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O Transtorno de Personalidade Antissocial – TPAS: classificação, origem e desdobramentos MONOGRAFIA DE CONCLUSÃO DE CURSO Nome Completo: ANDREA DE OLIVEIRA ROCHA DA SILVA E-mail: andreadeoliveirarocha@gmail.com Conclusão: 1º SEMESTRE/2022 Curso: Formação em Psicanálise Clínica Unidade: Campinas (SP) Professores: André Figueira e Paulo Vieira Campinas (SP), 13/06/2022 Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 2 Dedicatória Dedico este trabalho aos que honestamente buscam o conhecimento e a verdade. Agradecimentos A Deus, eternamente. Aos meus pais, sempre. Ao meu esposo Fábio pelo incentivo e compreensão todos os dias. Ao meu irmão André Elias, que acredita em mim mais do que eu mesma. Aos meus mestres do IBPC, uma grande fonte de motivação e inspiração! http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 3 Citação “A psicanálise simplifica a vida. Nós atingimos uma nova síntese depois da análise. A psicanálise cria uma nova ordem para o labirinto onde estão perdidos certos impulsos, e tenta conduzi-los para o lugar ao qual pertencem. Ou, usando outra metáfora, ela é o fio que conduz o homem para fora do labirinto do seu próprio inconsciente.” (Frase de Sigmund Freud em entrevista a George Sylvester Viereck, intitulada “O valor da vida”, publicada no livro: “Glimpses of the Great”, 1930) http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 4 Introdução Neste trabalho, desenvolveremos uma reflexão sobre o Transtorno de Personalidade Antissocial, o TPAS. Esta abordagem é relevante, porque há grande dificuldade em identificá- la como todo transtorno de personalidade e, a partir do momento em que o TPAS se relaciona com o crime, precisamos aprofundar os estudos para repensarmos, inclusive, as questões de políticas públicas. Freud não se ocupou de estudar o crime, mas todos os seus esforços, apontaram também para esta direção. Fato relacionado a esta questão reside na ideia de que todos somos agressivos, e isso é uma característica inerente do ser humano, uma questão relacionada à sobrevivência, primeiramente. Temos como objetivo iniciar discussões acerca do TPAS e do sujeito criminoso que não recebe assistência adequada ao cumprimento da pena, vindo, mais tarde, a reincidir no crime. Buscamos possíveis alternativas para ressocialização, uma vez que cumprida a pena, estará novamente em meio à sociedade. Na primeira parte do trabalho, identificaremos o Transtorno de Personalidade Antissocial e as classificações relacionadas a ele. Na segunda parte, trataremos sobre as relações dos traços de personalidade com os transtornos de personalidade. Na terceira parte, abordaremos sobre as raízes dos transtornos de personalidade antissocial sob a ótica da Medicina e da Psicanálise, passando à quarta parte do trabalho à questão: O Transtorno de Personalidade Antissocial e o crime andam juntos? E encerramos com o título “O Transtorno de Personalidade Antissocial, a responsabilidade penal e o tratamento”, questão que nos moveu e norteou este trabalho. Para atingir esses objetivos, a metodologia empregada foi de levantamento bibliográfico http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 5 1. Os Transtornos de Personalidade e suas classificações No livro Personality pathology and personality disorders, o Dr. Skodol1 (2019, p. 711) registra que Transtornos de personalidade geralmente são padrões generalizados e persistentes de perceber, reagir e se relacionar que causam sofrimento significativo ou comprometimento funcional. Os transtornos de personalidade variam significativamente em suas manifestações, mas acredita-se que todos sejam causados por uma combinação de fatores genéticos e ambientais. Muitos tornam-se menos graves com a idade, mas certos traços podem persistir com alguma intensidade após os sintomas agudos que levaram ao diagnóstico de um transtorno diminuírem. O diagnóstico é clínico. O tratamento é feito com terapias psicossociais e, algumas vezes, terapia medicamentosa. Dentro do grande grupo dos Transtornos de Personalidade, encontramos outros três, nos quais há a divisão por semelhança nas características. São divididos em grupo A, B e C, nos quais: • Grupo A (parecem estranhos ou excêntricos): transtorno de personalidade paranoide (apresenta desconfiança e suspeita), transtorno de personalidade esquizoide (apresenta desinteresse em outras pessoas) e transtorno de personalidade esquizotípico (apresenta ideias e comportamentos excêntricos). 