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Poder e Espaço na Geografia Política

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GEOGRAFIA POLÍTICA
AULA 1
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Prof. Pedro Vicente de Castro
CONVERSA INICIAL
Nesta aula, você vai aprender sobre o conceito de poder e sua relação com o espaço geográfico.
Poder é um conceito central no estudo da política. Como indivíduos ou grupos adquirem, perdem ou
transferem o poder político, mas também como esse poder é criado, bem como destruído ou
limitado, são objetos clássicos da sociologia e da ciência política. Eleições frequentemente
envolvem a aquisição de poder por um indivíduo ou grupo e a perda desse poder pelos incumbentes,
bem como a transferência pacífica desses para os vitoriosos.
Golpes de Estado e revoluções também, mas, nesses casos, a transferência envolve violência ou
a ameaça de violência. A formação do Estado e das organizações administrativas pelas quais opera,
burocracia e polícia, por sua vez, envolvem a criação do poder político. E sua divisão entre diferentes
órgãos, como parlamentos e cortes judiciais, sua limitação. A decadência do Estado e suas
organizações, por fim, sua destruição.
Mas o que é poder? Teóricos da política discutem o que é poder há séculos. “Poder” é, antes de
tudo, uma palavra. Usamos essa palavra com sentidos diversos e para designar fenômenos
diferentes entre si. Não existe uma essência do poder que existe no mundo, independentemente da
maneira como usamos a palavra poder.
Ainda assim, é útil entender os elementos que constituem e distinguem diferentes fenômenos
que descrevemos com essa palavra. Sociólogos e cientistas políticos enfatizam três concepções de
poder pertinentes para o campo da política: poder decisório, poder de agenda e poder ideológico.
Nesta aula, você vai aprender sobre o que constitui e distingue essas três formas de poder político.
Poder político se relaciona de diversas maneiras com espaço geográfico. O Estado como o
conhecemos é uma organização que reivindica o monopólio do poder sobre um grupo de pessoas
que é identificado principalmente pela sua localização geográfica. Os conceitos tradicionalmente
usados para expressar isso são soberania e território.
Todo o indivíduo dentro do território sobre o qual um Estado reivindica soberania está sujeito ao
seu poder. Ou, pelo menos, é isso que o Estado reivindica. Nesta aula, além de ser introduzido aos
conceitos de soberania e território, você vai ver que, mais do que uma descrição da realidade, eles
são termos retóricos, usados por Estados para legitimarem seu poder e que não refletem toda a
complexidade de relações entre poder e espaço geográfico no mundo real.
TEMA 1 – PODER DECISÓRIO
Frequentemente, quando dizemos que alguém tem poder, estamos dizendo que ele é capaz de
fazer os outros agirem da maneira como ele deseja. Essa é a noção mais intuitiva de poder político:
a capacidade de fazer os outros agirem como se deseja. Poder, nessa visão, é uma relação entre
dois indivíduos. Trata-se de uma relação assimétrica, unidirecional: o indivíduo “A” deseja e “B” age
em conformidade com esse desejo.
Essa relação também supõe um cenário que cientistas sociais chamam de contrafactual, isto é,
supõe que as coisas seriam diferentes se não houvesse uma relação de poder entre esses
indivíduos. “B” age da forma como age porque “A” assim desejou. Se “A” não tivesse poder sobre “B”,
“B” agiria de outra forma.
Essa noção intuitiva de poder é comum às três concepções de poder que veremos na aula. O
que as distingue é a maneira como entendem que é possível que “A” leve “B” a agir da forma como
ele deseja. Uma maneira em como isso pode acontecer é expressa: “A” comanda explicitamente que
“B” aja de certa forma e “B” obedece.
Essa forma de poder expresso, explícito, é capturado pela concepção de poder decisório. Poder
decisório é expresso, explícito, o que significa que seu exercício é diretamente observável.
Observamos o exercício do poder decisório sempre que um indivíduo ou grupo decide e outro
cumpre essa decisão. Esse tipo de poder é observável em relações hierárquicas: aquelas entre o
patrão e seus empregados, entre os pais e seus filhos etc. Em todos esses casos, podemos observar
diretamente uma parte mandando e outra obedecendo.
