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Lu ís C láudio Mendonça
Figueiredo, em A inveru;ão do
psico!ó,::ico - Quatro stculos de
sul~;e tivação, problematiz.a o
modo de s uh_ictivaçf1o contempo-
râneo, he m como as di versas
concepçôcs contemporâneas da
psicologia, como tendo se cons-
tituído num momento em que o
ciclo d a rnodemidadc se encon-
t rd em pleno apogeu, ao mesmo
tempo que já se anu nc ia sua <.t is-
solução. Para o autor, a expe-
riência suhjctiva pr6pria da mo-
dernidade deve sua emergênc ia a
uma intensificação da vivência
da diversidade e da mptura, que
acontece desde o final do século
XV, acompanhada de d iferentes
tentativas de ordenação e de
costura, que vão desembocar na
formação daquilo que se con-
vencionou chamar de ·sujeito
mode rno '. I~ este sujeito que, no
fi nal do século XIX, vive seu
apogeu e, ao mesmo tempo , o
início de sua dissohu~ão : c omeça
a desmoronar a ilusão de que o
homem ocupa o centro do mun-
do e que, desde esse lugar, e le
tudo vê c tudo pode, ilusão ali-
cen;ada no expurgo do cao~. O
'psicológico', segu ndo o auto r.
teria sido inventado e.x:namente
a partir do que fo i expurgad o
deste sujeito supostament~ unitá-
rio e soberano, e que se consti-
tuiu no objeto das psicologias.
Para desenvolver estas idé-
ias, o autor rcalil.a uma instigan-
te investigação de fi!!uras que
veiculam uma visão negativa do
caos, rrodul.idas desde o século
XVI ao XIX, na li teratura , na
filosofia, na pintura e na música.
Lu ís Cláudio \"lcndon<.;a
Figueiredo, na.-.cido no R i o de
Janeiro, em 1945, é psiçóloco
mestre c doutor em ps icolo~i~
pela L:SP. C professor na L:niv~r
sidadc deSão Pauloena f' l!C -SI',
aonde coo rdena os cursos de
Mestrado c Doutorado em Psi-
cologia Clínica: também diri <>e c- •
na lJ]'.: Jr>, o Centro de Pesquisa
em Psicologia e EducAção. F.
autor de Psicologia, uma intro-
duçiW - Uma visão histórica da
psicologia como cié11cia ( bluc,
1991 ) c Matrizes do pensamento
psicoló,::ico (Vozc~. JI.J<-J I 1, além
de diversos trabalhos em rcvisl<ts
cspcc i ai izadas.
.'\ lista <:Gmp lcta Jas obra.-. pu-
hlicadas pela Ld itor:1 Escuta e
al~uns t írulos do <.:atálogo da
E.duc enc<)ntr::un-sc no final
deste I ivr0.
Notas
I. Também E. Cassirer em Filosofia de la ílustración ( 1984 ), principalmente
no capítulo dedicado às idéias estéticas, dedica uma especial atenção aos
elementos românticos no ideário setecenlista. Este livro, o de Gusdorf e o
de Gay (1977) foram as mais importantes fontes sobre concepções e
perspectivas culturais do século XVIII.
2. Vali-me, ainda. do texto de J. Habennas. Mudança estrutural da esfera
pública ( 1984 ), que, por sua vez, muito deve à obra de Koselleck.
3. Este estado de coisas e seus produtos políticos e ideológicos na Inglaterra
do século XVII foram o tema do clássico de C. Hill. O mwulo de pollla·
cabeça (1987 ).
4. Embora os romances ingleses da época sejam os modelos e exemplares
mais bem-acabados do novo gênero, a difusão do romance alcançou a
literatura francesa e alemã; a adoção do estilo epistolar, por seu turno. foi
mais do que mera 'imitação', e algumas das obras-primas da literatura
universal seguiram este modelo. como As ligações perigosas de C. de
Laclos ( 1782). na França. e Os .tofdmmtos do jovem Werther de Goethe
(1774), na Alemanha.
5. As análises desenvolvidas a seguir apóiam-se, mas não coincidem. com as
de Ellemberger (1976) e de Van Den Herg (1974).
6. Convém recordar que Mesmer era membro de Uma loja maçônica e que a
maçonaria. apesar de combatida durante o tempo da imperatriz Maria
Tereza, havia prosperado, fazendo adeptos no Império Austro-húngaro,
entre burgueses, intelectuais artistas e mesmo clérigos e aristocratas. Consta
que o próprio imperador José 11, que sucedeu Maria Tereza, aproximou-
se desta sociedade secreta.
7. O ancien régime foi em toda a parte um grande gerador de espetáculos, e
a versão austríaca do absolutismo, que se consolidou no século XVIII e
sobreviveu ao absolutismo francês, notabilizou-se pela ênfase na
teatralidade, no feérico, no ilusionista. Por outro lado, a reunião mesmeriana
de elemenros iluministas, românticos e ancíe11 régime esteve presente,
também - mas aqui num equilíbrio sublime -, na música do classicismo
austríaco. composta por Haydn e pQr Mozart. este, por sinal. maçom e
amigo de Mesmer, na casa de quem encenou pela primeira vez a ópera
Bastien c Brutienne (cf. Brion. 1991; e Caznóck. 1992).
128
A GESTAÇÃO DO ESPAÇO PSICOLÓGICO
NO SÉCULO XIX: LIBERALISMO,
ROMANTISMO E REGIME DISCIPLINAR
O século XIX pode ser e tem sido caracterizado como o do apogeu
do liberalismo e do individualismo como princípios de organização
econômica e política (cf., p. ex:., Polany, 1980). É sabido, também, que
no campo das artes e da filosofia o século XIX assistiu ao pleno
desabrochar dos movimentos românticos (cf.. p. ex:., Gusdorf, 1982 e
l984). Finalmente, desde Foucault ( 1977) o mesmo século pode ser
identificado como o do início de uma sociedade organizada pelo regime
disciplinar. Poderíamos pensar que uma destas caracterizações deva
prevalecer sobre as demais, ou ainda que elas se apliquem a diferentes
nações ou subculturas, ou, finalmente, que correspondam a momentos
distintos da história do Ocidente. Meu objetivo neste capítulo será o
de defender a tese de que as três formas de entender o século XIX são
legítimas simultaneamente, embora, está claro, contraditoriamente. Os
deslinos do liberalismo, do romantismo e das práticas disciplinares foram
bastante diversos; no entanto, nenhum deles perdeu de todo a vigência
até os nossos dias, em que pesem as transfonnações porque passaram
e os diferentes pesos que foram assumindo na cultura contemporânea.
Pretendo ainda sugerir- deixando o desenvolvimento dos argumentos
para uma outra ocasião - que o espaço psicológico, tal como hoje o
conhecemos, nasceu e vive precisamente da articulação conflitiva
daquelas três formas de pensar e praticar a vida em sociedade.
As vicissitudes do liberammo e do individualismo
O liberalismo na sua versilo original. formulada em suas linhas
básicas por J ohn Locke ( 1632-1704 ), sustentava a tese dos direitos
129
naturais do indivíduo a serem defendidos e consagrados por um Estado
nascido de um contrato livremente firmado entre indivíduos autônomos
para garantir seus interesses. Ao Estado não cabia intervir e administrar
a vida particular de ninguém, seja no plano das opiniões, seja no da
vida doméstica, seja no dos negócios, mas apenas regular as relações
entre indivíduos para que nenhum tivesse seus direitos violados pelos
demais. Era fundamental, portanto, preservar os espaços da privacidade
contra os abusos eventuais dos próprios poderes públicos, limitar o
alcance ·e a força destes poderes: o monopólio estatal do poder de fazer
justiça e punir deveria estar completamente subordinado à função de
salvaguarda dos direitos individuais, entre os quais se destacavam os
direitos à liberdade e à propriedade. Para manter o Estado nessa condição
limitada, convinha separar os poderes (Poder Executivo, Legislativo e
Judiciário), distribuí· los regionalmente (conforme o preconizado pela
doutrina federali sta) e valorizar, à medida do possível, as tradições
locais e as experiências particulares, com ê nfase na jurisprudência e na
consideração de t:asos concretos, em detrimento de leis gerais e
racionalmente construídas. Nem todas estas decorrências estavam
previstas por Locke, mas todas pertencem ao mais genuíno espírito do
liberalismo clássico, no qual o empirismo epistemológico e o respeito
ao espaço privado são as duas faces do mesmo apego ao particular, ao
individual.
Foram estas as idéias políticas que criaram o terreno favorável para
o pleno desenvolvimento de uma sociedade individualista e atomizada,
em que os agentes econômicos se encontravam e se deixavam articular
uns com os outros nos espaços livres dos mercados de bens e de
trabalho. O liberalismo econôm ico (cf. Lukes, 1975;e Polany, 1980)
defende a redução radical da presença do Estado na vida econômica,
confiando de forma absoluta na iniciativa e na racionalidade individual
dos agentes e na função auto-regulativa do mercado como aS condições
suficientes para o progre~so e para a estabilidade da vida social. Ora,
somente no final do século XVIll e no início do XIX a doutrina do
liberalismo econômico e a auto-regulação da sociedade pelo mercado
vieram à luz.
No entanto, antes mesmo que o liberalismo alcançasse este nível
de elaboração, havia surgido uma versão das idéias liberais que dava
ao liberalismo um novo rumo que, progressivamente , o fo i
130
descaracterizando. Isto ocorreu através da obra de Jeremy Bentham
( 1748- 1832), o criador do 'utilitarismo' . De uma certa fonna, pensar em
termos de eficiência, interesse e uti lidade pertencia também à tradição
liberal. Contudo. o utilitarismo irá substituir a crença e a defesa
intransigente dos direitos naturais dos indivíduos pelo cálculo racional
da fe licidade. Em outras palavras, a índole empírista do liberalismo vai
ser aos poucos substituída pelo construtivismo racionalista. O Estado
já não se ma ntém nos limi tes de suas antigas funções, mas vai
gradativamente assumindo a de intervir positivamente na administração
da vida social. ··A missão dos governantes consiste em promover a
felicidade da sociedade, punindo e recompensando" {Bentharn [1789)
1989; p. 19).
Há. ainda, uma vertente libertária no movimento enquanto se trata
de derrubar le is e tradições que obstruem a livre ação individual , a
defesa pelos agentes sociais de seus interesses e felicidades . Todavia,
mesmo este combate já não se centra na questão da liberdade e dos
direitos naturais, senão que nas conseqüências positivas ou negativas
das leis e das ações que propiciam ou proíbem. "O objetivo geral que
caracteriza todas as leis ou que deveria caracterizá-las consiste em
aumentar a feli cidade global da coletividade" (lbid.; p. 59).
Por aí se vê que não apenas a ê nfase na garantia de direitos é
substitu ída pe la ênfase nas conseqüências, com o estas são avaliadas
em termos de 'coletividade' , de forma a, supostamente, favorecer a
maioria. mesmo que em prej uízo de algun s indivíduos. Trata-se,
efetivamente, de legislar e justificar as intervenções do poder público
em termos da soma total da felicidade. Embora as perdas e ganhos em
felicidade de cada indivíduo sejam as unidades básicas de cálculo - o
que traduz uma posição predominantemente individualista -. o que
importa ao final é reunir as felicidades de cada um no grande balanço
coletivo da soma total de felicidade:
A comunidade constitui uin corpo fi ctfcio, composto de pessoas
individuais ( ... )Qual é nesse caso o interesse da comunidade?
