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Título: Voltando à problemática da tipologia regras e princípios: primeiro ensaio. Fábio Corrêa Souza de Oliveira Sumário: 1) Nota inicial. 2) Por que afirmou-se o caráter normativo dos princípios? 3) Princípios e seu caráter normativo na história constitucional brasileira: 1988 não é ano zero. 4) Regra-subsunção, princípio-ponderação? 5) Um mesmo caso: fácil e/ou difícil? 6) Interpretação/ponderação em etapas? O nó da metodologia. 7) O que vale mais: regra ou princípio? 8) Um mesmo texto: regra e/ou princípio? 9) O dilema dos critérios distintivos entre regras e princípios. 10) Estudo de casos. Caso 1) Um momento contemporâneo anterior: pré-positivista. A posição institucional. Caso 2) Um momento contemporâneo atual: pós-positivismo? União entre pessoas do mesmo sexo. 11) Considerações finais. 12) Referências bibliográficas. Resumo: Este texto retoma a discussão da sistemática classificatória das normas em regras e princípios, temática que, sem embargo de congregar expressivo volume de escritos (livros, artigos, dissertações, teses), permanece, no Brasil e no mundo, em aberto, suscitando polêmicas, demandando novas reflexões. Em uma perspectiva revisionista, tanto da doutrina majoritária quanto daquela posta em reformulação, assinala desde a fundamentação da afirmativa da normatividade dos princípios até pilares da tipologia como, em síntese, a problemática (insuficiência) da metodologia. Este texto foi escrito com a colaboração de Larissa Pinha de Oliveira, Bacharel em Direito e Mestranda em Direito pela PUC/RJ, Bolsista da CAPES, especialmente distinguida pelo desempenho acadêmico. Agradeço ao Professor Miguel Ángel Presno Linera, Titular de Direito Constitucional da Universidade de Oviedo (Espanha), pela interlocução acerca do presente texto, pelos apontamentos cuidadosamente enviados e pelas conversas que tivemos quando dos dias chuvosos e não menos alegres na serra. De Miguel Presno, La estructura de las normas de los derechos fundamentales, capítulo do livro Teoría general de los derechos fundamentales en la Constitución Española de 1978. Madrid: Tecnos, 2005, p. 45-56. Meu obrigado também ao Professor Lenio Streck, referência que norteia este estudo, pelos diversos comentários feitos e pela querida companhia no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da UNESA. Professor do Mestrado/Doutorado em Direito da Universidade Estácio de Sá (UNESA). Professor de Direito Administrativo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de Direito Constitucional da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador Visitante e Pós-Graduação Lato Sensu na Faculdade de Direito de Coimbra (2004). Pesquisador do CNPQ. Registra também pontos que demonstram que teorias que disputam a explicação da qualificação e operação das regras e princípios estão mais próximas umas das outras do que imaginam e mesmo se confundem. Por fim, dois casos emblemáticos são tomados em estudo. O escrito adota o modelo de ensaio, o primeiro de, pelo menos, dois. Palavras-chave: Regra, Princípio, Tipologia, Hermenêutica. Abstract: This paper revisits the discussion about the systematic classification of norms in rules and principles, a topic that, notwithstanding the large volume of writings, such as books, articles, dissertations, theses, remains in Brazil and worldwide, open, posing controversial, requiring further reflection. In a revisionist perspective of both the majority doctrine and that called into reformulation, this study intends to approach the reasoning of the normative statement of principles and also the pillars of the typology, such as the problem (failure) of methodology. It also aims to analyse the aspects in which the theories that dispute the qualification and operation of rules and principles are closer than they think and even overlap. Finally, two leading cases are taken under consideration. This article adopts the essay model, the first of at least two. Keywords: Rule, Principle, Typology, Hermeutics. 1) Nota inicial A nossa Dissertação de Mestrado, defendida em 2002, assumiu, quando da publicação, o título: Por uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade. Não foi especialmente um trabalho voltado para a análise – classificatória, operativa, interpretação/aplicação – das regras e dos princípios, mas, como o próprio título alude e natural em razão também do subtítulo, enfocou a problemática. Em 2007, o livro teve lançada a sua 2ª edição. 1 Entre 2003 e 2007 e até hoje, a questão seguiu ocupando a nossa atenção, mas não em primeiro plano, em primazia. Já em 2003 ocorreu a candidatura para o Doutorado, o qual teve início em 2004, com Tese versada em outra matéria: a 1 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Por uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da razoabilidade. 2.ed. Rev. Atual. Ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Constituição Dirigente. 2 Se as temáticas do Mestrado e do Doutorado podem nos acompanhar por toda a vida acadêmica, o fato é que, em nosso caso, a Tese não foi uma continuidade da Dissertação. Daí que nos afastamos relativamente da questão regras e princípios. Todavia, seguimos acompanhando o desdobrar teórico concernente. Por ocasião da 2ª ed., fizemos uma reengenharia – uma reconstrução – de passagens do texto originalmente publicado. 3 Foi, sem embargo, antes uma mudança de estilo do que de conteúdo, conforme exposto adiante. De lá para cá, observando a contínua produção a respeito, pensamos, por algumas vezes, em nos dedicar à retomada da análise doutrinária pertinente à tipologia das duas espécies normativas em pauta. Tal impulso motivado pela falta de uma concordância teorética ampliada ou consolidada sobre a categorização, apesar dos esforços despendidos neste sentido, o que mostra tanto a complexidade do tema quanto embaraços de sistematizações propostas. Por esta razão é que o presente artigo registra críticas inclusive a entendimentos que, ao menos aparentemente, angariaram foros de difundido (mas não unânime) consenso. Neste território, não há paz na academia e nem na jurisprudência. Trata-se, sobretudo, de um ensaio, o primeiro de pelo menos dois; apontamentos iniciais ou norteadores de um caminho reflexivo que se permanece a percorrer. Este trajeto, se parcialmente desanuviado das brumas, contém setas indicando direções diferentes, opostas e mesmo circulares. É, acima de tudo, um ensaio, porque, confessemos, antes propriamente de um encontro marcado, previamente e exclusivamente aguardado, o problema nos enredou novamente, nos surpreendeu em uma esquina do percurso. Vamos, sem contornos, a ele então. 2) Por que afirmou-se o caráter normativo dos princípios? Esta deve ser a primeira pergunta. Embora nem sempre seja feita. É a primeira indagação porque é guia para a compreensão de todo o mais. A resposta informa tantos outros entendimentos, é pedra de toque da elaboração que emoldura as regras e os princípios. Não há acaso: não é casual, é causal. 2 Defendida em dezembro de 2006 e publicada em 2010. OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Morte e vida da Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. 3 Isto, no que tange ao objeto deste ensaio, a partir do diálogo travado com o Professor Humberto Ávila, autor de uma das principais obras sobre o assunto. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3.ed. Aum. São Paulo: Malheiros, 2004. A procura por atender à interrogação encontraesteio, entre outros, em Ronald Dworkin, um dos corifeus – muitas vezes citado como o principal nome – da doutrina que sustenta a natureza normativa dos princípios. Dworkin, ao asseverar que princípio é norma, tem um alvo certo: combater a discricionariedade, como traço de identidade do positivismo. O ataque empreendido por Dworkin tem por mira o strong sense of discretion, segundo o qual o julgador está autorizado a decidir, ao menos em certas hipóteses – e a freqüência com que estas se dão é aspecto de controvérsia –, por critérios próprios, subjetivos, por padrões extrajurídicos, isto é, o julgamento posto fora do Direito. A deliberação seria estranha ao Direito em função da própria incapacidade do Direito de fornecer resposta ao problema. Como o juiz não encontra no sistema jurídico qualquer baliza para conformar o ato decisório, está autorizado ou, melhor, fadado, vez que fator contingencial que independe do julgador mesmo, a resolver o caso adotando parâmetros alheios ao legal system: o Direito é estranho, nada tem a dizer ao julgado. Assim, o juiz se vê na circunstância de decidir conforme a sua consciência, pelo discernimento particular, individual, pela sua livre convicção. 4 Tal acontece como fruto da open texture a que se refere Herbert Hart. Como o Direito não regula, não prevê, ninguém (nenhum dos interessados) possui direito a nada, não há direito a obter determinada sentença. O juiz, desvinculado, se faz em legislador e, mais grave, em legislador retroativo. É, pois, diante da pintura deste cenário, que Dworkin sustenta o caráter normativo dos princípios, ou seja, como ingrediente contra a discricionariedade na acepção forte: o remédio é jurídico. Perante apreensões embaralhadas, injustificadas, da tese dworkiniana, cumpre realçar: Dworkin não aposta no voluntarismo, no decisionismo, no solipsismo, no, nesta linha, ativismo judicial, não assina em favor de qualquer Governo de Juízes. Exatamente o contrário: Dworkin não quer conferir um espaço maior de deliberação ao juiz; ao invés, sua intenção é a de apresentar uma teoria que restrinja ou, melhor, suprima a pretensa esfera de liberdade de avaliação, concebida como discricionariedade forte. Quando não existe regra a disciplinar o caso, há, invariavelmente, princípio e, calha ressaltar mais uma vez, princípio é norma, daí porque vincula, conforma, obriga. 