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Andréa Máris Campos Guerra A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA BORROMEANA: criação e suplência IP/UFRJ Abril de 2007 Andréa Máris Campos Guerra A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA BORROMEANA: criação e suplência Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica. Área de concentração: Psicanálise Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo Rio de Janeiro Abril/2007 Ficha catalográfica A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA BORROMEANA: criação e suplência Autora: Andréa Máris Campos Guerra Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica. Aprovada por: ____________________________________________________ Presidente, Prof. Ana Cristina Costa de Figueiredo - Orientadora ____________________________________________________ Prof. Angélica Bastos Grimberg ____________________________________________________ Prof. Jeferson Machado Pinto _____________________________________________________ Prof. Marcus André Vieira _____________________________________________________ Prof. Nelisa de Araujo Guimarães Rio de Janeiro Abril/2007 iii Para Gustavo e Noa iv AGRADECIMENTOS À Ana Cristina Figueiredo pela acolhida generosa, pelo apoio constante, pelo vivo entusiasmo, pelas entradas exatas na escrita da tese e pelo bom encontro na vida; A Gustavo, pelo amor e pela parceria, sempre estimulantes e renovadores, e pela lembrança constante de que posso sempre dar mais um passo; Ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica por criar a condição dessa tese, em especial às professoras Angélica Bastos Grimberg e Ana Beatriz Freire que acompanharam de perto e pari passu sua construção; Aos ex-alunos que seguiram comigo nas questões da tese ao longo dos últimos anos de pesquisa, em especial Pollyana Vieira e Souza e Luciana Luiz Borçato; Ao diálogo profícuo generosamente oferecido pelo prof. François Sauvagnat, que me acolheu durante o ano de estudos aprofundados em Paris VII e Paris VIII; A Sérgio Laia e Elisa Alvarenga pela aposta numa possibilidade de ir além; Aos amigos do Collège Franco-Brésilien (Paris) pelo encontro, pela acolhida e pela discussão com as idéias da tese, em especial Ligia Gorini, Ester Cristelli-Mailard e Marie-Claude Sureau; A M. Pierre Skriabine e colegas de cartel, em especial Michèle Berdah, pelo avanço junto à empreitada custosa a que a topologia nos conduziu; A M. Alain Vaisserman, que abriu com entusiasmo as portas de seu secteur para que eu pudesse me aproximar da psicose e de seu tratamento na rede pública francesa; Aos amigos da PUC que mudaram o rumo de minha história com suas amizades e calorosos debates de boas idéias, em especial Jacqueline, Roberta e Vânia; À minha família que dialoga na distância ou na curiosidade próxima com meu trabalho, sempre me estimulando; Aos amigos e companheiros que enriqueceram, cada qual na sua particularidade, a trajetória dessa tese: Andréia Stenner, Cláudio Felício, Fernanda Otoni, Célio Garcia, Vassiliki Gregoropoulou, Nicole Chardier, Marilsa Basso, Marcela Lima e Assia Gouasmi; À CAPES. v RESUMO A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA BORROMEANA: criação e suplência Nome do Autor: Andréa Máris Campos Guerra Orientador: Ana Cristina Costa de Figueiredo Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica. Investigamos a hipótese sobre a estabilização psicótica, via criação artística ou artesanal, prescindir da escrita. Revisamos em Freud e em Lacan as estratégias de solução para as psicoses e também precisamos as noções de escrita e de letra, a fim de articular o que se escreve numa obra. Em Freud, percorremos sua discussão sobre a Verwerfung, bem como sobre a assertiva do delírio como tentativa de cura. Em Lacan, identificamos ao menos três estratégias quanto à estabilização na psicose: o ato, a metáfora delirante e a obra. A partir desta última, Lacan empreende uma revisão da estrutura da linguagem para pensar o inconsciente face ao gozo através, sobretudo, das noções de letra e de lalíngua. Com isso, chega à mostração do real através da topologia borromeana, ampliando a discussão das estabilizações na psicose a partir do conceito de suplência. Nessa perspectiva, a estabilização implica, enquanto suplência, a maneira como o sujeito, psicótico ou não, se escreve como nó, usando a letra, enquanto litoral entre simbólico e real, e fundando o campo pronto a acolher gozo. Letra e nó escrevem o savoir-y-faire do sujeito. É o que mostramos com a aplicação da topologia borromeana enquanto método de análise a dois casos de psicose. Deles extraímos que a criação, artística ou artesanal, poderá (mas nem sempre) operar enquanto letra que escreve um sujeito, permitindo o enlaçamento dos três registros. Mais do que a criação em si, é seu efeito de escrita que pode funcionar como elemento na suplência psicótica. Nesse sentido, a criação seria também uma forma de escrita. Palavras-chave: estabilização psicótica; criação; suplência; topologia borromeana; letra. Rio de Janeiro Abril de 2007 vi ABSTRACT PSYCHOTIC STABILIZATION CONSIDERED FROM THE BORROMEAN VIEW: creative process and supplementation Nome do Autor: Andréa Máris Campos Guerra Orientador: Ana Cristina Costa de Figueiredo Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica. The aim of this thesis is to work on the hypothesis of psychotic stabilization being achieved through artistic or handcraft creation, prescinding from written language. We have taken the work of Freud and Lacan related to this subject in order to identify the strategies proposed by them for psychotic stabilization, and also to settle a delimitation of the notion of written language and letter. In Freud, we considered the discussion about the Verwerfung and the proposal that delusion could be an attempt to accomplish cure. In Lacan we could identify at least three strategies for psychotic stabilization: the act, the delusional metaphor and the written. When discussing the work produced in the 70s decade, Lacan makes a full revision on the placement of language structure in it, this being done it order to consider the unconscious facing joy, mainly through the notions of letter and lalangue. By "reaching" the Real through Borromean topology, Lacan widens the discussion about stabilization in psychosis deriving from the notion of supplementation. Cutting adrift from the defective proposition of psychosis, he proposes the task of tying the three registers by means of supplementing them. According to such view, stabilization, being achieved by means of supplementation, implies how the subject writes himself as a Borromean knot; in this writing, the letter becomes the central element, once it sets the receptive field to receive joy. Letter and knot write the savoir-y-faire of the subject. This is what we intended to show when applying Borromean topology, as an analysis method, to two cases of psychosis. We have concluded that both artist and handcraftcreation work as a means of "writing" the subject, and may allow the three registers to be tied. The effect caused by "writing" the subject, more than the one produced by the creative process, is the one which can work as an element in supplementation. The creative process itself is also written language, and may be able to lead to tying effects on the three registers, being it through the Borromean via or not. Keywords: psychotic stabilization; creative process; Borromean topology; letter. Rio de Janeiro Abril de 2007 vii LISTA DE FIGURAS 01 – Nó olímpico ........................................................................................................... 91 02 – Nó borromeano de três elementos .............................................................................. 91 03 – Triske com objeto a ............................................................................................... 91 04 – Esquema dos gozos em Jacques Lacan ................................................................. 98 05 – Nó borromeano detalhado ................................................................................................ 100 06 – Representações da consistência, da ex-sistência e do buraco ........................................... 101 07 – Nó de trevo aberto ............................................................................................................ 108 08 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Simbólico (Σ) ............................... 110 09 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Real (Édipo) ................................. 131 10 – Erro e suplência em James Joyce no nó borromeano ....................................................... 131 11 – Duas modalidades da clínica diferencial .......................................................................... 132 12 – Nó borromeano de três elementos com duas retas e um círculo ...................................... 143 13 – Nó trivial (matemático) e nó do senso comum ................................................................. 148 14 – Apresentações distintas do mesmo nó trivial ................................................................... 150 15 – Apresentações semelhantes de dois nós distintos .......................................................... 