~inútil falar do interesse da comunidade se nilo se compreender qual é o
interesse do indivíduo. Diz-se que uma coisa promove o interesse de um
indivfduo, ou favorece ao interesse de um indivíduo quando tende a
aumentar a soma lotai dos seus prazeres, ou então, o que vale afirmar o
mesmo, quando tende a diminuir a soma total de suas dores. (lbíd.; p. 4)
131
naturais do indivíduo a serem defendidos e consagrados por um Estado
nascido de um contrato livremente firmado entre indivíduos autônomos
para garantir seus interesses. Ao Estado não cabia intervir e administrar
a vida particular de ninguém, seja no plano das opiniões, seja no da
vida doméstica, seja no dos negócios, mas apenas regular as relações
entre indivíduos para que nenhum tivesse seus direitos violados pelos
demais. Era fundamental, portanto, preservar os espaços da privacidade
contra os abusos eventuais dos próprios poderes públicos, limitar o
alcance ·e a força destes poderes: o monopólio estatal do poder de fazer
justiça e punir deveria estar completamente subordinado à função de
salvaguarda dos direitos individuais, entre os quais se destacavam os
direitos à liberdade e à propriedade. Para manter o Estado nessa condição
limitada, convinha separar os poderes (Poder Executivo, Legislativo e
Judiciário), distribuí· los regionalmente (conforme o preconizado pela
doutrina federali sta) e valorizar, à medida do possível, as tradições
locais e as experiências particulares, com ê nfase na jurisprudência e na
consideração de t:asos concretos, em detrimento de leis gerais e
racionalmente construídas. Nem todas estas decorrências estavam
previstas por Locke, mas todas pertencem ao mais genuíno espírito do
liberalismo clássico, no qual o empirismo epistemológico e o respeito
ao espaço privado são as duas faces do mesmo apego ao particular, ao
individual.
Foram estas as idéias políticas que criaram o terreno favorável para
o pleno desenvolvimento de uma sociedade individualista e atomizada,
em que os agentes econômicos se encontravam e se deixavam articular
uns com os outros nos espaços livres dos mercados de bens e de
trabalho. O liberalismo econôm ico (cf. Lukes, 1975; e Polany, 1980)
defende a redução radical da presença do Estado na vida econômica,
confiando de forma absoluta na iniciativa e na racionalidade individual
dos agentes e na função auto-regulativa do mercado como aS condições
suficientes para o progre~so e para a estabilidade da vida social. Ora,
somente no final do século XVIll e no início do XIX a doutrina do
liberalismo econômico e a auto-regulação da sociedade pelo mercado
vieram à luz.
No entanto, antes mesmo que o liberalismo alcançasse este nível
de elaboração, havia surgido uma versão das idéias liberais que dava
ao liberalismo um novo rumo que, progressivamente , o fo i
130
descaracterizando. Isto ocorreu através da obra de Jeremy Bentham
( 1748- 1832), o criador do 'utilitarismo' . De uma certa fonna, pensar em
termos de eficiência, interesse e uti lidade pertencia também à tradição
liberal. Contudo. o utilitarismo irá substituir a crença e a defesa
intransigente dos direitos naturais dos indivíduos pelo cálculo racional
da fe licidade. Em outras palavras, a índole empírista do liberalismo vai
ser aos poucos substituída pelo construtivismo racionalista. O Estado
já não se ma ntém nos limi tes de suas antigas funções, mas vai
gradativamente assumindo a de intervir positivamente na administração
da vida social. ··A missão dos governantes consiste em promover a
felicidade da sociedade, punindo e recompensando" {Bentharn [1789)
1989; p. 19).
Há. ainda, uma vertente libertária no movimento enquanto se trata
de derrubar le is e tradições que obstruem a livre ação individual , a
defesa pelos agentes sociais de seus interesses e felicidades . Todavia,
mesmo este combate já não se centra na questão da liberdade e dos
direitos naturais, senão que nas conseqüências positivas ou negativas
das leis e das ações que propiciam ou proíbem. "O objetivo geral que
caracteriza todas as leis ou que deveria caracterizá-las consiste em
aumentar a feli cidade global da coletividade" (lbid.; p. 59).
Por aí se vê que não apenas a ê nfase na garantia de direitos é
substitu ída pe la ênfase nas conseqüências, com o estas são avaliadas
em termos de 'coletividade' , de forma a, supostamente, favorecer a
maioria. mesmo que em prej uízo de algun s indivíduos. Trata-se,
efetivamente, de legislar e justificar as intervenções do poder público
em termos da soma total da felicidade. Embora as perdas e ganhos em
felicidade de cada indivíduo sejam as unidades básicas de cálculo - o
que traduz uma posição predominantemente individualista -. o que
importa ao final é reunir as felicidades de cada um no grande balanço
coletivo da soma total de felicidade:
A comunidade constitui uin corpo fi ctfcio, composto de pessoas
individuais ( ... )Qual é nesse caso o interesse da comunidade?
~inútil falar do interesse da comunidade se nilo se compreender qual é o
interesse do indivíduo. Diz-se que uma coisa promove o interesse de um
indivfduo, ou favorece ao interesse de um indivíduo quando tende a
aumentar a soma lotaidos seus prazeres, ou então, o que vale afirmar o
mesmo, quando tende a diminuir a soma total de suas dores. (lbíd.; p. 4)
131
Bentham não fica, como se sabe, na fo rmulação das questões
meramente filosóficas e programáticas, mas procura elaborar as regras
de cálculos, tanto para a avaliação das felicidades individuais como para
a estimativa da soma total de felicidade.
Não só as leis são concebidas por Bentham como instrumentos
destinados a produzir conseqüências - e não mais garantir d ireitos -
como a eficácia delas deveria repousar numa concepção da natureza
humana marcada pelo princípio utilitário. Os homens, para Bentham, são
sensíveis às conseqüências do que fazem: "A natureza colocou o
gênero humano sob o domfnio de dois senhores soberanos: a dor e o
prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer bem como
determinar o que na realidade faremos" (lbid.; p. 3).
As le is devem ser elaboradas de forma a programar a liberação de
castigos e recompensas e, a longo prazo, propiciar uma ampliação das
oportunidades de condutas recompensadas.
Trata-se, sem dúvida, de uma versão racionalista, construtiva e
tecnocrática do liberalismo: os indivíduos são ainda as unidades bási-
cas da ação e são deixados 'livres' para escolher entre castigos e re-
compensas. Ao Estado não cabe uma função primordialmente coerciti-
va, mas não se espera dele, tampouco, a garantia dos direitos naturais
do indivíduo: ele intervém e administra através do controle das priva-
ções, das punições e das recompensas liberadas para os comportamen-
tos individuais. instaurando uma nova modalidade de poder. Uma for-
ma acabada e sofisti cada de be nthamism o será desenvolvida no século
XX, na 'engenharia comportamental' de B . F. Sk:inner} Já o próprio
Bcnthum, contudo, foi capaz de propostas bastante complexas de pro-
gramação de 'contingências ambientais ' , como as industry-houses e,
cabe recordar, foi dele a invenção do patropticon, consagrado por Fo~-
cault ( 1977) corno emblema do regime disciplinar. ·
Neste regime, o Estado e suas agências educacionais, corretivas,
sanitárias e militares assumem novas funções ; da mesma forma, a família
deixa de ser o espaço da liberdade p ri vada, em contraposição às regras
dos espaços públicos (como no século XVIII; cf. cap. 3), para se
converter, ela também, numa agência disciplinadora destinada a,
simultaneamente. individualizar e normatizar suas crianças, jovens e
adultos. (Nestas novas condições, como assinala Sennett, 1978, a
liberdade individual poderá com mais sucesso ser procurada no
132
anonimato das c idades do que dentro de qualquer coletividade regida
pelo princípio utilitário.)
Por tudo isso. Bentham é na tradição liberal uma espécie de ovelha
negra. Mesmo um liberalismo reformista como o de Dewey, que não
está absolutamente livre da m arca utilitária, procura restaurar o valor
da liberdade individual que o cálculo da felicidade total de Bentham
havia desconsiderado (Dewey, 1970). Os liberais contemporâneos mais
comprometidos com o liberalismo clássico, como Hayeck, tendem a nem
considerar Bentham como um dos seus e não o perdoam pela tendência
coletivista que ele introduziu no ideário liberal e pela introdução de
elementos racionalistas e construtivistas na boa tradição inglesa (Gray,
1988; e Hayeck, 1967).
Estas transform ações do ve lho liberalismo no u til itarismo
disciplinador no séc ulo XIX, antes de se fazer sentir no plano da vida
social como uma tendência dom inante, foi vivida na pele por um dos
grandes nomes da tradição liberal: John Stuart Mill ( 1806-1873).2
O pai de Stuart Mill , James Mill (1173-1836), foi o principal
d iscípulo e aliado de Bentham e organizou sua família e educou seus
J1lhos seguindo estritamente suas opções filosóficas e políticas. John
foi submetido a uma rígida e produtiva disciplina capaz de constituí-lo.
desde tenra idade, num modelo de individualidade oitocentista. Nada
impediu, contudo, que e le viesse a sofrer durante a adolescência e início
da idade adulta uma série de cri ses existenciais. Queixava-se ele de um
vazio. de uma aridez. de uma falta de sentido c de valores autênticos
que o tornam uma das primeiras vítimas notáveis do niilismo. Foi no
contexto dessas crises que se deu sua aproximação aos româ nticos
ing leses e alemães, alguns dos quai s se tornaram seus grandes
inspiradores e lhe forneceram os temas e valores em tomo dos quais
elaborou sua versão do liberalismo .
. Na obra de Stuart Mill há claros ingredientes da tradição iluminista:
por exemplo, ele se dedicou ao desenvolvimento dos princípios do
associacionismo que lhe proporcionavam uma concepção c ientifica,
elementarista e mecanicista da menle: Concebeu, igualmente, a criação
da e to logia, compreendida por ele como a ciência que decifra o caráter
a partir das condutas. Trata-se, neste caso, de um esforço intelectual
que de alguma fonna se aproxima da fis iognomia de Lavater (cf. cap. 3)
e da frenologia de Gall; ambas as disciplinas obedeciam ao mesmo intuito
133
Bentham não fica, como se sabe, na fo rmulação das questões
meramente filosóficas e programáticas, mas procura elaborar as regras
de cálculos, tanto para a avaliação das felicidades individuais como para
a estimativa da soma total de felicidade.
Não só as leis são concebidas por Bentham como instrumentos
destinados a produzir conseqüências - e não mais garantir d ireitos -
como a eficácia delas deveria repousar numa concepção da natureza
humana marcada pelo princípio utilitário. Os homens, para Bentham, são
sensíveis às conseqüências do que fazem: "A natureza colocou o
gênero humano sob o domfnio de dois senhores soberanos: a dor e o
prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer bem como
determinar o que na realidade faremos" (lbid.; p. 3).
As le is devem ser elaboradas de forma a programar a liberação de
castigos e recompensas e, a longo prazo, propiciar uma ampliação das
oportunidades de condutas recompensadas.
Trata-se, sem dúvida, de uma versão racionalista, construtiva e
tecnocrática do liberalismo: os indivíduos são ainda as unidades bási-
cas da ação e são deixados 'livres' para escolher entre castigos e re-
compensas. Ao Estado não cabe uma função primordialmente coerciti-
va, mas não se espera dele, tampouco, a garantia dos direitos naturais
do indivíduo: ele intervém e administra através do controle das priva-
ções, das punições e das recompensas liberadas para os comportamen-
tos individuais. instaurando uma nova modalidade de poder. Uma for-
ma acabada e sofisti cada de be nthamism o será desenvolvida no século
XX, na 'engenharia comportamental' de B . F. Sk:inner} Já o próprio
Bcnthum, contudo, foi capaz de propostas bastante complexas de pro-
gramação de 'contingências ambientais ' , como as industry-houses e,
cabe recordar, foi dele a invenção do patropticon, consagrado por Fo~-
cault ( 1977) corno emblema do regime disciplinar. ·
Neste regime, o Estado e suas agências educacionais, corretivas,
sanitárias e militares assumem novas funções ; da mesma forma, a família
deixa de ser o espaço da liberdade p ri vada, em contraposição às regras
dos espaços públicos (como no século XVIII; cf. cap. 3), para se
converter, ela também, numa agência disciplinadora destinada a,
simultaneamente. individualizar e normatizar suas crianças, jovens e
adultos. (Nestas novas condições, como assinala Sennett, 1978, a
liberdade individual poderá com mais sucesso ser procurada no
132
anonimato das c idades do que dentro de qualquer coletividade regida
pelo princípio utilitário.)
Por tudo isso. Bentham é na tradição liberal uma espécie de ovelha
negra. Mesmo um liberalismo reformista como o de Dewey, que não
está absolutamente livre da m arca utilitária, procura restaurar o valor
da liberdade individual que o cálculo da felicidade total de Bentham
havia desconsiderado (Dewey, 1970). Os liberais contemporâneos mais
comprometidos como liberalismo clássico, como Hayeck, tendem a nem
considerar Bentham como um dos seus e não o perdoam pela tendência
coletivista que ele introduziu no ideário liberal e pela introdução de
ele mentos racionalistas e construtivistas na boa tradição inglesa (Gray,
1988; e Hayeck, 1967).