1 Andrew E. Skodol, MD, Professor da Universidade de Psiquiatria do Arizona, membro da Força Tarefa para o DSM-5 e Presidente de seu Grupo de Trabalho de Personalidade e Transtornos da Personalidade, dentre inúmeras competências e ações. http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 6 • Grupo B (parece dramático, emocional, errático): transtorno de personalidade antissocial (apresenta irresponsabilidade social, desrespeito pelos outros, manipulação para ganho próprio), transtorno de personalidade borderline (humor, comportamentos e relacionamentos instáveis); transtorno de personalidade histriônica (quer chamar a atenção para si), transtorno de personalidade narcisista (grandiosidade aparente e autoestima desregulada). • Grupo C (parece ansioso ou apreensivo): transtorno de personalidade esquivo (evita contato interpessoal), transtorno de personalidade dependente (submissão e necessidade de ser cuidado), transtorno de personalidade obsessiva-compulsiva (rigidez, perfeccionismo, obstinação). O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-5, traz a informação de que os transtornos de personalidade estão permeados por problemas com autoidentidade e problemas com o funcionamento das relações interpessoais. Ainda, apesar dessa divisão em grupos ser útil para o estudo, ela ainda não foi validada. Além disso, um único indivíduo pode apresentar, concomitante, outros transtornos de quaisquer grupos, além do predominante. 2. Relação entre os traços de personalidade e os Transtornos de Personalidade Telles (1999) diz que ao observarmos a classificação dos transtornos de personalidade, facilmente concluiremos que eles abrangem todas as modalidades do comportamento humano. Também é preciso que observemos que dentro dessa dimensão estão o normal e o patológico, ora o transtorno está para o extremo da normalidade, ora está para o patológico. Quando os traços de personalidade estão mal-adaptativos, rígidos, o comportamento do indivíduo com esse transtorno o leva ao fracasso em suas relações interpessoais. É fundamental que o paciente seja levado a entender que seus traços de personalidade é que carregam a raiz do problema. http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 7 Os traços da personalidade são inerentes ao ser-humano, eles representam padrões de pensamento, percepção, reação e relacionamento que permanecem relativamente estáveis ao longo do tempo (Zimmerman, 2021), são marcas que deixamos registradas, como somos conhecidos nos meios onde vivemos e convivemos. Entretanto, o sofrimento decorrente dos comportamentos socialmente mal-adaptativos, como no caso dos pacientes com transtorno de personalidade, são tão radicais que necessitam de apoio constante para mudar. Até que as consequências no meio social não tragam grandes perdas, o paciente não busca ajuda, lida com seus pensamentos e sentimentoscomo se fossem normais, notando seus déficits apenas com ajuda especializada. Devemos ainda frisar que o apoio familiar, além da terapia e atendimento médico só terão efeito se o paciente consente e aceita que precisa de ajuda, se ele nota que seu problema é interno e não externo. Evidentemente que não há como especificar um tempo para começar a ver resposta real no paciente. Dependendo da situação, o paciente pode aprender a forjar respostas de acordo com o socialmente aceito (manipuladores) e não estar realmente sendo tratados na raiz do problema. Mas são investimentos em terapia e acompanhamento médico para que os primeiros resultados possam ser vistos, além do esforço pessoal e familiar. 