150 16 – Desfazimento da torção de um falso nó de trevo ....................................................... 150 17 – Equivalência entre dois nós de trevo com apresentações distintas ............................... 151 18 – Os três movimentos dos nós............................................................................................ 152 19 – Apresentação da cadeia borromeana com seis e com oito pontos de cruz ..................... 153 20 – Exemplo de desanodamento do nó 5, subíndice 2, no ponto de cruz 4 ........ 154 21 – Exemplo de desanodamento do nó 5, subíndice 2, com erro no ponto de cruz 2 ........ 155 22 – Cadeia simples e Cadeia de Hopf ............................................................................... 156 23 – Apresentação parcial da tabela dos nós ........................................................................... 157 24 – Esquema R ........................................................................................................................ 161 25 – Plano da perspectiva clássica ............................................................................................ 162 26 – Plano de projeção da perspectiva ..................................................................................... 162 27 – Planos projetivos inseridos na esfera ............................................................................... 162 28 – Esquema I ......................................................................................................................... 164 29 – Deslizamento do ponto a-a’ do Esquema I ...................................................................... 166 30 – Esfera armilar, esfera armilar com erro, esfera armilar borromeana ................................ 174 31 – Cadeia borromeana e nó de trevo ..................................................................................... 175 32 – Erro e suplência em James Joyce no nó de trevo ............................................................. 176 33 – Suplência borromeana pelo Édipo e suplência joyceana pelo ego ................................... 179 34 – Nó borromeano a quatro, com a costura do sinthoma com o real .....................................185 35 – Erro do nó do Profeta Gentileza ....................................................................................... 217 36 – Suplência do nó do Profeta Gentileza .............................................................................. 218 37 – Erro do nó de A.? .............................................................................................................. 239 38 – Foto 1 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG) ............................... 259 39 – Foto 2 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG) ............................... 260 40 – Fotos e imagens referentes ao Profeta Gentileza............................................................... 267 41 – Pintura 01 de A. ................................................................................................................ 268 42 – Pintura 02 de A. ................................................................................................................ 269 viii SUMÁRIO Introdução.................................................................................................................................... 12 Capítulo 1 Estabilizações psicóticas: uma visitação preliminar ao tema ................................. 23 1.1 Introdução às psicoses e às estabilizações: Freud e Lacan ............................................. 24 1.2 A abordagem freudiana da psicose ................................................................................. 26 1.2.1 A defesa psicótica e o trabalho de reconstrução do mundo ..................................... 26 1.2.2 A topologia da negativa na psicose: Die Verwerfung ........................................... 30 1.2.3 Psicose e realidade: para além do dentro-fora ....................................................... 38 1.3 A abordagem lacaniana das soluções nas psicoses ........................................................... 39 1.3.1 O desencadeamento psicótico e suas conseqüências ............................................. 40 1.3.2 As estabilizações psicóticas no ensino de Lacan ................................................... 47 Capítulo 2 Quando a estrutura da linguagem aponta seu mais-além .......................................... 64 2.1 Discussão dos conceitos preliminares à compreensão da revisão lacaniana .................... 65 2.1.1 Percursos e percalços teórico-clínicos .................................................................. 65 2.1.2 As condições de possibilidade dos novos conceitos lacanianos ........................... 68 2.2 Lacan, a linguagem e a psicose ......................................................................................... 72 2.2.1 Linguagem e lalíngua ........................................................................................... 75 2.2.2 Letra e escrita ..................................................................................................... 79 2.2.3 Escrita e psicose ................................................................................................. 83 2.3 Gozo: da satisfação à topologia ...................................................................................... 92 2.3.1 Os seis paradigmas do gozo em Lacan ...................................................... 93 2.3.2 Um sétimo paradigma? O gozo topológico ou ex-sistente ........................ 97 2.4 Suplênciae pai .............................................................................................................. 111 2.4.1 O pai e die Verwerfung .................................................................................... 113 2.4.2 A carência do pai de Hans e a ‘suplência’ metafórica na fobia ....................... 119 2.4.3 A demissão paterna de Joyce e a suplência borromeana na psicose .................. 121 2.5 Enfim ............................................................................................................................. 126 Capítulo 3 De nós e lapsos também se escreve um sujeito: a topologia dos nós e seus desdobramentos clínicos ........................................................................................................... 136 3.1 Lacan e o nó borromeano .............................................................................................. 137 3.1.1 A disposição clínica de um objeto matemático ................................................ 143 3.1.2 Topologia dos nós: noções matemáticas fundamentais ................................... 147 ix 3.2 Topologia e psicose ................................................................................................ 159 3.2.1 Uma possível topologia lacaniana das psicoses na década de 50 ............. 159 3.2.2 Entre o plano hiperbólico e a topologia borromeana: o objeto a nos anos 60 .. 167 3.2.3 Sobre os nós, o real e a psicose no Lacan da década de 70 ......................... 169 3.2.4 Algumas conseqüências clínicas da topologia dos nós ....................... 181 Capítulo 4 Aplicação da topologia borromeana à leitura das estabilizações na clínica das psicoses ..................................................................................................................................... 187 4.1 Discussão metodológica .................................................................................................. 188 4.1.1 O método de pesquisa orientado pela psicanálise ................................................ 188 4.1.2 A psicanálise e os procedimentos metodológicos ................................................ 191 4.2 Uma primeira solução singular: a escrita do Profeta Gentileza ....................................... 198 4.2.1 História de vida e história clínica ........................................................................ 198 4.2.2 Um estudo psicanalítico do caso ......................................................................... 208 4.2.3 Uma leitura borromeana do caso ......................................................................... 216 4.3 O segundo caso: A., de flagelo de Deus à “sedi di shacina”, e daí em diante ................ 218 4.3.1 História de vida e história clínica ........................................................................ 218 4.3.2 Um estudo psicanalítico do caso ......................................................................... 222 4.3.3 Uma leitura borromeana do caso ......................................................................... 239 4.4 Os dois casos, nossa hipótese e sua escrita ...................................................................... 240 Conclusão ................................................................................................................................. 243 Referências Bibliográficas ........................................................................................................ 247 Anexos ...................................................................................................................................... 