos, os Black Blocs, ou com a máscara Anonymous. A Polícia Militar, mais uma vez, reprime os manifestantes com bombas de gás e balas de borracha e a imagem de um policial sangrando é fortemente divulgada pela mídia (ESPÍRITO SANTO, 2014: p. 31). Na sequência, a mídia apoia fortemente a repressão e o fim imediato dos protestos1. A Folha de S. Paulo em 13 de junho de 2013 publica o editorial intitulado “Retomar a Paulista”, no qual condena com veemência as manifestações e apoia a repressão policial. 1 Na reportagem “Relembre em 7 atos os protestos que pararam SP em junho de 2013”, publicada pela Folha de S. Paulo em 25 de maio de 2014, por conta do um ano das “Jornadas de Junho”, o autor João Wainer diz, sobre o que ocorreu após o 3º Ato: “A Folha e o Estado de S. Paulo publicaram editoriais pedindo a retomada da Paulista. Nas TVs, opiniões raivosas de Arnaldo Jabor, da Globo, e do apresentador José Luiz Datena, da Band, atiçaram a PM. A cena do policial Wanderlei Vignoli sangrando foi a gota d'água”. Em < http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/2014/05/1458969-relembre-em-7-atos-os-protestos-que-pararam-sp-em- junho-de-2013.shtml>. Acesso em 15/11/2017. 29 Oito policiais militares e um número desconhecido de manifestantes feridos, 87 ônibus danificados, R$ 100 mil de prejuízos em estações de metrô e milhões de paulistanos reféns do trânsito. Eis o saldo do terceiro protesto do Movimento Passe Livre (MPL), que se vangloria de parar São Paulo --e chega perto demaisde consegui-lo. Sua reivindicação de reverter o aumento da tarifa de ônibus e metrô de R$ 3 para R$ 3,20 —abaixo da inflação, é útil assinalar — não passa de pretexto, e dos mais vis. São jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados. Pior que isso, só o declarado objetivo central do grupelho: transporte público de graça. O irrealismo da bandeira já trai a intenção oculta de vandalizar equipamentos públicos e o que se toma por símbolos do poder capitalista. O que vidraças de agências bancárias têm a ver com ônibus? Os poucos manifestantes que parecem ter algo na cabeça além de capuzes justificam a violência como reação à suposta brutalidade da polícia, que acusam de reprimir o direito constitucional de manifestação. Demonstram, com isso, a ignorância de um preceito básico do convívio democrático: cabe ao poder público impor regras e limites ao exercício de direitos por grupos e pessoas quando há conflito entre prerrogativas. O direito de manifestação é sagrado, mas não está acima da liberdade de ir e vir --menos ainda quando o primeiro é reclamado por poucos milhares de manifestantes e a segunda é negada a milhões. Cientes de sua condição marginal e sectária, os militantes lançam mão de expediente consagrado pelo oportunismo corporativista: marcar protestos em horário de pico de trânsito na avenida Paulista, artéria vital da cidade. Sua estratégia para atrair a atenção pública é prejudicar o número máximo de pessoas. É hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as restrições já existentes para protestos na avenida Paulista, em cujas imediações estão sete grandes hospitais. Não basta, porém, exigir que organizadores informem à Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), 30 dias antes, o local da manifestação. A depender de horário e número previsto de participantes, o poder público deveria vetar as potencialmente mais perturbadoras e indicar locais alternativos. No que toca ao vandalismo, só há um meio de combatê-lo: a força da lei. Cumpre investigar, identificar e processar os responsáveis. Como em toda forma de criminalidade, aqui também a impunidade é o maior incentivo à reincidência. (Folha de S. Paulo, “Editorial: Retomar a Paulista”, 13 de junho de 2013). Assim como a Folha de S. Paulo, o jornal O Estado de S. Paulo, também em 13 de junho de 2013, publica editorial no mesmo tom condenatório às manifestações. No terceiro dia de protesto contra o aumento da tarifa dos transportes coletivos, os baderneiros que o promovem ultrapassaram, ontem, todos os limites e, daqui para a