Estas transform ações do ve lho liberalismo no u til itarismo
disciplinador no séc ulo XIX, antes de se fazer sentir no plano da vida
social como uma tendência dom inante, foi vivida na pele por um dos
grandes nomes da tradição liberal: John Stuart Mill ( 1806-1873).2
O pai de Stuart Mill , James Mill (1173-1836), foi o principal
d iscípulo e aliado de Bentham e organizou sua família e educou seus
J1lhos seguindo estritamente suas opções filosóficas e políticas. John
foi submetido a uma rígida e produtiva disciplina capaz de constituí-lo.
desde tenra idade, num modelo de individualidade oitocentista. Nada
impediu, contudo, que e le viesse a sofrer durante a adolescência e início
da idade adulta uma série de cri ses existenciais. Queixava-se ele de um
vazio. de uma aridez. de uma falta de sentido c de valores autênticos
que o tornam uma das primeiras vítimas notáveis do niilismo. Foi no
contexto dessas crises que se deu sua aproximação aos româ nticos
ing leses e alemães, alguns dos quai s se tornaram seus grandes
inspiradores e lhe forneceram os temas e valores em tomo dos quais
elaborou sua versão do liberalismo .
. Na obra de Stuart Mill há claros ingredientes da tradição iluminista:
por exemplo, ele se dedicou ao desenvolvimento dos princípios do
associacionismo que lhe proporcionavam uma concepção c ientifica,
elementarista e mecanicista da menle: Concebeu, igualmente, a criação
da e to logia, compreendida por ele como a ciência que decifra o caráter
a partir das condutas. Trata-se, neste caso, de um esforço intelectual
que de alguma fonna se aproxima da fis iognomia de Lavater (cf. cap. 3)
e da frenologia de Gall; ambas as disciplinas obedeciam ao mesmo intuito
133
de correlacionar o público ao privado, dando ao privado uma expressão
pública legítima (a fisionomia para Lavater, a conformação do crânio
para GaH e os comportamentos para Stuart Míll) e, em contrapartida,
pennitindo o conhecimento público de uma esfera de privacidade. É de
interesse assinalar, inclusive, como na obra contemporânea de Honoré
de Bal zac ( I 799-1850) as três abordagens são mobilizadas na
caracterização dos personagens. Na verdade, embora não cite Stuart
Mill - mas se refere profusamente aos outros dois -, Balzac concebia
sua obra ficcional como obra de conhecimento sociológico e ela de fato
pode ser lida como uma concretização do projeto etológico de Mil I.
Contudo, o que mais nos pode interessar neste momento é a
reunião de elementos liberais e românticos promovida por este genuíno
filho precoce do regime disciplinar.
No seu clássico On liberty (I 859), que traz como epígrafe um tre-
cho de Humboldt que nos coloca de chofre no seio do ideário românti-
co. Stuart Mil! formula uma proposta de metas e formas de vida social e
política em que as conquistas civis liberais são colocadas a serviço dos
valores românticos. Decerto que as marcas da disciplinet e da doutrina
utilitária estão aí presentes; estão, contudo, confinadas a certas situa-
ções-limite que envolvem procedimentos de exclusão. Por exemplo, o
governante progressista e civilizado tem o direito de exercer o poder
disciplinador sobre os bárbaros, excluídos da civilização; a coerção da
espontaneidade é também justificada quando o Estado tem de lidar com
marginais e criminosos que põem em risco os direilos alheios.
134
Existe, contudo, uma esfera da ação na qual a sociedade. em co.ntraposi-
ção ao indivíduo, só 1em interesse indireto, supondo-se mesmo que te-
nha algum: queremos nos referir àquela que compreende toda a parte da
vida e da conduta pessoais que somente afetam o próprio indivíduo (. .. )
Tal, portanto, a região apropriada da liberdade humana. Compreende, em
primeiro lugar, o domínio interior da consciência, a liberdade de pensa-
mento, de senlimento, a liberdade absoluta de opinião e de sentimento
em lodos os assuntos pniticos e e:r.peculati vos,. científicos, morais e teo-
lógicos( ... } Em segundo lugar, o princípio exige liberdade de gostos e de
ocupações, a de formular um plano de vida que esteja de acordo com o
caráter do indivíduo, a de fazer o que se deseja ( ... ) Em terceiro lugar. da
liberdade de cada indivCduo result.a a liberdade, dentro de certos limites,
de combinação entre indivíduos, a liberdade de se unirem para qualquer
fim que não envolva danos a terceiros. (Stuan Mill, 1963; p. 15-grito meu)
É in!eressante observar no trecho acima como, de penneio aos
velhos temas liberais da 'liherdade negativa' (a 1iberdade exercida no
espaço esvaziado de controles sociais. ou seja, a liberdade na área da
ftào-imeiferêucia; cf. Berlin, 1981; p. J36). já se insinua um tema novo:
o da liberdade para a formulação de um projeto individual de vida
conforme o caráter do indivíduo. Nesta noção de 'caráter individual; se
expressa a crença em diferença~ qualitativas entre indivíduos, ou seja,
em diferenças de personalidade. e na noção de 'projeto' a liberdade se
idcntilica com a aulonomia e com o autodesenvolvimento.
No capítulo I (introdução) de On /ibeny, Stuart Mill deixava muito
claro estar escrevendo num momento em que as liberdades estão sendo
ameaçadas pelo "fortalecimento da sociedade" , o que em nossa
linguagem se expressarià como a expansão do regime disciplinar. O
segundo capítulo trata da liberdade de pensamento e de discussão e,
apesar de inleressante, não é onde se revela a maior originalidade do
autor. Já o terceiro capítulo intitula-se 'Da individualidade como um dos
elementos do bem-estar' e é aí que aflorao ideário romântico: a ênfao;e
na diversidade, na singularidade, na espontaneidade e na interioridade
dos indivíduos; por exemplo:
A na!ureza humana não é máquina que se possa construir conforme um
modelo qualquer, regulando-se para executar exatamente a tarefa que se
lhe prescrever, mas uma árvore, que precisa crescer e desenvolver-se de
todos os lados, de acordo com a tendência de forças interiores que o fazem
um ser vivo. (lbid.; p. 67)
Há aí uma valorização c interpretação da vida para romântico
nenhum colocar defeito. Como estamos longe da aridez do mecanismo
associacionista ou da psÍcologia dos castigos e recompensas num texto
como o que transcrevo a seguir:
Conceder-se-á provavelmente ser desejável que exercitem os homens o
emendímento ( ... ) Admite-se, até certo ponto, que deve ser nosso o
entendimento; mas não se observa a mesma boa vontade no sentido de
admitir que também devam ser nossos os nossos desejos e impulsos ( ... )
Contudo. desejos e impulsos tonnam pane do ser humant> perfeito, tanto
quanto crenças e restrições; sendo os impulsos fortes somente perigosos
quando nào convenientemente equilibrados, quando um grupo de objetivos
e inclinações adquire intensidade, enquanto outros. que com eles devem
coexistir, permanecem fracos e inativos ( ... ) Impulsos fortes nada mais
135
de correlacionar o público ao privado, dando ao privado uma expressão
pública legítima (a fisionomia para Lavater, a conformação do crânio
para GaH e os comportamentos para Stuart Míll) e, em contrapartida,
pennitindo o conhecimento público de uma esfera de privacidade. É de
interesse assinalar, inclusive, como na obra contemporânea de Honoré
de Bal zac ( I 799-1850) as três abordagens são mobilizadas na
caracterização dos personagens. Na verdade, embora não cite Stuart
Mill - mas se refere profusamente aos outros dois -, Balzac concebia
sua obra ficcional como obra de conhecimento sociológico e ela de fato
pode ser lida como uma concretização do projeto etológico de Mil I.
Contudo, o que mais nos pode interessar neste momento é a
reunião de elementos liberais e românticos promovida por este genuíno
filho precoce do regimedisciplinar.
No seu clássico On liberty (I 859), que traz como epígrafe um tre-
cho de Humboldt que nos coloca de chofre no seio do ideário românti-
co. Stuart Mil! formula uma proposta de metas e formas de vida social e
política em que as conquistas civis liberais são colocadas a serviço dos
valores românticos. Decerto que as marcas da disciplinet e da doutrina
utilitária estão aí presentes; estão, contudo, confinadas a certas situa-
ções-limite que envolvem procedimentos de exclusão. Por exemplo, o
governante progressista e civilizado tem o direito de exercer o poder
disciplinador sobre os bárbaros, excluídos da civilização; a coerção da
espontaneidade é também justificada quando o Estado tem de lidar com
marginais e criminosos que põem em risco os direilos alheios.
134
Existe, contudo, uma esfera da ação na qual a sociedade. em co.ntraposi-
ção ao indivíduo, só 1em interesse indireto, supondo-se mesmo que te-
nha algum: queremos nos referir àquela que compreende toda a parte da
vida e da conduta pessoais que somente afetam o próprio indivíduo (. .. )
Tal, portanto, a região apropriada da liberdade humana. Compreende, em
primeiro lugar, o domínio interior da consciência, a liberdade de pensa-
mento, de senlimento, a liberdade absoluta de opinião e de sentimento
em lodos os assuntos pniticos e e:r.peculati vos,. científicos, morais e teo-
lógicos( ... } Em segundo lugar, o princípio exige liberdade de gostos e de
ocupações, a de formular um plano de vida que esteja de acordo com o
caráter do indivíduo, a de fazer o que se deseja ( ... ) Em terceiro lugar. da
liberdade de cada indivCduo result.a a liberdade, dentro de certos limites,
de combinação entre indivíduos, a liberdade de se unirem para qualquer
fim que não envolva danos a terceiros. (Stuan Mill, 1963; p. 15-grito meu)
É in!eressante observar no trecho acima como, de penneio aos
velhos temas liberais da 'liherdade negativa' (a 1iberdade exercida no
espaço esvaziado de controles sociais. ou seja, a liberdade na área da
ftào-imeiferêucia; cf. Berlin, 1981; p. J36). já se insinua um tema novo:
o da liberdade para a formulação de um projeto individual de vida
conforme o caráter do indivíduo. Nesta noção de 'caráter individual; se
expressa a crença em diferença~ qualitativas entre indivíduos, ou seja,
em diferenças de personalidade. e na noção de 'projeto' a liberdade se
idcntilica com a aulonomia e com o autodesenvolvimento.
No capítulo I (introdução) de On /ibeny, Stuart Mill deixava muito
claro estar escrevendo num momento em que as liberdades estão sendo
ameaçadas pelo "fortalecimento da sociedade" , o que em nossa
linguagem se expressarià como a expansão do regime disciplinar. O
segundo capítulo trata da liberdade de pensamento e de discussão e,
apesar de inleressante, não é onde se revela a maior originalidade do
autor. Já o terceiro capítulo intitula-se 'Da individualidade como um dos
elementos do bem-estar' e é aí que aflorao ideário romântico: a ênfao;e
na diversidade, na singularidade, na espontaneidade e na interioridade
dos indivíduos; por exemplo:
A na!ureza humana não é máquina que se possa construir conforme um
modelo qualquer, regulando-se para executar exatamente a tarefa que se
lhe prescrever, mas uma árvore, que precisa crescer e desenvolver-se de
todos os lados, de acordo com a tendência de forças interiores que o fazem
um ser vivo. (lbid.; p. 67)
Há aí uma valorização c interpretação da vida para romântico
nenhum colocar defeito. Como estamos longe da aridez do mecanismo
associacionista ou da psÍcologia dos castigos e recompensas num texto
como o que transcrevo a seguir:
Conceder-se-á provavelmente ser desejável que exercitem os homens o
emendímento ( ... ) Admite-se, até certo ponto, que deve ser nosso o
entendimento; mas não se observa a mesma boa vontade no sentido de
admitir que também devam ser nossos os nossos desejos e impulsos ( ... )
Contudo. desejos e impulsos tonnam pane do ser humant> perfeito, tanto
quanto crenças e restrições; sendo os impulsos fortes somente perigosos
quando nào convenientemente equilibrados, quando um grupo de objetivos
e inclinações adquire intensidade, enquanto outros. que com eles devem
coexistir, permanecem fracos e inativos ( ... ) Impulsos fortes nada mais
135
são que o outro nome para a energia( ... ) Aqueles cujos impulsos e desejos
são próprios, conforme desenvolvido.~ e modificados pela cultura que lhes
é peculiar- díz-se possuir caráter (lbíd.; p. 68)
Vinte e três anos depois da morte do pai, o filho de James Mill
franqueia o acesso aos próprios desejos! É inevitável que esta
concepção da natureza humana como desejante e impulsiva, é inevitável
que esta 'energética' e esta concepção não-disciplinar do controle dos
impulsos (trata-se de desenvolvê-los em equilíbrio conflitivo e não de
domá-los e extingui-los) nos leve a pensar em Freud (que, por sinal,
traduziu Stuart Mill para o alemão), assim como Bentham nos evocara a
lembrança de Skinner.