258 x “Quando se escreve podemos muito bem tocar o real, mas não o verdadeiro.” (Jacques Lacan, 1975) xi A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência INTRODUÇÃO 12 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência “Não pense que pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” (Clarice Lispector, 1977) “A morte, o destino, tudo, estavam fora do lugar. Eu vivo para consertar.” (Geraldo Vandré/ Théo de Barros) A loucura sempre provocou inquietação, curiosidade, temor. De alguma forma, essa alteridade que se revela como o outro de nós mesmos, instiga em nós aquilo que desconhecemos (FOUCAULT, 1995). E muitas vezes nos coloca a trabalho. Se o analista não deve ceder a essa ‘sedução’ subjetiva na clínica, também não deve recuar diante da estranheza por ela provocada. Foi no ato de coragem que caracterizou esse enfrentamento que J. Lacan, apoiado em premissas freudianas, inaugurou a clínica da psicose com decisão no meio psicanalítico. Psiquiatra de formação, encontrou na psicose um guia para suas questões clínicas provocando um reviramento no interior de sua própria teoria a propósito dela. S. Freud já havia surpreendido o mundo ocidental, inicialmente europeu, com a teoria da sexualidade infantil e marcou narcisicamente o homem moderno ao dizer a ele que não era senhor em sua própria morada, dada a existência da determinação inconsciente (FREUD, 1917/1976). Ele tomava a neurose como normalidade, rompendo com a longa tradição que discutia o normal e o patológico em termos de média, anomalia ou desvio. Lacan, contemporâneo do rompimento com a modernidade, alimentava-se das teorias que marcavam essa cisão, cada vez mais explicitada. Embebedou-se do estruturalismo, dialogou com a lingüística e com a antropologia que lhe deram origem, com a filosofia e com as matemáticas, enfim, aplicou à leitura e à clínica psicanalíticas elementos vizinhos para nutri-la de maior precisão e rigor. Não morreu, porém, sem enxergar as aporias de sua própria teorização. Fazendo a crítica de si mesmo, Lacan vai cada vez mais se aproximar de uma redução minimal que lhe permitia transmitir o mais integralmente possível o acontecimento freudiano da descoberta do inconsciente (LACAN, 1972-73/1982). Nesse ponto, em torno da década de 70, encetou a discussão da psicose com a proposta do nó borromeu e a tomou como uma referência de normalidade. A qualquer sujeito é impossível tudo 13 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência representar, tudo dizer. Esse elemento, foracluído1 para todos, exige, de cada um, uma solução única para atar os três registros, Real, Simbólico e Imaginário conformando sua realidade para se escrever como singularidade radical. Nesse sentido, o que antes aparecia, seja em Freud, seja em Lacan, como defeito, como déficit em relação ao que podia ser tomado como normalidade, qual seja, a referência a um ordenador simbólico da subjetividade (o Nome-do-Pai), que garantia a entrada do sujeito na linguagem e sua subordinação à Lei (LACAN, 1955-56/1992), vai aparecer, então, como invenção. Nem mesmo o Nome-do-Pai garante a possibilidade de tudo significar. Ao contrário, já em sua proposição ele é índice da falta do Outro e do destino que a ela cada sujeito confere. Ele resguarda ao sujeito uma via de acesso à linguagem, uma solução ao embaraço colocado pelo desejo caprichoso do agente materno. Mas nem ele próprio, porém, tem a resposta para o seu enigma. O encontro com o Outro é sempre faltoso e, para isso, não há remédio. Ao contrário, é desse encontro que nasce a possibilidade de construção de uma resposta pelo sujeito. Como essa resposta se articula? Quais as relações que o sujeito pode estabelecer com o campo do Outro? O que a singulariza? Haveria alguma diferença entre a construção de solução na psicose e na neurose? Debatendo-se com essas questões, Lacan abriu um novo campo de investigaçãoao trazer a topologia dos nós para o interior da teoria psicanalítica. Ainda que essa teoria no seu campo de origem (o matemático) estivesse em sua pré-história naquele período, ao equivaler a amarração real do nó borromeu ao sujeito do inconsciente, Lacan apresentou aos psicanalistas do futuro uma nova e profícua ferramenta teórico-clínica, ou uma realidade operatória, como ele mesmo a designa. Na verdade, toda a discussão topológica de cortes, suturas, emendas e grampos, era proposta por Lacan como o real da clínica. Diferentemente do uso que fez da topologia da superfície com a Banda de Moebius, a garrafa de Klein ou com o cross-cap, com os nós, especialmente com os nós borromeanos, Lacan afirmava mostrar o real. A topologia borromeana não aparece como modelo, como explicação ou como analogia, não aparece nem mesmo como suporte para se pensar a clínica. “Minha topologia não é de uma substância que situe além do real aquilo que motiva uma prática. Não é teoria.” (LACAN, 1972/2003, p. 479). 1 É possível, portanto, pensarmos em uma teoria restringida do sintoma, pertinente à neurose, e uma teoria generalizada, que vale tanto para a neurose quanto para a psicose. 14 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência E, não por acaso, é através de um caso de psicose que ele pensa clinicamente esse uso no Séminaire XXIII, Le sinthome, após desenvolver suas bases, no Séminaire XXII, RSI. O que se destaca nesse estudo e que nos interessa é a recorrência à psicose para se pensar a clínica psicanalítica. O insondável da loucura, ou o foracluído da psicose, ganha novo nome à medida que a idéia de Nome-do-Pai vai perdendo seu vigor ou sua potência simbólica ordenadora para ceder lugar à pluralidade de soluções que recorrem a diferentes artifícios. Na época em que a mulher é sintoma do homem, quando este, para se dizer homem, faz dela objeto causa de seu desejo; na época em que a relação sexual não existe, quando se aponta para o irredutível de um processo analítico; na época em que lalíngua funda uma outra ordem caótica anterior à Linguagem articulada simbolicamente pelo significante; na época em que a letra, corolário do significante, escreve o veio pelo qual escorre o sujeito; a psicose funciona antes como paradigma que como déficit. Se, por um lado, Lacan não abandona a idéia de estrutura clínica (LACAN, 1966/2003), por outro ele retoma o axioma mais fundamental da clínica psicanalítica2 e pergunta pelo que há de mais singular em cada sujeito que recebe, na medida em que a experiência com um sujeito de um mesmo tipo clínico não se transmite sequer à experiência com outro de mesmo tipo. Essa mesma experiência clínica, quando acontece com a psicose, revela a radicalidade do que não se generaliza a partir do que se tornou generalizável para todos. Ilógico? Absolutamente. A partir da constatação de que o Nome-do-Pai é um dentre os diferentes modos de amarração possíveis para um sujeito, para todos os sujeitos se colocará a exigência de buscar uma solução, ainda que cada um vá tecê-la com seus recursos e com a singularidade que sua estrutura dispõe. Em outras palavras, é universal a foraclusão (MILLER, 1998a) e singular sua solução. E é a escrita do nó, escrita com a letra a, do objeto causa de desejo, que amarra, no real da clínica, essa solução. Na experiência da clínica com a psicose que realizamos nos serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, verificamos diferentes estratégias de estabilização empreendidas pelos sujeitos que ali se tratavam. Especialmente quanto à criação artística ou artesanal, deparamo-nos com diferentes usos dela estabelecidos pelos psicóticos. Fosse articulado ao delírio, fomentando-o, fosse como elemento que fazia barra à atividade alucinatória, fosse como estratégia de pacificação, talvez mesmo como suplência, encontramos, na 2 Segundo este axioma, a cada novo caso, uma nova psicanálise se inaugura e devemos tomar cada caso que recebemos como se fosse o primeiro, como inaugural. 15 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência clínica da Saúde Mental, uma interrogação sobre a articulação criação-psicose no que tange à estabilização. O encontro entre a discussão empreendida por Lacan na década de 70 e a clínica cotidiana da Saúde Mental exigia uma revisão da clínica com as psicoses, que não podia mais se sustentar na aposta da metáfora delirante. A partir da elaboração de conceitos como lalíngua e letra e da discussão do paradigmático caso de Joyce, a escrita do nó como resposta exigia-nos avançar. Se Joyce se escreveu em sua obra, qual o estatuto da escrita aí? Uma suplência sempre recorrerá a alguma forma de escrita? “Escrever, não está absolutamente estabelecido que com a psicanálise chegaremos a isso. Isso supõe uma investigação propriamente falando do que isso significa, escrever” (LACAN, 1975-76/2005, p. 146). Foi a partir dessa constatação que iniciamos esta investigação articulando a escrita com a criação. Em Joyce, é patente que a obra se escreve e nela é forjado um ego para o autor. Mas essa articulação é sempre necessária? Ou foi a contingência do estilo joyceano que o conduziu a criar esse artifício? Outros sujeitos poderiam prescindir da escrita ao se valerem da obra, da criação, para operar efeitos de estabilização? Aí encontramo-nos com um segundo convite lacaniano, sob a forma de uma interrogação feita sobre a arte, para seu seminário sobre Joyce: “em que o artifício pode enfocar expressamente o que se apresenta primeiro como sintoma. Em que a arte, o artesanato, pode burlar, se podemos dizer, o que se impõe do sintoma? A saber, a verdade” (LACAN, 1975-76/2005, p. 22). Tomamos criação artística aqui no sentido mais genérico de produção artesanal3, que implica na intervenção do sujeito sobre uma matéria bruta, cujo resultado, esteticamente tomado como arte ou não, aparece, numa perspectiva, sob transformação da matéria pelo sujeito e, noutra perspectiva, como transformação do sujeito pela matéria. Definitivamente, em cada experiência alguns são mais afetados que outros, tanto matéria quanto sujeito, podendo-se encontrar obras belíssimas e, por vezes, sujeitos que encontram nesse processo uma via de estabilização. Os dois casos são raros, entretanto. No cotidiano com a clínica da psicose nesses serviços complexos a regra são os obstáculos encontrados, o embaraço, a surpresa, as dificuldades institucionais, as 3 Apoiamo-nos no argumento cartesiano, utilizado por Lacan (1974-75), de que se deve começar a prática das artes mais complexas pelas mais simples, como o trabalho de trançar das mulheres artesãs ou dos artesãos que fazem tapetes. Lacan evoca Descartes (1701/1953) exatamente ao introduzir os nós e as tranças que lhes correspondem. 