frente, ou as autoridades determinam que a polícia aja com maior rigor do que vem fazendo ou a capital paulista ficará entregue à desordem, o que é inaceitável. Durante seis horas, numa movimentação que começou na Avenida Paulista, passou pelo centro - em especial pela Praça da Sé e o Parque Dom Pedro - e a ela voltou, os manifestantes interromperam a circulação, paralisaram vasta área da cidade e aterrorizaram a população. O vandalismo, que tem sido a marca do protesto organizado pelo Movimento 30 Passe Livre (MPL), uma mistura de grupos radicais os mais diversos, só tem feito aumentar. Por onde passaram, os cerca de 10 mil manifestantes deixaram um rastro de destruição - pontos de ônibus, lojas, nove agências bancárias e ônibus depredados ou pichados. Uma bomba foi jogada na Estação Brigadeiro do Metrô e a Estação Trianon teve os vidros quebrados. Em algumas das ruas e avenidas por onde circularam, principalmente a Paulista, puseram fogo em sacos de lixo espalhados para impedir o trânsito e dificultar a ação da Polícia Militar (PM). Atacada com paus e pedras sempre que tentava conter a fúria dos baderneiros, a PM reagiu com gás lacrimogêneo e balas de borracha. O saldo foi de 20 pessoas detidas e de dezenas com ferimentos leves, entre elas policiais. A PM agiu com moderação, ao contrário do que disseram os manifestantes, que a acusaram de truculência para justificar os seus atos de vandalismo. Num episódio em que isso ficou bem claro, um PM que se afastou dos companheiros, nas proximidades da Praça da Sé, quase foi linchado por manifestantes que tentava conter. Chegou a sacar a arma para se defender, mas felizmente não atirou. Em suma, foi mais um dia de cão, pior do que os outros, no qual a violência dos manifestantes assustou e prejudicou diretamente centenas de milhares de paulistanos que trabalham na Paulista e no centro e deixou apreensivos milhões de outros que assistiram pela televisão às cenas de depredação. O reconhecimento por parte de dirigentes do MPL de que perderam o controle das manifestações, assim como a diversidade dos grupos que o compõem - anarquistas, PSOL, PSTU e juventude do PT, que têm em comum o radicalismo -, não atenuam a sua responsabilidade pelo fogo que atearam. Embora fragmentado, o movimento mantém sua força, porque cada grupo tem seus líderes, e eles já demonstraram sua capacidade de organização e mobilização. Sabem todos muito bem o que estão fazendo. A reação do governador Geraldo Alckmin e do prefeito Fernando Haddad - este apesar de algumas reticências - à fúria e ao comportamento irresponsável dos manifestantes indica que, finalmente, eles se dispõem a endurecer o jogo. A atitude excessivamente moderada do governador já cansava a população. Não importa se ele estava convencido de que a moderação era a atitude mais adequada, ou se, por cálculo político, evitou parecer truculento. O fato é que a população quer o fim da baderna - e isso depende do rigor das autoridades. De Paris, onde se encontra para defender a candidatura de São Paulo à sede da Exposição Universal de 2020, o governador disse que "é intolerável a ação de baderneiros e vândalos. Isso extrapola o direito de expressão. É absoluta violência, inaceitável". Espera-se que ele passe dessas palavras aos atos e determine que a PM aja com o máximo rigor para conter a fúria dos manifestantes, antes que ela tome conta da cidade. Haddad, que se encontra em Paris pelo mesmo motivo, também foi afirmativo ao dizer que "os métodos (dos manifestantes) não são aprovados pela sociedade. Essa liberdade está sendo usada em prejuízo da população". Mas insinuou que por trás das manifestações há pessoas que não votaram nele. A gravidade da situação exige que o prefeito esclareça se com isso quis dizer que a oposição é responsável pela baderna (O Estado de S. Paulo, “Editorial: Chegou a hora do basta”, 13 de junho de 2013). Além dos dois jornais objeto de análise desta pesquisa, em viagem conjunta a Paris, o governador Alckmin e o prefeito Haddad, mesmo que de diferentes modos, condenaram conjuntamente os