3. Raízes do Transtorno de Personalidade Antissocial – visões da Medicina e da Psicanálise Além das questões genéticas, nossas interações relacionais da infância cravarão nosso futuro. De acordo com o Manual Merck Sharp and Dohme - MSD, Tanto fatores genéticos como ambientais (por exemplo, abuso durante a infância) contribuem para o desenvolvimento do transtorno de http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 8 personalidade antissocial. Um mecanismo possível é agressividade impulsiva, relacionada com o funcionamento anormal do transportador de serotonina. Desprezo pela dor dos outros durante a primeira infância foi associada ao comportamento antissocial durante a adolescência tardia. O transtorno de personalidade antissocial é mais comum em parentes de 1º grau de pacientes com o transtorno do que na população em geral. O risco de desenvolver esse transtorno aumenta tanto em filhos adotivos como biológicos dos pais com o transtorno. E se transtorno de conduta acompanhado por déficit de atenção/hiperatividade se desenvolve antes dos 10 anos de idade, o risco de desenvolvimento do transtorno de personalidade antissocial durante a idade adulta é maior. O risco de transtorno de conduta evoluir para transtorno de personalidade antissocial pode ser maior quando os pais abusam ou negligenciam o filho ou são inconsistentes quanto à disciplina ou em estilo parental (por exemplo, alternar entre cordial e apoiador para insensível e crítico). Transtornos de personalidade não são doenças, mas sim anomalias do desenvolvimento psíquico. De acordo com Morana et al. (2006), existem estudos que apontam para a ausência de fatores de risco neuropsiquiátrico para o desenvolvimento transtorno de personalidade antissocial. No entanto, pesquisadores têm investigado se há ligação com complicações obstétricas, epilepsia e infeção cerebral; foram encontrados achados anormais nos exames eletroencefalográficos – EEG de indivíduos com TPAS, inclusive naqueles que cometem crimes. Há uma persistência de ondas cerebrais lentas nos lobos temporais. Esses indivíduos apresentam um sistema nervoso relativamente insensível a baixos níveis de estimulação, são aqueles que querem sempre mais e apresentaram hiperatividade na infância. http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 9 Ainda não encontraram genes específicos para os transtornos mentais, sejam quais forem; ou seja, os genes não podem ser considerados responsáveis pelos transtornos, mas pela predisposição, sim. Isto sabido, devemos considerar o ambiente vivido e sentido pelo indivíduo, bem como suas interações e relações estabelecidas. Interessante notar que comportamentos mais agressivos podem estar associados a níveis maiores de testosterona, e comportamentos mais sociáveis, a níveis mais elevados de serotonina. Talvez esteja aí, também, o porquê de maior incidência entre homens do que em mulheres. É necessário que nos atentemos para as relações primitivas, do seio familiar, pois elas influenciarão totalmente na formação da personalidade. Vejamos o que diz Morana et al. (2006): Quanto à interação que o indivíduo estabelece com o meio ambiente, uma importância especial tem sido dada aos relacionamentos primitivos, devido à sua influência na formação do núcleo de sua personalidade. Sabe-se que a negligência e os maus-tratos recebidos por uma criança em que o cérebro está sendo esculpido pela experiência, induz à uma anomalia da circuitaria cerebral, podendo conduzir à agressividade, hiperatividade, distúrbios de atenção, delinquência e abuso de drogas. Pelo olhar da Psicanálise, sabemos que tudo o que vem à tona emerge das profundezas do Inconsciente. Freud, não se ocupou de estudar o crime, mas sua teoria dá embasamento para a compreensão do TPAS, bem como serve de ferramenta para o estudo da Ciência chama Criminologia. Além do mais, a Psicanálise continuou pós-Freud e permanece favorecendo o conhecimento do indivíduo; nas palavras de Joel Zac (1977), ela (a Psicanálise) permitiu o conhecimento dos problemas da articulação das emoções, pelo estudo das fantasias inconscientes, dos mecanismos de defesa, do superego como representante interno dos fatores sociais. http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 10 Com o passar do tempo, a Psicanálise se aprofundou nos estudos da personalidade psicopática e Anna Freud teve peso nessa caminhada. Trabalhando com o psicanalista August Aichhorn, decidiu estudar e desenvolver suas ideias, que podem ser encontradas no livro “Juventude abandonada”, de 1925, onde ele aborda os problemas do vínculo emocional da criança com os