16 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência dificuldades de fazer um uso do espaço comum, público, as dificuldades de trato com o corpo, as dificuldades com a convivência familiar, enfim, as dificuldades de toda ordem. Diante delas, nos perguntávamos, originalmente, como a criação artística poderia ser útil no tratamento do psicótico, nos ensaios de estabilização que testemunhávamos. Dessa maneira, colocamos como objetivo principal, quando da proposição do projeto de pesquisa para esta tese, o de investigar a possibilidade de a obra na psicose apresentar- se como solução nessa estrutura clínica a partir de um trabalho sobre o campo do real que produza uma condensação de gozo realizada a partir da criação artística sobre uma superfície material. A obra, a entendíamos apenas no sentido do produto de uma criação artística, no sentido genérico acima explicitado.E solução, à época, implicava, para nossos estudos, o conjunto das diferentes possibilidades e estratégias de estabilização. Tínhamos em mente o paradigma joyceano que exigiu a escrita como articuladora de sua solução. E nos perguntávamos, então, se uma solução poderia prescindir dessa escrita. Para isso, um dos desdobramentos necessários à elaboração da pesquisa e da escrita desta tese foi o da discussão do conceito de letra em Lacan e suas conseqüências sobre a escrita colocada em xeque por Joyce. Por outro lado, já tínhamos assentada a noção de objeto a que, a nosso ver, seria o elemento possivelmente extraído no real da obra como responsável pela condensação ou localização de um gozo fora do corpo do psicótico. Restava verificar teórica e clinicamente, portanto, essa hipótese que extraímos do trabalho com os usuários das oficinas em Saúde Mental. “Nessas esculturas4 coloco os monstros da minha infância. São as fotografias que ficaram congeladas na minha mente” (relato de usuário). O., cujo corpo encontrava amparo na mãe e na filha para se sustentar, possuía com a criação artística uma missão, a de se oferecer como objeto para a pesquisa dos estudiosos dos problemas da mente. Continuava objeto, portanto, da escrita científica. Sua militância política e seu ânimo cederam diante do afastamento da filha, do adoecimento da mãe e da ausência das oficinas de cerâmica (desativadas por um intervalo de tempo por falta de verba municipal...). Era uma produção submetida a um esteio mais forte, o do corpo 4 Cf. no Anexo 1 fotos de algumas das trezentas obras que esse sujeito fez para mostrar aos estudiosos da mente humana seus problemas através de seu testemunho. Como se verá, cada obra tem ao menos três faces, o que faz de cem, trezentas peças. 17 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência sustentado entre duas mulheres, como suas obras testemunham. Suas esculturas representam sempre três ou mais figuras que se transformam umas nas outras, mescladas, em continuidade, sem ruptura. O horror aparece nos furos e buracos que atravessam a argila e revelam uma atividade delirante que caminha silenciosa. Ensaiam furar e extrair no real um quantum de gozo que lhe permita viver com menos sofrimento. O que ele escreve em suas obras? Ou o que não escreve? De que forma suas esculturas podem se articular ao trabalho de estabilização por ele ensaiado? Antes com uma postura altiva e entusiasmada, O. hoje se apresenta taciturno, tímido, retraído. Em nossa prática nas oficinas, verificamos a pluralidade de usos que o sujeito podia fazer da criação, e que O., em sua peculiaridade, o atestava. Outros sujeitos que faziam uso da criação artística não se estabilizavam, não se tornavam “artistas” ou nem mesmo eram tocados por essa produção. Outras vezes, transformavam-se num espaço rico para enfrentamento da psicose. Em nossa dissertação de mestrado, esta dimensão foi ressaltada. De alguma maneira, as oficinas voltadas às atividades de criação artística e/ou artesanal evidenciavam ser um espaço que favorecia o trabalho de estabilização através dessa criação. “Então a oficina também faz parte desse suporte, mas também por essa literalidade de você ... lá no fim tem uma coisa que foi feita. E que vão coisas até mais elaboradas, como eu acho que isso é [aponta trabalhos de argila], pelo menos alguns, até coisas mais simples como a oficina de bijouterias, né? E então eu acho que isso, assim, pra alguns pacientes tem um efeito muito interessante. Que esse efeito interessante tem a ver com essa literalidade dessa produção também não duvido, que ele tem a literalidade, no sentido de literalidade assim, é uma coisa […]. Não é igual você fazer ... sentar pra fazer uma discussão de grupo com eles, entendeu. O efeito não é o mesmo. (Relato de oficineiro)” (GUERRA, 2000, p. 221-222). “A gente pensou que teria uma materialidade diferente mesmo a palavra escrita, uma densidade simbólica. A gente chamou assim de uma certa densidade simbólica diferenciada (Relato de oficineiro)” (GUERRA, 2000, p. 221). “O que se disponibiliza basicamente para ele [paciente] é… uma… vamos dizer assim, uma substancialidade diferente.[…] Faz sentido principalmente pro psicótico essa oferta dessa possibilidade de uma substância de trabalho […] Porque a palavra escrita, ela tem uma substância diferente da palavra falada e… Eu acho que nem faz muita diferença da palavra escrita e com aqueles tipos de objeto que eles constroem muitas vezes […] Mas eles se incluem num outro tipo de registro pra esse sujeito. […] Eu acredito que isso possa ser um recurso é… precioso de trabalho com a psicose, esses recursos materiais assim, né?” (Relato de oficineiro) (GUERRA, 2000, p. 221). Literalidade, substancialidade, materialidade... Nas conclusões das pesquisas do mestrado (GUERRA, 2000), consideramos que a materialidade do produto provocava, 18 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência em si mesma, algum tipo de efeito para o psicótico. Destacou-se em nossos achados o trabalho do psicótico sobre uma materialidade concreta como servindo de suporte para uma escrita outra também localizadora de gozo5, e não apenas produtora de significações. O produto sendo Real e, ao mesmo tempo, recebendo um contorno simbólico pela Linguagem e uma inscrição social (Imaginária) pela Cultura, se inscreveria, de um lado, incluído no campo das trocas sócio-simbólicas, circulando como um produto socialmente reconhecido. E, por outro lado, trabalhando o ponto de real que o simbólico pode tocar, o produto operaria sobre a subjetividade do participante, quando uma contingência permitisse essa operação. Nesse caso, ele poderia funcionar como elemento na estabilização psicótica. Ora, a idéia de materialidade e de substância em Lacan nasce de uma inspiração cartesiana acerca do dualismo entre res cogitans e res extensa, entre substância e matéria6, do qual Lacan faz um uso clínico. Ele associa a materialidade ao significante, enquanto a substância aparece sempre ao lado do gozo. Se o significante é matéria que faz existir o inconsciente estruturado como linguagem, o gozo, a substância gozosa, por seu turno, desvela o que determina o sujeito para além da linguagem, sua forma de satisfação e de dor, o ponto a que sua repetição o conduz, ou o impossível de dizer, conforme se busque as referências lacanianas ao gozo no início de sua obra (anos 50), ou no seu final (anos 70). Assim, o encontro com a abordagem do final do ensino lacaniano favoreceu a investigação da criação artística como possibilidade de solução na psicose, trazendo para primeiro plano a dimensão da escrita e da letra e, com isso, permitindo um refinamento em sua argumentação. Essas noções, bem como a mostração do real pelo nó e sua aplicação ao estudo de um caso (James Joyce), tornaram possível detalhar nossa hipótese e discuti-la com mais precisão. Se, ao iniciarmos nossa investigação, 5 A título de introdução podemos dizer que o gozo implica, diferentemente do prazer, nas diferentes relações com a satisfação que um sujeito desejante e falante – portanto, atravessado pela incompletude que a linguagem instala – pode esperar e experimentar no uso de um objeto desejado (CHEMAMA, 1995, p. 90). 