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HUMANIZAÇÃO EM SERVIÇOS DE SAÚDE AULA 3 Profª Tânia Maria Santos Pires 2 CONVERSA INICIAL A Política Nacional de Humanização destaca o acolhimento como a sua principal estratégia na prática. De fato, não há como se ter um atendimento humanizado sem que a pessoa se sinta acolhida, cuidada com atenção. Porém já ouvi de muita gente que o bom atendimento depende de cada profissional de saúde, de sua educação original, de sua forma pessoal de se relacionar com os outros. Sem dúvida, o componente pessoal é muito relevante nessa questão. Porém, para a implementação de uma política, há que se padronizar processos e, para tanto, não há como depender de algo muito pessoal. Há que se promover reflexões que motivem transformações pessoais, mas também há que se estabelecer processos claros, bem definidos, que induzam a novas práticas, pautadas na qualidade, para a melhoria dos serviços como um todo. Nesse sentido, uma política nacional precisa ser bastante efetiva, ainda que sem desconsiderar o componente individual, que é de fato promotor das mudanças necessárias. O acolhimento é quesito de qualidade. Apesar de sua grande conexão emocional, o acolhimento é uma tecnologia em saúde que precisa ser aplicada em todos os serviços, com padronização, sendo assim transversa em todos os serviços. É o pilar mais importante da política de humanização. TEMA 1 – O ACOLHIMENTO NA SUA ORIGEM: O CURADOR FERIDO. Uma história muito bonita da mitologia grega é o sobre o centauro Quíron. Esse centauro foi abandonado por sua mãe, que o rejeitou devido à sua aparência, e foi acolhido e criado pelo deus Apolo. Seu pai adotivo o ensina sobre muitas artes, porém acima de tudo sobre a arte de curar. Quíron torna-se um grande professor; entre seus alunos, está Asclépio (ou Esculápio), a quem ensina tudo sobre cura. Mais tarde, Asclépio será considerado o deus da medicina e da cura. Certa vez, durante um confronto, Quíron é ferido mortalmente por uma flecha envenenada que o atinge na coxa. Por ser um semideus, Quíron não morre, mas passa a sentir dores intensas. Em muitos momentos, devido às cruciantes dores que sente, Quíron deseja poder morrer, mas Zeus não permite, instruindo-o a transformar essa dor em conhecimento e sabedoria – assim, poderia ser um curador melhor, por compreender melhor o sofrimento humano. 3 Quíron aceita e entende a mensagem de Zeus. Depois de muito padecer, Hércules, que era seu amigo, suplica a Zeus que troque a vida de Quíron pela vida de Prometeu, que estava preso e era torturado por ter entregue o fogo aos homens. Zeus aceita a troca e Quíron pode morrer, e assim seu sofrimento chega no fim. Zeus o homenageia por sua dedicação e bondade, transformando- o em estrelas que brilham no firmamento na constelação de Sagitário (Lourenço, 2014). Essa lenda, descrita em A Ilíada, poema épico de Homero, traz reflexões muito significativas sobre aqueles que “exercem a arte de curar”: ninguém será um bom curador sem que saiba o que é sentir dor. O curador precisa ser ferido em vários momentos para entender o que sente o outro, e para ser solidário e exercer compaixão. É preciso sentir, acima de tudo. O conhecimento começa com o sentir. TEMA 2 – A CONSTRUÇÃO DA ATITUDE ACOLHEDORA A formação dos profissionais da saúde, extremamente focada no biológico, limitou a compreensão integral do sofrimento humano. É importante refletir no que significa adoecer. A filosofia e outras ciências mostram que a diferenciação humana dentre as diversas espécies que habitam o planeta está no fato de que somos a única espécie que tem consciência de sua finitude. O homem sabe que vai morrer e teme a morte; por esse motivo, adoecer é sempre assustador. Nos primórdios da medicina hipocrática, o doente foi associado ao termo sofrimento. Daí a origem do termo paciente, para designar aquele que sofria. Apesar de esse termo ter sido muito questionado nas reformas que aconteceram nos sistemas de saúde, ele revela a natureza daquele que adoece, e que busca ajuda no sistema de saúde. O termo original do grego, mais tarde adaptado para o latim, era patior. O radical pat significa sofrer, e aparece em palavras como pation (paixão) patiente (paciente). Associado a prefixos de origem igualmente latinas, formaram-se