pais, deficiências na socialização, no desenvolvimento do superego, culpa pela separação dos pais, desintegração da identificação com os pais devido à separação. Neste estudo, Aichhorn aponta também a transferência da situação infantil para a comunidade e da realidade do pensamento para a ação. Phyllis Greenacre aponta o caráter destoante da consciência desse indivíduo e diz que a origem dos defeitos está numa penetrante infiltração de produtos desfavoráveis do narcisismo, que deforma o sentido de realidade e enfraquece a consciência. Betty Joseph (1973), ressalta a caracterização desse indivíduo em três aspectos: incapacidade de tolerar frustração e ansiedade, uma relação objetal dominada por sentimentos persecutórios e uma peculiar utilização de mecanismos de defesa, baseados na onipotência, na dissociação e na identificação projetiva e introjetiva. Para León Grinberg, os impulsivos manejam a culpa por meio da ação, não o conseguem no plano mental. Procuram satisfazer imediatamente seus desejos e não suportam frustração e espera; são irresponsáveis e não possuem sentimento ético, podem ser cruéis e inescrupulosos. Por conta de uma labilidade do ego, seus impulsos são irresistíveis, mas são sintônicos com o ego. O significado latente da atuação psicopática implica uma tentativa de negar uma culpa, insuportável porque é não elaborada e de natureza persecutória, fazendo recair sobre os outros; Liberman diz que esse indivíduo não consegue pensar independentemente da ação, ele passa da percepção à ação quase que sem transição, e a linguagem verbal só é utilizada para manipular as pessoas. Também diz que tem alterado o processo da formação de símbolos. De acordo com Zac (1964), existem fatores que são fundamentais no estabelecimento da conduta do indivíduo psicopático: http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 11 Experiências traumáticas no nascimento e na lactância, associadas a particularidades características do grupo familiar, o que perturba o processo de maturação e integração do ego, que, mutilado, não pode se desenvolver adequadamente, incapaz de discriminar os objetos e unificá-los. À perturbação da identidade e à regressão a níveis primitivosda personalidade (posição esquizoparanóide), acrescentam-se ainda, defesas características centralizadas na identificação massiva com o objeto idealizado onipotente (introjetado) e na projeção de uma parte do ego e da culpa sobre um parceiro simbiótico, capaz de aturar estes aspectos não admitidos. Zac também destaca a situação confusional, que diz respeito a não- diferenciação entre o mundo externo e interno e de um déficit na estruturação do ego. Outro estudioso, o argentino José Bleger (1977), descreve algumas características da psicopatia como: Desenvolvimento deficiente da área mente, indiferenciação corpo-mundo, a falta de insight, a multiplicidade e alternância dos depositários das partes primitivas e fragmentadas da personalidade ou núcleo aglutinado (projetadas nos depositários), a limitação do sentido de realidade e a falta de introjeções. Relação simbiótica. Em um simpósio na Argentina, em 1964, sobre “Mania e Psicopatia”, também trouxeram à luz dos estudos os mecanismos de identificação projetiva, comunicação, simbolização e personificação. Houve grande colaboração do meio psicanalítico para a compreensão do que hoje vemos a respeito dos transtornos de personalidade, especificamente aqueles em que os acometidos estão radicalmente envolvidos e comprometidos em suas vidas. Envolvido nessa leitura psicanalítica, David Liberman considera três pontos centrais: relações da psicopatia com o princípio do prazer, utilização http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 12 das pessoas como depositárias e a estrutura caracterológica governada pelos instintos. Ele também ressalta as perturbações da comunicação com estados de tédio, fracassos na posição depressiva, perda da capacidade de usar o pensamento verbal como ação de ensaio, tentativas do ego para se livrar dos efeitos da impaciência e do desespero, por meio da identificação projetiva e do controle onipotente do depositário, captando seu ideal do ego. Ele ainda fala a respeito da alteração da formação de símbolos e sobre a polarização conativa da comunicação, momento no qual o psicopata se apodera da vontade do interlocutor. Finalizando, Guillermo Ferschtut e Reggy Serebriany apontam que o psicopata recorre ao pseudo-símbolo, ou seja, um produto do processo primário – equação simbólica, com aparência de processo secundário – símbolo. As contribuições desse simpósio para a Psiquiatria, Psicanálise e Psicologia foram de inestimável valor para o arcabouço dos transtornos de personalidade, em especial. 