6 R. Descartes afirma a existência de duas substâncias separadas, a alma, pensamento ativo e sem extensão, e o corpo, extensão não pensante e passiva. Para ele, a mente é uma substância ou entidade, caracterizada fundamentalmente pelo fato de ter consciência, de ser uma coisa que pensa, que percebe, que sente (res cogitans). A realidade externa é material,e a matéria tem como característica básica o fato de ser extensa (res extensa). Consciência e extensão são coisas claramente distintas, podendo cada uma delas ser clara e distintamente concebida sem referência à outra. Os vários estados de consciência (pensamento, sensação, sentimento) são totalmente distintos dos vários modos de determinação da matéria. Por isso, nenhum estado de consciência pode ser essencialmente dependente de qualquer coisa física. A mente, e tudo que ela possui, pode existir sem qualquer substância material. 19 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência esperávamos encontrar uma espécie de “categorização” do uso da criação artística no trabalho de estabilização psicótica, foi o encontro com o final da obra lacaniana que operou como um acontecimento, refazendo o destino da investigação ao tocar seu problema central. A problemática da estabilização psicótica apoiada na criação artística, ainda que marcada pelo irredutível à generalização nos casos que estudamos, pôde ganhar forma e verificar que: mais do que a criação em si mesma, é sua escrita como letra que permite que uma suplência aconteça. Aqui não falamos mais de estabilização genericamente, mas de suplência, que implica num passo a mais, como veremos ao longo deste trabalho. Também falamos que não é a criação em si mesma que forja a invenção de uma solução, mas claramente o que dela pode se fazer letra. Articulando a idéia lacaniana de uma “escrita com o objeto a” em Joyce à noção de letra, pudemos avançar até o ponto em que localizamos a raiz do que abre a possibilidade de uma suplência estabilizadora. Esse é o ponto em torno do qual toda a argumentação desta investigação se articulou. Seja pela via dos novos elementos conceituais que aparecem em Lacan na década de 70, seja pela via da discussão da topologia borromeana, seja pela mostração dos estudos clínicos, essas três vias nos conduziram, cada qual à sua maneira, ao ponto de convergência deste trabalho. É, sim, do que o sujeito escreve que podemos falar em suplência. Portanto, a rigor, após os anos de dedicação à pesquisa deste tema, tudo indica que nossa hipótese não se verifica clinicamente. Supúnhamos que a escrita não era necessária ao trabalho de estabilização, sendo-lhe contingente. Ao longo da discussão teórica e dos estudos clínicos, pudemos ver que, quando a estabilização acontece, e mais especificamente quando ela faz suplência, há sempre a escrita do nó em jogo. Como se vê, restava-nos saber qual o estatuto dessa escrita para pensarmos sua função no território das estabilizações psicóticas. Para chegarmos a este ponto da discussão, foi preciso empreender uma revisão acerca da noção de estabilização (explicitada como tal ou não) em Freud e em Lacan. Assim, no primeiro capítulo, de Freud, extraímos a noção de Verwerfung, destacando suas conseqüências quanto ao desencadeamento, à reconstrução possível do mundo e a topologia da realidade. Dessa maneira, escavamos em Freud as condições conceituais de possibilidade da discussão das suplências em Lacan, como forma de pensar as 20 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência estabilizações nas psicoses. Com ele, retomamos a idéia da Verwerfung como foraclusão de um significante estrutural até a liquefação dessa perspectiva pela noção de escrita no estudo de Joyce. Localizamos os três paradigmas lacanianos quanto às soluções na psicose, a saber, o ato, a metáfora delirante e a obra, a fim de extrair as conseqüências desse percurso da obra lacaniana para a discussão das estabilizações na psicose. No segundo capítulo, centramo-nos na discussão dos aportes teóricos trazidos com o final do ensino lacaniano quanto à linguagem e à estrutura, a fim de traçar o percurso que o conduziu a pensar as soluções subjetivas a partir da topologia borromeana dos nós. Para isso, estruturamos uma argumentação que seguiu três eixos: a linguagem (letra e lalíngua), o gozo e o lugar do pai (de signficante à suplência). Com isso, pudemos trilhar a lógica que provocou em Lacan, no encontro com o nó borromeu, a proposição de uma nova consistência para pensar a localização do sujeito na estrutura. Dessa maneira, a idéia de um suplemento aparece deslocalizada da psicose, mas pertinente a qualquer estrutura clínica a partir do encontro com o real da linguagem. Sobre este ponto, então, Lacan passa a desenvolver toda uma teoria clínica sustentada na lógica borromeana. Acompanhamos essa discussão, no terceiro capítulo, dissecando no campo da Matemática os elementos essenciais dos quais Lacan se apropriou em sua construção. De posse dessas informações essenciais, retomamos as topologias possíveis da psicose que podemos encontrar em Lacan, de forma a pensar a suplência em sua relação com a clínica e a estabilização psicóticas. Enfim, demonstramos e mostramos no último capítulo, através do estudo de dois casos, nossa hipótese reformulada de que a letra é o que faz escrita do nó, e, portanto, suplência quando ela acontece na psicose. Após uma explicação metodológica do percurso da investigação que guiou os casos, evidenciamos, no primeiro deles, uma situação em que o sujeito, na psicose, escreveu-se como suplência através de sua criação. E, no segundo caso, deparamos-nos com um sujeito em que, apesar de sua farta produção artística e artesanal, não há uma escrita do nó, ficando, conseqüentemente, o sujeito numa zona de infinitização da criação que não se faz letra que fixa o gozo. Assim, convidamos nosso leitor a nos seguir na aventura clínico-conceitual deste trabalho, no qual os caminhos conhecidos se revestem de particularidades a cada virada, como num labirinto em que os sinais reencontrados vão se conformando em elementos 21 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência diferenciais do percurso, essenciais ao deciframento que conduz à sua saída, cifrando-a, enfim. Acompanhemo-los. 22 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência CAPÍTULO 1 ESTABILIZAÇÕES PSICÓTICAS: Uma Visitação Preliminar ao Tema 23 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência 1.1 Introdução às Psicoses e às Estabilizações: Freud e Lacan Apesar de, para Freud, a clínica com a psicose ter sido entendida como contra-indicada, ele mesmo abre a possibilidade, caso se modifique o método psicanalítico (FREUD, 1940[1938]/1976), de que seu tratamento se torne possível7. A dificuldade encontrada por Freud não se situava exatamente do lado do psicótico, mas do lado da transferência. Sabemos que ele realizou extenso estudo sobre a psicose em 1911 a partir dos escritos autobiográficos do Presidente Schreber do qual extraiu os principais aportes teóricos sobre o assunto, tendo formulado aí o aforismo do delírio como a tentativa de cura, ou de solução, na psicose. Ou seja, há um movimento do psicótico em direção à estabilização. Entretanto, a especificidade da transferência nessas “neuroses narcísicas” (como ele tomava a psicose em oposição às neuroses transferenciais: histeria e neurose obsessiva) inviabilizaria seu tratamento analítico. “... aqui as catexias objetais são abandonadas, restabelecendo-se uma primitiva condição de narcisismo de ausência de objeto. A incapacidade de transferência desses pacientes (até onde o processo patológico se estende), sua conseqüente inacessibilidade aos esforços terapêuticos, seu repúdio característico ao mundo externo, o surgimento de sinais de uma hipercatexia do seu próprio ego, o resultado final de completa apatia – todas essas características clínicas parecem concordar plenamentecom a suposição de que suas catexias objetais foram abandonadas” (FREUD, 1915a/1976, p. 224-225). Sabemos que essa indicação freudiana não escapará a Lacan, que se dedicará a extrair a particularidade da transferência na psicose pela via da erotomania. Ao mesmo tempo em que avança teoricamente, não cede clinicamente da possibilidade de seu tratamento. Freud, por seu turno, se dedicou a pensar a psicose (paranóia) enquanto uma das defesas à castração, ao lado da histeria e da neurose obsessiva, já em seus primeiros escritos e rascunhos, como no “Rascunho H” (1895/1976) ou “Rascunho K” (1896a/1976), em “As neuropsicoses de defesa” (1894/1976) e “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa” (1896c/1976). Não trabalhou nesse período as soluções encontradas na psicose, mas antes seu mecanismo estruturante e fundador. Somente nos estudos clínicos do Presidente Schreber é que Freud traçou a diferença entre a enfermidade e as elaborações mediante as quais o sujeito responde aos fenômenos dos quais padece. Após 1911, com o texto “Sobre o narcisismo: uma 7 “Assim, descobrimos que temos de renunciar à idéia de experimentar nosso plano de cura com os psicóticos – renunciar a ele talvez para sempre ou talvez apenas por enquanto, até que tenhamos encontrado um outro plano que se lhes adapte melhor.” (FREUD, 1940[1938]), p. 200) 24 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência introdução” (1914a/1976), avança na formulação do mecanismo de defesa na psicose, permitindo a posteriori uma releitura do caso Schreber. Segue-se, então, o período de produção sobre a metapsicologia, no qual encontramos