É ainda no combate ao regime disciplinar que Stuart Mill se opõe
ao calv inismo e à sua ênfase na contenção dos impulsos e na
obediência, para concluir: "Não é desgastando no sentido da
uniformidade tudo que é individual nos homens, mas cultivando-o e
suscitando-o, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses
de terceiros, que os seres humanos se tomam objeto de contemplação,
nobre e belo" (Ibid.; P- 71 )-
0 reconhecimento e a valorização das diferenças individuais
acarretam a reivindicação da desigualdade e diversidade nos modos de
vida, a liberdade de opções e a tolerância diante das minorias.
O quarto capítulo trata dos mesmos temas sob o ângulo dos limites
da autoridade da sociedade sobre os indivíduos; e o capítulo final
reafirma as mesmas teses no contexto de aJguns exemplos práticos.
O maior mérito de On liberty reside, creio eu, no seu valor como
testemunho pessoal de um filósofo que, tendo sofrido na carne o impacto
da disciplína utilitarista e vendo ao seu redor crescerem as forças
coletivas, os controles sociais, o peso da administração burocrática e
as malhas finas da opinião pública, tenta defender os espaços
ameaçados da privacidade e da liberdade nesta versão romantizada do
liberalismo.
No mesmo século, porém, há uma outra obra, que inclusive exerceu
considerável influência sobre Stuart Mill, que trata das mesmas
questões com uma perspicácia e uma capacidade analítica (e profética)
inigualáveis. Retiro-me a A democracia na América (( 1835-1840] 1987),
de Alexis de Tocqueville ( 1805-1859)_
Tocqueville costuma ser lembrado como um arguto e pioneiro
estudioso do individualismo moderno e, sem dúvida nenhuma, o livro
136
contém algumas passagens antológicas. No entanto, como veremos, o
individualismo segundo Tocqueville não consiste apenas na separação
e autonomização dos indivíduos, no seu virtual isolamento das
coletividades e das tradições, no investimento maciço de cada um em
si mesmo e na própria independência. O individualismo simultaneamente
constitui. valoriza e enfraquece o indivíduo, dá-lhe mais status e
responsabilidades e lhe traz mais ameaças e desamparo. Talvez o que
haja de mais instigante nas análises de Tocqueville sejam as relações
que estabelece entre uma cultura indi vidualista e as novas forças c
fom1as do despotismo. Ele observa tanto um crescimento dos espaços
de individuação como dos poderes das agências governamentais e da
opinião pública, os quais tendem a invadir progressivamente as esferas
da privacidade. São os próprios indivíduos livres, mas apequenados,
que se entregam a estes novos déspotas, vigilantes e meticulosos,
organizadores detalhistas das crenças, das condutas e dos sentimentos
comuns.
É assim que, depois de enaltecer a pretensão de cada americano
julgar-se capaz de fonnular seus próprios juízos e defender com bravura
a independência de pensamento e expressão, Tocqueville ( 1987; p. 326)
nos alerta: "Nos Estados Unidos a maioria encarrega-sede fornecer aos
indivíduos uma infinidade de opiniões completas e assim os alivia da
obrigação de fonnular opiniões que lhes sejam próprias".
Da mesma fonna quanto aos sentimentos; embora os homens
numa cultura individualista voltem para si todos os seus sentimentos,
rel:onheccndo que não devem esperar dos demais muita atenção e
apoio,
... sentem a necessidade de um socorro estranho. Nestes extremos voltam
naturalmente seus olhares para este ser imenso, o único que se eleva no
meio llo abatimento universal. É para ele que as suas necessidades e
sobretudo os seus desejos constantemente os impelem; é ele que tal
cidadão acaba por considerar como o sustentáculo único e necessário da
fraqucta individual. (lbid.; p. 515)
Este ser imenso tanto pode ser o Estado napoleônico como a
grande burocracia estatal de um Estado democrático " ... e o braço deste
Estado vai procurar cada homem em particular no meio da multidão (lbid.;
p. 447); ou seja, exerce sobre cada indivíduo aquele poder cotidiano e
invisível que ao mesmo tempo controla e individualiza.
137
são que o outro nome para a energia( ... ) Aqueles cujos impulsos e desejos
são próprios, conforme desenvolvido.~ e modificados pela cultura que lhes
é peculiar- díz-se possuir caráter (lbíd.; p. 68)
Vinte e três anos depois da morte do pai, o filho de James Mill
franqueia o acesso aos próprios desejos! É inevitável que esta
concepção da natureza humana como desejante e impulsiva, é inevitável
que esta 'energética' e esta concepção não-disciplinar do controle dos
impulsos (trata-se de desenvolvê-los em equilíbrio conflitivo e não de
domá-los e extingui-los) nos leve a pensar em Freud (que, por sinal,
traduziu Stuart Mill para o alemão), assim como Bentham nos evocara a
lembrança de Skinner.
É ainda no combate ao regime disciplinar que Stuart Mill se opõe
ao calv inismo e à sua ênfase na contenção dos impulsos e na
obediência, para concluir: "Não é desgastando no sentido da
uniformidade tudo que é individual nos homens, mas cultivando-o e
suscitando-o, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses
de terceiros, que os seres humanos se tomam objeto de contemplação,
nobre e belo" (Ibid.; P- 71 )-
0 reconhecimento e a valorização das diferenças individuais
acarretam a reivindicação da desigualdade e diversidade nos modos de
vida, a liberdade de opções e a tolerância diante das minorias.
O quarto capítulo trata dos mesmos temas sob o ângulo dos limites
da autoridade da sociedade sobre os indivíduos; e o capítulo final
reafirma as mesmas teses no contexto de aJguns exemplos práticos.
O maior mérito de On liberty reside, creio eu, no seu valor como
testemunho pessoal de um filósofo que, tendo sofrido na carne o impacto
da disciplína utilitarista e vendo ao seu redor crescerem as forças
coletivas, os controles sociais, o peso da administração burocrática e
as malhas finas da opinião pública, tenta defender os espaços
ameaçados da privacidade e da liberdade nesta versão romantizada do
liberalismo.
No mesmo século, porém, há uma outra obra, que inclusive exerceu
considerável influência sobre Stuart Mill, que trata das mesmas
questões com uma perspicácia e uma capacidade analítica (e profética)
inigualáveis. Retiro-me a A democracia na América (( 1835-1840] 1987),
de Alexis de Tocqueville ( 1805-1859)_
Tocqueville costuma ser lembrado como um arguto e pioneiro
estudioso do individualismo moderno e, sem dúvida nenhuma, o livro
136
contém algumas passagens antológicas. No entanto, como veremos, o
individualismo segundo Tocqueville não consiste apenas na separação
e autonomização dos indivíduos, no seu virtual isolamento das
coletividades e das tradições, no investimento maciço de cada um em
si mesmo e na própria independência. O individualismo simultaneamente
constitui. valoriza e enfraquece o indivíduo, dá-lhe mais status e
responsabilidades e lhe traz mais ameaças e desamparo. Talvez o que
haja de mais instigante nas análises de Tocqueville sejam as relações
que estabelece entre uma cultura indi vidualista e as novas forças c
fom1as do despotismo. Ele observa tanto um crescimento dos espaços
de individuação como dos poderes das agências governamentais e da
opinião pública, os quais tendem a invadir progressivamente as esferas
da privacidade. São os próprios indivíduos livres, mas apequenados,
que se entregam a estes novos déspotas, vigilantes e meticulosos,
organizadores detalhistas das crenças, das condutas e dos sentimentos
comuns.
É assim que, depois de enaltecer a pretensão de cada americano
julgar-se capaz de fonnular seus próprios juízos e defender com bravura
a independência de pensamento e expressão, Tocqueville ( 1987; p. 326)
nos alerta: "Nos Estados Unidos a maioria encarrega-se de fornecer aos
indivíduos uma infinidade de opiniões completas e assim os alivia da
obrigação de fonnular opiniões que lhes sejam próprias".
Da mesma fonna quanto aos sentimentos; embora os homens
numa cultura individualista voltem para si todos os seus sentimentos,
rel:onheccndo que não devem esperar dos demais muita atenção e
apoio,
... sentem a necessidade de um socorro estranho. Nestes extremos voltam
naturalmente seus olhares para este ser imenso, o único que se eleva no
meio llo abatimento universal. É para ele que as suas necessidades e
sobretudo os seus desejos constantemente os impelem; é ele que tal
cidadão acaba por considerar como o sustentáculo único e necessário da
fraqucta individual. (lbid.; p. 515)
Este ser imenso tanto pode ser o Estado napoleônico como a
grande burocracia estatal de um Estado democrático " ... e o braço deste
Estado vai procurar cada homem em particular no meio da multidão (lbid.;
p. 447); ou seja, exerce sobre cada indivíduo aquele poder cotidiano e
invisível que ao mesmo tempo controla e individualiza.
137
Em toda parte, o Estado passa a dirigir cada vez mais por si mesmo os
menores cidadãos e a conduzir so7.inho cada um deles, nas menores
questões ( ... ) Não só o puder do soberano é amplo, como acabamos de
ver na esfera antiga dos antigos poderes, mas esta não basta mais para
contê-lo e vai se propagar no domínio que até agora fora reservado à
independência individual ( ... ) As~eguro que não há pars da Europa onde
a administração não se tenha tornado n!io só mais centralizada, mas
também mais inquisitiva e minuciosa; por toda a parte ela penetra mais
além que outrora nos afa7.eres privados; regula à sua maneira mais
numerosas ações e ações menores. e estabelece-se em melhor posição
todos os dias. ao lado, em volta e acima de cada indivfduo para ajudá-lo,
aconselhá-lo e exercer a coerção sobre ele. (lbid.; pp. 522-523)
O texto, vale recordar, é de 1840. Não conheço descrição mais
nítida do que 135 anos depois Foucault viria 'descobrir' com grande
estardalhaço: o regime disciplinar com toda " ... a minúcia dos
regulamentos. o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mfnimas
parcelas da vida e do corpo ... " (Foucault, 1977; p. 129).
Curiosamente, Tocqueville nãu é citado por Foucault.
Tocqueville está perfeitamente ciente de que o próprio
desenvolvimento da economia c da sociedade burguesa e industrial
exigem maiores intervenções do Estado. maiores investimentos, mais
regulamentação e mais administração. Antecipa-se nesta sua
compreensão do processo à tese de K. Polany de que os avanços da
administração burocrática e os recuos da liberdade individual atendem
mais às demandas de uma sociedade burguesa, que assistia aos
repetidos fracassos do mercado como dispositivo de auto-regulação,
do que a um complô antiliberal, taJ como os pr.óprios liberais costumam
entender a história do 1 iberalismo (Polany, 1980). 3
No entanto. o que me parece ainda mais original e revelador na
análise de Tocqueville é a sua tese de que a regulação completa, capilar
e abrangente das existências individuais não é apenas imposta pelo
Estado em atenção às demandas da economia e da grande política,mas
é como que solicitada pelos indivíduos autônomos e livres.
Individualismo e centralização administrativa não são meros opostos~
liberalismo e regime disciplinar mantêm entre si relações muito mais
perversas do que poderia parecer à primeira vista:
138
Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser
produzido no mundo: vejo uma multidao inumerável de homens
semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos à
procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma.
Cada um deles. afastado dos demais, é como que estranho ao destino de
todos os outros: seus filhos e seus amigos paniculares para ele constituem
toda a espécie humana; quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao
lado deles, mas não os vê; tnca-os. mas não os sente, existe apenas em si
c para si mesmo ...