4. O Transtorno de Personalidade Antissocial e o crime andam juntos? Poderíamos dizer que o psicopata é aquela pessoa que sabe a letra da música, mas não sente a melodia. (Dra. Ana Beatriz Barbosa Silva) De acordo com o DSM-5 (2014, p. 645), o transtorno de personalidade antissocial, enquadrado no Grupo B dos transtornos de personalidade, é um padrão de desrespeito e violação dos direitos dos outros. Também é conhecido como psicopatia, sociopatia e transtorno da personalidade dissocial. Pessoas com este transtorno não conseguem se ajustar às regras sociais, principalmente quando diz respeito ao comportamento legal. Podem http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 13 cometer atos ilícitos passíveis de detenção, estando presos ou em liberdade e jamais sentem qualquer tipo de remorso ou culpa. Características bem acentuadas são o desrespeito total ao outro, não importando quem o seja; são enganadores, manipuladores, mentirosos, trapaceiros, maldosos, impulsivos, intolerantes à frustração, agressivos, irresponsáveis. Também podem abusar do uso de substâncias ilícitas ou fármacos, abuso de álcool, podem apresentar comportamento sexual exacerbado; são cínicos, insensíveis, arrogantes. Ainda que a mídia reforce negativamente acerca de muitos transtornos, relacionando-os ao crime, vamos ressaltar que nem todo indivíduo com transtorno de personalidade é um criminoso. Muitos deles seguem algum tipo de tratamento terapêutico regular, tratamento médico, com a intenção de modificar comportamentos indesejáveis. Alguns obtém êxito, geralmente aqueles em que a família e seu círculo mais próximo se esforçam para o bem do indivíduo com transtorno. Diante do breve exposto baseado na literatura médica, vamos confrontar o que sabemos até o momento com a forma com a qual o Direito vê o transtorno de personalidade antissocial, a conhecida psicopatia e se esses indivíduos podem ou não serem julgados a partir do crime. Reiteramos, nem todo indivíduo com o transtorno de personalidade antissocial torna-se um criminoso. Apenas aqueles em que o TPAS se apresenta num grau moderado a grave é que a ilicitude irrompe, como no caso de muitos psicopatas e sociopatas. Em uma edição da Revista Superinteressante, de 2011, vemos que. a prevalência de psicopatas nas cadeias é de 20%; 50% dos crimes graves são de responsabilidade destes 20%; ainda relata que um psicopata comete mais crimes violentos do que o criminoso comum e a probabilidade de ele matar um estranho é de sete vezes mais chances do que outros criminosos. De acordo com Silva (2018), em relação à quantidade de atos criminosos violentos e agressivos cometidos dentro e fora das prisões por psicopatas, é superado em mais de duas vezes o número dos demais criminosos. http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 14 4.1 O Transtorno de Personalidade Antissocial, a responsabilidade penal e o tratamento Para entendermos um pouco melhor a respeito do TPAS e sua relação com a agressividade que leva ao crime, vamos caminhar rapidamente por três teorias que se destacam na explicação sobre a violência e criminalidade e que são aceitas atualmente quando o assunto se trata dessa esfera polêmica da sociedade. Para Casoy (2001, p.10), quando o assunto se relaciona a crimes hediondos, ela aponta três escolas para explicar a violência cometida por esses indivíduos: A teoria freudiana acredita que a agressão nasce dos conflitos internos do indivíduo. A Escola Clássica baseia-se na ideia que pessoas cometem certos atos ou crimes utilizando-se de seu livre-arbítrio, ou seja, tomando uma decisão consciente com base de uma análise de custo- benefício. Em outras palavras, se a recompensa é maior que o risco, vale a pena corrê-lo. Se a