4 Leia-se STRECK, Lenio. O que é isto decido conforme a minha consciência?Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. Do que se expõe é cabível contestar uma noção bastante espraiada: a de que a ascensão dos princípios, o reconhecimento da sua força jurídica, implicou um deslocamento de discricionariedade do Legislativo e/ou do Executivo para o Judiciário, com a qual se operou uma mudança do centro de gravidade das reflexões políticas, morais, o que pode ser traduzido pelas expressões judicialização da política e politização da justiça. Ora, o equívoco é manifesto. Não há relação de causa e efeito entre a admissão da juridicidade dos princípios e o crescimento da influência do Judiciário no mundo da vida, na dinâmica da vida individual ou coletiva. A normatividade dos princípios, ao lado das regras, não acarreta, por si apenas, transferência de poder e muito menos de discricionariedade do legislador e/ou do administrador para o juiz. A condição de norma dos princípios denota vinculação para os três Poderes. Em outras palavras, a diminuição do espaço de discricionariedade é conseqüência genérica, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário se vêem mais circunscritos, limitados e condicionados, em suas deliberações. Não existe perda de discricionariedade do Parlamento e/ou do Executivo em benefício de um aumento discricionário da magistratura. O ganho de papel do Judiciário encontra explicação em outras causas, fáticas e normativas. É comum se afirmar que o protagonismo jurisdicional é devido ao perfil da legislação, notadamente, no que mais importa aqui, à índole da Constituição: uma Carta de cunho analítico, dirigente, enseja uma atuação proeminente da judicatura. Todavia, não há relação necessária. A postura mais ou menos ativa do Judiciário é delineada também por circunstâncias de ordem factual: a cultura/tradição, as crises institucionais (a exemplo da democracia representativa), condutas de estratégia. É claro que estão interligadas com o sistema legal, mas não se justificam somente por este prisma. É evidente que o arranjo institucional (entre os Poderes) e social (entre os Poderes e a comunidade, bem como no interior dela mesma, enquanto âmbito autônomo) – diálogos institucionais e sociais –, estabelecido pelo ordenamento jurídico, desenha, com traçado mais ou menos forte, na variável conjuntural do contato com a facticidade, a face do Judiciário. Mas a expressão que a silueta encarará espelha para além da normatividade. O que se quer pontuar é que a teoria normativa dos princípios não é responsável por um Judiciário Ativista, não alicerça uma ampliação ou alargamento da jurisdição: isto nem é seu pressuposto e nem sua conseqüência. Desta maneira, conquanto sob o paradigma da normatividade dos princípios, a atuação do Judiciário será distinta, em conta do contexto fático-normativo, como ilustram, em comparação, Estados Unidos, Inglaterra e Brasil. Por fim, vale sublinhar que a réplica ao questionamento que intitula este tópico pode ser diferente, distinta da fornecida por Dworkin. Para não restar dúvida: os princípios, em Dworkin, somente admitem a discricionariedade compreendida como a pertinente aos juízos de empate, isto é, quando, após todos os exames apropriados, após a leitura moral da Constituição, depois de assimilado o Direito como integridade, ainda não é possível determinar qual a solução acertada (a melhor e, por isto, a exclusiva). E o autor põe em dúvida a existência destas hipóteses, as quais, se é que se confirmam, são extremamente raras, exóticas. Nesta esteira, a tese da única resposta certa. Muitos autores ofereceram outras respostas, distintas. Robert Alexy, por exemplo. A dimension of weight or importance, consoante Dworkin, não é igual à ponderação disposta por Alexy. Daí porque Alexy discorda do que denomina de teoria forte dos princípios, também chamada teoria material da argumentação jurídica. Na doutrina brasileira, a maioria parece não comungar com a tese esposada por Dworkin. É proveitoso, sem embargo, explicitar como fica, então, a problemática da discricionariedade, vez que termômetro para medir o rompimento ou não com o positivismo/relativismo. No limite, pode acontecer tamanho desacoplamento do propósito que fundamentou o impulso em favor da qualidade normativa dos princípios que capaz de descaracterizar, essencialmente, a base da doutrina. Algo como um Frankstein. 3) Princípios e seu caráter normativo na história constitucional brasileira: 1988 não é ano zero Nem tudo começou no dia 5 de outubro de 1988. É freqüente a assertiva de que foi a Constituição Cidadã que propiciou, como decorrência do seu texto, a normatividade dos princípios. A Carta vigente teria inaugurado uma plataforma constitucional apta ao acolhimento da compreensão de que princípio é norma. Ostentaria, desta feita, o status de originalidade: a Constituição de 1988 é que teria dado a partida à formulação da natureza jurídica dos princípios. Porém, esta idéia não se mantém. A Constituição atual não foi a primeira, na história brasileira, a elencar dispositivos, a trazer enunciados que oportunizam princípios. Um olhar ligeiro pelas Constituições do Brasil vai revelar facilmente que todos, sem exceção, todos os textos constitucionais ajustavam-se ao reconhecimento de que princípio é uma espécie de norma. Sim, já a Constituição do Império, 1824, incorporava redações adequadas à extração (re)construtivade normas-princípio (art. 179, e.g.). A rigor, a questão está mal colocada. É que o caráter normativo dos princípios não é produto automático de um texto constitucional, como se o texto já dispusesse, por si mesmo, autonomamente, o significado dos seus vocábulos, dispusesse que princípio é norma. Esta percepção é refém da filosofia da consciência, da separação entre sujeito e objeto. A Constituição não é apenas o seu texto, é texto interpretado/aplicado, é texto vivenciado. Nada mais do que a distinção entre texto e norma. Equivale a afirmar que a juridicidade dos princípios é, sobretudo, uma tese: conhecimento, postulação doutrinária. Taking rights seriously é da década de 1970 e foi escrito tendo por auditórios primeiros ou prioritários, conquanto discurso que os transcende, a Inglaterra e os Estados Unidos da América, ou seja, Inglaterra que não tem Constituição no formato de código e Estados Unidos que conservam até hoje, computadas as emendas, que já contam décadas, o mesmo (único) texto constitucional. Reparar nisto nos diz o que? Diz-nos que a normatividade dos princípios, no cenário estadunidense, tal qual em qualquer outro, dependia e depende de haver um entendimento acerca do teor da redação constitucional, da interação entre texto e norma e, assim, das injunções entre regras e princípios, das suas propriedades, operações. A partir desta marcação, não é difícil responder a seguinte pergunta: Por que, se os signos constitucionais brasileiros anteriores permitiam a aceitação da normatividade principiológica, não se verificava, ao menos de maneira ampliada, esta leitura? Porque, a despeito de se ter o texto, não se tinha a teoria gestora, não se tinha a cultura jurídica nesta linha. O mesmo se pode anotar em relação à força normativa das previsões nomeadas de programáticas. E igualmente à Constituição Dirigente: ou alguém consideraria a Constituição de 1988 como a primeira Constituição Dirigente da história brasileira? 5 Ao passar os olhos sobre a doutrina jurídica brasileira prévia à Carta atualmente vigente, representativo do enquadramento é o livro Direito Constitucional de Paulo Bonavides. Já na sua 1ªed., que data de 1980, ao defender o caráter normativo das disposições programáticas, autor cita Crisafulli e, neste passo, faz uso da expressão 5 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Morte e vida da Constituição Dirigente, cit., em especial, p. 211- 213. Especificamente acerca da programaticidade, p. 401-416. norma-princípio. 