No contexto da política, observamos o poder decisório sempre que um indivíduo ou grupo toma
uma decisão que vincula outros: isto é, quando outros são obrigados a segui-la independentemente
dos seus próprios desejos. O exemplo central em um país democrático é a produção legislativa:
quando o parlamento aprova uma lei, o que vincula toda a população do país, ele exerce poder sobre
essa população.
Mas podemos ser mais específicos: o parlamento decide pela regra da maioria; a minoria,
derrotada, desaprova a decisão. Por isso, é a maioria parlamentar que exerce poder sobre a
população. Em um regime presidencial, o presidente pode vetar uma lei aprovada pelo parlamento.
Em geral, o veto pode ser derrubado por uma maioria qualificada, isto é, uma maioria superior a 50%
mais um dos votos.
Se aqueles que apoiam a lei vetada não alcançam a maioria exigida, prevalece o status quo, que
eles visavam a alterar. Nesse caso, é a minoria parlamentar, junto com o presidente, que exercem
poder sobre a população como um todo e como sobre a maioria parlamentar.
Nós poderíamos ir adiante e especificar os partidos que constituem a maioria e a minoria, quais
seus líderes etc., mas o importante é que, em cada uma dessa especificações, podemos identificar o
exercício do poder se pudermos observar uma decisão sendo tomada. Por isso, para o cientista
político Robert Dahl a tomada de decisão é o fenômeno empírico cuja observação identifica o
exercício do poder.
Poder é decisão e decisão é observável. Para identificar quem detêm o poder em uma
sociedade, basta identificar quem toma decisões que vinculam aos demais. Em sociedades
democráticas, esses indivíduos ou grupos ocupam posições formais no sistema político: são
parlamentares, presidentes, juízes, governadores, prefeitos etc. Ter poder político, nessas
sociedades, é ocupar alguma dessas posições ou exercer poder por algum meio sobre alguém que
ocupa.
A noção de poder decisório é relacionada com as noções de coerção e dominação, que são
importantes no vocabulário da política. Coerção é a influência exercida sobre as ações de outra
pessoa por meio da ameaça do uso da violência. Coerção, portanto, é um meio para o exercício do
poder. Em uma visão, o poder do Estado é, em última instância, baseado na coerção: a violação das
leis do Estado é passível de punição, em última instância, violenta: privação de bens ou liberdade
contra a vontade de quem está sendo punido.
Já dominação é a situação em que um indivíduo impõe sua vontade sobre outro. Ser dominado
é estar sujeito à vontade de outro. Dominação envolve, portanto, poder, mas é um termo vago,
disputado. Ele pode ser usado para designar desde especificamente o poder arbitrário de um
monarca absoluto, contexto em que é tido por algo a ser combatido, até o poder limitado e
regulamentado de um Estado constitucional contemporâneo (como na expressão dominação
burocrática, de Max Weber), contexto em que é algo inevitável.
TEMA 2 – PODER DE AGENDA
O poder decisório é exercido e observado por meio da decisão. Mas e as questões que não
chegam a ser objeto de uma decisão? Toda decisão envolve uma escolha entre o status quo – isto é,
a maneira como as coisas já são – e uma ou mais alternativas. Em parlamentos, em particular,
projetos de lei são propostas de alteração do status quo.
A decisão tomada pelo parlamento ao votar esses projetos não é entre duas ou mais
alternativas ainda não implementadas, mas entre alguma alternativa desse tipo e o status quo, já
implementado. A derrota de um projeto de lei significa a manutenção desse status quo.
Para dar um exemplo: atualmente, o aborto é proibido no Brasil exceto em circunstâncias
excepcionais, como quando a gravidez é fruto de estupro ou coloca a vida da gestante em risco.
Esse é o status quo. Qualquer decisão sobreo aborto vai envolver uma escolha entre esse status
quo e alguma alternativa. Vamos imaginar que uma maioria dos parlamentares queira flexibilizar a
lei para permitir o aborto sob demanda.
Se isso vai acontecer ou não, depende da vontade de quem tem o poder de colocar um projeto
de lei nesse sentido em votação, isto é, da vontade de quem tem o poder de decidir se o Congresso
vai decidir. Se esse indivíduo ou grupo for contrário à alteração do status quo, ele não colocará a
matéria em votação. A consequência disso é que o status quo será mantido muito embora haja uma
maioria a favor da sua alteração.
Esse poder de decidir o que será objeto de decisão é capturado pela noção de poder de agenda.
