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1 ESTRUTURAS PSICANALÍTICAS AULA 3 Prof.ª Juliana dos Santos Lourenço 2 CONVERSA INICIAL Anteriormente em nossos estudos, vimos que o mito de Édipo foi a forma como Freud representou os acontecimentos psíquicos que vinculam o sujeito ao registro simbólico. O falo, em sua função imaginária, confronta o sujeito com a questão de sua própria sexualidade, ao se inscrever como falta (-φ). Assim, é diante da angústia de castração que o sujeito circunscreve a sua estrutura. Lacan vai transcrever toda essa epopeia edipiana por meio da metáfora paterna, na qual institui o NP como o significante da lei que barra o gozo da mãe, metaforizando o desejo da mãe para a criança. Começaremos com um estudo breve sobre a evolução do conceito de mecanismos de defesa, destacando a visão de Freud, que acreditava que a maneira como a defesa se formava era decisiva para determinar o tipo de neurose. Em seguida, analisaremos como Lacan introduziu a noção de estruturas na psicanálise, com o propósito de sistematizar o mecanismo específico de cada estrutura clínica. TEMA 1 – A CONCEPÇÃO DO ESTRUTURALISMO Antes de entrarmos propriamente na teoria psicanalítica, cabe-nos destacar o que representa a ideia de estrutura: ela foi desenvolvida e explorada por vários autores renomados na época de Lacan, como Claude Lévi-Strauss, Roman Jakobson, Ferdinand de Saussure, entre outros; porém, este último foi um dos principais autores que influenciaram Lacan. O estruturalismo refere-se à ciência cujo objeto de estudo é a análise do sistema, em que partes interagem de maneira ordenada e passível de análise. Por exemplo: a linguagem é composta por elementos (como palavras, sons ou símbolos) que se organizam e interagem seguindo regras gramaticais específicas (como sintaxe, morfologia e semântica). Lacan incorpora a perspectiva do estruturalismo e a adapta ao campo da psicanálise, desenvolvendo uma abordagem própria e singular. Assim, ao reinterpretar Freud, ele utiliza a noção de estrutura como ferramenta para 3 compreender os fundamentos do funcionamento psíquico, identificando os elementos essenciais que sustentam e explicam seus mecanismos. Em outras palavras, Lacan se apropria do estruturalismo para introduzir uma compreensão mais aprofundada e sofisticada da linguagem no campo da psicanálise, visto que a fala é a principal ferramenta do psicanalista. O estruturalismo fornece a Lacan uma nova base para compreender o complexo de Édipo, lançando luz sobre as operações simbólicas. Isso lhe permite propor uma organização estrutural dos tipos clínicos, mostrando como o funcionamento psíquico se estrutura de formas distintas a partir da experiência do Édipo. Sobre isso, Estevão (2021, p. 57) escreve: o estruturalismo lhe permite, com base nas operações simbólicas que ocorrem durante o complexo de Édipo, propor uma organização dos tipos clínicos, ou modos de funcionamento psíquico (estruturas psíquicas), constituídos no processo do Édipo, a saber, psicose, perversão e neurose. É importante frisar que, para Lacan, tais modos de funcionamento não são patologias e que não há uma hierarquia estrutural entre eles: são antes de tudo modos de operar psiquicamente diante dos eventos da vida, não havendo como afirmar que um sofre menos ou mais que outro. Desse modo, quando utilizamos a expressão “estrutura psicanalítica”, estamos nos referindo a uma construção elaborada com base em uma análise detalhada da forma como o psiquismo de um determinado sujeito opera, cujo resultado é a forma como ele se posiciona na linguagem. Cada estrutura clínica – neurose, perversão e psicose – apresenta características próprias. O neurótico enfrenta um pai simbolicamente castrado, que impõe uma lei. O perverso, por outro lado, relaciona-se de forma distinta com o pai, organizando sua realidade sob outra lei. Já o psicótico exclui a lei do pai, sendo constituído pela ausência de castração no Outro. Assim, ao final de nossos estudos, perceberemos que cada tipo clínico na psicanálise se organiza em estruturas específicas, que podem ser analisadas de forma independente, mas juntas configuram um funcionamento psíquico particular. 