6 Conquanto na defesa da compreensão da Constituição como norma, juridicidade da Carta, a aludida obra ainda não incorporava a teoria das regras e dos princípios, tal como aqui apresentada, o que veio a ocorrer em edição posterior à Constituição de 1988. É bem significativo: apesar de a doutrina estrangeira já ter formulado os parâmetros contemporâneos da classificação das normas em regras e princípios (Dworkin, entre outros) cerca de duas décadas antes de 1988, a academia nacional não vinha acompanhando concomitantemente (em diálogo) a sobredita elaboração, em que pese já computar um amadurecimento quanto à percepção da qualidade normativa dos mandamentos constitucionais, percepção esta que vai perpassar vários autores. Nada obstante, cumpre pontuar que, inclusive anteriormente à Lei Magna de 1988, contam-se decisões judiciais sufragando a vinculação de princípios. Basta mencionar a norma da isonomia, enquadrada ordinariamente como princípio, a qual fundamentou diversos julgamentos, mesmo sem a interposição (mediação) de regra. O mesmo se verifica quanto à Suprema Corte dos Estados Unidos, quando, por exemplo, invocou a garantia/norma da liberdade contratual, tida regularmente por princípio, sede na autonomia da vontade, em decisões respeitantes à constitucionalidade do New Deal. A título de mera ilustração: em 25/05/1977, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao resolver os Embargos no Recurso Extraordinário nº 79.770, realizou uma ponderação e afastou o princípio da liberdade de contratar e a regra pacta sunt servanda; no Mandado de Segurança nº 20.219, julgado em 09/04/1980, o STF analisou pretenso conflito entre o princípio da liberdade de associação e regra. Os exemplos são incontáveis, espraiam-se por todo o Judiciário e podem ser notados em época muito anterior àquelas dos julgados citados. Não é possível negar que, nestas e em outras hipóteses, o Judiciário invocou e trabalhou com princípios como normas. O que se expõe não deve ser compreendido, contudo, como a averbar que a atual Carta Maior ou, dito melhor, que o contemporâneo contexto constitucional nada produziu de novo. Nas últimas décadas do século passado ou a partir da sua segunda metade, houve, como fenômeno globalizado, o investimento na força normativa, obrigacional (negativa e positiva) dos direitos fundamentais, o que se traduziu na consolidação do entendimento de que os princípios (a apontada natureza principial dos direitos fundamentais – se bem que nem todo direito fundamental é princípio e nem 6 BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 210. todo princípio é direito fundamental) também são normas. Vieram autores referenciais, deu-se a sofisticação do saber acerca da questão, inúmeros juristas se ocuparam do tema e a jurisprudência, que absorveu a perspectiva, foi descrita como jurisprudência de princípios. Após 1988, no Brasil, a academia se voltou com ênfase à temática das regras e dos princípios, havendo hodiernamente assentado acordo de que princípio é norma; nesta toada, autores estrangeiros referenciais, como Dworkin e Alexy, antes praticamente desconhecidos, foram largamente recepcionados; no que tange ao Judiciário, multiplicaram-se, em todas as instâncias, julgados fazendo alusão a princípios como razão bastante para decidir. Antes da Constituição vigente, a admissão de propriedades normativas aos princípios não era inexistente; princípios eram já invocados e operados como normas; inclusive sobrepujando regras. O que não havia era sistematização dogmática, firmeza ou sedimentação doutrinária. Não havia teoria ocupada especificamente da temática, notadamente com a abrangência e com o caráter da produção contemporânea. A normatividade dos princípios era vacilante, ora afirmada implícita ou expressamente (menos) e ora negada (conquanto, por vezes, fossem reconhecidas aptidões próprias de normas aos princípios). Em termos majoritários e consistentes, não existia cultura asseguratória do caráter normativos dos princípios. Reitere-se: nem o texto da Carta de 1988 foi o primeiro documento constitucional brasileiro a envergar princípios e nem a natureza de norma dos princípios se houve, exclusiva ou originalmente, a partir da vigente Lei Magna. Em resumo: a Constituição em vigor não é o marco zero da normatividade dos princípios em terra brasileira, mas é marco crucial, divisor de águas. De toda sorte, a história não principiou a 5 de outubro de 1988. 4) Regra-subsunção, princípio-ponderação? Uma concepção muito corriqueira, quase alcançando a unanimidade, propugna que o modelo de aplicação de regras é o da subsunção, enquanto os princípios são aplicados pela técnica da ponderação. 7 Em outras palavras: as regras são interpretadas, 7 Bem entendida, a palavra ponderação é, ao menos, plurívoca. A dimension of weight or importance, de Dworkin, não pode ser tomada como a ponderação (sopesamento) de Robert Alexy, a despeito do mix que se observa na concepção de muitos dos seus leitores, inclusive na doutrina brasileira. As premissas, a operação e os resultados são diferentes. Desta feita, veja-se, por ex., a questão do método em Dworkin e os princípios são ponderados.Será mesmo assim? Preliminar para a seqüência desta apreciação é, pois, deixar patente o que se entende por subsunção e por ponderação. A noção clássica, mais propagada, de cunho positivista, apregoa que subsunção é o ato de casar o fato com a norma, isto é, o intérprete, tendo por esteio o que a norma prevê e ao tomar ciência do fato, promove o encaixe entre eles. A regra enuncia uma previsão, específica, clara, e, assim, o fato, conforme descrito pela norma, se vê amoldado a ela: o ajuste preciso entre a chave certa e a fechadura certa. A ponderação é basicamente entendida de dois modos: como a tarefa geral, sempre existente, de avaliar circunstâncias, dados, sopesar valores, vantagens e desvantagens; e como, em conceito mais restrito, a técnica para solucionar conflitos entre normas. Segundo uma corrente muito disseminada, bastante adotada, é o meio adequado aos princípios, porquanto tais normas não detêm a precisão das regras, motivo pelo qual não ensejam a subsunção, demandando uma intelecção sofisticada, complexa. O questionamento fulcral é: como saber se é hipótese de subsunção ou de ponderação? Quem resolve? Aparentemente a resposta é simples, pois que se valeria da associação regra-subsunção e princípio-ponderação, ou seja, identifique a norma que o mecanismo é conseqüência. Todavia, a pergunta seguinte é: mas, como saber se a norma é regra ou princípio? Quem resolve? Investigaremos esta questão adiante, mas, por ora, é suficiente constar que a classificação não é isenta de dúvidas ou controvérsias: o mesmo texto dando, segundo uns, vazão a regra, e, segundo outros, versando princípio. Nada obstante, ainda movendo-nos na vertente paradigmática que ancora estes arquétipos, há duas dificuldades adicionais. Entende-se que da ponderação de princípios nasce uma regra, esta a que, ao cabo, será aplicada. E aplicada, de acordo com a idéia comum, através da subsunção; o que significa que ela não deixa de estar presente na operacionalidade dos princípios. Por outro lado, entende-se que também as regras comportam ponderação, isto é, uma regra pode não se aplicada ao fato, a despeito da sua hipótese de incidência ser talhada a ele, em prol de razões colidentes (robustas o suficiente para impedir o que seria a propensão da regra, a regulação/aplicação ao caso mediante subsunção), sem que isto implique na sua invalidade. Ou seja, até agora: regra-subsunção-ponderação; princípio-ponderação-subsunção. Alexy. Também a problemática da discricionariedade: enquanto Alexy admite juízo discricionário como resultado regular da ponderação, Dworkin, pelo menos na imensa maioria das hipóteses (pondo em dúvida se há exceção), rejeita tal desfecho (tese da única resposta certa). Sem embargo, o obstáculo maior, intransponível com o instrumental até então aduzido, não é nenhum destes. É que tanto a noção de subsunção quanto a noção de ponderação são vítimas da filosofia da consciência, da separação absoluta entre sujeito e objeto. 8 Ora, o intérprete/ponderador não declara o que o texto, em si mesmo, contém; se o texto é uma regra ou se é um princípio. O texto não se auto-revela como regra ou princípio. Trata-se, na verdade, de uma (re)construção de sentido, o que remete à pré- compreensão, pois não há grau zero. A tormenta de parte daqueles que reconhecem que o texto não carrega intrinsecamente o seu significado, ou seja, que a diferença entre regra e princípio não se dá, exclusivamente, a partir da estrutura do texto (ou da norma), antecipadamente à interpretação, é capitular ao subjetivismo quando vão retorquir a pergunta antes estabelecida: quem resolve se é regra ou princípio? Respondem: quem resolve é o intérprete. Ora, se quem decide, ao final, é o intérprete caímos na filosofia da consciência e, nesta dimensão, no subjetivismo, na discricionariedade. Saímos de um extremo a outro: ou o texto diz tudo (e o intérprete nada, só repete) ou o intérprete é quem, derradeiramente, diz o que quer (e o texto nada expressa, quando então a palavra intérprete já não define bem o ator, porquanto ele não está mais atrelado a interpretar algo, ele cria, livremente, algo). 5) Um mesmo caso: fácil e/ou difícil? Outra tipologia muito famosa é a que divide as hipóteses em easy cases e hard cases. Faz-se freqüentemente a seguinte associação: caso fácil – regra; caso difícil – princípio. Esta agregação não merece prosperar. Vejamos. É pacífico o entendimento de que nem sempre, que uma regra prevê uma hipótese e esta hipótese acontece, a regra deve ser aplicada. Isto é: pode ser que o caso configurado pela regra aconteça sem que a regra venha a regê-lo. Digamos: a regra apenas aparentemente disciplina o acontecimento; pode parecer disciplinar, mas não regula. Isto pode ocorrer, e.g., em razão dos ditames lex posterior derogat priori, lex superior derogat inferiori e lex specialis derogat generali. Não é possível imaginar que o emprego destes é fácil, simplório. Ora: 1) aferir a compatibilidade hierárquica pode se mostrar tarefa da mais complicada, controversa; 2) afirmar que uma norma revogou 8 Esta denúncia foi feita pioneiramente por Lenio Streck. Consultar Verdade e consenso. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, por ex., p. 159-171, 251-275. T b., publicação anterior, Hermenêutica jurídica e(m) crise. outra implica em empreender um juízo de contrariedade entre elas (tratam da mesma matéria de maneira diferente) que pode ser complexo e suscitar divergência; 3) sustentar que uma norma é especial em relação a outra significa, em primeiro lugar, considerar que a norma especial é válida (hierarquia) e vigente (cronologia), bem como que, na dependência da sistemática, a norma especial não está em choque com o elementar da normatividade geral. Soma-se a possibilidade de os critérios entrarem em conflito entre si, o que pode acarretar grave dificuldade de solução, como quando o critério da especialidade entra em tensão com o da temporalidade. 9 Em conjunto, igualmente no que informa as regras, a equidade. Ademais, a possibilidade de uma regra estar em contrariedade com o(s) princípio(s) no(s) qual(is) ela deveria encontrar fundamento, visto que os princípios são ratio (normogenética) das regras: é a possibilidade de, conquanto na mesma instância normativa formal (no mesmo código, por exemplo), uma regra conflitar com um princípio. Quem e como se vai concluir que há efetivamente um conflito ou se a regra está tão somente densificando um ou mais princípios (eles próprios em irritação ou peleja recíproca)? Compete registrar ainda que uma regra pode estar implícita e que a ação de expressá-la pode não ser modesta. Com efeito, se levarmos em conta que toda regra está fincada em um (ou mais) princípio(s), a interpretação/aplicação da regra importa, naturalmente, na interpretação/aplicação do(s) princípio(s) subjacente(s), o que faria ou, ao menos, poderia fazer o easy case virar hard case. Com isto acabaríamos por afastar a dedução (que seria o molde para as regras) em atenção à ponderação (ainda quando concebida como exclusiva dos princípios). Aliás, este apontamento denota que, a rigor, não é exatamente uma novidade a tese da ponderação de regras, vez que a ponderação pode ser entendida como presente na dinâmica interpretativa/aplicativa das regras sem ser elemento próprio ou diretamente desta espécie normativa. Isto é: ponderam-se os princípios nos quais as regras se baseiam, não as regras mesmas. Se p1 prevalece sobre p2, a r1 prevalece sobre a r2 (e vice-versa). Na outra margem, não é correto certificar que a interpretação/aplicação dos princípios se situa, invariavelmente, no âmbito de casos difíceis, quando,então, um viés teórico vai afirmar que a ponderação é a técnica apta a resolver hard cases. Ora bem: o 9 Acerca dos três ditames e da colisão entre eles, consulte-se BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução por Cláudio de Cicco e Maria Celeste C. J. Santos. São Paulo: Polis, Brasília: Universidade de Brasília, 1989. texto legal, inclusive quando dele se (re)constrói princípio, obtém concretude perante cada hipótese, em decorrência dos casos subseqüentes, que se avolumam e podem terminar por formar uma tradição, cuja qual implica em um dever de coerência (precedentes). Em outras palavras: os conceitos jurídicos indeterminados alcançam determinação diante de hipóteses particulares, motivo pelo qual melhor são chamados de conceitos determináveis. Tudo afiançado na partilha mínima de sentido que a linguagem embala. Interpretar/aplicar um princípio pode ser menos intricado ou mais singelo do que interpretar/aplicar uma regra. Depende, a um só tempo, da regra, do princípio e da contingência fática, ambos em conjugação. Vê-se nitidamente a confluência fato-norma quando se percebe que a facticidade aglutina fator para a configuração normativa do texto, daí o contexto. Reitere-se: o texto não manifesta abstratamente uma norma, alheios ao seu ambiente, à vida, em uma cisão entre questão de direito e questão de fato, mesmo porque tanto o legislador quanto o intérprete/aplicador – e, neste diapasão, não é viável fazer hiato entre interpretar e aplicar – estão embebidos da historicidade, do ser aí, do ser no mundo. Ilustra-se. Se o código civil previsse que as mulheres não possuem direito à herança, a agressão ao princípio da isonomia seria cristalina: caso fácil. Se um repórter saca fotos da intimidade sexual de um político com a sua esposa e, não satisfeito, quer, em nome do princípio da liberdade de expressão, publicá-las, a afronta ao princípio da intimidade é flagrante e a disputa em proveito dele termina: caso fácil. Mas, e a alegação da liberdade de culto religioso para matar animais? É constitucional, viola o art. 225, § 1º, VII, da Constituição? A prática compõe o núcleo essencial do direito à liberdade religiosa ou está fora dos seus limites imanentes? É easy case ou hard case? Contam-se respostas diferentes e opostas. Brown vs. Board of Education é easy ou hard case? Aqui não funcionam standarts. Por exemplo, não se pode afirmar, assim genericamente, em abstrato, como muitas vezes se faz, que controle jurisdicional de políticas públicas é caso difícil. Depende da política; se é execução; se é elaboração; se é invalidação; se é reivindicação; qual a textura/normatividade; qual a situação factual. O mesmo se diga em relação aos julgados que afetam o orçamento, determinam despesas, afetam as contas públicas: pode ser caso fácil ou difícil. Qualificar um caso como fácil ou difícil é um caso fácil ou um caso difícil? 10 A classificação é produto da (re)construção de sentido, é existencial. Não está posta de antemão, de maneira apriorística, e também não será afirmada por métodos. Supor que existe uma suficiência ôntica dos casos fáceis e difíceis, em uma entificação deles, é trabalhar no plano metafísico, em que incorre a separação entre sujeito e objeto. Duas notas ligeiras para encerrar. Primeira: a adjetivação do caso, se fácil ou difícil, não poderá ser fornecida pelo intérprete, como que entregue à sua subjetividade, não é ele que escolhe, porque tal seria curvar-se novamente à discricionariedade, ou seja, à assujeitação (subjetivação) do objeto. A qualidade não está nem na coisa e nem no sujeito, que, aliás, não se (con)fundem em um só. Segunda: o risco imenso, que muitas vezes passa despercebido, é que adjetivar um caso de fácil tem uma repercussão perigosa, qual seja, desonerar o intérprete/aplicador da fundamentação, aliviar a sua carga de argumentação, rotulação empregada como trunfo, como estratégia, sob pena de encobrir, na verdade, a aridez do caso. 6) Interpretação/ponderação em etapas? O nó da metodologia Como já exposto, as posições doutrinárias sediadas no método divergem acerca do esquema das regras e dos princípios: se interpretação/subsunção/dedução e/ou se ponderação. Enumeram-se as concepções: 1) o esquema exclusivo das regras é a subsunção; 2) o esquema comum das regras é a subsunção, mas excepcionalmente pode haver ponderação; 3) a ponderação é a técnica afinada aos princípios, notadamente se em conflito; 4) o tipo de ponderação é distinto entre regras e princípios; 5) também há subsunção na esfera dos princípios, pois o desfecho da ponderação é a promoção de uma regra e regra é interpretada/aplicada mediante subsunção. Não releva, no que estimula este ensaio, demorar-se ainda mais nestas dissonâncias. O importante é que tanto a subsunção quanto a ponderação são formuladas, conjecturadas, invocadas, como métodos ou técnicas. E a indagação é: há espaço para métodos na interpretação/aplicação do Direito? Nem todos apostam em métodos para conferir segurança, racionalidade, coerência, justiça, correção. Ilustrativamente, Dworkin não aposta na metodologia. Alexy, ao contrário, investe no método (fórmulas). A doutrina brasileira parece, majoritariamente, se fiar na metódica, pois o sentimento geral é: sem método, sem nada, 10 V. STRECK, Lenio. Verdade e consenso, cit., p. 245-275. sem parâmetros, sem guia, sem saber por onde começar, por onde ir e aonde chegar. Algo como: método ou barbárie. Daí que há quem divida a técnica da ponderação em três etapas da seguinte maneira: identificação dos enunciados normativos em tensão, identificação dos fatos relevantes e decisão. 11 Há quem proponha a investigação dos princípios em cinco passos. 12 Tendo em vista que os enunciados normativos (significantes) não adquirem sentido (significado) fora da facticidade, bem como que a identificação dos enunciados pertinentes e dos fatos relevantes não são atos estanques e sim ocorrem em uma unidade compreensiva, a decisão, interpretação/aplicação, não é algo diferente a que se chega fase por fase, mas, dado o seu caráter unitário, é tudo isto integrado, vez que um só movimento, incindível. Pode parecer curioso que quem não aposta no método tenha postura refratária à discricionariedade, seja contra relativismos, não aceite, nem residualmente, a subjetividade (livre consciência) do intérprete. É o caso de Dworkin, que defende, sem metodologias, a única resposta certa. No Brasil, Lenio Streck. Como também pode parecer curioso que quem aposta no método admita a discricionariedade, relativismos, múltiplas respostas, inclusive como resultado freqüente. Ou seja: o grande intuito da metódica, a objetivação, capitula ao subjetivismo. Outra curiosidade: entusiastas do método concluem que os princípios abrem a interpretação, conferem um espaço maior de decisão, (Robert Alexy; no Brasil, por ex., Ana Paula de Barcellos); enquanto, para críticos da metodologia hermenêutica, os princípios fecham a interpretação, restringem ou mesmo esvaziam a liberdade de escolha (Ronald Dworkin; no Brasil, Streck). E a interrogação: entre tantos métodos, qual o método (meta-método) para eleger que método empregar? 