punição for extrema, não haverá crimes. A Escola Positivista acredita que os indivíduos não têm controle sobre suas ações; elas são determinadas por fatores além de seu controle, como fatores genéticos, classe social, meio ambiente e influência de semelhantes. Não seria a punição que diminuiria a criminalidade, e sim reformas sociais e tratamentos para recuperar o indivíduo. Para Freud, em seu texto Mal-estar na civilização, de 1929, ele diz que o homem possui uma agressividade inata, e que ela é o fator preponderante de ameaça à vida em sociedade (Freud não se ocupou de estudar sobre o crime, como já dissemos). Desde o início de seus trabalhos, Freud identifica as tendências hostis como fazendo parte do tratamento analítico, inevitavelmente http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 15 elas vêm à tona no setting e são trabalhadas com profundidade, mesmo porquê, a intenção da Psicanálise, sempre, estará a serviço do profundo autoconhecimento. Pois bem, nos ocupemos dos seguintes modelos de psicopatia (e que modelos!): Ted Bundy2, Charles Manson, Franciso de Assis Pereira, Thiago Rocha, dentre muitos outros, de diversas nacionalidades. Após relembrarmos um pouco dos feitos criminosos desses indivíduos, precisamos ser levadosa uma séria reflexão: Esses quatro homens foram presos, todos condenados. Um deles encerrou sua pena na cadeira elétrica, outro morreu de causas naturais, Francisco e Thiago permanecem presos. Mas a questão é: a que tipo de tratamento especializado foram ou estão submetidos, em se tratando da questão pertinente à Saúde Mental? A condição das vidas perdidas e a dor das famílias é irreversível, mas a Justiça cobra desses indivíduos pelo crime cometido. No entanto, um criminoso envolto com o TPAS tem tratamento? A prisão, que seja de segurança máxima, apresenta as condições para o tratamento de um indivíduo criminoso com tal gravidade? Algo nos parece muito claro: nosso país ainda não contempla políticas públicas voltadas ao cuidado dos indivíduos que cometem crimes, portadores de transtornos de personalidade (assim como de outros transtornos, comorbidades). Enquanto isso, nossa sociedade sofre por todos os lados: alta criminalidade, medo, violência em todos os âmbitos, doenças físicas, mentais. E 2 De acordo com a Wikipedia, Teodore Robert Bundy foi um assassino em série americano que sequestrou, estuprou e matou várias mulheres jovens na década de 1970 ou antes. Após quase uma década de negação, antes de sua execução em 1989, ele confessou trinta homicídios em sete estados de 1974 a 1978. O real número de vítimas, contudo, pode ser bem maior. Charles Milles Maddox foi um criminoso estadunidense. Em meados de 1967, ele formou e liderou o que ficou conhecido como "Família Manson", uma seita que atuava na Califórnia. Seus seguidores cometeram uma série de nove assassinatos em quatro locais em julho e agosto de 1969. Francisco de Assis Pereira, também conhecido pelo pseudônimo Maníaco do Parque, é um assassino em série brasileiro. Francisco estuprou e matou, ao menos, sete mulheres, e tentou assassinar outras nove, em 1998, mas ele confessou 11 assassinatos, sendo condenado por crimes de estupro, estelionato, atentado violento ao pudor e homicídio. Tiago Henrique Gomes da Rocha, o Maníaco de Goiânia é um assassino em série brasileiro que, ao ser preso, confessou ter assassinado 39 pessoas, a maioria mulheres, entre os anos de 2011 e 2014, na cidade de Goiânia, Goiás. Das mulheres, duas seriam garotas de programa. Entre os homens, alguns seriam moradores de rua e homossexuais. A partir do final de 2013 passou a matar apenas mulheres, a maioria jovens, escolhidas aleatoriamente e pilotando uma motocicleta. Tiago também praticou alguns assaltos. http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 16 o Sistema se revela aquém de nossas necessidades básicas, diante das mazelas sociais. De acordo com o Psiquiatra Cláudio Cohen (2010, p. 22) O crime em si não é um problema psiquiátrico, e sim, social. Seu conceito pode mudar, dependendo da cultura ou situação. Matar alguém é crime em nossa sociedade, mas não em caso de legítima defesa. Matar em uma guerra, não é crime. Então matar alguém não é crime per si. O nosso Código