4 TEMA 2 – UM BREVE ESTUDO SOBRE O DESEVOLVIMENTO DA TEORIA DOS MECANISMO DE DEFESA EM FREUD O estruturalismo ganhou destaque após Freud. Contudo, embora Freud não tenha tido acesso a esse saber para fundamentar sua teoria, é possível identificar elementos compatíveis com o pensamento estruturalista em suas formulações. Sabemos que Freud desenvolveu seu interesse ao observar o sofrimento das histéricas, cujos sintomas afetavam seus corpos de maneira que a medicina tradicional não conseguia explicar. Assim, atento aos sinais histéricos, Freud evidencia o inconsciente como uma instância psíquica que atua à revelia do sujeito. Com base nessa hipótese, Freud passou a investigar a organização do psiquismo, reconhecendo que as neuroses poderiam se manifestar de diversas formas, não se limitando apenas à histeria. Isso o levou a se concentrar no estudo da “escolha da neurose”. Na carta 125, dirigida a Fliess, Freud afirma: “Tenho diante de mim o problema da ‘escolha da neurose’. Quando é que uma pessoa se torna histérica em vez de paranoica?” (Freud, 1899, p. 331). Posteriormente, no texto A disposição à neurose obsessiva: uma contribuição ao problema da escolha da neurose (1913), Freud retoma a questão ao indagar: “Por que é que esta ou aquela pessoa tem de cair enferma de uma neurose específica e de nenhuma outra? Este é o problema da ‘escolha da neurose’” (Freud, 1913, p. 193). Portanto, ao examinarmos o desenvolvimento da teoria freudiana, constatamos que, inicialmente, a formação das neuroses ocupou um lugar central em suas pesquisas. Em textos pré-psicanalíticos, Freud já sugeria que cada tipo de neurose apresentava requisitos específicos que determinavam tanto sua origem quanto a natureza dos mecanismos de defesa envolvidos. Em correspondência a Fliess, encontramos uma de suas primeiras esquematizações: 5 Quadro 1 – Neuroses e suas características, segundo Freud Fonte: Freud, 1896, p. 278. Podemos verificar que, de acordo com o quadro de Freud, o momento em que ocorre o evento sexual traumático na infância seria determinante para a escolha da neurose. Cortês (2016, p. 28) descreve: Na histeria, as cenas ocorreriam no primeiro período da infância, época em que os resíduos de memória não são traduzidos em imagens verbais. Assim, o resultado do despertar dessas cenas nas fases A e B é sempre uma conversão, pois a tradução é impedida pela atuação conjunta da defesa como excesso de sexualidade. Na neurose obsessiva, as cenas seriam referentes a uma época em que já existe tradução em palavras, e seu despertar, nas épocas II e III, provoca a formação de sintomas psíquicos. Na paranoia, as cenas ocorrem na época II, sendo despertadas em III, na maturidade, e a defesa manifesta-se pela desconfiança. Nesse contexto, o trauma sexual na infância seria o fator precipitante para a ativação do mecanismo de defesa, cujo destino traçaria o modo operante da estrutura psíquica. No entanto, essa teoria não se sustentou por muito tempo, já que, para validá-la, Freud teria que pressupor a ocorrência de abuso sexual em todas as crianças. Em A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud, com sua teoria mais desenvolvida, apresenta a ideia de que no contexto do adoecimento psíquico, as instâncias psíquicas (inconsciente, consciente e pré-consciente), devido a circunstâncias externas, entrariam em desarmonia. Esse entendimento leva Freud a desenvolver o conceito de recalque, destacando sua conexão com o desejo proibido, representado pelo complexo de Édipo. 