13 O nó que a metodologia pretende dar a fim de domar, amansar ou governar a interpretação/aplicação corre dois riscos extremos: 1º) asfixiar ou aprisionar – aparentemente, ao menos – o juízo, a racionalidade, o sentimento, a pré-compreensão, a decisão; enfim, a vida; 2º) soltar-se, desatar-se diante da rebeldia (o que não significa descontrole, anomia) da existência, a qual se insurge contra formatações ou amarras deste tipo. 11 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidadee atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 92-146. 12 ÁVILA, Humberto. Cit., p. 72-75. 13 STRECK, Lenio. Verdade e consenso, cit., p. 232 e 233. Este é o nó frouxo do método: ele viria para laçar a hermenêutica, mas o nó, como não vê a existencialidade da compreensão, a fenomenologia, que a atribuição de sentido se dá como evento incindível, como o nó é cego à antecipação de sentido, ao círculo hermenêutico, ele se desfaz ou, melhor, ele nem se faz. O nó não segura o salto da epistemologia para a ontologia da compreensão, que eclode no mundo prático. A metodologia não consegue domesticar a existência, isto é, o ser no mundo, porque isto significaria tirar o ser do mundo, rejeitar ou ignorar a experiência vivida ou, em outros termos, negar o próprio ser. Como a compreensão é evento que não acontece em fases, regidas por disposições formais/técnicas, como a pré-compreensão é condição de possibilidade para a compreensão (interpretação/aplicação), a metódica chega atrasada. Antes e sobretudo, a hermenêutica não é metodológica, a hermenêutica é filosófica. 14 7) O que vale mais: regra ou princípio? Pergunta-se ainda hoje: a regra é mais importante do que o princípio ou o princípio é norma mais relevante do que a regra? Dito de outra forma: é mais grave violar uma regra ou um princípio? Uns, a maioria, se colocam em favor dos princípios; outros asseveram peremptoriamente que é pior vulnerar uma regra do que um princípio. E, assim, têm-se mais uma celeuma, mais um aspecto de discordância. Será que há realmente razão para a controvérsia? Será que o problema existe tal como posto, como a discussão é travada? Vejamos. Até pouco tempo, na doutrina nacional, parecia existir consenso a respeito: princípio é norma de maior envergadura do que regra, motivo pelo qual agredir um princípio, dado o seu caráter de norma fundamental do ordenamento jurídico, importa em abalar o sistema. Se os princípios são as vigas de sustentação do Direito, o seu estremecimento pode implicar em risco de desmoronamento sistêmico. 15 Porém, mais 14 Idem, p. 233. 15 Em trecho que se tornou símbolo desta concepção, bem famoso, muitas vezes citado, se disse: “Princípio é o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia recentemente, foi afirmado exatamente o contrário: violar uma regra é mais grave do que violar um princípio. 16 Por quê? Porque regra é uma norma mais densificada do que princípio, logo, pressuposto que a incerteza quanto ao conteúdo de um princípio é maior e, assim, a sua violação é atenuada, em razão da dúvida, transgredir uma regra é infringi-la a despeito do seu comando específico, concretizado, o que eleva a responsabilidade do infrator, a gravidade da conduta. A questão colocada desta maneira carece de sentido, peca pelos seus fundamentos. Em primeiro lugar, não é acertado dizer que princípio é norma mais abstrata, fluida, vaga, indeterminada do que regra. Esta assertiva está equivocada porquanto é feita abstratamente, genericamente. A índole mais ou menos determinada, aberta, de um texto/norma, consignando ser problema de hermenêutica, pode somar posições diferentes ou antagônicas, levando em conta que não é correto/possível extirpar a facticidade do processo de (re)construção da norma do texto. Significa que o texto enseja/permite uma norma mais ou menos vaga frente a uma dada circunstância, a constatação somente pode ser feita diante de uma hipótese fática. Excluir a facticidade do fenômeno hermenêutico acarreta um deficit que irá comprometer ou perecer a (re)construção de sentido. Sob este prisma, norma é igual a texto mais fato (n = t + f). Portanto, não importa se princípio ou regra – e mesmo a classificação da norma em uma espécie ou outra não independe da facticidade (como assinalado adiante e objeto do segundo ensaio que iremos escrever –, a norma será tida como de conteúdo mais ou menos concreto dependendo de um conjunto de fatores, tais como: a pré- compreensão, a linguagem, o fato). Logo, a consciência do comando, da materialidade de uma norma não depende, para mais ou para menos, do tipo de norma que é: se regra ou princípio. O que está em jogo precisamente é a vinculação proporcionada pela norma (texto, fato). E, rompa-se com o senso comum, a vinculação do princípio não é mais fraca ou menos forte do que a vinculação da regra. Repita-se: depende do texto, depende do elemento factual. A análise não pode ser empreendida neste patamar, em abstrato e de modo genérico (generalizante). Em outras palavras: vai depender do princípio e da regra, sempre em interação com as demais normas (conjunto normativo). irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12.ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 743 e 744. 16 ÁVILA, Humberto. Cit., p. 83 e 84. Enfim, ambas as afirmações mencionadas (de que é mais grave violar regra, de que é mais grave violar princípio) estão acometidas de um mal que as fazem minguar, sucumbir, revelando que a contrariedade não persiste, é aparente e não real. Enfim, não é possível afirmar que é mais grave transgredir um princípio ou que é pior descumprir uma regra. Enfim, depende do princípio e da regra. Sem saber de qual princípio se fala, em qual situação empírica; sem saber qual é a regra em causa, frente a que contingência fática; simplesmente não é permitido tecer qualquer sentença. Pode ser que violar um princípio (o princípio A) seja mais censurável do que violar uma regra (a regra X), bem como pode ser que vilipendiar uma regra (a regra D) seja mais grave do que contravir um princípio (o princípio L). O que se expôs abrange todos os casos de relação entre regras e princípios: normas da mesma hierarquia, de hierarquia diferente, regra em função do princípio em que deve ou deveria encontrar base de validade, regra e princípio com teores distintos. Por exemplo, o que é mais grave: proibir uma entidade religiosa de funcionar por mera intolerância, fundamentalismo, arbitrariamente, em desrespeito ao Estado Laico, ao princípio da liberdade religiosa (de crença, de culto), supondo a inexistência de regra (expressa, pelo menos; vez que uma regra implícita é decorrente, mais de perto ou mais de longe, do próprio princípio, bem como, conforme se diz amiúde, a norma que irá regular o caso é sempre uma regra derivada de princípio[s] e/ou de outra[s] regra[s]) a respeito, ou descumprir a regra constitucional que prescreve prazo de sessenta dias para a Justiça Desportiva proferir julgamento se tal descumprimento, um atraso de cinco dias, não causa nenhum ônus adicional aos envolvidos? Igual para uma regra e um princípio que se ligam pelo mesmo conteúdo. Por exemplo, a igualdade. Pode haver uma agressãoao princípio da isonomia, sem importar em violação de regra, que seja menos drástica do que a violação de uma regra materializadora da igualdade. Ilustrativamente: a regra que estipula que idosos tem prioridade em filas ou a regra que obriga a todos os proprietários de veículos ao pagamento do IPVA podem ser vulneradas de modo que o descumprimento esteja em uma gradação de menor impacto ou nocividade aos bens tutelados, isto é, isonomia em aliança com outras normas, do que uma discriminação não autorizada pelo Direito tendo por esteio a cor, o sexo ou a nacionalidade, independentemente da existência de regra a disciplinar a hipótese. A recíproca é verdadeira: violar uma regra pode ser mais crítico do que desrespeitar um princípio. O mesmo se dá no mesmo plano normativo: transgredir a regra 1 pode ser pior do que transgredir a regra 2, da mesma maneira que vulnerar o princípio 3 pode ser mais grave do que contrariar o princípio 4. Depende da norma, depende do fato. A questão é complexa também porque, quando se diz que a violação de uma regra é mais grave do que a violação de um princípio, está se pressupondo a validade da regra, ou seja, que a regra não conflita ou subverte nenhum princípio ou nenhuma outra regra a qual deva obediência. Tudo, é claro, tributário da operação (muitas vezes complexa, suscitante de controvérsia) de (re)construir o significado de um texto para assim classificar a norma como regra ou princípio. Exemplifique-se. O art. 225, § 1º, VII, da Constituição, que dispõe que os animais (não-humanos) não podem ser submetidos a crueldade, é regra ou princípio? A violação ao art. 14, § 3º, da Lei nº 11.794/2008, a Lei Arouca, a qual se propõe a regular o uso científico de animais, dispositivo a prescrever que “as práticas de ensino deverão ser fotografadas, filmadas ou gravadas, de forma a permitir sua reprodução para ilustração de práticas futuras, evitando-se a repetição desnecessária de procedimentos didáticos com animais”, é mais ou menos grave do que vilipendiar diretamente, isto é, sem agressão a qualquer regra, o citado art. 225, § 1º, VII? Este raciocínio, tal como pertinente à Lei nº 11.794/2008 como um todo, presume que o mandamento da lei ordinária é constitucional, adjetivação que não pode ser retirada do debate, concebida a priori, é discutível. Impingir dor a seres sensíveis, a animais não-humanos, subjugar as suas vontades contrárias, configura ou não tratamento cruel? 