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A crise dos anos 60 e o Golpe em perspectiva: um balanço historiográfico DANIELLE FREIRE DA SILVA1 A historiografia sobre o golpe militar e a crise política dos anos 60 produziu no decorrer dos anos diferentes linhas interpretativas sobre os efeitos causais desses acontecimentos, que produziam e reproduziam visões distintas sobre o papel dos diferentes atores políticos no processo histórico em curso. Na historiografia sobre o golpe as chamadas efemérides demarcam a emergência e primado de novas visões, metodologias e temáticas no campo de interesses dos historiadores e cientistas sociais. Nesse balanço, ainda que exploratório, buscamos revisitar os principais modelos interpretativos sobre a crise política dos anos 60 e o golpe civil-militar de 64. Nossa análise irá centrar-se nos modelos explicativos levantados sobre a conjuntura política pré-golpe, os aspectos metodológicos que nortearam as diferentes perspectivas, bem como as disputas políticas das classes sociais em torno das orientações do Estado. Do ponto de vista teórico, podemos delimitar duas linhagens interpretativas marcantes e contrastantes na historiografia do golpe. De um lado, ainda na década de 80, temos uma das primeiras interpretações sistemáticas sobre a crise dos anos 60 e do golpe a cargo do cientista político René Dreifuss (1981). Derivado de sua tese de doutorado, realiza uma análise da estrutura política do populismo e sua crise sistêmica paralela a conjuntura política da década de 60. Por outro lado, valendo-se de um vasto arcabouço conceitual gramsciano, Dreifuss enriquece empiricamente a sua pesquisa com um robusto volume documental dos arquivos do IPES e do IBAD para perceber as articulações entre setores das classes dominantes e militares na “conquista do Estado”, que resultou no golpe de 1964. No contexto do aniversário de 30 anos do golpe e, já em 2004, nos seus 40 anos, emerge uma perspectiva crítica aos primeiros trabalhos e, sobretudo a linha teórica de René Dreifuss. O estudo que demarca essa corrente teórica na historiografia do golpe é o resultado da tese de doutoramento de Argelina Figueiredo defendida na Universidade de Chicago e publicada no Brasil em 1993. No bojo das renovações teóricas e metodológicas no campo das ciências sociais, demarcada pela crise dos grandes modelos explicativos e das análises totalizantes, podemos enquadrar essa leitura. Figueiredo trabalha com a hipótese de que existia um caminho para reformas moderadas dentro do jogo democrático e que a escolha dos 1 Mestranda vinculada ao PPGHIS-UFRJ. E-mail: daniellefreire@id.uff.br. atores, tanto da esquerda, quanto da direita, conduziu ao rompimento com a ordem democrática. Sua crítica é, sobretudo, metodológica, cujas explicações estruturais, tanto econômicas, quanto políticas, são insuficientes para dar conta da conjuntura da década de 60. Argelina privilegia os momentos críticos do governo Goulart a partir da teoria da escolha racional. Essa abordagem pode ser lida como uma variante do individualismo metodológico, em que o comportamento dos agentes sociais e dos indivíduos são dotados de margens amplas de escolhas e racionalidade direta na sua ação social e política. Do ponto de vista analítico, as escolhas deliberadas e intencionais feitas pelos atores são o ponto de partida da análise. A interação entre as escolhas e as ações constitui o mecanismo capaz de explicar a ocorrência de um resultado, dentre os diversos possíveis. Os constrangimentos estruturais constituem o primeiro dispositivo de filtragem ‘que estreitam o repertório de cursos de ação abstratamente possíveis e o reduz a um subconjunto infinitamente menor de ações exequíveis’ (...). ‘dentro do conjunto exequível de ações compatíveis com todos os constrangimentos, os indivíduos escolhem aquelas que acreditam levar aos melhores resultado’ (FIGUEIREDO, 1993, p.29-30). Sua abordagem influencia outro ciclo de trabalhos que surgem no contexto dos 40 anos do golpe. Daniel Aarão Reis e Jorge Ferreira, legatários de seu pensamento, consolidam a sua matriz teórica na historiografia do golpe. Podemos caracterizar, em linhas