Acima destes eleva-se um poder imenso e tutelar que se encarrega de
garantir o seu pra1.er e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso.
regular, previdente e brando ( ... )Trabalha de bom grado para a sua
felicidade, mas deseja ser o seu único agente c árbitro exclusivo; provê a
sua segurança. conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria,
regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe falta tirar-lhes
inteiramente, senão o incômodo de pcn~ar e a angústia de viver '!
(Tocqueville, 1987; pp. 531-532)
Segundo Tocqueville os riscos do despotismo moderno, esta
outra face do moderno individualismo, seriam maiores na Europa
continental, onde inexistia uma longa tradição de liberdades individuais,
do que nos Estados Unidos c na Inglaterra. Po't outro lado, mais que
em qualquer outra pane, a ditadura da opinião pública seria poderosa
nos Estados Unido~. onde inexistiam tradições culturais fortes o
suficiente para se contrapor às pressões das idéias majoritárias.
É um texto de 150 anos atrás e quase não há nada a acrescentar.
Cabe-nos apenas observar a ine xorável expansão da sociedade
admini strada (Habermas, 1978; e Polany, 1980) e da sua expressão em
formas políticas autoritárias e totalitárias; tudo isso em contraponto
apenas aparentemente dissonante com o aprofundamento do
individualismo c com as repetidas ressurreições do idcário liberal.
Convém agora acompanhar as peripécias da outra vertente do
pensamento de Stuart Mill, aquela que lhe dera sangue novo e alma
nova para reanimar o liberalismo fraudulento de Jercmy Bentham: a
vertente romântica.
O romantismo: promessas e realizações~
As relações dos movimentos românticos com o pensamento li bem!
e com a forma de individualismo que lhe corresponde e, mais ainda,
com as práticas de poder do regime disciplinar são, à primeira vista, de
139
Em toda parte, o Estado passa a dirigir cada vez mais por si mesmo os
menores cidadãos e a conduzir so7.inho cada um deles, nas menores
questões ( ... ) Não só o puder do soberano é amplo, como acabamos de
ver na esfera antiga dos antigos poderes, mas esta não basta mais para
contê-lo e vai se propagar no domínio que até agora fora reservado à
independência individual ( ... ) As~eguro que não há pars da Europa onde
a administração não se tenha tornado n!io só mais centralizada, mas
também mais inquisitiva e minuciosa; por toda a parte ela penetra mais
além que outrora nos afa7.eres privados; regula à sua maneira mais
numerosas ações e ações menores. e estabelece-se em melhor posição
todos os dias. ao lado, em volta e acima de cada indivfduo para ajudá-lo,
aconselhá-lo e exercer a coerção sobre ele. (lbid.; pp. 522-523)
O texto, vale recordar, é de 1840. Não conheço descrição mais
nítida do que 135 anos depois Foucault viria 'descobrir' com grande
estardalhaço: o regime disciplinar com toda " ... a minúcia dos
regulamentos. o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mfnimas
parcelas da vida e do corpo ... " (Foucault, 1977; p. 129).
Curiosamente, Tocqueville nãu é citado por Foucault.
Tocqueville está perfeitamente ciente de que o próprio
desenvolvimento da economia c da sociedade burguesa e industrial
exigem maiores intervenções do Estado. maiores investimentos, mais
regulamentação e mais administração. Antecipa-se nesta sua
compreensão do processo à tese de K. Polany de que os avanços da
administração burocrática e os recuos da liberdade individual atendem
mais às demandas de uma sociedade burguesa, que assistia aos
repetidos fracassos do mercado como dispositivo de auto-regulação,
do que a um complô antiliberal, taJ como os pr.óprios liberais costumam
entender a história do 1 iberalismo (Polany, 1980). 3
No entanto. o que me parece ainda mais original e revelador na
análise de Tocqueville é a sua tese de que a regulação completa, capilar
e abrangente das existências individuais não é apenas imposta pelo
Estado em atenção às demandas da economia e da grande política, mas
é como que solicitada pelos indivíduos autônomos e livres.
Individualismo e centralização administrativa não são meros opostos~
liberalismo e regime disciplinar mantêm entre si relações muito mais
perversas do que poderia parecer à primeira vista:
138
Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser
produzido no mundo: vejo uma multidao inumerável de homens
semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos à
procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma.
Cada um deles. afastado dos demais, é como que estranho ao destino de
todos os outros: seus filhos e seus amigos paniculares para ele constituem
toda a espécie humana; quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao
lado deles, mas não os vê; tnca-os. mas não os sente, existe apenas em si
c para si mesmo ...
Acima destes eleva-se um poder imenso e tutelar que se encarrega de
garantir o seu pra1.er e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso.
regular, previdente e brando ( ... )Trabalha de bom grado para a sua
felicidade, mas deseja ser o seu único agente c árbitro exclusivo; provê a
sua segurança. conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria,
regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe falta tirar-lhes
inteiramente, senão o incômodo de pcn~ar e a angústia de viver '!
(Tocqueville, 1987; pp. 531-532)
Segundo Tocqueville os riscos do despotismo moderno, esta
outra face do moderno individualismo, seriam maiores na Europa
continental, onde inexistia uma longa tradição de liberdades individuais,
do que nos Estados Unidos c na Inglaterra. Po't outro lado, mais que
em qualquer outra pane, a ditadura da opinião pública seria poderosa
nos Estados Unido~. onde inexistiam tradições culturais fortes o
suficiente para se contrapor às pressões das idéias majoritárias.
É um texto de 150 anos atrás e quase não há nada a acrescentar.
Cabe-nos apenas observar a ine xorável expansão da sociedade
admini strada (Habermas, 1978; e Polany, 1980) e da sua expressão em
formas políticas autoritárias e totalitárias; tudo isso em contraponto
apenas aparentemente dissonante com o aprofundamento do
individualismo c com as repetidas ressurreições do idcário liberal.
Convém agora acompanhar as peripécias da outra vertente do
pensamento de Stuart Mill, aquela que lhe dera sangue novo e alma
nova para reanimar o liberalismo fraudulento de Jercmy Bentham: a
vertente romântica.
O romantismo: promessas e realizações~
As relações dos movimentos românticos com o pensamento li bem!
e com a forma de individualismo que lhe corresponde e, mais ainda,
com as práticas de poder do regime disciplinar são, à primeira vista, de
139
franca exposição. Contudo, tanto o romantismo como o iluminismo no
século XVIII corrcsponderam a movimentos de exteriorização das
experiências privatizadas; por exemplo, na França c na Alemanha foram
plataformas críticas às convenções, regras e procedimentos de controle
absolutistas impostos às esferas públicas (cf. cap. 3). Não s6 pela origem
comum , mas pela convi vência de temas iluministas e românticos em
diversas obras doséculo XVII impõe-se a necessidade de compreender
iluminismo c romanlismo de forma menos dicotômica e mais articulada.
Finalmente, a versào do liberalismo de Stuart Mill, que acabamos de
resenhar, mostra como em pleno século XIX o pensamento liberal
precisou recorrer ao idcário romântico para' se fortalecer na sua luta
contra os avanços do regime disciplinar. Como todas estas evidências
não nos devem impedir de também reconhecer o conflito entre iluminismo
e romantismo, a tarefa da análise deve ser, exatamente, a de revelar como
se constitui este campo em que ilum inismo e romantismo se reúnem e
se separam como ingredientes mutuamente indispensáveis de uma
mesma configuração ideológica. As relações do pensamento romântico
com o regime disciplinar, entretanto, poderiam ainda nos parecer menos
complexas, resolvendo-se na forma de pura oposíção. Também aqui.
porém, a realidade não se mostra tão simples, e uma das tarefas da
análise será a de expor os vínculos menos evidentes que conduzem as
águas românticas para o moinho da sociedade administrada. ~ Deixarei
para uma outra ocasião a ou1ra face do problema, ou seja, a que nos
revela os avanços do regime disciplinar engrossando as águas
românticas.
Comecemos acompanhando a expansão do pensamento romântico
como crítica ao iluminismo, ao liberalismo e ao individualismo da
ilustração. Coube , sem dúvida. aos artistas, músicos, poetas e
pensadores românticos pôr em questão as perspectivas do iluminismo
como princípio civilizatório. Tanto a epistemologia iluminista- empírica
e racional - como os valores liberais de independência individual, e a
conj ugação destes traços numa interpretação individual ista da vida
social (a qual incluía tanto a noção de um contrato firmado entre
indivíduos livres para a instituição da sociedade como a articulação dos
átomos econômicos através dos mercados e de suas leis impessoais)
foram rejeitados. O próprio termo- 'individualismo' -nasceu na França
como conseqüência de uma reação negativa· do pensamento conservador
140
romântico aos ideais e realizações da Revolução Francesa (Lukes, 1975)
e com este sentido pejorativo o tenno invadiu outros ares culturais.
Os movimentos român ticos, na sua dimensão política, se
apresentaram ora como um a face nitidamente conservadora e
tmdicionalista. buscando em fonnas arcaicas de organização social uma
saída para os impasses do individualismo, ora com uma face
revolucionári a, lançando-se , então, na direção do fu turo para a
superação do individualismo ilustrado. Nem sempre as duas vertentes
ficavam completamente separáveis uma da outra. De qualquer fonna,
ambas sempre corresponderam a um proj eto de restauração .
Restauração de formas orgânicas de vida social, restauração de valores
autênticos, restauração de modos de relação entre os homens e entre
eles e o mundo físi co c histórico que trariam de volta a integridade, a
espontaneidade c a fecundidade da vida coletiva e individual. Nesta
m edida, os românticos criaram. e les tamhém, uma noção de
individualidade, melhor dizendo, de personalidade, não mais definido
pelo isolamento e pela privacidade nem pela identidade social, mas pela
capacidade de se autopropulsionar, autodesenvolver, de criar e, na
própria criação, transcender-se e integrar-se às coletividades e tradições .
Estas, por sua vez, também eram concebidas sob a forma da
personalidade: o espírito do povo, o espírito da língua, o espírito da
religião etc. que são menos um conjunto de traços identificatórios do
que matrizes de experiências, representações , sentimentos e
possibilidades existenciais.
Com o romantismo, passa-se de uma noção de liberdade negativa
-a liberdade exercida no terreno da não-interferência- para uma versão
m oderna na liberdade positiva - como 'autonomia' c auto-
engendramento -, processos estes que implicam tanto a transfonnação
dos sujeitos naquilo que eles de fato são (a constituição de uma
personalidade singularizada), como na permanente perda de suas
identidades convencionais: o 'tornar-se o que verdadeiramente se é'
contrapondo-se ao 'conservar os papéis e as máscaras socialmente
convencionadas'.
É sob este aspecto que fazem sentido as diatribes românticas
contra os 'filisteus', contra os hipócritas, mesquinhos, acomodados e
medíocres, os homens livres com suas pequenas ambições; a defesa
romântica das paixões, dos impulsos, dos estados alterados da
141
franca exposição. Contudo, tanto o romantismo como o iluminismo no
século XVIII corrcsponderam a movimentos de exteriorização das
experiências privatizadas; por exemplo, na França c na Alemanha foram
plataformas críticas às convenções, regras e procedimentos de controle
absolutistas impostos às esferas públicas (cf. cap. 3). Não s6 pela origem
comum , mas pela convi vência de temas iluministas e românticos em
diversas obras do século XVII impõe-se a necessidade de compreender
iluminismo c romanlismo de forma menos dicotômica e mais articulada.
Finalmente, a versào do liberalismo de Stuart Mill, que acabamos de
resenhar, mostra como em pleno século XIX o pensamento liberal
precisou recorrer ao idcário romântico para' se fortalecer na sua luta
contra os avanços do regime disciplinar. Como todas estas evidências
não nos devem impedir de também reconhecer o conflito entre iluminismo
e romantismo, a tarefa da análise deve ser, exatamente, a de revelar como
se constitui este campo em que ilum inismo e romantismo se reúnem e
se separam como ingredientes mutuamente indispensáveis de uma
mesma configuração ideológica. As relações do pensamento romântico
com o regime disciplinar, entretanto, poderiam ainda nos parecer menos
complexas, resolvendo-se na forma de pura oposíção. Também aqui.
porém, a realidade não se mostra tão simples, e uma das tarefas da
análise será a de expor os vínculos menos evidentes que conduzem as
águas românticas para o moinho da sociedade administrada. ~ Deixarei
para uma outra ocasião a ou1ra face do problema, ou seja, a que nos
revela os avanços do regime disciplinar engrossando as águas
românticas.