17 Por derradeiro, mesmo sem levar em consideração o que se expõe, existem boas razões de um lado e de outro: de quem afirma que é mais grave violar princípio do que regra e de quem sustenta o contrário. Princípio é definido como norma elementar do sistema jurídico, ratio da regra, de sorte que é não incoerente ou absurdo pensar que a sua transgressão se reveste de maior gravidade, já que norma basilar, espinha dorsal do ordenamento. Na outra margem, regra é conceituada como norma de maior concreção que princípio, a própria densificação de princípio(s), de sorte que não é incongruente ou estapafúrdio pensar que a sua vulneração se mostra mais grave, menos atenuável, 17 Art. 13, § 1º, da Lei nº 11.794/2008: “O animal será submetido a eutanásia, sob estrita obediência às prescrições pertinentes a cada espécie, conforme as diretrizes do Ministério da Ciência e Tecnologia, sempre que, encerrado o experimento ou em qualquer de suas fases, for tecnicamente recomendado aquele procedimento ou quando ocorrer intenso sofrimento.” Há inconstitucionalidade ou a lei está apenas densificando o comando constitucional? levando em conta que o agressor teria ciência mais precisa do teor da norma (maior consciência da violação). Como já se expôs, não é possível afirmar genericamente, abstratamente, que regra é norma com conteúdo mais delimitado, densificado, do que princípio, pois esta conclusão somente será viável em hipótese particular. Depende do princípio, da regra, da circunstância fática. Sem desconsiderar que a norma ser regra ou princípio é conseqüência da compreensão do texto. O ponto é que a pergunta que abriu este tópico não faz nenhum sentido. Princípio não vale mais que regra e vice-versa. Depende do princípio, depende da regra. Para concluir acerca da reprovabilidade, maior ou menor, da transgressão é indispensável determinar a regra, o princípio, em função da ambiência fática, da hipótese singular, com o aporte do instrumental ou critérios jurídicos: agravantes, atenuantes, causa de aumento de pena, tradição, precedentes, hierarquia normativa. Em suma: nem é mais ou menos grave violar princípio do que violar regra. Varia de acordo com o princípio e com a regra. 8) Um mesmo texto: regra e/ou princípio? Os dois itens que seguem não são desenvolvidos neste artigo, serão objeto do segundo ensaio referido ao início do corrente estudo. São aqui somente assinalados nas suas problemáticas para posterior exame. O que dizer da discordância atinente à espécie normativa promovida com finco no texto? Se uns afirmam se tratar de princípio e outros tantos asseveram ser regra? Tendo exclusivamente o texto por referência, a resposta é necessariamente biunívoca (ou sempre regra ou sempre princípio)? O mesmo texto pode dar ensejo, na dependência da hipótese, ora a uma regra e ora a um princípio? 18 Falar-se-ia, então, em regra e princípio da isonomia, regra e princípio da liberdade (de expressão, contratual, religiosa, de associação), regra e princípio da legalidade, regra e princípio da privacidade, regra e princípio da solidariedade? Todo texto daria oportunidade tanto a regra quanto a princípio? Ou existiriam textos que só admitem uma ou outra espécie? Adianta-se que não se afigura acertada a noção de que a diferença entre regra e princípio é dada pela semântica, como se o texto carregasse em si o seu significado. Não 18 Cf. ÁVILA, Humberto. Cit., p. 60-63. se identifica o tipo normativo olhando apenas para o texto, esperando uma revelação, como se o objeto, autonomamente, se mostrasse ao sujeito. A classificação não está nas palavras, nos arranjos fraseais/gramaticais/de pontuação, enquanto ermitões lingüísticos, auto-suficientes de sentido, significante que plasma, por conta própria, apartadamente, o seu significado. A construção de sentido é movimento intersubjetivo, dialógico, próprio do compartilhamento da linguagem, e, assim, como já sublinhado, deve levar em conta elemento factual. Afinal, qual a relevância de distinguir regra de princípio? Os efeitos, maior ou menor vinculação, maior ou menor pretensão de regulação da hipótese, de ambas as espécies normativas podem ser identificados em abstrato e de modo genérico? Isto nos remete ao item seguinte. 9) O dilema dos critérios distintivos entre regras e princípios Afigura-se uma aporia nos critérios distintivos das regras e dos princípios. Se a diferenciação entre regra e princípio se dá pelas conseqüências que tais normas produzem, somente seria possível qualificar a norma depois de identificados os efeitos. Daí que não faria sentido dizer que a maneira de interpretar uma regra e um princípio é diferente, singular, pois que não se sabe de antemão se a norma é regra ou princípio, isto é, se a compreensão do texto, frente à facticidade, acarreta regra ou princípio. Assim, a classificação é fruto da interpretação/aplicação e, portanto, em nada pode contribuir para o processo hermenêutico a não ser enquanto rótulo de enquadramento da argumentação em favor de uma ou outra das espécies. Apesar de em nada comprometer a teoria, a experiência revela que: quando a intenção do intérprete é concluir por maior vinculação, pretensão de disciplina da norma, ou quando ele chega a este resultado ainda que sem compromisso inicial, odesfecho, ao menos potencialmente ou com boa probabilidade, é qualificar a norma como regra. E vice-versa. Daí disputas sobre ser a norma regra ou princípio. Sem embargo, repita-se: saber se é regra ou princípio é momento posterior à interpretação e não anterior. A definição do tipo de norma, se regra ou princípio, chegaria atrasada. Ou melhor: chegaria no seu instante próprio, isto é, após a interpretação. Dito de outra maneira: interpreta-se, utilizam-se os critérios distintivos (sejam quais forem) e chega- se ao desfecho, a norma é regra ou a norma é princípio. Muito bem. O que não se pode proclamar, contudo, é que foram os critérios ou caracteres os responsáveis pela conclusão. O que importa, o que é decisivo é o ato hermenêutico, a (re)construção de sentido. Os elementos peculiares de cada espécie normativa apenas se acomodam segundo a interpretação realizada. Em sendo assim, qual a valia de caracterizar a norma como regra ou princípio enquanto algo a mapear o evento hermenêutico? Não estaríamos diante de uma falsa segurança ou de critérios que falham na tarefa de orientar o intérprete, vez que são produto da atividade interpretativa? Antes de critérios não seriam tão somente características? Como antes marcado, iremos nos debruçar também sobre esta questão no segundo ensaio que escreveremos sobre a temática. 10) Estudo de casos. Caso 1) Um momento contemporâneo anterior: pré-positivista. A posição institucional. Nem todo caso é difícil, o texto tem o que dizer. E isto é possível identificar. Não está entregue ao que cada um acha. A hipótese aqui analisada é tipicamente fácil, o texto não dá margem a ruído, a menos que o ambiente seja barulhento em demasia ou façamos ouvidos surdos. Exatamente por isto foi escolhido, para ilustrar a negativa, como afirmou Santo Agostinho, de definir o tempo. O tempo atual: quando se o convencionou denominar de pós-positivista, um outro momento aqui, pré-positivista; convivendo ao mesmo tempo. Passado e futuro no presente? A hipótese é colacionada também porque ótima para introduzir a categoria posição institucional. Cogitemos de uma universidade pública, onde o conselho universitário tenha editado uma resolução que determina a apresentação da documentação comprobatória autenticada da titulação (graus acadêmicos), daqueles que se apresentam como candidatos, no momento da solicitação da inscrição no concurso público para docente, sob pena de indeferimento da mesma. Assume-se o elementar estrutural: que as deliberações do conselho universitário, instância colegiada superior, são vinculantes para os demais órgãos da universidade, o que evidentemente não impede que estes mantenham uma reserva de decisão, caminhando, é claro, nas fronteiras margeadas pela colegiatura de cúpula. Nestes termos, a universidade lança edital prescrevendo exatamente o que resolvido pelo conselho universitário: entrega dos referidos documentos autenticados no ato da solicitação da inscrição. Como é sabido, o instante da obrigatoriedade da apresentação da documentação referente aos títulos vem sendo objeto de controvérsia. O Superior Tribunal de Justiça estatuiu a súmula 266, a qual dispõe: “O diploma ou habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o concurso público.” Contudo, não há entendimento pacificado no Judiciário. O Supremo Tribunal Federal, que já julgou outras vezes em sentido inverso, decidiu, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3.460, que a comprovação do tempo de atividade jurídica deve ser feito “na data da inscrição do concurso, de molde a promover maior segurança jurídica tanto da sociedade quanto dos candidatos.” Do STF, nesta linha, ilustrativamente, as decisões tomadas no Mandado de Segurança (MS) nº 27.609, no MS nº 26.696 e no MS nº 26.681. Calha citar que o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução nº 75/2009, ao dispor sobre os concursos para a judicatura, deliberou que os títulos devem ser apresentados quando da inscrição definitiva (art. 23, § 1º, a e b; § 4º; art. 58, § 1º, a e g; por ex.), antes, portanto, da posse, sob pena de eliminação. Muitos problemas (importunidades/inconveniências) podem ser ocasionados pela compreensão de que a documentação somente pode ser exigida quando da chamada à posse. Por