gerais, que essa perspectiva de análise atribui a ação de todos os atores políticos como determinantes na conjunção do golpe, delimitados por eles entre esquerdas e direita. A responsabilidade pelo golpe é atribuída tanto aos que o deram, quanto às forças sociais que defendiam as reformas e foram atingidas por ele. Suas análises responsabilizam “a sociedade brasileira” pelo golpe civil-militar2, obliterando as frações sociais e políticas que se beneficiaram do regime e conduziram a campanha de desestabilização contra o governo Goulart. Neste trabalho iremos destrinchar as duas teses contrastantes sobre a conjuntura crítica dos anos 60, suas contribuições teóricas e metodológicas e as diferentes leituras sobre o papel dos atores políticos e sociais e seus interesses conflitantes com relação a orientação das políticas de Estado e das reformas. 1. A abordagem de Dreifuss: o golpe como uma ação de classe da intelectualidade orgânica do capital multinacional e associado e seu séquito militar 2 O conceito atribui à ação política golpista das frações civis e militares da sociedade. A perspectiva de René Dreifuss inaugura esse conceito na historiografia do golpe numa compreensão diversa da consolidada pela linha revisionista. Na sua interpretação, a classe social diretamente envolvida na conspiração e beneficiada pelo regime civil-militar, agora tornado Estado, não é dissimulada por epítetos generalizantes como a “sociedade brasileira”. O termo é usado pelo autor como a caracterização de um movimento civil-militar de setores das classes dominantes que articularam o golpe junto às frações “modernizantes-conservadoras” das forças armadas e participaram ativamente da direção do Estado brasileiro na Ditadura. O ponto de partida da pesquisa de Dreifuss é a formação do populismo3, temática de seu primeiro capítulo. A escolha não é ocasional, pois o seu enquadramento analítico pressupõe que, paralela a uma crise de governo que se desenha após a renúncia de Jânio Quadros, se esboça também a crise do regime populista. Dreifuss relaciona o processo global de internacionalização do capital, que se inicia de maneira mais expressiva a partir dos anos 1950, com a forma como esse capitalismo centralizado e oligopolizado se expressa no Brasil e entra em contradição com o regime político populista, sobretudo a partir dos incentivos econômicos e concessões políticas fornecidas no governo de Juscelino Kubitschek. Assim, a política de desenvolvimento de Juscelino Kubitschek estabelecia as condições para a proeminência econômica do capital oligopolista multinacional e associado. As relações internas do Brasil nesse momento eram o resultado de uma combinação “original” e mesmo sui generis, a saber, a convergência de classe populista e sua forma de domínio interagindo com o capital monopolista transnacional (DREIFUSS, 1981, p.34). Aspecto que merece destaque na abordagem de Dreifuss é a crítica que ele apresenta aos chamados “intelectuais nacionalistas”, cuja perspectiva comunga com a linha canônica do PCB no período, sobre a existência de uma burguesia nacional em antagonismo a uma burguesia entreguista e ligada ao capital transnacional. Este ponto é central no argumento que ele desenvolve sobre a forma como o capital nacional conseguiria subsistir de maneira significativa apenas em sua forma associada ou em empresas pertencentes ao Estado. Ele demarca as inconsistências dessa perspectiva com base na avaliação equivocada que intelectuais nacionalistas atribuíam a setores “nacionais” industriais e financeiros de “objetivos progressistas”. Nessa perspectiva, atribuía-se a setores industriais “nacionalistas” o interesse em apoiar projetos reformistas contra estruturas econômicas arcaicas.Segundo ele, A motivação da burguesia era uma só, o capital. Na medida em que a burguesia brasileira se desenvolvia e, consequentemente, a economia do país, os industriais “nacionais” eram menos uma força vital do Brasil do que agentes da integração do país no sistema produtivo internacional dominante, isto é, o capitalismo. O “entreguismo” de um grupo ou de um setor da burguesia expôs a sua relação conjuntural com um polo de influência