Comecemos acompanhando a expansão do pensamento romântico
como crítica ao iluminismo, ao liberalismo e ao individualismo da
ilustração. Coube , sem dúvida. aos artistas, músicos, poetas e
pensadores românticos pôr em questão as perspectivas do iluminismo
como princípio civilizatório. Tanto a epistemologia iluminista- empírica
e racional - como os valores liberais de independência individual, e a
conj ugação destes traços numa interpretação individual ista da vida
social (a qual incluía tanto a noção de um contrato firmado entre
indivíduos livres para a instituição da sociedade como a articulação dos
átomos econômicos através dos mercados e de suas leis impessoais)
foram rejeitados. O próprio termo- 'individualismo' -nasceu na França
como conseqüência de uma reação negativa· do pensamento conservador
140
romântico aos ideais e realizações da Revolução Francesa (Lukes, 1975)
e com este sentido pejorativo o tenno invadiu outros ares culturais.
Os movimentos român ticos, na sua dimensão política, se
apresentaram ora como um a face nitidamente conservadora e
tmdicionalista. buscando em fonnas arcaicas de organização social uma
saída para os impasses do individualismo, ora com uma face
revolucionári a, lançando-se , então, na direção do fu turo para a
superação do individualismo ilustrado. Nem sempre as duas vertentes
ficavam completamente separáveis uma da outra. De qualquer fonna,
ambas sempre corresponderam a um proj eto de restauração .
Restauração de formas orgânicas de vida social, restauração de valores
autênticos, restauração de modos de relação entre os homens e entre
eles e o mundo físi co c histórico que trariam de volta a integridade, a
espontaneidade c a fecundidade da vida coletiva e individual. Nesta
m edida, os românticos criaram. e les tamhém, uma noção de
individualidade, melhor dizendo, de personalidade, não mais definido
pelo isolamentoe pela privacidade nem pela identidade social, mas pela
capacidade de se autopropulsionar, autodesenvolver, de criar e, na
própria criação, transcender-se e integrar-se às coletividades e tradições .
Estas, por sua vez, também eram concebidas sob a forma da
personalidade: o espírito do povo, o espírito da língua, o espírito da
religião etc. que são menos um conjunto de traços identificatórios do
que matrizes de experiências, representações , sentimentos e
possibilidades existenciais.
Com o romantismo, passa-se de uma noção de liberdade negativa
-a liberdade exercida no terreno da não-interferência- para uma versão
m oderna na liberdade positiva - como 'autonomia' c auto-
engendramento -, processos estes que implicam tanto a transfonnação
dos sujeitos naquilo que eles de fato são (a constituição de uma
personalidade singularizada), como na permanente perda de suas
identidades convencionais: o 'tornar-se o que verdadeiramente se é'
contrapondo-se ao 'conservar os papéis e as máscaras socialmente
convencionadas'.
É sob este aspecto que fazem sentido as diatribes românticas
contra os 'filisteus', contra os hipócritas, mesquinhos, acomodados e
medíocres, os homens livres com suas pequenas ambições; a defesa
romântica das paixões, dos impulsos, dos estados alterados da
141
consciência (a valorização das drogas alucinógenas, do sonambulismo,
das experiências mediúni cas e êxtases etc.); a defesa da absoluta
liberdade de criação e rransfiguração- o culto romântico de Dionísio •
a valorização da alienação, da loucura, dos desdobramentos da
personalidade, da dissolução dos limites; o desdém para com as
representações racionais e para com os interesses egoístas (ou egóicos);
o cultivo da imersão nos processos vitais da natureza e da história e a
procura de participaç.ão nas vivências míticas e arquetípicas, tudo isso
faz sentido no bojo das grandes p romessas restauradoras do
romancismo. Assim como Bentham nos recordara Skinner e o liberalismo
de Stuart Mill nos evocara Freud, é inevitável aqui pensar em Jung (cf.,
a propósito, a excelente análise de Rieff, 1990; cap. 5).
Trata-se, é c laro, de uma restauração paradoxal, que pode passar
pela fragmentação da identidade e pela mais desregrada extravagância.
A fragmentação da identidade, de uma certa forma. é a condição e a
conseqüência de um processo de crescimento e florescimento da
personalidade, com todo o seu potencial de variação e com toda a recusa
a subordinar-se aos moldes das representações convencionais. É típica
do romantismo a tematização da dupla ou tripla identidade. Basta que
se recorde a respeito a obra musical de Schumann. Quanto à
extravagância, Binswanger ( 1977) ensina que se trata de uma posição
existencial insustentável: na extravagância, o sujeito .. que foi além de
todo limite razoável" coloca-se a uma altura na qual se vê encalacrado,
sem forças para subir mais nem condições de descer para o terreno da
humana co nvivência . Os que se fragmentam ou extravagam
enlouquecem ou morrem, ou ambos, o que de fato foi o destino de
diversos românticos notáveis.
O romantismo levado a estas últimas conseqüências nunca foi
mais que uma coisa de ' eleitos'. Aliás, sua força se nutria exatamente
da condição de marginalidade que lhe era destinada numa sociedade
que se pensava predominantemente a partir das concepções liberais e
que já começava a se organizar, sob a égide do regime disciplinar. No
entanto. a música composta pelos românticos, a poesia escrita por e les
c os quadros que pintavam mantinham com o público uma relação
contraditória: nela estava presente tanto o escândalo e a mútua agressão
como a reverência e mesmo a veneração às grandes personalidades
criativas: os gênios. A isto precisaremos retornar quando for o caso de
tratar das relações do romantismo com o regime disciplinar.
142
Em formas e versões menos contundentes e dissonantes. as idéias
e modos românti cos podem se r perfe itamente assimilados pelo
liberalismo, trazendo-lhe os valores e metas que vão preencher o vazio
deixado pela redução da vida social à dimensão puramente instrumental,
racional e calculadora. Foi o que vimos no liberalismo de Stuart Mill: a
defesa da liberdade negativa é complementada pela valorização da
liberdade positiva. tal como aparece na idéia de um projeto de vida que
permita o desabrochar das virtualidades, das tendências espontâneas
ao desenvolvimento individual (neste aspecto, Stuart Mill parece estar
mais próximo de Rogers do que de Freud, de quem se aproximava pelo
lado da energétka e dos desejos).
Creio que é esta maneira de conceber a vida social como condição
mais ou menos favorável ao desenvolvimento pessoal e o uso deste
critério para avaliar, tomar decisões e participar da vida em sociedade
e, ainda mais, para se omitir de qualquer participação, que irá caracterizar
a invasão do público pelo privado identificada por Sennet na segunda
metade do século XIX. Enquanto no liberalismo original a cesura entre
as esferas da privacidade e da publicidade tinha de ser conservada, já
que a liberdade no espaço de não-interferência requer exatamente a clara
delimitação do privativo, o liberalismo romantizado, embora se proponha
também a sublinhar a invi olabilidade do privado, conduz a uma
perspectiva de inversão: são os valores e procedimentos da privacidade
que passam a se elevar como organizadores e jufzes da vida pública.
Desta maneira, es taríamos diante de uma decorrência ' natural' do
desinvestimento do social e do superínvestimento do privado de que
já nos falara Tocqueville. Isto, entretanto, é apenas um lado da questão,
e , talvez, o lado menos elucidativo do que se passou. O que não se
pode esquecer são os vínculos positivos do pensamento e das práticas
românticas com a sociedade administrada.
Sabe-se. por exemplo. que as intervenções estatais visando limitar
a liberdade de ação dos agentes econômicos e restringir, assim, o poder
de auto-regulação espontânea dos mercados de bens e de trabalho
foram promovidas por polfticos conservadores, aderidos às críticas
românticas ao liberalismo e ao individualismo clássicos (Dewey. 1970).
Isto quer dizer que os avanços da ordem administrativa não foram
necessariamente obra do liberalismo benthamista, disciplinador, embora
na verdade estas intervenções respondessem a demandas de
ajustamento do sistema econômico e social e, a longo prazo, tenham
143
consciência (a valorização das drogas alucinógenas, do sonambulismo,
das experiências mediúni cas e êxtases etc.); a defesa da absoluta
liberdade de criação e rransfiguração- o culto romântico de Dionísio •
a valorização da alienação, da loucura, dos desdobramentos da
personalidade, da dissolução dos limites; o desdém para com as
representações racionais e para com os interesses egoístas (ou egóicos);
o cultivo da imersão nos processos vitais da natureza e da história e a
procura de participaç.ão nas vivências míticas e arquetípicas, tudo isso
faz sentido no bojo das grandes p romessas restauradoras do
romancismo. Assim como Bentham nos recordara Skinner e o liberalismo
de Stuart Mill nos evocara Freud, é inevitável aqui pensar em Jung (cf.,
a propósito, a excelente análise de Rieff, 1990; cap. 5).
Trata-se, é c laro, de uma restauração paradoxal, que pode passar
pela fragmentação da identidade e pela mais desregrada extravagância.
A fragmentação da identidade, de uma certa forma. é a condição e a
conseqüência de um processo de crescimento e florescimento da
personalidade, com todo o seu potencial de variação e com toda a recusa
a subordinar-se aos moldes das representações convencionais. É típica
do romantismo a tematização da dupla ou tripla identidade. Basta que
se recorde a respeito a obra musical de Schumann. Quanto à
extravagância, Binswanger ( 1977) ensina que se trata de uma posição
existencial insustentável: na extravagância, o sujeito .. que foi além de
todo limite razoável" coloca-se a uma altura na qual se vê encalacrado,sem forças para subir mais nem condições de descer para o terreno da
humana co nvivência . Os que se fragmentam ou extravagam
enlouquecem ou morrem, ou ambos, o que de fato foi o destino de
diversos românticos notáveis.
O romantismo levado a estas últimas conseqüências nunca foi
mais que uma coisa de ' eleitos'. Aliás, sua força se nutria exatamente
da condição de marginalidade que lhe era destinada numa sociedade
que se pensava predominantemente a partir das concepções liberais e
que já começava a se organizar, sob a égide do regime disciplinar. No
entanto. a música composta pelos românticos, a poesia escrita por e les
c os quadros que pintavam mantinham com o público uma relação
contraditória: nela estava presente tanto o escândalo e a mútua agressão
como a reverência e mesmo a veneração às grandes personalidades
criativas: os gênios. A isto precisaremos retornar quando for o caso de
tratar das relações do romantismo com o regime disciplinar.
142
Em formas e versões menos contundentes e dissonantes. as idéias
e modos românti cos podem se r perfe itamente assimilados pelo
liberalismo, trazendo-lhe os valores e metas que vão preencher o vazio
deixado pela redução da vida social à dimensão puramente instrumental,
racional e calculadora. Foi o que vimos no liberalismo de Stuart Mill: a
defesa da liberdade negativa é complementada pela valorização da
liberdade positiva. tal como aparece na idéia de um projeto de vida que
permita o desabrochar das virtualidades, das tendências espontâneas
ao desenvolvimento individual (neste aspecto, Stuart Mill parece estar
mais próximo de Rogers do que de Freud, de quem se aproximava pelo
lado da energétka e dos desejos).
Creio que é esta maneira de conceber a vida social como condição
mais ou menos favorável ao desenvolvimento pessoal e o uso deste
critério para avaliar, tomar decisões e participar da vida em sociedade
e, ainda mais, para se omitir de qualquer participação, que irá caracterizar
a invasão do público pelo privado identificada por Sennet na segunda
metade do século XIX. Enquanto no liberalismo original a cesura entre
as esferas da privacidade e da publicidade tinha de ser conservada, já
que a liberdade no espaço de não-interferência requer exatamente a clara
delimitação do privativo, o liberalismo romantizado, embora se proponha
também a sublinhar a invi olabilidade do privado, conduz a uma
perspectiva de inversão: são os valores e procedimentos da privacidade
que passam a se elevar como organizadores e jufzes da vida pública.
Desta maneira, es taríamos diante de uma decorrência ' natural' do
desinvestimento do social e do superínvestimento do privado de que
já nos falara Tocqueville. Isto, entretanto, é apenas um lado da questão,
e , talvez, o lado menos elucidativo do que se passou. O que não se
pode esquecer são os vínculos positivos do pensamento e das práticas
românticas com a sociedade administrada.