6 O recalque passa a ser a principal referência psicanalítica para acompreensão da etiologia das neuroses, pelo qual o psiquismo se defenderia das representações insuportáveis por medida do recalque, afastando da consciência todo pensamento penoso. Contudo, a teoria do recalque contempla bem os sintomas neuróticos, mas não explicava os fenômenos presentes nas psicoses e perversões. Em 1911, ao analisar o Caso Schreber, Freud traz uma nova constatação, segundo a qual afirma que, no núcleo do conflito paranoico, está presente um desejo homossexual. Para explicar essa conclusão, Freud desenvolve o conceito de narcisismo, que descreve a fase em que o sujeito dirige seu amor para o próprio corpo, tomando-o como objeto amoroso antes de evoluir para a escolha de um objeto externo. Portanto, nesse contexto, a paranoia ocorreria por conta de uma fixação libidinal no estágio narcísico do desenvolvimento psíquico, sendo esta a causa de seus sintomas. Com base nessa nova descoberta, Freud depreende sob dois aspectos: a fixação e o recalque: • O recalque seria resposta de um sistema mais desenvolvido do eu, que opera por meio de um processo ativo. • Em contraste, a fixação se caracteriza como um processo passivo. Para que o recalque ocorra, é indispensável a repressão exercida pelo sistema consciente, que mantém uma relação de atração com o sistema inconsciente. O retorno do recalcado indica o fracasso desse mecanismo, manifestando-se como efeitos patológicos no sujeito, uma vez que os sintomas se formam no ponto de fixação da libido. Assim, quanto mais primitivo ou regredido for o ponto de fixação narcísica, menor será a eficácia do recalque, fazendo com que os fatores patológicos encontrem sua origem nesse ponto. Portanto, sob essa perspectiva, a origem das neuroses se daria a partir do funcionamento do recalque, cujo ponto de fixação mediria a sua eficácia. Perceba que neurose e psicose não se distinguem por mecanismos específicos, de modo que o recalque estava posto como o mecanismo necessário para explicar as 7 questões dos sintomas neuróticos, já que eles se produzem em relação intima com o retorno do recalcado. Contudo, os mecanismos que caracterizavam as psicoses não chegaram a ser sistematizados em suas pesquisas. No texto Neurose e psicose (1924), Freud revisita a instância do eu para analisar sua relação com o id e os demais elementos aos quais o eu se submete simultaneamente. Nesse contexto, ele estabelece uma nova distinção entre neurose e psicose, afirmando: “a neurose é o resultado de um conflito entre o eu e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o eu e o mundo externo” (Freud, 1924, p. 89). Enquanto o conflito da neurose é interno, o da psicose é externo. Portanto, a busca por distinguir os mecanismos da neurose e da psicose sempre esteve presente no pensamento de Freud. No entanto, ele não conseguiu isolar mecanismos específicos da psicose, como fez com o recalque na neurose e o fetiche na perversão. Essa conceituação mais precisa foi desenvolvida posteriormente por Lacan. TEMA 3 – ESTRUTURAS CLÍNICAS EM LACAN Ao contrário do caminho de Freud, que iniciou suas pesquisas pela histeria, Lacan adentra a psicanálise pelo estudo da psicose. Todavia, ainda que tenha respeitado as descobertas de Freud sobre os funcionamentos das neuroses, perversões e psicose, Lacan vai além, explorando novas perspectivas e localizando as dimensões subjetivas com base em estruturas psíquicas. Mesmo que a psicose não tenha ocupado um lugar central nas obras de Freud, ele nunca deixou de abordá-la ao longo de sua teorização. Desse modo, foi seguindo as pistas deixadas por Freud que Lacan encontrou os elementos necessários para desenvolver sua tese sobre o mecanismo específico da psicose. Em 1955, Lacan dá início ao seminário sobre as psicoses e, a partir dos termos em alemão extraídos dos textos freudianos Verneinung (“negação”) e Verwerfung (“rejeição”), ele retoma a questão da etiologia pelo viés da linguagem. 