transnacional específico, a saber, a subordinação à nação hegemônica, os Estados Unidos, mas ocultou o compromisso estrutural sistemático da burguesia (DREIFUSS, 1981, p. 26). Em certo sentido, o seu argumento amplia a perspectiva de Florestan Fernandes sobre o caráter dual do capitalismo periférico, cujo traço estruturante do imperialismo no 3 Dreifuss trabalha com o conceito de bloco histórico, central para compreender a convergência de classes do populismo em sua análise, bem como a emergência de seu bloco antagônico a partir dos anos 50. O conceito é empregado como ‘a articulação interna de uma dada situação histórica’, isto é, a integração e incorporação [articulação] de diferentes classes sociais [opostas] e categorias sociais [distintas] sob a liderança de uma classe dominante ou bloco de frações” (DREIFUSS, 1981, p.40). capitalismo dependente conduz a uma associação das burguesias nacionais com as imperialistas. Assim, “quanto mais se aprofunda a transformação capitalista, mais as nações capitalistas centrais e hegemônicas necessitam de “parceiros sólidos” na periferia dependente e subdesenvolvida - não só de uma burguesia articulada internamente em bases nacionais, mas de uma burguesia bastante forte para saturar todas as funções politicas autodefensivas e repressivas da dominação burguesa” (FERNANDES, 1976, p. 294). Dreifuss evidencia que para resguardar seus interesses, o capital multinacional apoiou- se não somente em seu poder econômico, mas também desenvolveu perícia organizacional e capacidade política para influenciar diretrizes políticas no Brasil a partir de uma intelligentsia política, militar, técnica e empresarial ou “nos intelectuais orgânicos dos interesses multinacionais e associados e nos organizadores do capitalismo brasileiro” (DREIFUSS, 1981, p.66). Do vasto guarda-chuva de conceitos gramscianos empregados pelo autor, o de intelectuais orgânicos é central para a compreensão da ação orientada do bloco multinacional e associado contra o bloco histórico populista. Para Gramsci, o intelectual orgânico, diferentemente do “intelectual tradicional”, está vinculado a um projeto de classe ou fração de classe. A questão dos intelectuais é um dos problemas mais centrais da obra carcerária de Antonio Gramsci, sobretudo pelo seu potencial heurístico. É no Caderno 12 que o teórico marxista realiza a sua primeira aproximação sistemática do problema dos intelectuais, o qual cai como uma luva na abordagem de Dreifuss. Segundo ele, Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc. (GRAMSCI, 2004 , p.15). Dreifuss considera como intelectuais orgânicos toda uma rede de gerentes e tecno- empresários, administradores de empresas privadas e executivos estatais que faziam parte da tecnocracia, como também os oficiais militares, vinculados politicamente à fração internacionalizada do capital. Ele demonstra a partir do rastreio da atuação de organizações privadas, como o CBP e a CONSULTEC4, como também da presença desses tecno-empresários nos aparelhos políticos 4 Segundo Dreifuss, a influência dos escritórios de consultoria tecno-empresarial na orientação das diretrizes políticas do Estado era tão significativa que as atividades da Companhia Sul-americana de Administração e Estudos Técnicos, a CONSULTEC, “se estendiam da consultoria dada a pedidos de empréstimos feitos ao BNDE por companhias multinacionais até a redação de discursos públicos, da preparação de projetos de lei, decretos e e burocráticos do Estado, uma espécie de “administração paralela” do capital multinacional e associado para a concretização de seus interesses e objetivos políticos. O conceito de tecno- empresários é utilizado pelo autor para enfatizar as funções empresariais nos papéis pretensamente neutros que economistas, engenheiros e administradores desempenhavam. Em sua atuação como “pensadores” e administradores do capitalismo brasileiro, entrincheirados em verdadeiros “anéis de poder burocrático-empresariais5” criados no interior do Estado, perde-se de vista a discussão de questões sociais e distributivas presentes no arcabouço político nacional-reformista, bem como populista. A aparente vinculação técnica e neutra