referências teóricas importantes sobre a representação da coisa e da palavra na esquizofrenia e sobre o recalque primevo, além de considerações relevantes sobre o supereu e a melancolia. A partir de então, os escritos nos quais mais se dedica ao tema das psicoses são os textos sobre “Neurose e psicose” (1924[1923]/1976) e “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924/1976), apontando o caminho de reconstrução da realidade nas duas estruturas clínicas. Foi somente com Lacan, psiquiatra de formação, que a clínica com a psicose avançou, tendo ele vislumbrado e teorizado pelo menos três possibilidades diferentes de saída na psicose: a passagem ao ato, a metáfora delirante e a escrita (obra). Apesar de essas soluções aparecerem em experiências singulares, delas é possível extrair princípios universais que podem facilitar, caso a caso, a leitura e a condução dessas soluções encontradas na prática clínica e institucional com a psicose. Também sabemos que muitas vezes esses caminhos traçados pelos psicóticos em suas saídas prescindem da presença de um analista ou de um dispositivo institucional de cuidados, além de envolverem diferentes mecanismos e trabalho psíquicos. Podem, entretanto, ser elencados a título de sistematização teórica a partir da obra lacaniana. Lacan dedicou-se ao tema em três momentos principais, a saber, em sua tese de doutoramento em 1932; no Seminário, As psicoses, de 1955-1956, e no escrito daí decorrente “De uma questão preliminar a todo tratamento possível na psicose” (1957- 58/1998); e, finalmente, no seminário sobre Joyce, le sinthome, de 1975-1976. Na verdade, essa divisão é essencialmente didática na medida em que, tal qual Freud, o avanço da teorização de Lacan se desdobra ao longo de seu ensino a partir de circunvoluções em torno dos conceitos freudianos fundamentais da psicanálise, os quais ele enriquece. Ainda que didática, entretanto, essa divisão nos interessa, pois permite sistematizar as três soluções propostas por Lacan para as psicoses, essenciais ao nosso estudo. Especificamente nessa última discussão, Lacan aponta a escrita como aquilo que permitiu a Joyce sustentar com seu ego “uma função inteiramente outra que sua função simples” (LACAN, 1975-76/2005, p. 147). A função, através de sua escritura, de situar- 25 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência se ali onde o Imaginário não fazia laço com o Real e o Simbólico, atados estes um ao outro. Na construção da solução joyceana, Lacan retoma a função do Pai, enquanto Ideal (amor) e enquanto Lei, destacando que em Joyce ela não opera, sendo-lhe necessário construir uma nova versão do Pai como sinthoma com sua escrita. É através desta que Joyce metaforiza sua relação com o corpo e sua imagem, formulando uma inaugural maneira de se enodar à realidade. “Por este artifício de escrita se restitui, eu diria, o nó borromeano” (LACAN, 1975-76/2005, p. 152). Assim, diante das possibilidades apontadas no texto freudiano e no lacaniano, buscaremos precisar as diferentes estratégias de estabilização psicóticas estudadas por esses autores neste capítulo. Percorreremos inicialmente as primeiras elaborações freudianas sobre a psicose como forma de defesa estrutural a um conflito psíquico insuportável. Vamos fazê-lo de forma a discutir posteriormente a construção delirante de uma ficção que conduz o sujeito a um ponto de estabilização como a solução que Freud aprende com o Presidente Schreber. Em seguida, nos deteremos no texto de Lacan e seus comentadores acerca das soluções psicóticas apresentadas nos três tempos de seu ensino. Construiremos dessa forma o percurso que alimenta a discussão mais específica sobre escrita, suplência e topologia borromeana no segundo capítulo, o que permitirá delimitar com maior precisão teórica o que da escrita joyceana reflete no trabalho de estabilização enquanto criação. 1.2 A Abordagem Freudiana da Psicose 1.2.1 A defesa psicótica e o trabalho de reconstrução do mundo Sabemos que Freud não delimitou, com a clareza estrutural de Lacan, os modos de defesa do aparelho psíquico (ou as estratégias do sujeito, na terminologia lacaniana) nos termos que hoje os utilizamos. Neurose, psicose e perversão foram finamente sendo isoladas como formas particulares de resposta do sujeito diante do impasse colocado pela castração, entretanto, já desde Freud, encontramos o traçado fundamental das fissuras que as determinam. Já em seu “Rascunho H” (1895/1976, p. 291), discutindo a paranóia, Freud a toma como “um modo patológico de defesa”, apresentando publicamente a proposta da psicose como resultante de um mecanismo de defesa inconsciente no texto “As 26 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência neuropsicoses de defesa” (1894/1976). Nele, essa hipótese central calcada na defesa ganha dois contornos. De um lado, diante de uma representação incompatível com o aparelho psíquico, este responde com uma defesa que opera retirando dessa representação seu afeto, tornando-a fraca e, com isso, destituindo-a da catexia que a tornava ameaçadora. Essa representação descatexizada é recalcada no inconsciente, seguindo seu afeto correspondente caminhos diversos, conforme a defesa ocorra na histeria, na neurose obsessiva ou na fobia. De outro lado, a representação e seu afeto podem ser rejeitados conjuntamente, não restando um traço inscrito da experiência hipercatexizada. Este é o caso das psicoses. Assim, apesar de ainda manter atreladas neurose e psicose como se ambas resultassem do “recalque”8, Freud já introduz uma diferença fundamental na operação estrutural da qual resulta a psicose. Observe: “Em ambos os casos até aqui considerados [neurose histérica e neurose obsessiva], a defesa contra a representação incompatível foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesamuito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose [...]” (FREUD, 1894/1976, p. 63-64 – grifos nossos). Aqui Freud já anuncia seu trabalho sobre a diferença entre neurose e psicose da década de 20, localizando não na perda da realidade, mas no caminho para restaurá-la a diferença entre as duas estruturas clínicas. A rejeição atinge a própria situação real, que nunca precisou se tornar consciente. Trata-se de uma defesa tão eficaz, que nega a realidade mesma da percepção ligada à representação incompatível. Há uma negação da experiência traumática vinculada à castração, uma ausência de sua inscrição. Melhor dizendo, a questão da castração sequer é colocada. Há a ausência de seu 8 É importante considerar que, nesses trabalhos sobre as neuropsicoses de defesa (1894/1976 e 1896c/1976), Freud trata indistintamente os termos “defesa” e “recalque”, conferindo-lhes o sentido genérico de defesa estrutural. Ao longo de sua obra, entretanto, especificamente em “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926[1925]/1976), ele propõe que o termo “defesa” seja utilizado nessa acepção genérica, designando todas as técnicas empregadas pelo Ego em conflitos que possam levar a uma estrutura específica: neurose, psicose e perversão. E quanto ao termo recalque (traduzido erroneamente em português por repressão), propõe que seu uso seja restrito ao mecanismo particular de separação entre idéia e afeto, característico da estrutura neurótica. Cumpre também ressaltar que usaremos a partir daqui, ao invés do termo “repressão”, que consta na tradução brasileira da obra, o de “recalque”. Isto porque repressão se apresenta geralmente associada aos mecanismos defensivos e conscientes do ego. Já o recalque é a terminologia utilizada para expor a operação inconsciente, responsável por desalojar representações incompatíveis com o aparelho psíquico, destituindo-as de sua catexia, fundando o aparelho psíquico dividido em Pcs-Cs e Ics e constituindo-se na defesa neurótica a qual fizemos referência. Para a operação estrutural que funda a psicose, utilizaremos sempre o termo rejeição, acompanhando a referência freudiana. 27 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência reconhecimento, de sua representação psíquica. Dois anos mais tarde, Freud retoma a importância central da defesa na constituição do sujeito: “Minhas observações sobre os dois últimos anos de trabalho fortaleceram-me a tendência a considerar a defesa como o ponto nuclear no mecanismo psíquico das neuroses em questão” (FREUD, 1896c/1976, p. 154). Entretanto, ao tentar sistematizar a operação de “recalque” [rejeição] peculiar à psicose9 irá encontrar uma hiância que só avançaria, modificada, no estudo sobre Schreber. Aqui ainda afirma que a característica da defesa na psicose é o “recalque” por projeção e que, a fim de ser aceita sem contradição, a representação delirante exige uma atividade de pensamento do Ego que termina por alterá-lo. Como essas idéias não são passíveis de alteração, é o Ego que a elas precisa se adaptar, modificando-se. No estudo sobre Schreber, de 1911, ele revê essa posição, localizando a projeção num momento secundário ao “recalque” na psicose que ganha nesse texto sua formulação final. Discute também, para além da etiologia da paranóia, sua possibilidade de cura, como ele diz, ou de estabilização, como hoje podemos dizer. A originalidade de suas propostas nesse texto provoca uma reversão inaugural e fundamental à leitura posterior da psicose, lançando definitivamente princípios que orientam, até os dias de hoje, a investigação psicanalítica acerca da psicose, principalmente após sua releitura10 com o texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (FREUD, 1914a/1976, p. 102-103). Dois grandes enunciados se estabeleceram com esse texto: (a) em relação ao mecanismo estrutural da psicose, Freud afirma que “aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora” (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 95), permitindo a Lacan décadas depois afirmar que, na base da psicose, seu mecanismo não se resume a “um recalque por projeção”, mas antes a uma operação muito mais radical que ele denomina foraclusão, como veremos; (b) e, em oposição a uma interpretação fenomenológica da psicose, Freud subverte sua leitura apontando que “a formação delirante é uma tentativa de restabelecimento” 9 “A paranóia deve ter um método ou mecanismo especial de recalcamento que lhe é peculiar” (FREUD, 1896c/1976, p. 164). 