Agenda refere-se à pauta de um órgão decisório como o parlamento ou um tribunal: as matérias
sobre as quais ele está “agendado” para decidir. Quem tem poder de agenda tem o poder de impedir
que decisões cujo resultado lhes desagradaria sejam tomadas.
Como no exemplo do aborto, quem tem o poder de agenda antecipa qual será o resultado da
decisão. Se esse resultado lhe agrada, ele pauta a decisão. Caso contrário, ele não a pauta. O status
quo se mantém porque o órgão que tem poder decisório não chega a tomar uma decisão. A decisão
de pautar a decisão é expressa e observável. Mas a decisão de não a pautar, não. Ela é
simplesmente a consequência da ausência da decisão de pautar. Ela é, nesse sentido, uma não
decisão.
A noção de não decisão é central para a discussão dos sociólogos Peter Bachrach e Morton
Baratz sobre as “duas faces do poder”. Bachrach e Baratz argumentam que poder decisório é apenas
uma face do poder. O poder de tomar decisões que vinculam aos demais é, sem dúvida, poder.
Mas não é a única forma de poder. O poder de decidir – e não decidir – se uma decisão será
tomada é igualmente importante. Mas, enquanto o poder decisório é expresso e observável, o poder
de agenda pode ser oculto e não observável. Quando ele é exercido por meio de uma não decisão,
não há qualquer fenômeno empírico que evidencie esse poder.
O que há é a ausência de um fenômeno: decisão. Mas a ausência de decisão pode se dever a
duas causas diferentes: 1. aqueles que têm poder decisório estão satisfeitos com o status quo; ou 2.
eles estão insatisfeitos, mas foram impedidos de tomar uma decisão alterando o status quo pela
ausência de uma decisão daquele que tem poder de agenda. É difícil distinguir qual a verdadeira
causa da não decisão. Logo, diferentemente do poder decisório, o poder de agenda pode ser oculto e
não observável.
Em países democráticos, chefes de governo, sejam presidentes ou primeiros-ministros,
costumam gozar de iniciativa exclusiva em algumas matérias legislativas, isto é, somente eles
podem propor projetos de lei sobre determinados assuntos. Geralmente, o parlamento pode alterar e
emendar o projeto, mas não propor um por conta própria. Isso confere poder de agenda ao chefe de
governo.
Se antecipar que o parlamento vai alterar tanto o projeto a ponto de torná-lo menos atraente que
o status quo, ele simplesmente não propõe o projeto. Essa não decisão impede o parlamento de
decidir e garante a manutenção do status quo, que o chefe de governo prefere à lei que o parlamento
eventualmente aprovaria.
Poder de agenda é frequentemente usado em ciência política para se referir à iniciativa
legislativa de exclusividade do chefe de governo e a prerrogativas semelhantes. Mas a aplicação da
expressão vai além disso. Ela se aplica sempre que algum processo social ou político permite que
um indivíduo ou grupo mantenha uma questão política fora da agenda.
Um exemplo histórico importante é o fim da escravidão nos Estados Unidos. As lideranças
políticas do período pós-independência sabiam que, se o fim da escravidão fosse votado pelo
Congresso, ele seria aprovado. A escravidão contava com apoio incondicional apenas nos estados
do sul, que não contavam com maioria no Congresso. O receio das lideranças era de que, se o
Congresso acabasse com a escravidão, os estados do sul se separariam do restante do país (que foi
o que, no fim das contas, aconteceu).
Por isso, elas entraram em um acordo tácito para manter o fim da escravidão fora da agenda.
Isso significava não apenas não submeter a questão a votação no Congresso, mas sequer discuti-la:
os partidos políticos americanos da primeira metade do século XIX, silentes sobre a escravidão,
eram fruto desse acordo tácito para a não politização do tema. O acordo só foi rompido com a
emergência de um novo partido político, o republicano, comandado por novas lideranças e que tinha
o abolicionismo como principal bandeira.
TEMA 3 – PODER IDEOLÓGICO
As concepções de poder decisório e de agenda supõem um conflito de desejos. Lembre-se que
ambas supõem um cenário contrafactual; supõe que as coisas seriam diferentes se não houvesse
uma relação de poder entre esses indivíduos. “B” age da forma como age porque “A” assim desejou.
Se “A” não tivesse poder sobre “B”, “B” agiria de outra forma.