do grupo obliterava a sua verdadeira perspectiva político-empresarial. Podemos recordar da famosa frase de Delfim Netto sobre o “milagre econômico”, que corporifica a sua real vinculação, seus interesses mais prementes e a análise de Dreifuss, “Primeiro temos de fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”. Esta intelligentsia técnica, ligada organicamente aos empresários em decorrência de uma “congruência de valores6” e interesses econômicos e políticos, defendia o papel central das empresas privadas no processo de crescimento e no ritmo dele. Suas ideias eram disseminadas pelos intelectuais orgânicos do bloco multinacional e associado em seminários e palestras nas organizações empresariais e na Escola Superior de Guerra. Do lado militar, uma fração dos oficiais das forças armadas organizados no reduto político e ideológico da Escola Superior de Guerra (ESG) partilhavam de um grau significativo de “congruência de valores” com os tecno-empresários, onde muitos eram conferencistas assíduos na instituição. “O grupo da ESG compartilhava com os interesses multinacionais e associados tanto a perspectiva quanto o sentido de urgência em transformar o regulamentos até a obtenção de acordos comerciais. A CONSULTEC preparou inclusive o programa apresentado ao Congresso em 1962 pelo então Primeiro-Ministro Tancredo Neves, assim como o plano governamental referente ao petróleo, que o Primeiro-Ministro comissionou também a esse escritório técnico” (DREIFUSS, 1981, p.86). 5 Termo derivado do conceito de “anéis burocráticos” de Fernando Henrique Cardoso. Dreifuss justifica a incorporação do termo empresariais em sua análise por dois motivos: primeiramente, “os ‘burocratas’ em sua maioria eram empresários, apesar de ocuparem posições burocráticas. Em segundo lugar, talvez o fator mais significativo, é que esses anéis tendem a ser mais permanentes do que o termo de Fernando Henrique Cardoso sugere, e favorecem, quase exclusivamente, a interesses empresariais específicos contra outros setores da sociedade civil. A base lógica dos anéis burocrático empresariais é influenciada em alto grau por suas conexões empresariais regulares e não por normas burocráticas de comportamento, ou por efêmeras e eventuais ligações econômicas” (DREIFUSS, 1981, p.110). 6 Podemos mencionar, como exemplificação desses valores, o documento elaborado pela CONCLAP (Conselho Superior das Classes Produtoras) e enviado a Jânio Quadros na ocasião da sua eleição. Intitulado “Sugestões para uma política nacional de desenvolvimento”, postulava o papel central da empresa privada e do capital estrangeiro no planejamento do desenvolvimento, o controle da mobilização popular e da intervenção estatal na economia. Em linhas gerais, propunha uma redefinição das funções do Estado, medidas anti-inflacionárias e uma readequaçãoda administração pública. Compondo um Executivo alinhado às forças econômicas modernizante- conservadoras, suas ideias foram incorporadas ao plano de governo de Jânio Quadros (DREIFUSS, 1981, p. 126). ritmo e a orientação do processo de crescimento em direção à criação de uma sociedade industrial capitalista” (DREIFUSS, 1981, p.78). Maria Helena Moreira Alves aprofunda a compreensão dessa congruência de valores a partir da análise dos manuais da ESG, sobretudo o Manual básico da Escola Superior de Guerra. Com esse material ela demonstra como a variante brasileira da ideologia da segurança nacional se traduziu numa ligação específica entre desenvolvimento econômico e a segurança interna e externa (ALVES, 1984, p.39). Os intelectuais orgânicos dos interesses multinacionais e associados formariam então um bloco econômico modernizante-conservador7 oposto à estrutura econômica oligárquico- industrial e sua forma política de domínio populista. A ação orgânica da fração internacionalizada das classes dominantes irá passar de suas táticas de lobbying ao governo utilizadas até a administração de Jânio Quadros para a ação política orientada a conquista do Estado a partir da crise política de 1961. Com a ascensão ao poder do governo nacional-reformista de João Goulart, sobretudo após o malogro da tentativa de golpe em 1961 e