Penal vem do direito romano, que há dois mil anos já considerava alguns criminosos doentes, mas estes deveriam ser responsabilizados por seus atos. A psiquiatria se agregou à questão no século 19, buscando entender os diversos tipos de crime e se aqueles que o praticam deveriam entrar em medida de segurança. No Brasil, o Código Penal de 1984 determinou que só eram perigosos os doentes mentais, porque apenas eles estavam sujeitos a medidas de segurança e à periculosidade. Essa medida, que é inconstitucional, estigmatizou o grupo que tem transtornos mentais ou de personalidade. O que ocorre no Brasil é que muitos doentes mentais e portadores de transtornos que são criminosos, são reconhecidos como inimputáveis3 ou semi- imputáveis4 pelo sistema penal; caso o indivíduo seja caracterizado como inimputável, ele não será condenado, apenas será recomendado à medida de segurança5, ou seja, o criminoso não pagará pelo crime na mesma proporcionalidade de sua atrocidade, mesmo sabendo que o psicopata é consciente de seus atos, ele será inocentado devido ao seu transtorno, sendo 3 O agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato. 4 É a perda parcial da compreensão da conduta ilícita e da capacidade de autodeterminação ou discernimento sobre os atos ilícitos praticados. 5 A medida de segurança é o tratamento a que deve ser submetido o autor de crime com o fim de curá-lo ou, no caso de tratar-se de portador de doença mental incurável, de torná-lo apto a conviver em sociedade sem voltar a delinquir (cometer crimes). (...) não podem ser considerados responsáveis pelos seus atos e, portanto, devem ser tratados e não punidos. http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 17 submetido a tratamento. No caso de ser tomado como semi-imputável, responderá pelo crime com pena reduzida, ou por medida de segurança em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. Se não houver um hospital de custódia, o indivíduo deve ser colocado em algum estabelecimento adequado. E existe este estabelecimento adequado? Ora, será desnecessário tecer comentários acerca das políticas públicas inexistentes neste caso, no entanto, é urgente que a Saúde, o Direito e a Sociedade se debrucem sobre este assunto tão crítico, difícil, para acharem saídas mais coerentes e assertivas para todos. No Canadá, existem prisões especiais para criminosos portadores de transtornos sendo, dessa forma, melhor resolvida a questão da criminalidade, colocando cada questão em seu devido lugar: à área da Saúde, cabe o transtorno e comorbidades; à Justiça, o crime, a periculosidade. Com tratamento devido, é evidente que a reincidência é enfraquecida. Encarcerar o psicopata numa prisão comum só prejudicará aos demais presos (se é que há reabilitação). Colocá-lo num hospital psiquiátrico com outros indivíduos que apresentam transtornos, mas não são criminosos, causaria um grande problema. O mais próximo do que poderíamos chamar de ideal seria que o criminoso fosse julgado como semi-imputável, sendo recluso em prisões especiais. Com uma equipe multidisciplinar assistindo ao indivíduo, seria possível acompanhar sua caminhada e evolução no cumprimento de sua pena e seu tratamento psiquiátrico. Evidentemente que em algum momento surgirá algum desses e seguirá todas as regras com louvor dentro das instituições, afinal, ele sabe como deve se portar exemplarmente. Entretanto, se faz importante ressaltar que o indivíduo criminoso pode sim estar manipulando os profissionais que o assistem e, com isso, ganhando sua liberdade antes da hora. Aprisionando e condenando inocentes. De acordo com alguns psiquiatras forenses, já surgiram boas iniciativas por parte do governo em vários momentos da história, mas não há continuidade do trabalho. É imperativo que que devemos colocar em discussão as consequências sociais da inimputabilidade ou semi-imputabilidade e como são tratados os casos aqui no Brasil e nos demais países. http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 18 No Canadá, a periculosidade não está associada apenas a doença mental, ao transtorno; neste país, este conceito foi substituído pelo conceito de risco de reincidência. Infelizmente, no Brasil, a Lei diz que a periculosidade