No caso do poder decisório, “B” age da forma como age porque “A” tomou uma decisão
expressa nesse sentido. No caso do poder de agenda, “B” age da forma como age porque isso é
exigido sob o status quo e “A” impediu o status quo de ser alterado por meio de uma não decisão.
Em ambos os casos, “B” agiria de outra forma se “A” não tivesse decidido ou se o status quo fosse
outro.
Uma situação em que isso pode ser o caso é aquela em que os desejos de “A” e “B” são
conflitantes: “A” quer algo diferente do que “B” quer. “B” só age da forma como age porque “A” tem o
poder de impor seu desejo a ela por meio de uma decisão ou uma não decisão. Se “A” não tivesse
esse poder, “B” agiria da forma que deseja, que é contrária ao desejo da “A”.
A concepção de poder ideológico aponta que essa não é a única situação em que “A” pode
exercer poder sobre “B”. Isso também pode ocorrer muito embora os desejos de “A” e “B” não sejam
conflitantes. Nessa situação, o poder de “A” não consiste em fazer “B” agir em desacordo com seus
próprios desejos, mas em fazer “B” desenvolver os desejos que “A” deseja que ela tenha: em fazer
“B” querer o que “A” quer que ela queira.
De acordo com a concepção de poder ideológico, há circunstâncias em que “B” agiria de outra
forma se “A” não tivesse poder sobre ela não porque agiria da forma que deseja, mas porque teria
outros desejos. Sob o poder de “A”, “B” age como deseja, mas seus desejos são diferentes daqueles
que teria se não fosse sujeita ao poder de “A”.
Esse é o ponto central da discussão do sociólogo Steven Lukes sobre a “terceira face do poder”.
Lukes se inspira principalmente na tradição de teorias marxistas sobre ideologia. Essa tradição
buscava explicar por que o capitalismo sobrevivia apesar de, de acordo com teorias marxistas, ser
contra o interesse da maioria da população.
Uma resposta é que o capitalismo não sobrevive apesar dos desejos dessa população, mas em
virtude deles. A população na verdade apoia o sistema e é por isso que ele sobrevive. Acontece que
os desejos da população são contrários aos seus “verdadeiros” interesses. A percepção que ela tem
do seu próprio interesse é incorreta. Ela tem uma “falsa consciência” da realidade e do seu interesse
em alterá-la.
Isso nos leva à grande dificuldade de que a concepção de poder ideológico sofre: ela supõe que
aquele que é dominado dessa forma têm uma falsa concepção do seu próprio interesse. Isso, por
sua vez, depende de supor que as pessoas têm um verdadeiro interesse que pode ser diferente da
percepção que elas próprias têm de qual seja. Isso, por sua vez, levanta a questão: Quem está em
posição de identificar qual o verdadeiro interesse das pessoas?
Como vimos, o poder decisório é expresso, observável: ele é evidenciado pela tomada de uma
decisão que vincula aos demais. O poder de agenda nem sempre é: quando ele é exercido por meio
de uma não decisão, pode ser difícil encontrar evidências de sua existência. Mas ambos supõem
que há alguémque é obrigado a agir contra seu próprio desejo. Essa pessoa sabe disso e isso é, a
princípio, observável.
As concepções de poder decisório e de agenda tomam os desejos das pessoas pelo valor de
face. Já o poder ideológico, não. Alguém pode ser dominado ideologicamente muito embora não
seja obrigado a agir contra seu desejo. Os desejos das pessoas são suspeitos. Eles podem ser
contrários aos seus verdadeiros interesses. Mas esses verdadeiros interesses não são observáveis,
nem mesmo a princípio. Eles não são um fenômeno empírico. Eles são uma suposição teórica,
contrafactual sobre que desejos as pessoas teriam caso não fossem ideologicamente dominadas.
Essa desconfiança em relação aos desejos das pessoas leva ao risco de que a concepção de
poder ideológico seja usada por um grupo para justificar sua ação contra esses desejos. Esse grupo
pode argumentar que está agindo contra os desejos das pessoas, mas em conformidade com seus
verdadeiros interesses. A população não sabe quais são esses interesses, mas os membros desse
grupo sabem.