o retorno ao presidencialismo em 1963, trouxe a tona os fatores estruturais e conjunturais da crise do populismo. Com relação à dinâmica política da crise e o papel dos atores políticos, Dreifuss aponta então que a classe populista no poder e a forma populista de domínio foram desafiadas por duas forças sociais divergente, que haviam surgido durante a concentrada industrialização da década de 50. O populismo sofre um “ataque bifrontal” de dois atores sociais fundamentais na modernização brasileira. Eram os interesses multinacionais e associados e as classes trabalhadoras industriais, cada vez mais mobilizadas de forma autônoma. Seu programa político nacional-reformista contrariava em muitos aspectos as práticas políticas populistas. Dentre outras ações, destaco algumas medidas do governo Goulart que expressavam o seu posicionamento em favor das funções distributivas do Estado, numa clara aproximação com as classes populares e favorecendo a sua participação política e ampliação de seus direitos. São elas: as tentativas de renegociação da dívida externa brasileira com os países credores; redução da especulação financeira em torno da dívida externa e da dívida pública; deu andamento a política externa independente iniciada com Jânio Quadros; tentou implementar o reajuste dos salários mínimos acima da inflação, incorporando os chamados ganhos de produtividade; estendeu os benefícios da Previdência social aos trabalhadores 7 Dreifuss lança mão do conceito de modernização conservadora elaborado por Barrington Moore Jr. para dar conta de um conjunto de reformas internas que esse bloco de poder expressava enquanto necessidade para adequar o país ao padrão do capitalismo industrial moderno. Essas reformas, no entanto, não produziam mudanças expressivas nas relações sociais e nem eram produto das demandas subalternas, ao contrário, estavam atreladas aos padrões sistêmicos e internacionalizados do capitalismo. Dreifuss vai demonstrar como essas reformas foram implementadas pelo regime militar. rurais; propôs uma reforma do sistema tributário, baseado na taxação da renda; uma reforma eleitoral e política que ampliava o direito ao voto a analfabetos e soldados, concedendo novamente a sargentos a elegibilidade ao legislativo, bem como a reforma do sistema educacional que democratizaria seu acesso às classes populares a partir da ampliação da base social do ensino público. O Executivo janguista expôs as contradições estruturais do regime ao reduzir a sua possibilidade real de conciliação das classes sociais, bem como de domínio e conciliação das frações das classes dominantes num contexto de mobilização popular autônoma. A mobilização popular autônoma a partir da sucessão de greves começou a exercer pressão na estrutura ideológica dominante, com respectivas fraturas na forma populista de domínio. Assim, “a percepção da possibilidade de um Executivo relativamente autônomo que fosse capaz de reunir sob seu comando as classes subordinadas ou, pior ainda, que fosse influenciado por elas, propiciou uma reação política do conjunto da classe dominante” (DREIFUSS, 1981, p. 136). O outro ator social anteriormente mencionado, o bloco multinacional e associado, também encontrou uma forte contradição entre os seus interesses políticos e o bloco nacional- reformista. Uma gama de medidas também atingiu o coração de seus interesses econômicos, conduzindo-os à ação política e organizada pela articulação do golpe. São elas: a lei restringindo a remessa de lucros pelas companhias multinacionais às suas matrizes, que impedia a fuga maciça de capitais do país; impôs limitações às remessas de royalties e forçou as multinacionais a reinvestir os seus lucros no país; tentou também conseguir o monopólio estatal da importação de petróleo e desapropriar as cinco refinarias privadas do Brasil, bem como rever as concessões de mineração dadas às corporações multinacionais. Não obstante, é importante destacar, ao contrário da avaliação sumária e rasa de alguns dos críticos posteriores ao trabalho de René Dreifuss, o estabelecimento de um bloco de poder multinacional dentro do Estado não foi um fenômeno mecânico ou uma mera reflexão