8 Assim, Lacan se propõe a examinar minuciosamente o efeito da Verneinung, buscando diferenciá-la da Verwerfung, pois ambos os termos aparecem nos textos de Freud para abordar distintos aspectos dos processos psíquicos. Ele conclui que, no início da vida psíquica, a Verwerfung só poderia ocorrer antes de haver uma Verneinung, pois, a operação da Verwerfung precede o juízo e está na origem do recalque. Portanto, cabe-nos agora compreender, de forma mais detalhada, isso que Lacan localiza no início da vida psíquica, pois é a partir desses acontecimentos que ele desenvolverá sua tese sobre os processos de estruturação, na qual a psicose se constituiria em um momento anterior ao recalque e à formulação do juízo. 3.1 Início da vida psíquica Lacan, assim como Freud, também procurou compreender o momento primitivo da origem da simbolização, ou seja, momento em que o sujeito entra na linguagem, pois, antes disso, a criança é situada por Lacan (1966, p. 555) em sua “inefável e estúpida existência”, isto é, apenas um pedaço de carne. Todavia, a partir do momento que algo se inscreve no sujeito, ele passa a existir em um mundo simbólico. No entanto, nesse processo de simbolização, algo pode ser excluído. Ele afirma: “Na relação do sujeito com o simbólico, há a possibilidade de uma Verwerfung primitiva, ou seja, que alguma coisa não seja simbolizada, e que vai se manifestar no real” (Lacan, 1956, p. 100). Freud havia colocado que, na origem da vida psíquica, ocorre a afirmação primitiva – Bejahung (“afirmação”). Assim, a Bejahung deve ser entendida como um processo primário, um primeiro juízo ou, em outras palavras, uma aceitação do simbólico, ou de uma realidade externa. Lacan (1956, p. 101), partindo do esclarecimento de Freud, afirma: "Há, portanto, na origem, Bejahung, isto é, afirmação do que é, ou Verwerfung". Desse modo, é na origem da vida psíquica que pode ocorrer toda sorte de acidente em relação aos quais o sujeito terá de se arranjar para o resto da vida, tentando se aproximar daquilo que ele admitiu ser. Nesse sentido, Lacan (1956, p. 389), sobre a Bejahung, declara: “não é outra coisa 9 senão a condição primordial para que, do real, alguma coisa venha a se oferecer à revelação do ser”. Dessa forma, pode-se compreender que a Bejahung é uma afirmação do simbólico, que se inscreve como um registro primordial. No caminho oposto à Bejahung (“afirmação”), em termos lógicos, o que ocorre é a Verneinung (“negação”). Trata-se de uma negação que, como Freud afirma no texto "A Negativa" (1925), só pode ser produzida a partir de algo que inicialmente foi afirmado. Em outras palavras, a negação só pode surgir após uma afirmação. Assim, a Verneinung é tributária da afirmação inicial e de ordem simbólica, não pelo seu valor simbólico, mas pelo seu valor de existência, isto é, não é que ele seja isso mesmo, mas ele aparece como tal. Portanto, Lacan vai explicar que ele se constitui a partir do que foi expulso, não como algo inexistente, mas como aquilo que foi negado. Por isso, pode ser encontrado, de forma lógica, pela palavra inconsciente, uma vez que pode se articular no discurso. Por exemplo, o paciente relata ao analista “tive um sonho erótico com uma mulher”; antes mesmo de qualquer intervenção do analista, ele exclama: “não era a minha mãe!”