ex., qualquer um poderia se inscrever e se submeter aos exames, pois qualquer testificação só devida após a realização das provas, o que pode levar a banca a examinar candidatos sem a mínima condição de posse, candidatos em excesso, participantes, por ex., para adquirir experiência. Por outro lado, vários candidatos podem deixar de requerer inscrição em atenção ao edital, ao entendimento da universidade, o que prejudica a competição. Há ainda a possibilidade de o candidato aprovado em 1º lugar e sem ter o título indispensável ao ser convocado para a posse, ao ver frustrada a sua pretensão de ingressar na instituição, não se conformar e recorrer ao Judiciário buscando garantir a sua posse, o que pode implicar em lide inclusive com os demais classificados, a começar pelo 2º colocado que, tendo o título, reivindica a vaga. Ora, e.g., outra hipótese de contenda pode ocorrer: o candidato participante do concurso em que pese não ter apresentado a titulação exigida no ato de inscrição e, assim, não tendo sido computada a pontuação do título faltante, ao obter posteriormente a titulação, ainda antes do chamado do primeiro colocado para a posse, pode se achar no direito de requisitar recontagem dos títulos, vez que com a soma dos pontos do título logrado a posteriori pode influenciar no resultado da classificação. Por fim, em rol não exaustivo, outra possibilidade: se houver favorecimento, em conluio não-republicano, a posse pode ser atrasada propositadamente a fim de permitir o entretanto para a obtenção do título. Nada obstante, especificamente nos contornos deste ensaio, a rigor, nada do exposto no parágrafo anterior é determinante. Importante é reparar que, a despeito de qualquer controvérsia existente no Judiciário ou onde for, a universidade, apesar também de qualquer discordância subsistente ao debate interno, tomou uma posição: posição esta induvidosa; os documentos devem ser autenticados e entregues quando do requerimento da inscrição. O texto, dado o seu compartilhamento comunitário de sentido, não dá brecha para outra leitura. Seria escarnecer da linguagem afirmar: onde está escrito “os documentos, autenticados, devem ser apresentados na requisição da inscrição”, pode-se ler que a documentação, não obrigatoriamente autenticada, não precisa ser entregue quando do requerimento da inscrição. Ou: quando a redação dispõe “documentos autenticados” e “fornecidos no instante de postular a inscrição” é possível interpretar “documentos sem necessidade de autenticação” e “fornecidos no momento da convocação para a posse”. Teratológico: não é (re)construir o significado do texto (normatizar), é destruir o significado do texto (desnormatizar). Não interessa o que o intérprete pensa a respeito da questão, o que interessa é o texto, a norma (que, reitere-se, não é produto da consciência/subjetividade do intérprete). Os professores da universidade não têm a prerrogativa de ignorar/afastar a normatividade: produzida pelos canais regulares de deliberação democrática e de conteúdo razoável. Apenas em casos extremos tal seria admitido (ou mesmo obrigação). Não pode o departamento e nem a congregação de uma faculdade, dado que vinculados ao conselho universitário, desprezar/rechaçar as resoluções deste. Seria a quebra da estrutura funcional da universidade. Com o agravante, na hipótese, de vulnerar o edital. Isto, obviamente, não impede que um candidato impetre uma ação judicial requerendo entregar os documentos somente na convocação para a posse e/ou sem autenticação. É um direito (pleitear judicialmente)que lhe assiste. E o juiz poderá acolher o pedido ou rejeitá-lo. Todo candidato pode recorrer ao Judiciário por considerar que previsão editalícea é inválida, agride direito seu. E o juiz irá julgar favorável a ele ou não. Até aí nada de novo. Interditado acontecer é um ou mais professores, a banca, o departamento ou a congregação de faculdade contraditar a resolução do conselho universitário e mandamento explícito do edital. Isto porquanto a posição institucional não permite. A posição institucional conforma (limita e condiciona) a conduta. Seu conceito é mais amplo do que a definição corrente de competência. A posição institucional congrega caracteres como respeito institucional, democracia, coerência, tradição (forma e substância); mais do que hierarquia, o sentido de pertença a uma teia ou rede institucional, cuja qual só pode ser rompida em casos extremados, graves, supostamente raros, ruptura inevitável, onde, portanto, não seja viável a permanência da liga, o prosseguimento pelas linhas (trâmites) da costura, que risca/molda composições e recomposições. Tal é a integridade da instituição. Isto tudo sem que se proclame o evidente: uma norma de edital, a lei do certame/concurso, ainda mais uma regra deste tipo, somente pode ser afastada pelos atores institucionais – da mesma instituição, notadamente se da Administração Pública –, deixar de ser aplicada, inclusive por nulidade, se há razão suficientemente forte para vencer a também robusta tendência na direção oposta. Não se traduz motivo bastante para relegar/excluir a norma a mera possibilidade de candidatos ingressarem na via judicial para impugná-la. O positivismo exegético afirma(va) o brocardo in claris cessat interpretatio, entende(ia) que, quando o texto/norma é claro(a), não há discricionariedade, espaço para outra decisão do intérprete, salvo a contrariedade entre textos/normas, resolvida pelos critérios clássicos. Não é a hipótese ora investigada. Inclusive na captação da virada lingüística, na dimensão do pós-positivismo, este é um exemplo de easy case. Sustentar que o intérprete, professor da universidade ou banca, defronte de um texto/uma norma como este/esta – algo como: “A inscrição no concurso de provas e títulos para professor está aberta a candidatos que possuam titulação correspondente ao cargo...”; ou “Documentação a ser apresentada no requerimento da inscrição: título de mestre ou doutor, na dependência do cargo...” ou ainda “As cópias dos títulos de grau acadêmico devem ser autenticadas.” –, pode resolver diversamente, contrariando o conselho universitário e o edital, isto é, a regulação normativa, é cair (ou retroceder no tempo) na época pré-positivista. Antes da noção de legalidade. Parece incrível que, em causa da posição institucional, se possa tomar uma decisão com tal teor, não? Com a derrocada da segurança jurídica, a desvinculação institucional, o comprometimento negativo da legitimidade democrática, a falta de ou o desprezo pela tradição, a incoerência, etc. Pois é, mas a hipótese é fática e ocorre entretanto. Daí que é difícil ou mesmo impossível descrever a passagem do tempo (a cronologia) e em qual tempo se está. Talvez, como se diz, cada um no seu tempo, o tempo de cada um. O problema é que o tempo de um afeta o tempo do outro, o tempo institucional. Caso 2) Um momento contemporâneo atual: pós-positivismo? União entre pessoas do mesmo sexo. Um caso que vem suscitando considerável discussão, na doutrina e na jurisprudência, é o de saber se cabível, diante da Constituição e da legislação infraconstitucional, reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Passa que o texto constitucional não autoriza expressamente a união estável homossexual. O art. 226, § 3º, da Carta, prevê exclusivamente a união estável heterossexual, in verbis: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” Muito embora a redação transcrita, formou-se um entendimento a conduzir para a admissão, enquanto construção hermenêutica, da união estável entre dois homens ou entre duas mulheres. Tal corrente busca fundamento em princípios constitucionais, tais como os assim classificados princípios da dignidade humana e da isonomia. Ter-se-ia, deste modo, conflito entre regra (art. 226, § 3º) e princípios. Considerando, a partir da complexidade da qualificação do texto como regra ou princípio, que, como se advoga, a antinomia entre uma regra e um princípio não vai se resolver, necessariamente e nem a princípio, em favor do segundo, vez que a regra carrega a presunção de ser a densificação regular (válida) de um princípio ou de um conjunto deles (uma regra manifestando o resultado do conflito ou do contato entre dois ou mais princípios), a argumentação a jeito de ver na Constituição o albergue da união estável homossexual não é empreitada nada fácil, muito ao contrário. Igualmente, a percepção de que há lacuna no texto constitucional, a ser colmatada por princípios; assim como a concepção de que é possível fazer uma leitura da redação do art. 226, § 3º (da regra a partir de princípios), de maneira a extrair também a possibilidade da união entre pessoas do mesmo sexo. Para evitar a conclusão de que há norma constitucional inconstitucional (art. 226, § 3º), uma interpretação de dispositivo constitucional conforme a própria Constituição. Equivalentemente crítica, árdua ou problemática a tese de que houve mutação constitucional do aludido preceito. Mais uma vez e sempre, não importa o que cada intérprete pensa a respeito do homossexualismo e do seu reconhecimento moral, jurídico. Não importa se gostaríamos de ver reconhecida, como união estável ou casamento, a relação entre gays. Argumentos contrários tais como o que afirma que o homossexualismo é uma patologia, é conduta que viola a natureza das coisas, a moral e os bons costumes, que afronta a Deus, sem esquecer da assertiva que condena a relação homossexual em função da impossibilidade da procriação, que seria, mas não é, característica indispensável para a constituição de família – monoparentalidade, avós e netos, v.g. –, tampouco são relevantes. Por mais antipático que possa soar, imperioso acatar que é infrutífero, para o fim de ter reconhecido o vínculo homossexual como entidade familiar, a proclamação do primado da afetividade. A discussão não se põe neste âmbito. Não é plausível sustentar que houve mutação constitucional do art. 226, § 3º, para concluir por uma abertura de maneira a incluir as uniões homoafetivas. Por duas razões. 