de uma situação econômica, mas uma iniciativa de classe. Segundo o autor, O golpe final contra o populismo foi descarregado por uma política de desestabilização, pela ação em grande parte encoberta da burguesia contra o Executivo e contra as organizadas classes subordinadas (...). A vanguarda da poderosa coalizão burguesa antipopulista e antipopular, localizada nos vários escritórios de consultoria, anéis burocrático-empresariais, associações de classe dominantes e militares idelogicamente congruentes, beneficiando-se do apoio logístico das forças transnacionais, transformou-se num centro estratégico de ação política, o complexo IPES/IBAD. Juntamente com fundadores e diplomados da ESG, ele estabeleceu a “crítica das armas", representando o momento politico-militar da ação burguesa de classe. As classes capitalistas se “unificariam” sob uma única liderança — o complexo IPES/IBAD — no Estado Maior da burguesia, como também agiriam sob a bandeira de um único partido de ordem, as Forças Armadas (DREIFUSS, 1981, p. 142-143). A ação da elite orgânica, cristalizada no complexo IPES/IBAD, estava no centro dos acontecimentos e embates políticos a partir de sua campanha encoberta de desestabilização. Segundo Dreifuss, eles atuavam como homens de ligação e como organizadores do movimento civil-militar. Com a conquista do Estado, é demonstrado como os objetivos estratégicos do bloco multinacional e associado formulados em seus redutos orgânicos foram implementados nos primeiros anos da ditadura. Além disso, a partir de um mapeamento da estrutura dos cargos burocráticos do primeiro governo do regime militar, o autor demonstra a presença expressiva dos representantes dos intelectuais orgânicos do bloco modernizante-conservador, os tecno- empresários, que, articulados politicamente em torno do complexo IPES/IBAD, empreenderam o movimento civil-militar. Esses resultados, apresentados no capítulo nove de sua tese, são muito significativos do ponto de vista explicativo na historiografia do golpe. Sua importância se expressa na medida em que promovem uma importante reflexão sobre a real natureza do golpe, muitas vezes obliterada nas perspectivas esgrimidas na historiografia revisionista do golpe. Como quando Jorge Ferreira, pautado em depoimentos de militares muitas vezes pouco articulados com os centros decisóriosda ação civil-militar, assume que não existia um projeto a favor de algo, mas contra. E que “a questão imediata era depor Goulart e, depois, fazer uma “limpeza” política. Somente mais adiante e com difíceis entendimentos entre facções das Forças Armadas, surgiria um “ideário” do regime dos militares” (FERREIRA, 2003, p. 401). 2. A releitura histórica da historiografia revisionista: o golpismo e radicalidade da sociedade e atores políticos A linha historiográfica revisionista, cujos trabalhos que iremos analisar são os de Argelina Figueiredo, Daniel Aaarão Reis e Jorge Ferreira, possuem como ponto comum a perspectiva da radicalidade das esquerdas, chegando a falar de um acordo de aceitação do regime existente pela sociedade e de que haveria dois golpes em curso. Sua linha interpretativa parte da leitura de que amplos setores sociais eram antidemocráticos, representados nas categorias políticas esquerdas e direita. O uso da categoria revisionismo para caracterizar essa linha teórica parte do ponto de vista social e de classe a partir do qual se observa o objeto de nosso interesse e que conduz, naturalmente, a linhas interpretativas e metodológicas. Nossa análise, portanto, se posiciona teoricamente junto a autores como Marcelo Badaró (2015) e Demian Melo (2006), que anteriormente produziram balanços historiográficos sobre as leituras do golpe e se atentaram para esse aspecto. O primeiro trabalho que enquadramos nessa linha teórica, e que de certa maneira lançou as bases dessa linha interpretativa, foi o de Argelina Figueiredo, “Democracia ou reformas”. Publicado no Brasil em 1993. Em sua abordagem a autora concentra-se “na conduta estratégica de atores políticos em situações históricas concretas enfatizando interesses e percepções e formulando os problemas em termos de possibilidades e escolhas” (FIGUEIREDO, 