E isso justifica que desconsiderem os desejos dela. Dessa forma, o grupo pode exercer poder
decisório e de agenda sobre a população, ao mesmo tempo em que reivindica que a está libertando
do poder ideológico. É o que muitas “vanguardas revolucionárias” fizeram no século XX. O problema
é que, sendo os verdadeiros interesses das pessoas uma suposição teórica, a reivindicação dessas
vanguardas não pode ser desmentida por fatos.
O fato de que a população discorda de suas ações é irrelevante, dado que seus desejos não
refletem seus verdadeiros interesses. A concepção de poder ideológico corre o risco de virar uma
carta branca para que grupos dominem pessoas reais dizendo que estão libertando seus
verdadeiros “eus”, que são puramente imaginários, como o filósofo Isaiah Berlin alerta.
Muito embora sofra com essa dificuldade, a concepção de poder ideológico não precisa ser
descartada. Ela é pertinente sempre que se argumenta que um grupo, além de dominado pelo poder
decisório e de agenda de outro, ainda “internaliza” o discurso que justifica sua dominação: como o
camponês que se curva sempre que o senhor de sua terra passa.
Contudo, como o antropólogo James Scott ressalva, esses argumentos devem ser encarados
com ceticismo: o dominado pode repetir o discurso que justifica sua condição como uma estratégia
de sobrevivência. Dado que ele não tem o poder de alterar sua condição, protestar verbalmente
contra ela pode só tornar sua situação ainda pior. Isso não significa necessariamente que ele aceita
essa situação. Apenas que é impotente para alterá-la.
A concepção de poder ideológico é útil para entender o conceito de autoridade. Poder é um
elemento da autoridade. Mas a autoridade vai além de poder. É o poder acompanhado da
reivindicação de que ele é justo, bom ou legítimo. Se aquele que é dominado aceita essa
reivindicação, podemos dizer que ele é dominado ideologicamente.
Em teoria, a fonte do poder pode ser exclusivamente a aceitação da reivindicação de autoridade.
Se “B” aceita que é justo, bom ou legítimo que “A” mande em si, então isso é suficiente para que “B”
obedeça a “A”. Mas, em casos que envolvem política, esse raramente é o caso. A autoridade
geralmente acompanha o exercício do poder por outros meios.
TEMA 4 – SOBERANIA
Uma maneira influente de conceber a relação entre poder político e espaço geográfico é por
meio da díade de conceitos soberania-território. Soberania é um termo importante na história do
pensamento político. Um sentido usual refere-se ao caráter supostamente ilimitado e incontrastado
do poder de que um Estado gozaria em relação àqueles sujeitos à sua autoridade.
Outro sentido, associado ao primeiro refere-se à suposta ausência de uma autoridade superior
aos Estados, que possa lhes impor limites. Essa noção de soberania é importante na maneira como
concebemos as relações entre os Estados: nessas relações, eles não estariam sujeitos a nenhuma
autoridade a não ser aquela com que eles próprios consentem por meio de tratados internacionais.
Historicamente, contudo, soberania é um termo retórico usado por apologistas para justificar o
poder que monarcas estavam crescentemente adquirindo, mas ainda não possuíam de fato e, na
verdade, nunca viriam a possuir. Por isso, o conceito de soberania reflete mais uma ambição do que
uma realidade.
A relação entre príncipes e a Igreja Católica sempre foi contenciosa. Mas, até o fim da Idade
Média, a sujeição dos príncipes à autoridade da Igreja, ao menos simbolicamente, era amplamente
reconhecida. A Igreja não dispunha de mecanismos para fazer valer sua vontade contra a de um
príncipe por contra própria. Mas a declaração de um papa tomando partido em uma disputa entre
pretendentes ao trono, por exemplo, justificava o recurso à força por aquele apoiado pela Igreja.
Príncipes também tinham de conviver com nobres que tinham fontes de poder próprias, na forma de
riquezas, tropas e alianças políticas.
Conforme monarcas afirmavam sua independência em relação à Igreja e buscavam impor-se
sobre a nobreza, seus apologistas buscavam um vocabulário para justificar esses desenvolvimentos.
É nesse contexto que o conceito de soberania ganha centralidade no vocabulário político europeu.
Vários autores o mobilizam na defesa de seu arranjo constitucional preferido. Mas um que é
marcante e cuja discussão deixa claro o caráter aspiracional (em vez de descritivo) do conceito é
Thomas Hobbes. Hobbes é um defensor do caráter absoluto do poder do soberano.