palavras que usamos atualmente, como compaixão (sofrer com o outro) e simpatia (ser solidário com o sofrimento). Aquele que sofre precisa de alguém que sofra com ele, que seja solidário ao seu sofrimento, que se coloque no seu lugar e assim possa tratá-lo com respeito e solidariedade. Para viabilizar uma mudança de atitude, há a necessidade de mudar-se o modelo mental construído com relação ao problema. O psiquiatra suíço Carl 4 Jung afirmava em suas teorias que o ser humano tem quatro funções psíquicas que modelam nossa interação com a vida: sensação, emoção, pensamento e intuição. Isso explicaria as nossas incoerências no agir, porque podemos compreender racionalmente um fato, mas a nossa emoção pode determinar uma outra ação aparentemente incoerente a partir daquilo que fora compreendido (Magalhães, 2018). A integração dessas dimensões psíquicas está na base do nosso modelo mental, que segue a sequência do “pensar, sentir e agir”. Pessoalmente, acho que, na verdade, o “sentir” deveria ocupar o primeiro lugar na sequência, porque, mesmo de forma inconsciente, o sentimento se manifesta primeiramente na nossa relação com o mundo. Antes de elaborarmos o pensamento, o sentimento já está lá, desencadeando a intuição e as sensações que temos. Quando nos colocamos no lugar do outro que está doente, ou dos outros que compartilham o sofrimento, como acontece com familiares, percebemos a sua dor e isso pode mudar o nosso pensamento e, em consequência, a nossa atitude. TEMA 3 – O ACOLHIMENTO NA PRÁTICA DOS SERVIÇOS DE SAÚDE Há uma certa confusão na interpretação do que é o acolhimento na prática. O acolhimento pode ser definido como “uma prática presente em todas as relações de cuidado, nos encontros reais entre trabalhadores de saúde e usuários, nos atos de receber e escutar as pessoas, podendo acontecer de formas variadas” (Brasil, 2013). O acolhimento é diferente da antiga triagem, embora possa ser executado através da metodologia de classificação de risco. Não pode ser entendido pelas equipes apenas como uma seleção para determinar quem será atendido primeiro, ou quem será ou não atendido. Ele deve ser compreendido como uma oportunidade de escuta das necessidades dos pacientes, de oferta de orientações sobre os procedimentos que acontecerão naquele serviço e de explicações sobre rotinas e protocolos, dentro de uma visão de solidariedade e com a intenção deliberada de ajudar a aliviar a ansiedade de quem procura um ponto de atendimento da rede de atenção. As mensagens que passamos através das nossas atitudes são mais fortes do que as nossas palavras. O ser humano é muito sensível ao que chamamos de “mensagem não verbal”, que sabidamente corresponde a 75% de toda a nossa comunicação. Nesse sentido, o nosso olhar direcionado ou não ao 5 paciente, nosso tom de voz, movimentos suaves ou bruscos, são fortes indicadores da nossa disposição ou não de acolher as pessoas. Da mesma forma, a organização do espaço mostra se naquele local há acolhimento ou não. Os ambientes de saúde costumam ser frios, brancos, técnicos, com odores característicos, além dos ruídos que costumam se ouvir. Investir em melhoria do ambiente, melhorando o espaço de circulação, com cores nas paredes, iluminação adequada, controle de ruídos e, principalmente, boa sinalização indicativa, tranquiliza as pessoas. A sala de espera deve ter um número suficiente de cadeiras, e uma forma bem definida de chamamento do paciente, para que ele não fique angustiado ou preocupado se poderáperder o seu atendimento. A todo esse conjunto chamamos de “ambiência”. TEMA 4 – O ACOLHIMENTO AO PACIENTE CRÔNICO Os sistemas de saúde se organizam de acordo com diferentes demandas. O nosso país passou por uma mudança na sua demanda de atenção. Até a década de 1970, éramos um país de gente jovem, com predominância de doenças transmissíveis e verminoses. As condições agudas eram, de modo geral, mais prevalentes. As condições sanitárias melhoraram e o investimento na ampliação ao acesso a serviços de saúde fez aumentar a expectativa de vida. Nesse contexto, as doenças crônicas, sobretudo aquelas relacionadas ao envelhecimento, se manifestam com maior intensidade. Tal paciente demanda uma organização mais consistente e pró ativa do sistema de saúde, sobretudo no nível de atenção que melhor