1993, p. 29). Sua escolha metodológica a conduz a interpretação de que existiam caminhos viáveis a reformas moderadas e que os atores políticos, identificados por ela nos espectros políticos cristalizados entre esquerdas e direita, decidiram maximizar as suas posições e recusaram os consensos, acordos e compromissos inerentes ao jogo democrático. A crise dos anos 60 e o golpe são explicados por uma sucessão de escolhas intencionais pouco afeitas às incertezas inerentes ao jogo democrático (Idem, p. 202). Assim, Entre 1961 e 1964, escolhas e ações específicas solaparam as possibilidades de ampliação e consolidação de apoio para reformas, e, de certa forma, reduziram as oportunidades de implementar, sob regras democráticas, um compromisso sobre estas reformas. Existiram duas oportunidades para implementar um conjunto viável de reformas, e ambas falharam por diferentes razões. O efeito acumulado destes dois fracassos estreitou o campo de ações possíveis ao governo e condenou ao fracasso uma tentativa subsequente de se formar uma frente de centro-esquerda que visasse obter um acordo sobre um programa mínimo de reformas e deter o iminente movimento direitista. Nesse momento, a oposição ao governo havia crescido e ampliado a sua base de apoio, à medida que outros grupos foram se juntando ao bloco antigovernamental. O confronto entre os grupos políticos competidores acirrou o crescente consenso negativo em relação às possibilidades de resolver o conflito dentro das regras democráticas (Idem, p. 30-31). Essa perspectiva vai se tornar a tese principal dos autores subsequentes aqui analisados. Jorge Ferreira chega a afirmar sobre “a recusa entre as partes a pactuarem acordos. O clima era de radicalização. Assim, tanto os conservadores quanto as esquerdas escolheram como estratégia o confronto” (FERREIRA, 2003, p. 375-376). A categorização que os autores utilizam de democracia parece pouco fundamentada historicamente. De um lado, eles desconsideram o contexto da guerra fria e a própria conjuntura de mobilizações sociais da década de 60, que não foi um fenômeno exclusivo do Brasil na América Latina. De outro, eles partem de uma perspectiva idealista liberal-burguesa ao supor “a existência de uma ordem política abstrata e absoluta/universal, que não leva em questão as condições reais da relação de forças presente nas sociedades e suas contradições” (CARDOSO, 1993, p. 9). Florestan Fernandes também crítica essa noção de democracia ao demonstrar que na realidade brasileira ela sofre redefinições, pela qual ela se restringe aos membros das classes possuidoras que se qualifiquem econômica, social e politicamente, para o exercício da dominação burguesa (FERNANDES, 1993, p.292). É sintomático como justamente quando as classes trabalhadoras mobilizadas lutaram para ampliar as bases democráticas do Estado que se deflagrou a crise, as quais, dentro dessa perspectiva, receberam a alcunha de antidemocráticas. Aspecto digno de nota é a crítica curta, mas dura ao trabalho de Dreifuss por Argelina Figueiredo, segundo quem a explicação de Dreifuss “falha em fornecer uma explicação real, pois toma a mera existência de uma conspiração como condição suficiente para o sucesso do golpe político. Os conspiradores são vistos como onipotentes. Consequentemente a ação empreendida por eles não é analisada em relação a outros grupos, nem vista como sendo limitada por quaisquer constrangimentos externos” (FIGUEIREDO, 1993, p. 27-28). Mesmo afeita às explicações intencionais e ações orientadas, ela parece subdimensionar a atuação das classes dominantes organicamente organizadas para desestabilizar e mudar o regime. Apesar do sistemático esforço de Dreifuss em mapear as campanhas políticas do complexo IPES/IBAD e suas interlocuções com os militares modernizantes-conservadores, a autora parece simplificar a sua ação política ao simples “conspiracionismo”, apesar desse conceito jamais ter sido usado por René Dreifuss. Ainda que seja insuficiente explicar os acontecimentos iniciados em 31 de março 1964 unicamente pela análise de Dreifuss, encampados pela atuação aparentemente atarantada de Mourão Filho, a sua tese não atesta