Seu argumento é de que isso é um pré-requisito para a manutenção da paz civil, que, por sua
vez, é um pré-requisito para o desempenho de qualquer atividade humana que tenha valor. Na
ausência de um soberano absoluto, estaríamos no “estado de natureza”.
O estado de natureza era um artifício retórico utilizado por muitos autores nos séculos XVII-XVIII
em argumentos sobre política. Trata-se de um cenário imaginário ou contrafactual: como seria o
mundo se não houvessem instituições políticas? Cada autor pintava esse cenário da melhor forma
para sustentar o argumento que queria fazer sobre como essas instituições deveriam ser. Hobbes
pinta esse cenário de maneira sombria:
Numa tal condição não há lugar para o trabalho, pois o seu fruto é incerto; consequentemente, não
há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar;
não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam
de grande força; não há conhecimento da face da Terra, bem cômputo do tempo, nem artes, nem
letras; não há sociedade; e o que é pior de tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a
vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta. (p. 109)
Para sair desse cenário, as pessoas precisam consentir com o poder absoluto de um soberano.
Esse soberano então delegará seu poder a instituições inferiores para criar e aplicar leis e tomar as
demais medidas necessárias para a manutenção da paz civil. Mas por que o poder do soberano
precisa ser absoluto? Um soberano não pode tomar as medidas necessárias para manter a paz civil
sem ter carta branca para fazer o que bem entender? A resposta de Hobbes é “não”.
Caso haja limites para a autoridade do soberano, deverá haver algum órgão para violações
desses limites e fazê-los valer, caso contrário eles serão inócuos. No limite, o conflito entre o
soberano e esse órgão pode se tornar violento e degringolar em guerra civil. Hobbes escreve na
sequência da Guerra Civil Inglesa, provocada precisamente por um conflito desse tipo: rei e
parlamento discordavam sobre a existência de limitações à autoridade do primeiro e, eventualmente,
foram levados a resolver suas diferenças no campo de batalha. O argumento de Hobbes não é mera
abstração. Havia um referente concreto, compartilhado por todos, no momento em que ele escrevia.
O poder absoluto, o que Hobbes designa por soberania, é a única que garante, portanto,a paz
civil. Outros arranjos contêm o germe da guerra civil. Hobbes concede que esse poder pode ser
exercido por uma assembleia, muito embora ache preferível depositá-lo em uma única pessoa.
Seja como for, o arranjo constitucional que defende não é compatível com limites ao poder (na
forma de direitos fundamentais, por exemplo), com separação dos poderes ou com federalismo, em
que há a divisão de competências entre estados e governo federal. Isto é, o arranjo constitucional
que expressa a soberania como Hobbes a via é incompatível com elementos dos arranjos
constitucionais adotados por vários países atualmente. Isso reflete o fato de que, muito embora os
argumentos de Hobbes tenham sido muito influentes, a proposta política específica que ele defendia
não foi a vitoriosa. Aparentemente, não há soberano nos países contemporâneos.
Uma possibilidade para conciliar direitos fundamentais e separação de poderes com o conceito
de soberania é argumentar, como o teórico político Carl Schmidt, que, embora exerça um poder
absoluto na política cotidiana, em situações extraordinárias, de emergência nacional, alguém precisa
assumir um poder desse tipo. Caso contrário, o arranjo constitucional entrará em colapso.
O poder absoluto, portanto, longe de incompatível com o poder limitado da política cotidiana, é
uma pré-condição para ele. Mas é no mínimo duvidoso que, mesmo que seja necessário conceder
poder absoluto a um indivíduo em situações de emergência nacional, isso signifique que ele é o
soberano e, portanto, na verdade goza desse poder o tempo todo.
Outra possibilidade é argumentar que a soberania não reside em um indivíduo, mas no povo
como um todo, que nunca abre mão do poder de substituir o arranjo constitucional existente por
outro. Mas é difícil conceber como isso pode ser verdade quando o povo nunca exerce e, na verdade,
é incapaz de exercer qualquer poder senão por meio do arranjo constitucional existente.
Em vez de tentar salvar a ideia de soberania, podemos simplesmente reconhecer que ela foi,
desde o princípio, um termo retórico, que reflete mais uma ambição do que uma realidade. Ela era
usada pelos apologistas de monarcas europeus para justificar a pretensão que esses governantes
tinham ao poder absoluto.