atende pacientes, ou seja, a atenção primária. O paciente portador de uma condição crônica deverá ser atendido pela equipe de saúde por bastante tempo. A formação de vínculos com a equipe é um fator que influencia à adesão ao tratamento. Neste aspecto, a estratégia Saúde da Família demonstra ser um fator muito importante no manejo desse tipo de paciente. As equipes acompanham e conhecem os pacientes e suas famílias, devolvem comunicação efetiva através de linguagem simples e os acolhem de maneira humanizada e contínua. Lembramos aqui que a ideia de condição crônica nem sempre se refere a doenças crônicas, mas a todas as situações prolongadas que requeiram cuidados, como é o caso da gestação, do acompanhamento dos bebês até 2 6 anos (puericultura) e dos idosos (senicultura). Doenças crônicas prevalentes, como diabetes, hipertensão, doenças mentais, e até mesmo condições transmissíveis como HIV e canceres, são também colocadas nesse rol por apresentarem longa duração. Essas condições devem ser continuamente acolhidas pelas equipes de saúde, que prestarão cuidados longitudinais e humanizados, inclusive com apoio às famílias, considerando todos os determinantes sociais envolvidos. Além do atendimento simpático e atencioso, a humanização no acolhimento ao paciente crônico deve demonstrar-se através do planejamento das ações de saúde, na busca ativa dos faltosos, no suporte ao autocuidado apoiado e em demais ações que buscam a estabilização da doença e o desenvolvimento da autonomia dos pacientes. TEMA 5 – O ACOLHIMENTO DO PACIENTE AGUDO O paciente agudo é aquele que se apresenta dentro de uma situação de agravo súbito, que requer resposta rápida, algumas vezes até imediata, do sistema de saúde. Esse atendimento requer uma rede específica de atenção; por esse motivo, o Ministério da Saúde criou a RUE (Rede de Urgência e Emergência). Essa rede é composta por SAMU, UPAS, Prontos Socorros de hospitais como pontos centrais e demais pontos da rede servindo de apoio. No que se refere à humanização, é importante ressaltar o contexto comum às situações de urgência e emergência. Geralmente, as famílias que vivem esse momento estão gravemente angustiadas, necessitando de respostas que lhes aliviem a dúvida sobre a possiblidade de sobrevivência dos seus familiares. Por outro lado, a equipe de saúde precisa ter calma e autocontrole para prestar cuidados necessários de forma rápida; afinal, dependendo do diagnóstico a ser manejado, cada segundo pode ser vital. Esse conjunto de ansiedades é geralmente produtor de conflitos, sobretudo por parte da família, que fica sem respostas por algum tempo, e por parte da equipe de saúde – extremamente focada na sua tarefa, pode esquecer de se comunicar com a família no tempo certo. É fundamental que a equipe tenha pessoas treinadas para uma comunicação efetiva com os familiares daqueles que estão sendo atendidos pelos emergencistas. Essa comunicação deve tratar dos pontos essenciais de risco – não necessariamente de diagnóstico, mas da situação de maior gravidade 7 que está envolvida. Não se deve exagerar, nem amenizar a situação, mas apenas esclarecer se a pessoa corre risco ou não. Às vezes, basta apenas dizer que a equipe está atendendo aquela pessoa de forma empenhada, e que fará todo o possível para ajudá-la, e isso já é suficiente para dar conforto e confiança à família. A ansiedade maior da família não é a respeito da morte, porque todos sabem que nem sempre se consegue sucesso na manutenção da vida. Busca- se a segurança de que todo o possível está sendo feito e de que aquela pessoa não está sendo negligenciada em nenhum aspecto. Para que isso se mostre de forma clara, sempre deve haver alguém escalado para prestar informações aos familiares, com linguagem solidária, respeitosa e simples. Essa pessoa deve ter equilíbrio emocional suficiente para não perder a calma, entendendo que aqueles que estão sofrendo podem estar momentaneamente desequilibrados, e assim sem completa lucidez. Sempre é importante saber quem daquela família está em melhor condições emocionais para conversar e entender os processos. Nos casos de pacientes internados em UTI, a sensibilidade da equipe é ainda mais necessária, se consideramos as pressões dos familiares e seus sofrimentos. Importante lembrar que todos