. Freud (1925) discerne que a negação se constitui como um modo de tomar conhecimento do recalcado pelo “não”; ou seja, o "não" tem o valor de signo da marca, visto que o juízo gera processos por meio dos quais é realizada a inclusão no eu ou a expulsão para fora do eu, tudo em conformidade com o princípio de prazer. Portanto, a Verneinung opera em consonância com a Bejahung, sendo que seu produto pode ser recortado pelo simbólico. Em concordância com Freud, Lacan (1956) pontua que a expulsão produzida pela Verneinung não podeser o mesmo que a expulsão produzida pela Verwerfung, pois esta é anterior a qualquer afirmação primitiva. “A Verwerfung não está no mesmo nível da Verneinung. Quando, no início da psicose, o não simbolizado reaparece no real, há respostas do lado do mecanismo da Verneinung, mas elas são inadequadas” (Lacan, 1956, p. 106). Isso significa dizer que, para o sujeito, ao se deparar com alguma coisa do mundo exterior que não foi primitivamente simbolizada, o seu valor de negação não é o mesmo que a produzida por uma 10 Verneinung, já que não se trata de um sentimento que originalmente suprimiu de uma Bejahung, mas, especificamente daquilo que nunca existiu. A Verwerfung não se encontra na história do sujeito, pois, como Lacan ensina, ela corta qualquer manifestação simbólica na abertura do ser, sendo aquilo que não existiu propriamente. Isso significa que não pode ser constituída como um saber inconsciente. Seu caráter é formado pela percepção da realidade do sujeito, ou, como Lacan diz, "o que não veio à luz do simbólico, aparece no real" (Lacan, 1956, p. 390). No caso de O homem dos lobos, por exemplo, a alucinação aparece no real, pois não existe na pré-história do sujeito. Trata-se de um significante inconsciente, mas que permanecerá exterior ao sujeito, ao qual ele estará ligado. TEMA 4 – UMA VISÃO SOBRE O CONCEITO DA VERWERFUNG A tese central de Lacan, a respeito do mecanismo da psicose, parte da ideia da Verwerfung (“rejeição”). Quando não há a Bejahung, o que se encontra lá é a Verwerfung, que opera uma rejeição primitiva, que se difere da Verneinung (“negação”) e se contrapõe de forma fundamental a Verdrangung (“recalque”), pois trata-se de uma ocorrência anterior à formação de juízo. Lacan (1956, p. 100) define: Ao nível dessa Bejahung pura, primitiva, que pode realizar-se ou não, estabelece-se uma primeira dicotomia – o que teria sido submetido à Bejahung, à simbolização primitiva, terá diversos destinos, o qual cai sob o golpe da Verwerfung primitiva terá um outro. Em Freud, o termo Verwerfung foi usado desde os Estudos sobre histeria (1895), para se referir à recusa do eu em relação às representações insuportáveis, de modo que se comportam como se elas nunca houvessem existido. No entanto, de acordo com o exemplo empregado por Freud, o preço pago por essa defesa implica em uma psicose (quadro de confusão alucinatória). Porém, ele não enunciou essa ideia nesses termos, pois o mecanismo da psicose ainda não tinha sido elaborado. Outra pista deixada por Freud a respeito da Verwerfung, é destacada por Imbriano (2010), em que ele faz uma distinção entre estímulos internos e externos: 11 “Enquanto as últimas podem ser aludidas por meio da fuga, os primeiros (estímulos pulsionais provenientes do interior do organismo) não são suscetíveis de uma evitação desse tipo” (Imbriano, 2010, p. 68, tradução nossa). Segundo a autora, Freud buscava aí uma equivalência, que ele encontra no exercício de repúdio do eu. Em outras palavras, a Verwerfung seria uma forma de rejeitar uma identificação no eu – ou seja, essa rejeição seria o resultado da expulsão de um conteúdo de experiência para fora do eu. Em 1918, Freud apresenta o caso O homem dos lobos, no qual a questão da castração está vinculada ao mecanismo em que o sujeito “nada quer saber”. Nesse contexto, o termo Verwerfung aparece pela primeira vez, sendo contraposto ao mecanismo da Verdrangung (“recalque”). Já nos é de conhecimento a atitude que o nosso paciente adotou, de início, em relação ao problema da castração. Ele a rejeitou e apegava-se à sua teoria de relação sexual pelo ânus. Quando digo que ele o havia rejeitado, o primeiro significado da frase é o de que ele não queria saber nada dela no sentido da repressão. Com isso não se pronunciava nenhum