Esses monarcas realmente tiveram sucesso em se desvencilhar da Igreja Católica e consolidar
seu domínio sobre a nobreza de seus países. Mas eles nunca chegaram a exercer o poder absoluto
que sua retórica oficial alardeava. Isso é ainda mais verdade dos governantes contemporâneos de
países onde há direitos fundamentais, separação de poderes ou federalismo.
TEMA 5 – TERRITÓRIO
Território é o outro lado da moeda da soberania. No imaginário político contemporâneo, não há
indivíduo ou órgão que seja soberano, mas o Estado como um todo seria. A soberania seria um
atributo do Estado, ainda que Estado refira-se a diversas organizações políticas diferentes, como
parlamento, judiciário, burocracia e polícia. De alguma forma, em seu conjunto, essas organizações
políticas deteriam a soberania.
Todo Estado seria soberano. Mas existem vários Estados. Como todos podem ser soberanos ao
mesmo tempo? Como todos podem ter poder absoluto ao mesmo tempo? Se um tem poder
absoluto, isso não significa que os demais estão sujeitos a ele e, por isso, não podem ter igualmente
poder absoluto? Território é a resposta para essas questões.
No imaginário político contemporâneo, Estados exercem soberania sobre um determinado
espaço geográfico chamado território. Diferentes Estados podem exercer soberania sobre territórios
não coincidentes, mas não sobre o mesmo território.
Nesse contexto, território não é um pedaço de terra. Não é algo que tenha uma existência física.
Estados não exercem poder sobre pedaços de terra. Eles exercem poder sobre pessoas. Território é
o que determina sobre quais pessoas Estados exercem poder.
Fronteiras, que delimitam um território no espaço geográfico, marcam uma descontinuidade na
relação entre os Estados e as pessoas: aquelas localizadas para cá das fronteiras e, portanto, dentro
do território estão submetidas ao poder do Estado de uma maneira diferente do que aquelas que
estão para lá das fronteiras e, portanto, fora do território.
Não que Estados não exerçam poder sobre aqueles que estão fora do território ou tratem
igualmente aqueles que estão dentro. Mas o território é o que determina que tipo de poder o Estado
pode ou não pode exercer sobre as pessoas. A cidadania que pode estender o poder do Estado
sobre alguém para além do território ou limitá-lo para aquém é ela própria determinada pelo
território: deriva do local de nascimento da pessoa ou do local de nascimento de seus
antepassados.
Essa visão da relação entre poder e território leva à uma concepção do exercício do poder
político igualmente marcada pela descontinuidade da fronteira. Dentro do território, teríamos o
Estado como fonte de poder e autoridade últimas, todas as demais organizações políticas sendo
subordinadas a ele: o plano da política interna.
Para além do território, teríamos Estados relacionando-se entre si e exclusivamente entre si: o
plano da política externa. Esse modelo, contudo, é uma distorção da realidade e pode nos levar a
ignorar ou compreender mal as maneiras em que ela diverge do esperado. Isso é o que o geógrafo
John Agnew chama de armadilha territorial.
Na verdade, não existe a forte descontinuidade entre política interna e política externa que a
visão comum sobre a relação entre poder e território sugere. Estados não exercem um poder
incontrastado dentro de seu território. Frequentemente, convivem com outras organizações, não
subordinadas a ele, que também exercem poder. Há Estados cujos territórios são parcialmente
controlados por organizações criminosas ou guerrilhas armadas, inspiradas por ideologias
extremistas ou não.
O caso de Estados “falidos”, como a Somália, cujo governo reconhecido internacionalmente só
tem controle militar da região ao redor da capital, Mogadíscio, é um exemplo extremo de uma
realidade que, em menor grau, é encontrada em muitos países. A armadilha territorial nos leva a ver
esses casos como excepcionais e desviantes. Mas, na verdade, historicamente o convívio e a
disputa entre diferentes organizações políticos em um mesmo território é a norma, não a exceção.
De maneira semelhante, não há uma separação drástica entre política interna e política externa.
Política externa é frequentemente praticada com vistas à política interna: uma guerra vitoriosa pode
aumentar o apoio doméstico de um líder político e fazer a diferença para sua sobrevivência. Além
disso, Estados não são como indivíduos com vontades próprios que se relacionam entre si. São um
conjunto de instituições povoados por indivíduos e grupos.