10 “A diferença entre as afecções parafrênicas e as neuroses de transferência parece-me estar na circunstância de que, nas primeiras, a libido liberada pela frustração não permanece ligada a objetos na fantasia, mas se retira para o ego. A megalomania corresponderia, por conseguinte, ao domínio psíquico dessa última quantidade de libido, e seria assim a contrapartida da introversão para as fantasias que é encontrada nas neuroses de transferência” (FREUD, 1914a/1976, p. 102). Aqui Freud formula nova hipótese sobre a megalomania de Schreber que não nasceria da homossexualidade, mas de uma complexificação introduzida pelo narcisismo no aparelho psíquico. 28 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 94), e não a enfermidade propriamente dita, como era interpretada até então. Donde Lacan afirmar textualmente que não é de déficit que se trata na psicose, mas de produção de resposta. “A liberdade que Freud se deu aí foi simplesmente aquela [...] de introduzir o sujeito como tal, o que significa não avaliar o louco em termos de déficit...” (LACAN, 1966/2003, p. 220). Apesar de reafirmar que a projeção está na base da defesa psicótica11, Freud faz uma correção em relação ao que escrevera nos Rascunhos e primeiras publicações de 1894 a 1896 já comentadas. Lá, a projeção aparecia na etiologia da paranóia como provocando uma projeção dos sentimentos de auto-acusação do paciente para fora, retornando sob a forma de acusações exteriores. Aqui, Freud altera substancialmente a descrição do processo aí ocorrido, o que permitiu a Lacan recolocar os termos do trabalho delirante. “Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora” (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 95). Assim, se nas primeiras formulações freudianas, a projeção era confundida com o próprio mecanismo constitutivo da psicose, na segunda formulação, ela é, no máximo, um momento secundário desse mecanismo. Cabe ainda ressaltar que o mecanismo de retirada da catexia libidinal do mundo externo coincide com o delírio do fim do mundo, como se vê em Schreber. A posterior construção de seu mundo interno realizada através do trabalho delirante, “que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (FREUD, 1912[1911], p. 94-95) - nunca é completamente bem-sucedida. E esta, diferentemente do processo de adoecimento, de retirada da catexia libidinal das pessoas e coisas, que acontece silenciosamente, é ruidosa no momento de reinvestimento libidinal. Daí Lacan (1957-58/1998) extrai que, mesmo para Freud, a projeção já era insuficiente para explicar o “recalque” na psicose. Quando Freud aponta que é desde fora que retorna aquilo que foi internamente abolido, ele mesmo percebe que não se trata de um mecanismo projetivo.Como projetar, lançar de dentro para fora, aquilo que não existe dentro? Se o conteúdo foi internamente abolido, nós estamos falando de uma 11 “A característica mais notável da formação de sintomas na paranóia é o processo que merece o nome de projeção. Uma percepção interna é suprimida e, ao invés, seu conteúdo, após sofrer certo tipo de deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa” (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 89). 29 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência representação primordial sobre o ser do sujeito psicótico que não encontra meios de significar-se, representar-se. Essa significação não vem de parte alguma e não remete a nada, posto não ter sido simbolizada. Será no caso do Homem dos Lobos, relatado em “História de uma neurose infantil” (1918[1914]/1976), que Freud utilizará o termo Verwerfung num fragmento clínico que o evidencia para nomear essa não inscrição de uma representação fundamental, diferente da operação do recalque para a neurose. É importante entendermos o que se opera como defesa nesse nível para que possamos adiante discutir as diferentes maneiras que o sujeito pode inventar para tratar dos efeitos particulares dessa operação constitutiva. 1.2.2 A topologia da negativa na psicose: die Verwerfung No texto “A negativa” (1925/1976), Freud diz que a negação ou denegação12 constitui um modo de tomar conhecimento do que está recalcado. Trata-se de uma suspensão do recalque, mas nem por isso uma aceitação do recalcado, evidenciando que a função intelectual está separada do processo afetivo. Para ele, negar ou afirmar o conteúdo de pensamentos é tarefa da função do julgamento. Assim, um juízo negativo seria o substituto intelectual do recalque, “o seu ‘não’ é a marca distintiva da repressão [recalque], um certificado de origem – tal como, digamos, ‘Made in Germany’” (p. 297). A criação do símbolo da negativa possibilitaria um primeiro grau de independência dos resultados do recalque. Nesse texto, Freud estaria, segundo Hyppolite (1954/1998), apontando a origem da inteligência. A partir do conceito de Aufhebung, familiar ao vocabulário hegeliano com o qual o filósofo possuía grande intimidade, ele realiza a leitura do processo da denegação. Ele situa neste conceito, que não é ainda uma aceitação do recalcado, o nascimento do pensamento, afetado, primariamente, pela denegação. Além disso, retoma a dialética do senhor e do escravo para destacar, nesse nascimento mítico, a ação da pulsão de destruição. No entanto, a denegação realizaria sua função, não como 12 Segundo a intervenção de J. Hyppolite (1954/1998), filósofo francês hegeliano, sobre o texto freudiano no seminário de Lacan sobre “Os escritos técnicos de Freud” (1953-54/1986), a tradução francesa mais adequada ao termo alemão Verneinung seria denegação, sendo primordial para a compreensão do texto a distinção entre a negação interna ao juízo e a atitude de negação. Vidal (1988, p. 16-17), em discussão do mesmo texto, aponta que denegação, na língua portuguesa, seria um vocábulo pertinente ao campo jurídico implicando num indeferimento, numa recusa a uma demanda, no sentido de não aceitar. Assim, ele prefere adotar o termo negação, no sentido de ‘dizer não’, que não é estritamente um conceito, mas uma operação que age sempre sobre a frase, incluindo nesse registro lógico a negação de uma proposição e também a negação gramatical. 30 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência tendência à destruição, nem como negação interna a um juízo, mas como atitude fundamental da simbolicidade explicitada. Acompanhemos a construção freudiana. Freud avança pela gênese da função do pensamento ao distinguir suas operações fundamentais. A função do julgamento estaria relacionada com duas espécies de decisões. “Ele afirma ou desafirma a posse, em uma coisa, de um atributo particular, e assevera ou discute que uma representação tenha uma existência na realidade” (FREUD, 1925/1976, p. 297). Enquanto a primeira dessas funções opera pelo princípio do prazer, a segunda já é guiada pela prova (ou teste) de realidade. O juízo de atribuição, o primeiro apresentado por Freud, implica em introjetar o que é bom e ejetar o que é mau, instituindo um dentro e um fora, a partir dos respectivos atributos, é bom, quero comê-lo, é mau, quero cuspi-lo. A segunda função do juízo, a do juízo de existência, não mais diz respeito a algo percebido (uma coisa) que deva ou não ser acolhido no eu, mas se refere ao fato de que algo existente no eu como representação possa ser reencontrado também na percepção (realidade). O não-real, apenas representado, subjetivo, está só dentro, enquanto o outro, real, também existe no fora. Neste ponto, foi deixada de lado a consideração pelo princípio do prazer, donde a antecedência lógica do juízo de atribuição em relação à denegação. Freud lembra que as representações provêm de percepções, são repetições destas. A oposição entre subjetivo e objetivo não existe desde o início. O objetivo primeiro da prova de realidade, assim, não seria encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas reencontrar tal objeto, desde sempre perdido. É nesse intervalo, entre o objeto da percepção, desde sempre perdido, e a representação, que o inconsciente se institui como diferença. A importância da função do julgar reside no fato de que ela é uma ação intelectual que decide sobre a escolha da ação motora, pondo fim à protelação do pensamento. Ela conduz do pensar ao agir. Além disso, oferece material para pensarmos o surgimento da função intelectual a partir das moções pulsionais primárias, o que revela uma relação entre significante e gozo. O julgar é uma continuação do processo