uma pretensa onipotência dos conspiradores. Ao contrário, ele demonstra que a atuação da elite orgânica é orientada a tirar o proveito de uma situação inesperada como essa. E que, por outro lado, havia outra fração social em disputa no espectro político contra o qual o golpe e a Ditadura buscaram conter, a ação política das classes trabalhadoras autonomamente mobilizadas, das Ligas Camponesas e do movimento estudantil. O outro discípulo dessa perspectiva, Daniel Aarão Reis também ressalta a escolha das esquerdas pelo caminho da radicalização e do enfrentamento. No entanto, o seu foco é na memória cristalizada da esquerda revolucionária enquanto resistência democrática e sua real natureza política, para ele antidemocrática, cujos objetivos eram a construção do socialismo e não o restabelecimento da democracia. Mesmo que os objetivos estratégicos dos diversos movimentos de luta armada de inspiração marxista-leninista que eclodiram a partir de 1965 tenham sido a construção do socialismo, não se deve obviar o seu claro caráter objetivo de resistência e oposição ao regime. Ainda que muitas delas “não priorizassem a ‘resistência democrática’, o resultado de sua ação foi o de uma luta de resistência contra a Ditadura” (MATTOS, 2015, p. 70). Digno de nota é a forma pela qual essa tese caiu nos braços do debate público, a partir dos veículos de grande mídia que abraçaram a tese de Aarão Reis, no contexto das comemorações dos 40 anos do golpe. Particularmente envolvidos no apoio ao regime militar, essa visão particular de uma parcela do processo histórico coadunava com a defesa dos golpistas de um suposto perigo anticomunista, bem como das preocupações das classes dominantes. Caio Navarro de Toledo expõe os efeitos políticos dessa visão no debate público contemporâneo a respeito do golpe e da Ditadurana medida em que [...] a afirmação de golpismo das esquerdas tem efeitos ideológicos precisos; de imediato, ajuda a reforçar as versões difundidas pelos apologetas do golpe político-militar de 1964. Mais do que isso: contribui para legitimar a ação golpista vitoriosa ou, na melhor das hipóteses, atenua as responsabilidades dos militares e da direita civil pela supressão da democracia política em 1964. A direita golpista não pode senão aplaudir esta 'revisão" historiográfica proposta por alguns intelectuais progressistas e de esquerda (MATTOS, 2015, p. 68 apud. TOLEDO, 2004, p. 44). Considerações Finais Esse artigo, resultado das discussões levantadas na disciplina “Ditadura militar e política no Brasil – historiografia e história”, ministrada pelo Prof. Dr. Renato Lemos buscou sintetizar as principais teses e modelos explicativos de importantes linhas historiográficas do golpe e da crise dos anos 60. Busquei sintetizar os principais aspectos que estruturam cada uma das linhas explicativas. Privilegiei as obras e autores que tiveram grande importância na historiografia do objeto em questão e mobilizaram novas pesquisas, lacunas e problemas a partir de suas teses. O espaço de reflexões movido pela disciplina provocou uma profícua aproximação com as teses divergentes sobre a Ditadura, no seu potencial explicativo e nas críticas que levantaram. Busquei explicitar os referenciais teóricos e metodológicos que influenciaram as respectivas pesquisas, bem como alguns dos pontos em que as teses são necessariamente contrastantes. Meu objetivo com esse trabalho, exploratório e preliminar, foi o de concatenar as reflexões que considerei centrais às discussões da disciplina de maneira global, bem como os argumentos principais das respectivas produções historiográficas. Referências Bibliográficas: ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984. CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro e outros ensaios. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993. MELO, Demian. “A miséria da historiografia”. Outubro, São Paulo, n. 14, 2º sem. 2006, p. 111-130. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis (RJ): Vozes, 1981. FERNANDES, Florestan. O Modelo Autocrático-Burguês de Transformação Capitalista In: A revolução burguesa no Brasil. 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