Esses grupos interagem entre si influenciando e sendo influenciados por aqueles sob outros
Estados. Ao longo da história europeia, a interferência de outros príncipes em disputas internas pelo
poder foi a regra. Disputas sobre a sucessão eram frequentemente o estopim para as guerras e o
redesenho das fronteiras entre os países.
Já no século XX, durante a Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética estavam envolvidos na
política interna dos outros países, apoiando grupos políticos simpáticos e tentando influenciar a
partir de dentro a política desses países em um sentido favorável aos seus interesses.
Isso não significa que a díade de conceitos soberania-território deva ser descartada, mas sim
que os discursos que os mobilizam devem ser tomados com um grão de sal. Como ocorre com
soberania, os discursos que mobilizam o conceito de território são frequentemente mais
aspiracionais que descritivos; refletem uma ambição, não uma realidade. São discursos que buscam
afirmam o poder do Estado contra organizações políticas concorrentes. Mas isso não nos deve
cegar para o fato de que elas existem.
NA PRÁTICA
Dramas políticos, para o cinema e para a televisão, costumam trazer muitos exemplos de poderdecisório e poder de agenda. Um clássico do gênero é Mr. Smitth goes to Washington (que no Brasil
recebeu o infeliz título A mulher faz o homem). O filme retrata, entre outras coisas, um “filibuster” no
Senado dos Estados Unidos.
O “filibuster” é um instrumento pelo qual uma pessoa pode impedir o Senado de prosseguir com
uma votação. Para derrubar um “filibuster”, é preciso uma supermaioria, de 60% dos votos. Isso
significa que, se uma minoria de mais de 40% não quiser que a votação seja concluída porque
antecipa que será derrotada, ela pode impedir que a votação prossiga. Trata-se de um clássico
exemplo de poder de agenda.
Sobre o poder que a ideologia pode ter de fazer as pessoas adquirirem uma imagem falsa da
realidade e, por isso, colaborarem com seus dominadores, um exemplo clássico é o romance 1984,
de George Orwell. Orwell retrata uma sociedade imaginária em que a ideologia foi longe a ponto de
alterar a própria língua que as pessoas falam e privá-las do vocabulário para caracterizar sua própria
condição de dominação.
FINALIZANDO
Nesta aula, você aprendeu sobre o conceito de poder e sua relação com o espaço geográfico.
Poder é um conceito central no estudo da política. Teóricos da política discutem o que é poder há
século. Você também aprendeu sobre três concepções de poder pertinentes para o campo da
política que são enfatizadas por sociólogos e cientistas: poder decisório, poder de agenda e poder
ideológico.
Poder decisório é o poder de tomar uma decisão que se vincula aos demais. Poder de agenda é
o poder de decidir sobre que questões serão decididas. Já poder ideológico é o poder de fazer os
outros desenvolverem os desejos que se deseja que eles tenham. Cada concepção aponta para um
aspecto importante da política, mas cada uma também tem suas limitações e fraquezas.
Nesta aula, você aprendeu ainda sobre os conceitos de soberania e território. Soberania é o
poder ilimitado e incontrastado supostamente exercido pelo Estado. Esse poder é exercido sobre
pessoas cuja relação com o Estado é determinada por sua relação com um espaço geográfico
delimitado: o território.
Você viu como soberania e território refletem mais uma ambição dos Estados do que uma
realidade. Nenhum Estado exerce o poder ilimitado que teóricos políticos como Thomas Hobbes lhe
atribuíram. E o poder de muitos Estados convive e é desafiado pelo de outras organizações dentro
do mesmo território. A forma de Estado que chega mais perto de realizar as ambições expressas
pela díade de conceitos soberania-território é o Estado nacional.
REFERÊNCIAS
BACHRACH, P.; BARATZ, M. S. Decisions and Nondecisions: an analytical framework. American
Political Science Review, v. 57, n. 3, p. 632-642, 1963.
BERLIN, I. Two Concepts of Liberty. Oxford: Oxford University Press, 1958.
DAHL, R. A. The concept of power. Behavioral Science, v. 2, n. 3, p. 201-215, 1957.
LUKES, S. Power: a radical view. Macmillan International Higher Education, 1974.
SCOTT, J. C. Domination & the Arts of Resistance: Hidden Transcripts. New Haven: Yale
University Press, 1992.

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