manifestantes. Os mesmos foram chamados de “baderneiros” e “vândalos” 31 por jornalistas e comentaristas da TV, espécie de aval tanto político quanto midiático para uma repressão mais dura, o que veio realmente acontecer no ato seguinte. A repórter da Folha Giuliana Vallone, logo após ser ferida por uma bala de borracha da Polícia Militar enquanto fazia a cobertura do 4º Grande Ato das “Jornadas de Junho”, o mais violento de todos – Foto: Diego Zanchetta/Estadão Conteúdo O 4º Grande Ato aconteceu em 13 de junho e foi crucial para as “Jornadas de Junho” ganharem força e apoio da população, foi “[...] onde houve a repressão mais brutal e o momento onde a mídia alterou seu discurso” (ESPÍRITO SANTO, 2014, p. 27). Com cerca de 10 mil manifestantes, naquele dia houve a mais forte repressão policial registrada até então contra o movimento. As cenas de horror lembraram os tempos da ditadura civil-militar, sobretudo por terem ocorrido próximas às esquinas de ruas Maria Antônia e Consolação, local ligado fortemente à história do Brasil eda resistência estudantil contra a ditadura civil-militar na década de 1960. Espírito Santo (2014, p. 31) lembra que, antes mesmo de começar, o 4º Grande Ato já contabilizava 40 prisões. A Polícia Militar agrediu não só manifestantes como pessoas que passavam coincidentemente pelas ruas. A região da Rua da Consolação na esquina com Rua Maria Antônia tornou-se um palco sangrento, com muitos manifestantes tentando fugir para a 32 região da Praça Roosevelt, nas imediações, sob tiros de balas de borracha e bombas de gás, tudo instantaneamente filmado e postado nas redes sociais por moradores dos prédios no local do confronto. Ao todo, 130 pessoas foram presas e 105 ficaram feridas (ESPÍRITO SANTO, 2014, p. 32). Diante das fortes imagens de violência policial, parte da população ficou indignada, sobretudo após muitos vídeos caseiros, feitos por moradores dos prédios no entorno, se espalharem nas redes, mostrando policiais sem distintivos agredindo de forma covarde a população. Espírito Santo (2014) pondera que se os grandes veículos de comunicação transmitiam até então uma visão distorcida dos fatos, criminalizando os manifestantes e escondendo boa parte da violência policial, o 4º Grande Ato e sua brutalidade marcou uma mudança de comportamento da população. Manifestantes e população perceberam o poder enorme que tinham nas mãos com seus celulares conectados às redes sociais: produzir e distribuir informações sobre os protestos e a repressão policial “[...] e cumprir o papel que a televisão, os jornais e as revistas não estavam cumprindo, de informar e não agir apenas como divulgador de versões distorcidas sobre os fatos” (ESPÍRITO SANTO, 2014, p. 32-3). Neste contexto, a mesma autora afirma que ganha força a Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), ligada ao coletivo da área cultural Fora do Eixo2, que logo ganha milhares de seguidores nas redes sociais, por representar um contraponto à grande mídia na cobertura jornalística das “Jornadas de Junho”. Tais redes apresentavam transmissões ao vivo da repressão policial, de dentro das manifestações, que ganhariam computadores e celulares conectados por todo o Brasil com uma narrativa de contraponto à hegemônica da grande mídia (ESPÍRITO SANTO, 2014, p. 33). Em meio a tais desdobramentos — que evidenciavam truculência, sobretudo — os grandes meios de comunicação de massa, entre eles a Folha e o Estadão, mudam o tom de cobertura sobre as “Jornadas de Junho”. Então, os primeiros atos que foram duramente condenados em seus editoriais (e já apresentados neste trabalho) ganharam na sequência um 2 O Fora do Eixo é uma rede interligada de coletivos culturais surgida em 2005 e que congrega mais de 200 coletivos em todo o Brasil. Em sua página oficial, ele se define assim: “O Fora do Eixo é uma rede colaborativa e descentralizada de trabalho constituída por coletivos de cultura pautados nos princípios da economia solidária, do associativismo e do cooperativismo, da divulgação, da formação e intercâmbio entre redes sociais, do respeito à diversidade, à pluralidade e às identidades culturais, do empoderamento dos sujeitos e alcance da autonomia quanto às formas de gestão e participação em processos sócio-culturais, do estímulo à autoralidade, à criatividade, à inovação e à renovação, da democratização quanto ao desenvolvimento, uso e compartilhamento de tecnologias livres aplicadas às expressões culturais e da sustentabilidade pautada no uso e desenvolvimento de tecnologias sociais”. Em http://foradoeixo.org.br/historico/carta-de-principios/>. Acesso em 15/11/2017. 