Sabe-se. por exemplo. que as intervenções estatais visando limitar
a liberdade de ação dos agentes econômicos e restringir, assim, o poder
de auto-regulação espontânea dos mercados de bens e de trabalho
foram promovidas por polfticos conservadores, aderidos às críticas
românticas ao liberalismo e ao individualismo clássicos (Dewey. 1970).
Isto quer dizer que os avanços da ordem administrativa não foram
necessariamente obra do liberalismo benthamista, disciplinador, embora
na verdade estas intervenções respondessem a demandas de
ajustamento do sistema econômico e social e, a longo prazo, tenham
143
beneficiado as perspectivas tecnocrálicas (Polany, 1980). As idéias e
iniciativas coletivistas que emergiram no início e se expandiram na
segunda metade do século XIX, tanto no campo das'forças de 'esquerda'
como nas de 'direila' , devem, desse modo, mais ao ideário romântico
que a uma ideologia tecnocrática, consolidada quando as práticas
administrativas já estavam bem instaladas. Nesta medida, romantismo e
disciplina unem-se contra o liberalismo, embora esta união passe quase
sempre desapercebida.
Não só no terreno das leis e da grande polftica a coalizão anti libe-
ral pode ser reconhecK!a. A personalidade carismática, capaz de exer-
cer um controle supra-racional sobre os homens, de mobilizar suas pai-
xões, conquistar suas mentes, modelar suas crenças, empolgar suas
vontades e conduzir suas ações é na política e nas artes o retrato do
gênio romântico.
Uma novela de Balzac (Ursu/n Mirouet, I 841) relala uma história
passada na década de 1830, na qual se contrapõe a figura de um velho
cientista, antíclerical, amigo pessoal e aliado dos ilumin istas
revolucionários, empírico e racional, incrédulo e autoconfiante, de um
lado, e, do outro, os vestígios renascentes do mesmerismo. É a vingança
de Mesmer contra a comissão de sábios ilustrados que o desmascarou:
desta vez é o velho médico que se converte depois de assistir a uma
sessão de telepatia. A descrição que Balzac ([1841] 1990; v. 5, p. 73)
nos dá do grande mago é a completa apresentação da personalidade
romântica em sua plenitude. O trecho é longo, mas vale a pena
reproduzi-lo:
144
Naquele momento. exibia-se em Paós um homem exuaoroinário. Dotado.
pela fé, de um incalculável poder e que dispunha das faculdades magnéticas
em todas as suas aplicações. Esse grande desconhecido que ainda vive,
não somente curava por si mesmo, à distância, as doenças mais cruéis,
mais inveteradas, súbita e radicalmente, como outrora o salvador dos
homens, mas ainda produzia instantaneamente os fenômenos mais
curiosos do sonambulismo, subjugando as vontades mais rebeldes. A
fisionomia deste desconhecido. que diz não depender senào de Deus e
comunicar-se com os anjos, como Swedenborg, é a de um leão; brilha
nela uma energia concentrada, irresistível. Seus traços. singulannente
delineados. têm um aspecto terrível e fulminante. Sua voz que vem da
profundidade do ser, é como que carregada de fluido magnético: penetra
no ouvinte por todos os poros.
Algo deste esplendor, desta vontade e deste poder é o que se
procurava nos artistas, românticos, principalmente nos músicos, nos
concertistas e, entre eles, de preferência nos solistas, com seus solos e
seus sóis. A grande capacidade de subjugar era encontrada em particular
no político de massas que faz sua aparição na época (tal como Sennelt
analisa o poeta Lamartine 'enrolando' a multidão) e no regente de
orquestra, outro emblema do romantismo.
Dos músicos e regentes, nenhum como Wagner (1813-1883)
personificou tão bem e deliberadamente o carisma e o projeto
restaurador. Na carta de desagravo que Baudelaire ([1861] 1990; p. 43)
lhe enviou depois de uma exibição fracassada em Paris, há repetidas
menções à natureza subjugante desta música:
Ele possui a arte de traduzir, por meio de gradações sutis, tudo que há
de excessivo, imenso, ambicioso, no homem espiritual e natural. Parece,
às vezes, ao escutarmos esta música ardcme e despótica, que
reencontramos pintadas sobre o fundo das trevas. dilacerado pelo
devaneio, as vertiginosas concepções do ópio. (Grifo meu)
O elogio de Baudelaire nos traz de volta e condensado na figura
de Wagner todo o idcário romântico, e por isso vale a pena reproduzi-
lo um pouco mais:
Jã observamos, creio. dois homens em Richard Wagner, o homem da
ordem e o homem apaixonado. É do homem apaixonado. do homem de
sentimento que se trata aqui. No menor de seus trechos ele inscreve sua
personalidade com tanto ardor, que não será muito difícil realizar esta
procura de sua qualidade principal. Desde o princípio, uma consideração
surpreendera-me vivamente: é que na parte voluptuosa e orgíaca da
abertura da Tannhãuser, o artista pusera tanta força, desenvolvera tanta
energia quanto na pintura da misticidade que caracteriza a abertura de
Lohengrin ( ... )O que me parece, portanto. antes de mais nada, marcar de
maneira inesquecível a música deste mestre é a intensidade nervosa, a
violência nas paixões e na vontade( ... ) Tudo que implicamas palavras:
vontade, desejo, concentração, intensidade nervosa, explosão, sente-se e
faz-se adivinhar em suas obras. Não creio me iludir nem enganar quem
quer que seja ao afinnar que vejo ar a5 principais caracterfstícas do
fenômeno que denomi~amos gênio. (lbid.; p. 93)
Nem todos os artistas românticos tiveram a capacidade de Wagner
para conciliar a ordem e a paixão na criação e na realização de obras de
145
beneficiado as perspectivas tecnocrálicas (Polany, 1980). As idéias e
iniciativas coletivistas que emergiram no início e se expandiram na
segunda metade do século XIX, tanto no campo das'forças de 'esquerda'
como nas de 'direila' , devem, desse modo, mais ao ideário romântico
que a uma ideologia tecnocrática, consolidada quando as práticas
administrativas já estavam bem instaladas. Nesta medida, romantismo e
disciplina unem-se contra o liberalismo, embora esta união passe quase
sempre desapercebida.
Não só no terreno das leis e da grande polftica a coalizão anti libe-
ral pode ser reconhecK!a. A personalidade carismática, capaz de exer-
cer um controle supra-racional sobre os homens, de mobilizar suas pai-
xões, conquistar suas mentes, modelar suas crenças, empolgar suas
vontades e conduzir suas ações é na política e nas artes o retrato do
gênio romântico.
Uma novela de Balzac (Ursu/n Mirouet, I 841) relala uma história
passada na década de 1830, na qual se contrapõe a figura de um velho
cientista, antíclerical, amigo pessoal e aliado dos ilumin istas
revolucionários, empírico e racional, incrédulo e autoconfiante, de um
lado, e, do outro, os vestígios renascentes do mesmerismo. É a vingança
de Mesmer contra a comissão de sábios ilustrados que o desmascarou:
desta vez é o velho médico que se converte depois de assistir a uma
sessão de telepatia. A descrição que Balzac ([1841] 1990; v. 5, p. 73)
nos dá do grande mago é a completa apresentação da personalidade
romântica em sua plenitude. O trecho é longo, mas vale a pena
reproduzi-lo:
144
Naquele momento. exibia-se em Paós um homem exuaoroinário. Dotado.
pela fé, de um incalculável poder e que dispunha das faculdades magnéticas
em todas as suas aplicações. Esse grande desconhecido que ainda vive,
não somente curava por si mesmo, à distância, as doenças mais cruéis,
mais inveteradas, súbita e radicalmente, como outrora o salvador dos
homens, mas ainda produzia instantaneamente os fenômenos mais
curiosos do sonambulismo, subjugando as vontades mais rebeldes. A
fisionomia deste desconhecido. que diz não depender senào de Deus e
comunicar-se com os anjos, como Swedenborg, é a de um leão; brilha
nela uma energia concentrada, irresistível. Seus traços. singulannente
delineados. têm um aspecto terrível e fulminante. Sua voz que vem da
profundidade do ser, é como que carregada de fluido magnético: penetra
no ouvinte por todos os poros.
Algo deste esplendor, desta vontade e deste poder é o que se
procurava nos artistas, românticos, principalmente nos músicos, nos
concertistas e, entre eles, de preferência nos solistas, com seus solos e
seus sóis. A grande capacidade de subjugar era encontrada em particular
no político de massas que faz sua aparição na época (tal como Sennelt
analisa o poeta Lamartine 'enrolando' a multidão) e no regente de
orquestra, outro emblema do romantismo.
Dos músicos e regentes, nenhum como Wagner (1813-1883)
personificou tão bem e deliberadamente o carisma e o projeto
restaurador. Na carta de desagravo que Baudelaire ([1861] 1990; p. 43)
lhe enviou depois de uma exibição fracassada em Paris, há repetidas
menções à natureza subjugante desta música:
Ele possui a arte de traduzir, por meio de gradações sutis, tudo que há
de excessivo, imenso, ambicioso, no homem espiritual e natural. Parece,
às vezes, ao escutarmos esta música ardcme e despótica, que
reencontramos pintadas sobre o fundo das trevas. dilacerado pelo
devaneio, as vertiginosas concepções do ópio. (Grifo meu)
O elogio de Baudelaire nos traz de volta e condensado na figura
de Wagner todo o idcário romântico, e por isso vale a pena reproduzi-
lo um pouco mais:
Jã observamos, creio. dois homens em Richard Wagner, o homem da
ordem e o homem apaixonado. É do homem apaixonado. do homem de
sentimento que se trata aqui. No menor de seus trechos ele inscreve sua
personalidade com tanto ardor, que não será muito difícil realizar esta
procura de sua qualidade principal. Desde o princípio, uma consideração
surpreendera-me vivamente: é que na parte voluptuosa e orgíaca da
abertura da Tannhãuser, o artista pusera tanta força, desenvolvera tanta
energia quanto na pintura da misticidade que caracteriza a abertura de
Lohengrin ( ... )O que me parece, portanto. antes de mais nada, marcar de
maneira inesquecível a música deste mestre é a intensidade nervosa, a
violência nas paixões e na vontade( ... ) Tudo que implicam as palavras:
vontade, desejo, concentração, intensidade nervosa, explosão, sente-se e
faz-se adivinhar em suas obras. Não creio me iludir nem enganar quem
quer que seja ao afinnar que vejo ar a5 principais caracterfstícas do
fenômeno que denomi~amos gênio. (lbid.; p. 93)
Nem todos os artistas românticos tiveram a capacidade de Wagner
para conciliar a ordem e a paixão na criação e na realização de obras de
145
arte lotais que colhem e orquestram todos os sentidos do público e
conduzem emoções e vontades despoticamente. Muitas das obras
românticas são, antes, testemunhos dos processos de fragmentação de
identidades sob o impacto do florescimento da personalidade do artista
(que eu conheça, apenas a Comédia humana de Balzac revela uma
capacidade de subordinar uma infinidade de caracteres, traços e destinos
a uma concepção ordenada e subjugan te da vida comparável à de
Wagner; contudo, mesmo a( não se encontram os efeitos despóticos
das óperas wagnerianas). De qualquer modo, a intenção restauradora
esteve sempre presente, e as obras de Wagner apenas realizam esta
imen!fão profunda de todo o movimento. Nesta realização, porém,
ressalta, como se viu no dis~;urso de Baudelaire, a vinculação
subterrânea do romantismo, mesmo o mais revolucionário (era, por sinal,
o caso de Wagner), com a docílização dos homens subj ugados pela
exibição da força, da vontade e do poder. Baudelaire. inclusive, com a
finalidade de demonstrar que as posições políticas do autor não contam
para nada na apreciação de sua música, observa, en passam, que
Wagner che ga a Paris a convite de Luís Napoleão e revel a,
candidamente: "O próprio sucesso de Wagner não deu razão a suas
previsões e a suas esperanças [revolucionárias], pois foi preciso, na
França, a ordem de um dlspota para fazer executar a obra de um
revolucionário" (lbid., p. 47).
O território da ignorância
No século XIX conviveram três pólos de idéias e práticas de
organização da vida em sociedade: o liberalismo e os romantismos em
suas diversas versões e o regime d iscipli nar. este acompanhado
progressivamente dos seus discursos legitimadores, muitos dos quais
de extração romântica e outros de extração utilitária. Falar em
convivência, no entanto, e mesmo de convivência complexa é ainda dizer
pouco. Considerando-se as relações de complementaridade e conflito
que unem e separam cada um destes pólos dos outros dois, podemos
conceber a formação de um novo território no qual as experiências
individuais e coletivas se estabelecem, constroem e ganham sentido.