está ligada à doença mental ou transtorno. Para Cohen (2010), De acordo com a filosofia do Código Penal Brasileiro, pena não é somente condenação e deveria funcionar como tratamento. Nosso sistema penal só oferece reclusão. Em relação à inimputabilidade ou semi-imputabilidade, o Código Penal é específico e antecede ao crime.Ele prevê a avaliação se, no momento do crime, o indivíduo era capaz ou não de entender o ato que cometeu. Em um segundo momento, aparece a penalização, que é a responsabilização pelo ato praticado. (...) A questão que gera conflito é se o tratamento será da doença ou da periculosidade. O psiquiatra tratará da doença. A periculosidade não tem como ser tratada por ele. Qualquer manual de saúde não classifica periculosidade como um transtorno, uma doença ou síndrome. Uma pessoa pode apresentar um transtorno de personalidade, mas não quer dizer que seja perigosa. A boa notícia é que compulsividade, agressividade, transtornos de personalidade são características psicopatológicas tratáveis (não curáveis). Algum dia aquele recluso voltará ao convívio social, então as condições para manter o equilíbrio e remir os sintomas deverá ser trabalhado. Caso não aconteça, certamente as características que despersonalizam o indivíduo aflorarão e então ele cairá em reincidência criminal. Os juristas deveriam estar reunidos com profissionais da Saúde Mental para melhor escreverem as Leis para casos que demandam questões da área. http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 19 Conclusão Ao pensarmos no Transtorno de Personalidade Antissocial, o TPAS, pudemos visitar alguns manuais que auxiliam a Medicina, trazendo à luz um pouco sobre os Transtornos de Personalidade e suas classificações. Na sequência, vimos a relação que existe entre os traços de personalidade e os Transtornos de Personalidade. Sob a ótica da Medicina e da Psicanálise, pudemos encontrar onde estão as raízes do TPAS, explicações, nos levando a compreender, pelo menos teoricamente, a dinâmica deste transtorno. Reafirmando, o TPAS não faz do indivíduo um criminoso ou alguém de alta periculosidade, no entanto, vimos que casos graves do transtorno podem levar a pessoa a uma vida de fora-da-lei. Afinal, o sujeito do crime comete sua ação, é preso, paga sua dívida para com a Justiça (mas não para com a vítima e nem para com familiares e amigos) e volta a reincidir? Ou há tratamento eficaz para que não mais caia nas teias do crime? A infeliz conclusão é a de que ainda não alcançamos realidades efetivas, como no caso de países como o Canadá, onde o sujeito é recluso, mas avaliado e tratado por uma equipe multidisciplinar, composta de juiz, advogado, psicólogo ou psicanalista, assistente social e psiquiatra forense, levando à diminuição da criminalidade no país. Creio que nossos governantes saibam da necessidade de instituições com profissionais gabaritados para este fim, mas ainda não pudemos experimentar dessa realidade tão desejada por nós, uma sociedade à margem dos seus direitos. http://psicanaliseclinica.com/ Monografia de Conclusão do Curso de Formação em Psicanálise - psicanaliseclinica.com - pág. 20 Referências bibliográficas ARANHA, M., RAMOS, B. M., MORANA, H., COHEN, C. Psiquiatras avaliam o atendimento aos pacientes infratores. Revista ser médico (CREMESP). Edição 53 - Out/Nov/Dez de 2010. BITTENCOURT, M. I. G. F. Conceito de Psicopatia: elementos para uma definição (capítulo p. 20-34) [On-line]. Tese de Mestrado. Rio de Janeiro: PUC/RJ, 1980. CASOY, I. Serial Killer: louco ou cruel? São Paulo: Madras, 2002. 302 p. FREUD, S. O mal-estar na civilização, in Religião e Sociedade. [On- line], 1990, pp. 120-127. MORANA, H. C. P., STONE, M. H., ABDALLA-FILHO, E. Transtornos de personalidade, psicopatia e serial killers. [On-line] Rev. Bras. Psiquiatria, 2006; 28 (Supl II), p. 74-79. MSD MANUALS. Transtornos de personalidade antissocial [On-line]. <https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/transtornos- psiqui%C3%A1tricos/transtornos-de-personalidade/transtorno-de-personalidade- antissocial-tpas#>, Acesso em jan 2022. PEBMED. Conheça o transtorno de personalidade antissocial, sociopatia e a psicopatia. 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