33 tom de abrandamento. Em 15 de junho de 2013, no editorial “Agentes do caos”, a Folha de S. Paulo, que antes pedia mais repressão, passa a condenar a violência policial: “Revela-se despreparo — e covardia —, entretanto, quando se ataca indiscriminadamente a população indefesa, ainda que sob a justificativa de defender a liberdade de ir e vir dos prejudicados pela manifestação”, pontou o jornal. O Estadão também assumiu nova linha no discurso sobre os atos no editorial de 15 de junho de 2013, intitulado “Entender as Manifestações”: “Foi a manifestação mais violenta - pela insistência dos seus integrantes em ocupar vias [...], e pela reação da Polícia Militar (PM), muito mais dura que nos dias anteriores”, afirmou o jornal, que passa a ponderar: "É fundamental que todos os que têm uma parcela de responsabilidade na questão, especialmente os que cuidam da segurança pública, mantenham o sangue-frio”, além de reiterar “[...]tudo deve ser feito, porém, para evitar excessos”. Espírito Santo (2014) lembra que, após a repercussão negativa da repressão policial, “[...] em 19 de junho o governador Alckmin e o prefeito Haddad anunciam a revogação do ajuste da passagem do transporte público em São Paulo, voltando a custar R$ 3,00” (ESPÍRITO SANTO, 2014, p. 37). Só que, mesmo com a revogação do aumento, o MPL convocou o 7º Grande Ato para o dia 20 de junho, o que seria também o último organizado por este. A marcha terminou com brigas e expulsão de partidos políticos e bandeiras de movimentos sociais. Ficou claro que havia grupos muito opostos dentro de uma mesma marcha. O exemplo mais marcante desta época é em relação a um dos princípios organizativos do MPL que é o apartidarismo [...] O mau entendimento deste ponto fez com que durante as manifestações ele fosse interpretado como anti- partidarismo. Os partidos políticos passaram a ser apontados não como representantes do povo, [mas como] responsáveis pelas desgraças sociais, pelo não comprometimento com as promessas, pela aceitação da corrupção. A bandeira do Brasil nas costas e o hino nacional cantado em altos brados junto a discursos em torno do valor da pátria, da luta pela nação, do orgulho de ser brasileiro, ganharam muito espaço. Defendia-se que era necessário lembrar que acima de tudo éramos brasileiros, e que se os partidos políticos não faziam o que era preciso, faríamos nós, por nossa pátria. Parte disso era um nacionalismo bem intencionado, porém foi o espaço necessário para que grupos de práticas fascistas se organizassem. Nas redes sociais os debates sobre isso foram intensos, contudo, neste dia, o diálogo foi deixado de lado: participantes com bandeiras de partidos políticos, ou de movimentos sociais como o MST, bonés, camisetas ou até mesmo apenas vestidos de vermelho foram expulsos das manifestações, pois estavam sendo ameaçados (ESPÍRITO SANTO, 2014, p. 38). 34 Com a saída do MPL dos atos, à medida que as marchas foram crescendo e ganhando cada vez mais participantes e novas cidades pelo país suas pautas de reivindicações foram tornando-se cada vez mais heterogêneas. Com a retirada de campo do convocador inicial das sete primeiras manifestações, as “Jornadas de Junho” seguiram confusas e à deriva por todo o Brasil, até arrefecerem com a chegada do mês de julho daquele ano. Contudo, as “Jornadas de Junho” apresentaram drásticas consequências nos anos posteriores ao país. 1.3 – “Jornadas de Junho”: um movimento que influenciou um país Ernane Salles da Costa Junior, em Sobre Vozes da Rua e