nós um dia passaremos por maus momentos; assim, se formos solidários teremos respaldo para quando chegar a nossa vez. NA PRÁTICA A cirurgia estava marcada para as 7h da manhã e às 6:30 a paciente foi levada ao centro cirúrgico. Quando a aluna do curso de medicina chegou para checar se a paciente do professor já havia sido trazida, viu uma senhora de aproximadamente 50 anos, de olhar ansioso e mãos geladas, deitada na maca, já aparamentada com a roupa para a cirurgia, com touca, e coberta com um lençol. A aluna então se aproximou e fez a verificação do nome, do diagnóstico cirúrgico e do estado de consciência, além de queixas gerais e demais protocolos. Ao final do diálogo técnico, a aluna perguntou: – A senhora está bem? Suas mãos estão muito geladas (o ar condicionado estava muito gelado). – Sim estou bem, só um pouquinho nervosa. 8 – Não precisa ficar com medo. Tudo vai correr bem. O Dr. Guilherme é um ótimo cirurgião e muito experiente. Eu gosto muito dele. – Você é enfermeira? – Não. Sou estudante de medicina. Vou entrar na sua cirurgia. Vou fazer a instrumentalização. – Que bom (disse ela sorrindo). Você é tão novinha, quantos anos você tem? – Tenho 20 anos. Estou no terceiro ano do curso. Quero que a senhora fique tranquila porque tudo vai dar certo. Além de tudo, confie em Deus. Ele vai nos guiar. Ela me olhou com olhos marejados e pediu: – Você reza comigo? – Sim claro. E assim, elas rezaram brevemente. A aluna primeiramente orou pedindo por ela e pela cirurgia, e depois, juntas rezaram o pai nosso. Três dias depois, o professor chamou a aluna, dizendo que deveria ir na ala de particulares do hospital, porque alguém queria falar com ela. Sem entender direito do que se tratava, ela atendeu à ordem do professor. Quando entrou no quarto, lá estava aquela senhora, que a recebeu emocionada, dizendo a todos que ali estavam que a aluna havia sido “tudo” para ela naquele momento, e que jamais iria se esquecer dela. A aluna entendeu, ali, que muito mais do que a técnica que se emprega, é preciso olhar nos olhos, segurar as mãos e dar esperanças, pois isso faz muito bem às pessoas e é também um instrumento de cura. FINALIZANDO Todos os seres humanos sofrem e todos vamos um dia passar pela angústia da dor e da doença e também pela morte. Os profissionais de saúde lidam com essa realidade todos os dias, e justamente por fazer parte do cotidiano, essas situações incorporam-se à sua rotina e podem passar desapercebidas, o que transmite uma mensagem negativa às famílias, de que o sofrimento que sentem é de pouca importância. O ato de acolher os pacientes, ato solidário e humano, é também uma tecnologia em saúde, e deve ser empregadaquando necessária. Assim, entendemos que há tecnologias diferentes para o manejo do paciente crônico, 9 de um lado, que transita pela rede com suas diversas necessidades, mas que está ancorado na atenção primária; daquele que tem uma necessidade aguda, do outro, e que é atendido na rede de urgências e emergências. Para cada um deles, há uma diferente forma de abordagem, ainda que todas sejam embasadas na humanização. Os profissionais de saúde são aqueles que levam a cura ou o alívio aos outros; por isso, não podemos esquecer a mensagem da lenda do centauro Quíron. O conhecimento, por maior que seja, não constrói solidariedade: apenas a dor o faz. Por isso, os melhores curadores são aqueles que um dia estiveram feridos. A partir de sua dor, sentem simpatia e compaixão por quem sofre, por aqueles que chegam a nós e tornam-se nossos pacientes. 10 REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Atenção Básica. “Acolhimento à demanda espontânea”. Cadernos de Atenção Básica, Brasília, n .28, v. 1, 2013. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 2010. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar. Série C. Projetos, Brasília, n. 20, 2001. LOURENÇO F. A Ilíada de Homero adaptada para os jovens. Lisboa: Cotovia, 2014. MAGALHÃES I. Educação transcomportamental: gestão das emoções para comportamentos inteligentes. Fortaleza: Ludis, 2018. MCWHINNEY, I. R.; FREEMAN, T. Manual de Medicina de Família e Comunidade. Porto Alegre: Artmed, 2010. MENDES, E. V. A construção social da atenção primária à saúde. Brasília: CONASS, 2015.
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