original através do qual o ego integra coisas a si ou as expele de si, de acordo com o princípio do prazer. “Enquanto a afirmação [Behajung] – como um substituto da união – pertence a Eros; a negativa [Verneinung] – o sucessor da expulsão [Ausstosung] – pertence ao instinto [à pulsão] de destruição” (FREUD, 1925/1976, p. 300). Trata-se de uma única função do 31 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência juízo que se realiza em dois tempos. “Atribuição e existência, em sentido estrito, correspondem às duas decisões do mesmo juízo, cuja topologia seria um oito interior” (VIDAL, 1988, p. 24). Aqui se destaca uma topologia do sujeito que já rompe com a idéia de dentro e fora, ao mesmo tempo em que a institui. O equivalente ao sujeito interior, sujeito da psicologia, diferente do mundo externo, seria a esfera, superfície bilátera que divide o espaço em um interior e um exterior. Há, entretanto, na apresentação freudiana a referência a uma topologia que inclui o inconsciente. Negar implica em ‘liberar’ do recalque alguns significantes que podem retornar à cadeia. Não há ali dentro ou fora. Podemos dizer, com Lacan, que Freud nos apresenta o inconsciente como estrutura moebiana13. Numa única borda o significante precipita o laço social, seja como articulação, em cujo intervalo se situa o sujeito, seja como materialidade significante e como barra, o que instaura uma disjunção entre significante e significado. “A Verneinung é da ordem do discurso, e concerne ao que somos capazes de fazer vir à tona por uma via articulada” (LACAN, 1955-56/1992, p. 101). Na discussão do texto freudiano que empreende em seu seminário, Lacan reafirma a dimensão fundadora da ordem simbólica na Bejahung. Para que um sujeito não queira saber de algo no sentido do recalque, é preciso que esse algo tenha vindo à luz pela simbolização primordial. E no mesmo movimento em que algo é introduzido no sujeito,algo é expulso e resta fora. É aí que se constitui o real, “na medida em que ele é o domínio do que subsiste fora da simbolização” (LACAN, 1954/1998, p. 390). A Behajung, correlacionada a uma inclusão significante, não é outra coisa senão a condição primordial para que, do real, algo venha a se oferecer à revelação do ser. Comporta, portanto, uma Ausstosung, uma expulsão do eu, constitutiva do Real. Eis a função primordial do juízo de atribuição. “A segunda decisão, a da existência real de uma coisa representada, se funda sobre essa partição entre simbólico e real. Como sucessão da Ausstosung primeira, se determina o real como fora da simbolização. A negação – die Verneinung – sucessão da Ausstosung, se estende no domínio do princípio da realidade” (VIDAL, 1988, p. 26). São operações, ao mesmo tempo que sucessivas, necessárias umas às outras e, portanto, 13 “A fita de Moebius pode ser ilustrada por uma tira que se fechou, depois de ter-lhe sido aplicada uma semitorção. Essa curiosa superfície apresenta a propriedade de ter apenas um único lado e uma única borda. Essa fita, na qual o lado direito se prende ao lado do avesso, representa a relação do inconsciente com o discurso consciente. Isso significa que o inconsciente está do avesso, mas pode surgir no consciente em qualquer ponto do discurso” (CHEMAMA, 1995, p. 212). 32 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência indissociáveis entre si. Podemos aventurar a hipótese de que seja nesse ponto que a letra, enquanto fronteira entre Real e Simbólico como discutiremos mais à frente, se escreva com a queda do significante primordial que identifica o ser do sujeito. Enfim, a negação se estabelece sobre a possibilidade da Behajung, ou seja, sobre uma frase afirmada que pode ser riscada. A elisão significante está, pois, na matriz da Verneinung, e determina o lugar do sujeito no corte da cadeia significante, no lugar em que uma coisa pode deixar de existir. Qual a importância de toda essa discussão para a questão da suplência nas psicoses? Ora, sabemos que Lacan articula o mecanismo fundante da psicose a uma operação significante no primeiro tempo de seu ensino. Para ele, distinguir as relações do sujeito com a estrutura, enquanto estrutura significante, implicou em ressignificar essa noção de defesa. Em Freud, essa noção implicava num processo mais amplo que o do recalque, como vimos, incluindo outras operações psíquicas que determinavam a posição do sujeito em relação ao Édipo. Para Lacan, o efeito da defesa modifica o sujeito. “O modo original de elisão significante que aqui tentamos conceber como a matriz da Verneinung afirma o sujeito sob o aspecto do negativo, instalando o vazio em que ele encontra seu lugar” (LACAN, 1960/1998, p. 672). É exatamente a estrutura desse lugar que exige que o nada esteja no princípio da criação, impondo ao pensamento psicanalítico ser criacionista, não se contentando com nenhuma referência evolucionista. Mas o que ocorre na psicose já que não estamos a falar de recalque quando nos referimos a ela? De que forma essa operação constitutiva se escreveria nessa estrutura clínica? Como Freud e Lacan estabelecem essa discussão e o que dela podemos depreender para pensar as soluções na psicose? Freud diferencia a negação do negativismo de alguns psicóticos. “O desejo geral de negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve provavelmente ser encarado como sinal de uma desfusão de instintos [pulsões]...” (FREUD, 1925/1976, p. 300). A função do julgamento só se torna possível a partir da criação do símbolo da negativa, que dota o pensar de uma primeira medida de liberdade das conseqüências do recalque e, com isso, da compulsão do princípio de prazer. Há, portanto, na psicose, previamente a qualquer simbolização – anterioridade lógica –, uma etapa em que uma parte da simbolização não se faz. É essa a hipótese de Lacan 33 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência (1955-56/1992, p. 97) no seminário sobre as psicoses. Se na neurose se trata de uma palavra que se articula, na medida em que o recalcado e o retorno do recalcado são a mesma coisa, pode acontecer na psicose que alguma coisa de primordial quanto ao ser do sujeito não entre na simbolização, mas seja rejeitado, foracluído. Na relação do sujeito com o símbolo há a possibilidade de uma Verwerfung primitiva. Algo que não foi simbolizado vai se manifestar no Real. Para Lacan, no interior da Behajung podem acontecer todas as espécies de acidente. Ele, então, propõe que na psicose, ao nível da Behajung primitiva, estabelece-se uma primeira dicotomia: “o que teria sido submetido à Behajung, à simbolização primitiva, terá diversos destinos, o que cai sob o golpe da Verwerfung primitiva terá um outro. [...] Há portanto, na origem, Bejahung, isto é, afirmação do que é, ou Verwerfung” (LACAN, 1955-56/1992, p. 98). Em outras palavras, a Verwerfung se articula à inoperância da Behajung, ou juízo de atribuição, precedente necessário a qualquer aplicação possível da Verneinung, articulada por Freud ao juízo de existência e por Lacan à confissão do próprio significante que ela anula (LACAN, 1957-58/1998, p. 564). É também ao significante que se refere a Behajung primordial. Lacan lembra que ele é expressamente isolado como termo de uma percepção original, sob o nome de signo, Zeichen, na Carta 5214 que Freud escreve a Fliess. Articulada, pois, ao significante, a Verwerfung será tida por Lacan, “como foraclusão do significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um puro e simples furo” (LACAN, 1956-57/1998, p. 564). Trata-se de uma inscrição que não se faz, ao contrário da Behajung, que implicaria exatamente na inscrição desse significante primordial. Lacan irá retomar a discussão do termo Verwerfung em seu primeiro seminário público (LACAN, 1953-54/1986). Ali ele irá definir a Verwerfung como supressão [retranchement], cujo efeito seria uma abolição simbólica, como Freud relata no caso do Homem dos Lobos. Dois seminários depois, ao tratar das psicoses, acabamos de ver que 14 Nessa carta (FREUD, 1896b/1976, p. 325), grande figura da metapsicologia psicanalítica, é possível localizar as negações constitutivas do sujeito evidenciadas por Freud, que culminam na passagem da percepção à representação inconsciente e desta à consciência, como atesta o gráfico abaixo: W - Wz - Ub - Vb - Bews Wahrnehmungen Wahrnehmungszeichen Unbewusstsein Vorbewusstsein Bewusstsein (percepções) (registro da percepção) (traços do inconsciente) (pré-consciência) (consciência) primeiro registro segundo registro terceiro registro 34 A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência Lacan atrela a Verwerfung à não inscrição do significante do Nome-do-Pai, tomando agora sua tradução francesa pelo termo jurídico foraclusão. No universo jurídico francês, a foraclusão implica na perda do prazo para interpor uma ação, cujo interesse existe de fato, porém não mais de direito. No Brasil, o termo mais exato seria preclusão. Entretanto, o que está em jogo aqui é a versão apresentada, por Lacan, para o termo. Uma operação não se inscreveu em tempo hábil, tornando caduca sua função. Os efeitos dessa carência significante retornam como gozo no real. Lacan (1953-54/1986) também realiza extensa discussão sobre essa operação a partir do caso do Homem dos Lobos. Nesse caso, Freud (1918[1914]/1976, p. 109) fala em Verwerfung no tocante
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