Gigantes que Despertam: Retratos de um Imaginário (2016), apresenta três interpretações possíveis, entre tantas, das “Jornadas de Junho”. A primeira é de Ricci e Arley (2014), que viram no movimento uma crise do modelo institucionalizado de política, sendo as “Jornadas de Junho” uma narrativa de sentidos como um “movimento social em rede” próprio dos novos tempos conectados. Eles veem tais manifestações como expressão da uma pluralidade de pessoas em uma rebeldia geral no sistema posto, de enfrentamento ao status quo. E os autores enxergam nas “Jornadas de Junho” uma crítica ao sistema partidário como elemento central de ordem política e tentativa de um diálogo concreto,estimulado pela rápida e fácil comunicação das rede sociais (COSTA JUNIOR, 2016, p. 13). Costa Junior apresenta, ainda, uma segunda visão para as “Jornadas de Junho”, de Marilena Chauí (2013), que enfatiza o aspecto ligado à “[...] rebeldia dos manifestantes que nega partidos, organizações e representações”, lembrando que ela vai apontar um “[...] potencial reacionário e seus contornos até mesmo fascistas contidos nesse tipo de discurso” (COSTA JUNIOR, 2016, p. 13). Para Chauí, as “Jornadas de Junho” corriam risco de serem manifestações rumo ao conservadorismo e ao autoritarismo. A visão da filósofa é corroborada pelos fatos que sucederam na história política recente do Brasil após as “Jornadas de Junho”. A visão pessimista de Chauí para os desdobramentos políticos das “Jornadas de Junho” se evidenciou nas marchas “verde-e-amarelas” que ganharam força no Brasil e foram abraçadas pela mídia hegemônica nos anos posteriores, que afirmava lutar contra a corrupção e exigiam a destituição do governo federal petista, exclusivamente culpabilizado pelo forte esquema de corrupção exposto pela 35 Operação Lava-Jato da Polícia Federal. A visão de Chauí ainda foi reforçada pelo aumento de um pensamento conservador em parte da sociedade brasileira, o que gerou a ascensão de políticos com discurso de extrema direita, caso do deputado militar da reserva Jair Bolsonaro, postulante à Presidência em 2018 pelo Partido Social Cristão (PSC), e no surgimento de grupos de extrema direita capitaneados por jovens lideranças como Movimento Brasil Livre (MBL), e, claro, no impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT) em 31 de agosto de 2016, três anos após as “Jornadas de Junho”, em um grande acordo político-judicial para sua destituição com forte apoio midiático. Por fim, Costa Junior apresenta uma terceira visão, mais otimista, de Manuel Castells (2013), que enxergou nas “Jornadas de Junho” “[...] parte integrante de um fenômeno mundial que poderia ser definido, em razão da forte presença da internet como meio de mobilização, como movimentos em rede” (COSTA JUNIOR, 2016, p. 14). Costa Júnior lembra que, para Castells, a articulação política por meio das redes sociais, teria deixado um legado positivo e irreversível para a tradição política do país. Costa Junior (2016) enxerga, também, aspectos positivos nas “Jornadas de Junho” de 2013, que, em sua visão, representam o ápice da luta pelo direito ao transporte público gratuito nas grandes cidades, luta iniciada com força a partir da redemocratização do país, citando a “Revolta do Buzú” em 2003, na cidade de Salvador da Bahia, em a “Revolta da Catraca”, em 2004, em Florianópolis em Santa Catarina, como exemplos anteriores3. Tal legado, na visão de Costa Junior (2016), culmina no chamamento de manifestações públicas de protesto nas ruas feito pelo Movimento Passe Livre (MPL) em São Paulo quando do anúncio do aumento da tarifa, as “Jornadas de Junho” estudadas nesta pesquisa. O autor lembra a máxima “não é por vinte centavos, é por direitos” estampada em muitos cartazes das “Jornadas de Junho”. Segundo ele, o slogan das marchas desvela “[...] a percepção de que o 3 Em agosto de 2003, o aumento no preço da passagem do transporte público em Salvador, capital da Bahia, desencadeou uma grande manifestação estudantil, reivindicando o passe livre. Com a união de vários grêmios representativos