1) Não é fidedigno garantir que houve uma mudança do senso comum da sociedade brasileira acerca da questão, como se o legislador constituinte tivesse manifestado um sentimento conservador, refratário de então, mas que mudou, invertendo-se, ao longo deste período (23 anos). Não há pesquisa a respeito, não existem elementos confiáveis para se concluir desta forma, não sendo de descartar a chance da reivindicação não contar com o apoio da maioria, de restar vencida em um plebiscito. 2) Mutação só é cabível quando o texto permite, tem limites na linguagem, e o texto em pauta não dá azo. Onde está escrito “união estável entre homem e mulher” não é viável defender mutação para (re)construir o sentido para “homem e homem” e “mulher e mulher”. Aliás, asseverar que a união estável entre pessoas do mesmo sexo está constitucionalizada, protegida pela Carta Magna da mesma maneira que a união heterossexual, leva à conseqüência de concluir que o legislador ordinário possui a obrigação de facilitar a sua conversão em casamento. Isto é, em que pese poder ser classificada como norma programática (art. 226, § 3º; dispositivo de referência), não é de desconsiderar que o legislador ordinário incorra em omissão, em mora pela não ediçãoda normatização que promova a conversão da união estável homoafetiva em casamento. Isto significa que, ao cabo, o reconhecimento da união estável homossexual implica no reconhecimento, ao menos como obrigação legislativa, do casamento gay. Ora, averbar que o senso comunitário, em escala majoritária, foi modificado parece entrar em choque com a democracia representativa, vez que o Código Civil, de 2002, trouxe previsão ao talho da Constituição. Averba o seu art. 1723: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Fosse o art. 226, § 3º, da Carta, dispositivo meramente exemplificativo, não exauriente da definição de união estável, o Código Civil poderia ter previsto a união estável homossexual, pois estaria apenas explicitando norma implícita ao regime constitucional. Ademais, tivesse a sociedade mudado tanto, houvesse amplo consenso acerca da legalidade/legalização da união estável homoafetiva, por que o Parlamento não aprovou, com posterior sanção do Presidente, o texto civilista neste sentido? Por que o Código Civil não tornou expressa a união estável homossexual? E mais: por que nenhuma lei foi editada até agora para solucionar a celeuma, admitindo expressamente tal união estável? A nosso ver, por uma singela razão: porque nem a Constituição e nem o Código Civil albergam a hipótese. O argumento é a contrario sensu: se o texto constitucional (e igualmente o do diploma cível) só enuncia explicitamente a união estável (e o casamento) heterossexual é porque afasta a união estável homossexual (e o casamento). Ou o legislador constituinte (e o ordinário) errou de maneira grosseira? Escreveu o que não queria escrever, restringiu quando pretendia incluir. O que se pode compreender, com razão, é que a matéria não deve ficar ao jogo das maiorias, não deve se submeter a plebiscito. Ou seja: não é determinante o que a maioria pensa, pois se está perante direito de minoria. É claro que nem todo alegado direito de minoria é ou deve ser acolhido, ou seja, é ou deve ser realmente tido como direito. Nem toda minoria possui direito: pedófilos são uma minoria e não têm direito a praticar as suas vontades. A união homoafetiva, por óbvio, não pode ser comparada aos atos de pedofilia. Não gera prejuízo a ninguém, está inserida na intimidade reservada a cada um, é conduta livre, consentida/pactuada, não implica em restrição a direito dos heterossexuais, a contar da tolerância, fator do e para o pluralismo. Tudo na historicidade de uma sociedade pós-metafísica, pós-convencional, fragmentada, uma sociedade de estranhos. Não dá para contornar a compreensão de que o texto do § 3º do art. 226 é excludente, exclui a possibilidade de uniões estáveis homossexuais, como se ele tivesse elencado apenas um exemplo de união estável, a heterossexual, sem afastar a homoafetiva. Se assim é, a pergunta: Por que o constituinte não enunciou, explicitamente, deste modo? Por que produziu um texto que menciona apenas uma modalidade de união estável, a “entre homem e mulher”? Não há nesta sede, para lembrar Herbert Hart, textura aberta. Podemos discordar, considerar que a discriminação é odiosa, que não deveria ser deste modo, porém não podemos distorcer a redação, adaptá-la às nossas convicções. É diferente o que passa com a Constituição da Espanha. A comparação entre os textos é bastante reveladora. Dispõe a Carta espanhola, art. 32, 1: “El hombre y la mujer tienen derecho a contraer matrimonio con plena igualdad jurídica.” Na Constituição da Espanha há abertura textual para reconhecer a possibilidade da união homossexual, para mutação constitucional. Na Constituição brasileira, a qual ostenta um texto bastante diferente, não existe tal possibilidade. A comparação realça bem como o texto confere balizamento hermenêutico e fecha portas. Segundo a legislação vigente (constitucional e infraconstitucional), só existem duas maneiras de ter a união homossexual como união estável, ambas pressupõem a supressão do texto do art. 226, § 3º: 1) a declaração de inconstitucionalidade do art. 226, § 3º; ou 2) o advento de emenda constitucional revogando o dispositivo. A segunda alternativa é mais recomendável do que a primeira. Notadamente frente ao texto constitucional, a solução deve ser dada pelo Legislativo. Uma decisão judicial reconhecendo a união estável homoafetiva é, a toda prova, uma emblemática e aguda manifestação de ativismo, de protagonismo do Judiciário. O problema é não ser um ativismo em conformidade com o sistema jurídico e nem em integração de lacuna normativa, é ativismo contra texto legal, inconstitucional/ilegal. A denominada teoria procedimental da Constituição, conforme, por exemplo, o modelo habermasiano, concorda, cremos, com a compreensão de que a decisão pela licitude da união estável entre pessoas do mesmo sexo deve ser tomada pelo Parlamento. O Judiciário, enquanto guardião da democracia, extrapolaria em muito as suas atribuições, pois que não se afigura em risco qualquer condição do discurso. A constitucionalização da união homoafetiva é tarefa do legislador e não do juiz. 19 A observância dos países que acolheram algo como a união estável e mesmo o casamento entre homossexuais, inclusive – e isto é da maior significância – quando a Constituição completamente silente sobre o assunto (sem previsão da união heterossexual, sem qualquer previsão pontual), mostra que o processo de reconhecimento se deu pela via legislativa. Assim, guardadas as peculiaridades das regulações, a Dinamarca, a Noruega, a Suécia, a Islândia, a Holanda, a Bélgica, a França, Espanha, Portugal, Alemanha e Canadá. No Brasil, a tese é a de que, sendo questão que suscita polêmica, que encontra óbice em texto constitucional e infraconstitucional, que importa em rompimento com preconceitos históricos e arraigados ou mesmo que não tem guarita no senso comum, constituindo, portanto, questão moral controvertida, é decisão judicial, e não a lei, que legitimamente deve resolver a problemática? Não seria a intitulada juristocracia? Reitere-se: não se trata de ser contra a união estável homoafetiva ou mesmo o casamento homossexual, enquanto vínculos em si mesmos; de ser conservador, 19 Neste sentido, Lenio Streck, Verdade e consenso, cit., p. 213 e 214, nota de rodapé 24. reacionário, homofóbico. Trata-se de considerar o texto constitucional, de entender que, por mais boas intenções que acalente, por mais que boas razões se inclinem para a tese que defende, o intérprete encontra limite no texto normativo, assim chamado porque a norma é (re)construída tendo nele baliza lingüística. Se a Constituição não atende a um anseio legítimo, justo, se a Constituição não dá conta da união estável homoafetiva, o percurso adequado é reformá-la, emenda constitucional é o antídoto. 11) Considerações finais A teoria das regras e dos princípios parece estar, em algumas questões, em um nevoeiro, algo perdida; em outras, parece se ocupar de aspectos de menor importância, de filigranas. Muitos pontos merecem ser revistos, inclusive aqueles que contam com ampla adesão ou ostentam status de unanimidade, como aqui se procurou mostrar. A indagação que fica é: diante de tantos mal-entendidos e divergências, é procedente afirmar que a doutrina a que se chegou até agora contribui para a tarefa de interpretar/aplicar o Direito? Dito de outro modo: o intérprete, ao consultar a teoria das regras e dos princípios, encontra alento ou tem a sua atividade facilitada? Neste campo, uma tal teoria teria este condão, de facilitar ou orientar o trabalho hermenêutico? As respostas a tais interrogações levam aos dois itens que serão objeto do próximo ensaio. 12) Referências bibliográficas
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