juízo sobre a sua existência, pois era como se não existisse. (Freud, 1918, p. 78) Freud (1918, p. 74) conclui em sua análise que “Todo processo se torna assim característico do modo como trabalha o inconsciente. Uma repressão (Verdrangung) é algo diferente de uma rejeição (Verwerfung)”. Lacan se interessa pelo caso de O homem dos lobos, porque encontra nele os elementos necessários para formular sua tese sobre o conceito de Verwerfung (“rejeição”). Assim, ao analisar a alucinação do dedo cortado, Lacan (1956) consegue demonstrar uma significação que era desconhecida para o sujeito, uma vez que se tratava de um inconsciente externo ao próprio sujeito. Isso permite a Lacan aprofundar sua compreensão do funcionamento psíquico, destacando a dinâmica entre o que é rejeitado e o que permanece no inconsciente. Em O homem dos lobos, o paciente, ainda criança, corta o dedo mindinho e fica angustiado, mas não consegue pedir ajuda à sua babá, que era sua confidente. Ele descreve uma total ausência de fala nesse momento, o que Lacan interpreta como uma suspensão da possibilidade de usar um significante. Além disso, há uma imersão temporal, na qual, apesar do esforço para retornar ao tempo comum, ele 12 não consegue superar a angústia. Lacan destaca a ideia de Freud sobre o “não saber nada” da situação, sugerindo que o que é recusado na ordem simbólica acaba ressurgindo no real. Porém, não se trata do retorno do recalcado, pois, ao contrário do recalcado e do retorno do recalcado, que são essencialmente a mesma coisa e se manifestam de forma articulada em sintomas e outros fenômenos, o que foi rejeitado no sentido de Verwerfung passa a ter um destino completamente distinto. TEMA 5 – A TESE DA FORACLUSÃO A base da tese de Lacan sobre o mecanismo da psicose está fundamentada nos processos primitivos da Verwerfung (“rejeição”), pois é por meio desse termo freudiano que ele desenvolve o cerne de seu entendimento sobre a especificidade da psicose, a qual nomeia de foraclusão. Declara: “A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do significante” (Lacan, 1958, p. 564) O termo foraclusão, como traduzido para o português, tem origem na palavra francesa forclusion, que possui um sentido relacionado ao campo jurídico. A tradução literal para o português é "prescrição", que significa a "perda do direito de exercer ou validar um ato". Como vimos, Lacan considerou a Verwerfung pela ausência da Bejahung (“afirmação” primordial). Assim, a falta dessa afirmação primordial leva à “rejeição de um significante primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível” (Lacan, 1956, p. 178). Nesse contexto, trata-se de um significante que surgiu, pois não é que ele nunca tenha existido, mas seu valor foi prescrito, perdendo a sua significação; dessa forma, ele é rejeitado, como se nunca tivesse existido. A foraclusão é uma operação psíquica com uma consequência estrutural no sujeito. Assim como o recalque (Verdrangung) na neurose, e a negação (Verleugnung) na perversão, a foraclusão refere-se a uma forma de acesso à linguagem que é específica da psicose. 13 E do que se trata a foraclusão? O que é rejeitado? Sua explicação pode ser encontrada na metáfora paterna, em que o significante do nome-do-pai é o significante primordial foracluído no lugar do Outro. O nome-do-pai (NP), estudado quando abordamos a metáfora paterna, é o significante fundamental que se inscreve na neurose como uma lei simbólica que barra o gozo do Outro. Na psicose, ele está foracluído. O pai, nos ensinamentos de Lacan, representa uma função, cujo significante é o NP. Essa função remonta a uma questão edipiana, que é o conceito central das diversas indagações clínicas. O NP, por ser o significante primordial que barra o gozo e subscreve a falta, torna-se a fonte de toda significação, pois garante que o significante possa ser