estudantis, estudantes reivindicaram a redução da tarifa de R$ 1,50 para R$ 1,30, bem como o meio passe também aos fins de semana. Chamado de “Revolta do Buzú”, o evento influenciou posteriormente outras manifestações, como a “Revolta da Catraca”, movimento semelhante ocorrido em Florianópolis, em 2004, e a própria criação do Movimento Passe Livre (MPL) em 2005, durante o Fórum Social Mundial em Porto Alegre. O MPL foi o desencadeador das “Jornadas de Junho”, que começaram por conta do aumento da passagem no transporte público paulistano em 2013 de R$ 3,00 para R$ 3,20. Fonte: A Revolta do Buzú em Salvador: 10 Anos de Luta pelo Passe Livre. < https://memorialatina.net/2013/08/13/a-revolta-do-buzu-salvador- 10-anos-de-luta-pelo-passe-livre/>. Acesso em 15/11/2017. 36 aumento da tarifa do transporte e seu valor em si são apenas a ponta de um imenso iceberg de um modelo caótico de crescimento urbano” (COSTA JUNIOR, 2016, p. 16). Para Costa Junior, o MPL colocou em evidência a importância do transporte público como “[...] instrumento imprescindível que garante o acesso aos bens públicos e à cidade em geral” (COSTA JUNIOR, 2016, p. 16), reiterando que “[...] ele deve ser visto, pois, como um direito, aliás, essencial para o exercício de outros direitos, tendo em vista que assegura o acesso aos demais serviços públicos” (COSTA JUNIOR, 2016, p. 16). Toda essa inquietação popular durante as “Jornadas de Junho” afetou fortemente dois grupos de teatro de São Paulo que ensaiavam suas novas peças quando as manifestações ganhavam corpo na cidade de São Paulo e foram inquietados artisticamente por elas. Com muitos de seus atores presentes nas marchas ou até mesmo vítimas da repressão policial, os dois grupos decidem mudar suas encenações e trazem para a cena as “Jornadas de Junho” nas peças que estrearam em agosto de 2013 Cacilda!!! Glória no TBC e Édipo na Praça, dois meses após o furacão social que movimentou as ruas. Fato que será coberto pelos dois principais jornais de São Paulo: Folha e Estadão. 37 CAPÍTULO 2 – ASSOCIAÇÃO TEAT(R)O OFICINA UZYNA UZONA E COMPANHIA DE TEATRO OS SATYROS: UTILIZAÇÃO DE EXPEDIENTES TEATRAIS EM DIÁLOGO COM A HISTÓRIA RECENTE DO BRASIL Dois grupos de teatro paulistanos longevos e com tradição de dialogarem com seus entornos e sua cotidianeidade, sobretudo citadina, em suas obras teatrais, decidiram dialogar com as “Jornadas de Junho” no ano de 2013. Isso ocorreu em montagens que estrearam dois meses após as grandes manifestações populares que movimentaram a cidade de São Paulo e depois se espalharam pelo país. São eles o Oficina e o Satyros. Antes, é preciso conhecer aspetos gerais e históricos de ambos e de seu ofício. 2.1 – Teatro: aspectos gerais Fernando Peixoto em O Que É Teatro define teatro como “[...] um espaço, um homem que ocupa este espaço, outro homem que observa. Entre ambos a consciência de uma cumplicidade" (1981, p. 9). Na visão do autor, é no momento da representação que surge o teatro, advindo da necessidade de o homem representar seu semelhante, mostrando-lhe sua criação. Ele lembra que o teatro esteve presente na humanidade desde os primeiros rituais e ganhou força nas civilizações antigas, como Egito, China e Grécia, recordando que Aristóteles definiu o espectador como aquele que delega poderes para que a personagem pense e atue em seu lugar. O autor afirma que na Idade Média a Igreja Católica, que tanto se inspirou no teatro para seus rituais litúrgicos, decidiu proibi-lo, “[...] ameaçando atores com o fogo do inferno, não deixando de se apropriar dele em suas celebrações” (PEIXOTO, 1981, p. 72). Com o Renascimento, o teatro recuperou alguma liberdade, com a manifestação de autores como o inglês William Shakespeare, que provocou "[...] a emancipação definitiva do teatro de todas as amarras, temáticas e formais, anteriores" (PEIXOTO, 1981, p. 77). Com a ascensão da burguesia ao poder, surge o drama burguês, para que a plateia pudesse identificar-se com os conflitos das personagens e servisse também para impor os ideários burgueses à sociedade (SZONDI, 2001). 38 No século XX, o teatro épico, por intermédio de diversos de seus expedientes, será totalmente reformulado, em decorrência de pressupostos materialistas e dialético, por Bertolt Brecht (ROSENFELD, 2000). Alexandre Mate (2010) lembra que até chegar à formulação do teatro épico brechtiano, o épico passou de algumascaracterísticas: teatralidade explícita; ausência de quarta parede e jogo sendo desenvolvido entre atores e público; mescla da mimese e da diégese; assuntos de abrangência social, confrontando o objetivo ao subjetivo, o pessoal ao histórico; a politização da cena; a inserção de expedientes de outras linguagens artísticas (como a projeção fílmica); a narrativa desenvolvida em fluxos de tempos, contemplando passado e presente; e o não se ater às questões de conflito (intersubjetivo); lembrando que a personagem é social e histórica (MATE, 2010). Bertolt Brecht (1898-1956) — estabelecendo a condição de pensar o espetáculo como um objeto estético-histórico e social — se destacou ao propor que o espectador não deveria deixar a personagem atuar em seu lugar, mas estimulado a pensar criticamente em conjunto. Assim, sinalizou uma dimensão política também para o público. Influenciado por este, o diretor brasileiro e pensador do teatro Augusto Boal (1931-2009) definiu teatro como ação (praxitron), quebrando o limite entre atuadores e espectadores. Para Boal, o teatro deveria quebrar os limites entre as classes sociais, libertando o espectador "[...] de uma condição que seria, necessariamente, opressiva" (PEIXOTO, 1981, p. 20). Ao longo da história, o teatro sempre esteve conectado ao sistema político-social da sociedade na qual estivesse inserido, fosse confrontando-se ao sistema ou reproduzindo-o a partir dos pontos de vista das classes dominantes da vez. De acordo com Peixoto, o fim do século XX provocou uma mudança: "[...] o teatro, mais do que correntes políticas, passou a buscar a si mesmo" (PEIXOTO, 1981, p. 18). Alexandre Mate (2008) lembra que, com a democratização do Brasil na década de 1980, após duas décadas de ditadura civil-militar que reprimiu fortemente o campo artístico, o teatro de grupo na cidade de São Paulo voltou a se reorganizar, enfatizando o surgimento de novos e múltiplos grupos em distintas regiões da cidade, incluindo aí sua periferia. Ainda com relação aos grupos de teatro que se formaram na década, mas sem ser possível imaginar seu número, por não haver dados estatísticos, vários deles atuam na década e dão sentido militante, político e estético ao conceito denominado teatro de grupo, cujos processos de reordenação das formas grupal e coletiva vão demandar outros modos de produção. Dessa forma, data 39 da década, mas sem ter começado nela, a proposição do chamado processo colaborativo. De modo bastante esquemático, o processo colaborativo — cujas inspirações mais distantes resultam do teatro agitropista russo-soviético e as mais próximas, principalmente, das experiências do Teatro Experimental de Cali (Colômbia), dirigido por Enrique Buenaventura — pressupõe a instituição de um colegiado democrático de criação, com divisão de todas as tarefas demandadas pelo processo teatral. Mesmo havendo responsáveis específicos de cada área da produção, criação estética e apresentação da obra, tudo se divide e de intercambia (MATE, 2008, p. 146). Apesar de estarem inserido no contexto do teatro de grupo que ganhou força na cidade de São Paulo a partir da década de 1980, os grupos Oficina e Satyros têm suas especificidades históricas e formas de produção, como veremos adiante. 