atado ao significado, sustentando a realidade ao produzir sentido. Vamos considerar a seguinte representação: Figura 1 – O significantenome-do-pai (NP) Quando o significante do nome-do-pai ocupa o lugar no Outro, o sujeito pode dirigir as questões fundamentais sobre seu ser (como sexualidade, morte, entre outras) à função simbólica que ele representa. No entanto, na experiência psicótica, o significante do NP é foracluído, o que implica que a metáfora paterna não se 14 concretizou. Assim, o sujeito não alcança a linguagem por meio do simbólico, mas pela via imaginária. NA PRÁTICA A série Bates Motel conta a história de Norma e Norman Bates, mãe e filho que se mudam para uma pequena cidade após a morte misteriosa do pai da família. Lá, eles adquirem um motel, buscando recomeçar a vida. Norma é retratada como uma mulher bonita e sedutora, mas emocionalmente instável, que dedica toda a sua atenção e cuidados ao filho mais novo, Norman. Figura 2 – Os personagens Norma e Norman Bates Crédito: PictureLux/The Hollywood Archive/Alamy/Fotoarena. Norman era um jovem inteligente, atraente e, às vezes, tímido, tendo sua identidade fortemente ligada à mãe. Esse vínculo revela uma dinâmica em que o desejo da mãe não é mediado pelo significante do nome-do-pai, deixando o sujeito à mercê do gozo do Outro (a mãe). Na psicanálise, entendemos que é a vivência edipiana que insere na cena o terceiro elemento, o NP, cuja função é a interdição 15 simbólica, permitindo que criança se separe da mãe e busque sua própria individualidade, distinguindo-se do Outro. Ao observar Norman, verificamos que o tempo todo ele era invadido pelo olhar da mãe, sentindo-se preso a esse olhar onipotente, que tudo via. Portanto, com a chegada de outro personagem em sua história, o xerife, Norman não consegue sustentar o eu que estava apoiado nessa relação dual com a mãe. A saída encontrada por Norman foi o surto. FINALIZANDO Freud sempre se perguntou como uma pessoa se constitui dentro de uma estrutura clínica. Inicialmente, suas investigações focavam em eventos de ordem sexual. Mais tarde, ele diferenciou neurose e psicose: a neurose resulta de um conflito entre o eu e o id, enquanto a psicose decorre de um distúrbio nas relações entre o eu e o mundo externo. Contudo, não chegou a especificar um mecanismo especifico para a psicose, como havia feito com as neuroses. Lacan explora, na origem da vida psíquica, os mecanismos fundamentais que moldam a estrutura do sujeito. Assim, ele aprofunda os conceitos freudianos de Verwerfung e Verneinung, analisando suas implicações mais profundas. A Verwerfung é definida como uma rejeição primordial anterior a qualquer juízo, ligada à ausência da Bejahung (“afirmação” primordial) que resulta na falha da simbolização, fundamental. O sujeito, quando submetido ao golpe da Verwerfung, terá um destino completamente diferente de uma Verdrangung (“recalque”). Assim, Lacan interpreta a Verwerfung como foraclusão, destacando a rejeição do significante primordial, o nome-do-pai (NP), que faz estrutura na psicose. 16 REFERÊNCIAS CÔRTES, C. A. Psicose na psicanálise: escolha ou determinação? Curitiba: Juruá, 2016. FREUD, S. (1899). Carta 125. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 1. FREUD, S. (1913) A disposição à neurose obsessiva: uma contribuição ao problema da escolha da neurose. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996a. v. 12. FREUD, S. (1918) História de uma neurose infantil. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996d. v. 17. FREUD, S. (1924) Neurose e psicose. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996e. v. 19. IMBRIANO, A. Las enseñanzas de las psicoses. Buenos Aires: Letra viva, 2010. LACAN, J. (1958) De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. LACAN, J. (1955/1956) Livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.