2.2 – Oficina: teat(r)o, antropofagia e tropicalismo O Oficina é um dos mais longevos grupos teatrais em atividade no mundo, já que surgiu em 1958 e permanece em atividade seis décadas depois até os tempos atuais, sob o mesmo comando, do diretor paulista José Celso Martinez Corrêa, chamado de Zé Celso. De acordo com o livro Oficina 50+ Labirinto da Criação (2013), o Oficina passou a se destacar na década de 1960, "[...] por toda a sua experiência cênica internacional e por sido palco do lançamento do Tropicalismo, ligado ao Movimento Antropofágico de Oswald de Andrade, o que influenciou músicos, poetas e outros artistas" (MARTINS, 2013, p. 11). Na revista-encarte A Bigorna Extraordinária, integrante do mesmo livro, o diretor Zé Celso afirma que o coletivo caracteriza-se em uma "[...] associação de técnico-artistas multimídia" feita para criar "[...] espetáculos que deem continuidade ao momento revolucionário da encenação de O Rei da Vela, do poeta paulistano Oswald de Andrade" (CORRÊA, 2013, p. 32), referindo-se à histórica peça de 1967 que deu propulsão nos palcos ao movimento artístico da Tropicália. Desde então, as peças do Oficina, sempre com elenco numeroso — no período em análise neste trabalho o Grupo estava composto de mais de 60 artistas, em sua maioria jovens integrantes de seu vigoroso coro —, têm, em vários aspectos, sua excelência comprovada. Notadamente, dentre todos os aspectos, a figura do coro se caracteriza em sua força icônico- performático e criativa. Coro que chegou ao Oficina no espetáculo Roda Viva, peça montada 40 no fatídico ano de 1968 de autoria de Chico Buarque de Hollanda. Por seu teor denunciatório e encenação ousada, sobretudo, a obra sofreu forte repressão, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, onde a obra era encenada, e atores espancados — tal fato se repetiu na apresentação da peça em Porto Alegre —, como lembra Zé Celso, ao afirmar que a grandeza desta obra teatral "[...] foi obscurecida pelos ataques perpetrados pelo Comando de Caça aos Comunistas em São Paulo e depois pelo próprio 3º Exército Brasileiro, em Porto Alegre" (CORRÊA, 2013, p. 32). Imagem da encenação do Oficina para O Rei da Vela, em 1967 – Foto: Arquivo Oficina 41 Chico Buarque vê ensaio do Oficina para sua peça Roda Viva em 1968 – Foto: Arquivo Oficina Em 13 de dezembro de 1968, data da implantação do tenebroso Ato Institucional nº 5 (AI-5) no Brasil pela ditadura, suprimindo direitos políticos e civis e que aprofundou o estado de exceção no país e a repressão, o Oficina estreou o icônico texto de Bertolt Brecht Galileu Galilei. A encenação de Zé Celso comparava os militares no poder no Brasil à Inquisição da Igreja Católica da Idade Média que perseguiu o grande astrônomo italiano que protagoniza a peça. Influenciado pelo grupo estadunidense Living Theater, Zé Celso postulou, no começo da década de 1970, seu “te-ato”4, que vira a ser forte marca do Oficina bem como seu coro: uma atuação ritual transformadora da relação palco-plateia, com artistas e público fundindo-se, rompendo qualquer barreira entre atores e espectadores, dando espaço ao surgimento de uma forte libido entre os mesmos. A evidente postura do Oficina contra o regime de exceção gerou forte perseguição dos militares e seus colaboradores na sociedade civil aos artistas, o que culminou no exílio de Zé Celso em 1974, após 20 dias de prisão e tortura. Para o diretor, sua 4 No seu site oficial, a Universidade Antropófaga da Associação Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona define assim o “te-ato”: “Teato é um ato de comunicação direta qualquer. Você encara tudo o que acontece no dia a dia como um teatro, onde cada um de nós tem em si uma personagem, e no teato você atua diretamente sobre isso. Teato é uma ação de desmascaramento do teatro das relações sociais”. Fonte: Site da Universidade Antropófaga – “Teato” <http://www.universidadeantropofaga.org/teato>. Acesso em 15/11/2017. 42 prisão e tortura que o obrigaram a sair do país foi "a violenta interrupção" de um processo artístico que surgia, lembrando que não foi o único alvo "[...] com a invasão do Teat(r)o Oficina, prisão e tortura de muitos de seus tecno-artistas" (CORRÊA, 2013, p. 33). Em seu exílio, Zé Celso passou por Portugal, na Europa, e Moçambique, na África, e retornou a São Paulo apenas em 1978. Na sequência, passou toda a década de 1980 tentando reerguer o Oficina e sua força histórico-política como na década de 1960, além de recuperar sua sede histórica no bairro do Bixiga, que ganhou um novo prédio, projetado por