Trata-se de um espaço triangular como no esquema abaixo
146
L
D
w
Ao pólo L, de liberalismo, pertencem os valores e práticas do
individualismo ilustrado. Temos, então, como ideal, o reinado do ·eu'
soberano com identidades nitidamente delimitadas, autocontidas,
autodominadas e autoconhecidas, capazes de se contrastarem umas em
relação às outras, capazes de permanência e invariância ao longo do
tempo e das condições. Ternos, ainda aqui, uma clara ~eparação ~ntre
as esferas da privacidade e da publicidade: nesta dommam as leas, as
convenções, o decoroe o princípio da racionalidade e da funcionalidade;
à outra caberia o exercício da liberdade individual concebida corno
tenitório livre da interferência alheia.
Ao pólo R, de romantismo . pertencem os valores da
espontaneidade impulsiva, com identidades debilmente delimitadas,
porque atravessadas pelas forças da natureza, da coletividade e_ da
história, que se fazem ouvir de 'dentro' e não são impostas pelos háb1tos
e pelas conveniências civilizadas. A potência des~s força~ promo:e
uma restauração do contato do homem com as ongens pre-pessoaas,
pré-racionais e pré-civilizadas do 'eu', com os elementos da animal i~,
da infância etc. Esta restauração propulsiona, idealmente, uma especte
de autodesenvolvimento que se faz à custa dos limites e da unidade
identitária e que é marcado por crises, experiências de desagregação,
adoecimento, loucura e morte.
Finalmente, ao pólo D, de disciplina, pertencem as no vas
tecnologias de poder, tanto as que se exercem sobre identidades
reconhecíveis e manipuláveis segundo o princípio da razão calculadora,
funcáonal e administrativa, como as que se abatem sobre identidades
debilme nte estruturadas e passívei s de manipulação mediante a
147
arte lotais que colhem e orquestram todos os sentidos do público e
conduzem emoções e vontades despoticamente. Muitas das obras
românticas são, antes, testemunhos dos processos de fragmentação de
identidades sob o impacto do florescimento da personalidade do artista
(que eu conheça, apenas a Comédia humana de Balzac revela uma
capacidade de subordinar uma infinidade de caracteres, traços e destinos
a uma concepção ordenada e subjugan te da vida comparável à de
Wagner; contudo, mesmo a( não se encontram os efeitos despóticos
das óperas wagnerianas). De qualquer modo, a intenção restauradora
esteve sempre presente, e as obras de Wagner apenas realizam esta
imen!fão profunda de todo o movimento. Nesta realização, porém,
ressalta, como se viu no dis~;urso de Baudelaire, a vinculação
subterrânea do romantismo, mesmo o mais revolucionário (era, por sinal,
o caso de Wagner), com a docílização dos homens subj ugados pela
exibição da força, da vontade e do poder. Baudelaire. inclusive, com a
finalidade de demonstrar que as posições políticas do autor não contam
para nada na apreciação de sua música, observa, en passam, que
Wagner che ga a Paris a convite de Luís Napoleão e revel a,
candidamente: "O próprio sucesso de Wagner não deu razão a suas
previsões e a suas esperanças [revolucionárias], pois foi preciso, na
França, a ordem de um dlspota para fazer executar a obra de um
revolucionário" (lbid., p. 47).
O território da ignorância
No século XIX conviveram três pólos de idéias e práticas de
organização da vida em sociedade: o liberalismo e os romantismos em
suas diversas versões e o regime d iscipli nar. este acompanhado
progressivamente dos seus discursos legitimadores, muitos dos quais
de extração romântica e outros de extração utilitária. Falar em
convivência, no entanto, e mesmo de convivência complexa é ainda dizer
pouco. Considerando-se as relações de complementaridade e conflito
que unem e separam cada um destes pólos dos outros dois, podemos
conceber a formação de um novo território no qual as experiências
individuais e coletivas se estabelecem, constroem e ganham sentido.
Trata-se de um espaço triangular como no esquema abaixo
146
L
D
w
Ao pólo L, de liberalismo, pertencem os valores e práticas do
individualismo ilustrado. Temos, então, como ideal, o reinado do ·eu'
soberano com identidades nitidamente delimitadas, autocontidas,
autodominadas e autoconhecidas, capazes de se contrastarem umas em
relação às outras, capazes de permanência e invariância ao longo do
tempo e das condições. Ternos, ainda aqui, uma clara ~eparação ~ntre
as esferas da privacidade e da publicidade: nesta dommam as leas, as
convenções, o decoro e o princípio da racionalidade e da funcionalidade;
à outra caberia o exercício da liberdade individual concebida corno
tenitório livre da interferência alheia.
Ao pólo R, de romantismo . pertencem os valores da
espontaneidade impulsiva, com identidades debilmente delimitadas,
porque atravessadas pelas forças da natureza, da coletividade e_ da
história, que se fazem ouvir de 'dentro' e não são impostas pelos háb1tos
e pelas conveniências civilizadas. A potência des~s força~ promo:e
uma restauração do contato do homem com as ongens pre-pessoaas,
pré-racionais e pré-civilizadas do 'eu', com os elementos da animal i~,
da infância etc. Esta restauração propulsiona, idealmente, uma especte
de autodesenvolvimento que se faz à custa dos limites e da unidade
identitária e que é marcado por crises, experiências de desagregação,
adoecimento, loucura e morte.
Finalmente, ao pólo D, de disciplina, pertencem as no vas
tecnologias de poder, tanto as que se exercem sobre identidades
reconhecíveis e manipuláveis segundo o princípio da razão calculadora,
funcáonal e administrativa, como as que se abatem sobre identidades
debilme nte estruturadas e passívei s de manipulação mediante a
147
evocação calculada de forças s uprapessoais encarnadas em figuras
carismáticas o u projetadas e m lendas e mitos saudosist as o u
revolucionários.
Estes pólos atraem-se e repelem-se. As linhas cheias ligando-os
dois a dois correspondem às suas mais ou m enos dissimuladas relações
de afinidade e complementaridade. Para nosso uso, podemos designar
estru; superfícies com o nome de alguns dos personagens da história.
Teríamos, assim, uma superfície Betrtham ligando o liberali!\mo ao regime
disciplinar. Nesta superticie os procedimentos disciplinares encontram-
se com seus objetos precípuos - os indivíduos Jivres -e, na direção
oposta, os átomos sociais encontram-se com seus controles próprios.
Todos saem fortalecidos deste encontro. A linha que liga o liberalismo
ao romantismo pode ser designada como superfície StUilrt Mill. Nela
os ingredi e ntes românticos alimentam os projetos de vida dos
indivíduos, e estes, por sua vez, acolhem os elementos românticos na
intimidade de seus lares e, mais ainda, de suas fantasias . Novamente,
aqui. todos se revigoram nesta coalizão. Finalmente, a linha que liga a
disciplina ao romantismo poderia ser chamada de superfície Wagner.
Nesta superfície articulam-se as forças e o poder da Vida e da Vontade
(tudo em maiúsculas, como convém) aos procedimentos de contro le
carismático e docilizadores da disciplina.
Obviamente, não são os mesmos aspectos de cada pólo q ue
entram em contato com um ou outro dos dois outros vértices. Há
afinidades entre, por exemplo, determinados aspectos do individualismo
liberal e as práticas disciplinares e entre outros aspectos do liberalismo
com as idéias e modos românticos. O mesmo vale para as outras
combinações. Isto significa que, paralelamente às linhas que ligam entre
si os três pólos, há outras sinalizando a su~ mútua rejeição. Rejeição.
porém, não consum ada numa separação efetiva. D esta tensão
persistente gera-se um território novo e, no século XIX, ainda sem nome.
É da natureza des te e spaço que e le seja um espaço de
desconhecimento. As relações de coali zão e de conflito que o
constituem sobrev ivem numa certa clandestinidade. Em particular, a
superfície Bentham e, mais ainda, a superfície Wagner, ou seja, as
afinidades entre liberalismo e romantismo, de um lado, e os
procedimentos disciplinares, do outro, são alvo de uma séria interdição
cognitiva. As vidas vivida.<; no interior deste espaço são vidas cindidas.
sobre as quais pesam os véus da ignorância e do esquecimento.
148
As di versas versões contemporâneas da ps icologia. que se
cstahclecerão nesse território no final do século XIX c infcio do XX
(quando o território da ignorânda sofrer algumas transfo rmações
decisivas), vão se aproximar mais ou menos de uma das três superfícies.
Há psicologias claramente próximas da superfície Bentham, como os
comportamcntalismos di sciplinadores.Há outras mais próximas da
superfície Sruart Mill; penso , aqui, como exemplo, em algumas leituras
americanas da psicanálise, como a ·psicologia do se/f, de Kohut. Há,
fina lmente, as que se aproximam da superfície Wagner, libertárias,
e xpressivistas, profundamente domesticadoras; aqui se encaixam todos
os 'gurus', bruxos c 'fazedo(es de cabeça', q uase que indepen-
dentemente de suas idéias. se é que as têm.
Ao longo de cada superfície será ainda possível diferenóar as
escolas psicológicas ou as diferentes leituras de uma mesma escola pela
sua maior ou menor distância em relação a cada vértice do triângulo.
Por exemplo , sobre a superfíc ie Stuart Mill podemos situar a
'psicanálise do ego' próxima ao vértice liberal c a 'terapia não-diretiva'
de Rogers, próxima ao vértice romântico. Paradoxalmente, esla maior
proximidade R coloca Rogers, sem que isto possa ser facilmente acei to
e compreendido pelos rogerianos, mais próximo à superfície Wagner
(recorde-se, porém, os 'espetáculos de não-diretividade' em que Rogers
exibia seus 'solos' de compreensão cmpática diante de uma platéia de
disdpulos 'semimesmerizados'}. Em contrapartida, também quem se
aproxima muito do pólo liberal está se acercando da superfície Bentham:
os pressupostos funcionali stas e a índole adaptativa da psicanálise do
ego, por exemplo, já foram sobejamente explicitados.
Algumas destas psicologias p<~rcccm perfeitamente s atisfeitas
consigo ~esmas e dispostas a contribuir para o esquecimento do próprio
processo constitutivo do território que ocupam. É realmente d ifícil para
quem se !\itua muito próximo a uma das s uperfícies admitir seus
compromissos com o pólo de que mais se distanciou e que, no e ntanto,
é um elemento constitutivo do seu territóri o. Outras, no e ntanto,
parecem interessadas em recordar. Será possível, contudo, empreender
a recordação como tarefa crítica conscrvand<rse no lugar do psicólogo?
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evocação calculada de forças s uprapessoais encarnadas em figuras
carismáticas o u projetadas e m lendas e mitos saudosist as o u
revolucionários.
Estes pólos atraem-se e repelem-se. As linhas cheias ligando-os
dois a dois correspondem às suas mais ou m enos dissimuladas relações
de afinidade e complementaridade. Para nosso uso, podemos designar
estru; superfícies com o nome de alguns dos personagens da história.
Teríamos, assim, uma superfície Betrtham ligando o liberali!\mo ao regime
disciplinar. Nesta superticie os procedimentos disciplinares encontram-
se com seus objetos precípuos - os indivíduos Jivres -e, na direção
oposta, os átomos sociais encontram-se com seus controles próprios.
Todos saem fortalecidos deste encontro. A linha que liga o liberalismo
ao romantismo pode ser designada como superfície StUilrt Mill. Nela
os ingredi e ntes românticos alimentam os projetos de vida dos
indivíduos, e estes, por sua vez, acolhem os elementos românticos na
intimidade de seus lares e, mais ainda, de suas fantasias . Novamente,
aqui. todos se revigoram nesta coalizão. Finalmente, a linha que liga a
disciplina ao romantismo poderia ser chamada de superfície Wagner.
Nesta superfície articulam-se as forças e o poder da Vida e da Vontade
(tudo em maiúsculas, como convém) aos procedimentos de contro le
carismático e docilizadores da disciplina.
Obviamente, não são os mesmos aspectos de cada pólo q ue
entram em contato com um ou outro dos dois outros vértices. Há
afinidades entre, por exemplo, determinados aspectos do individualismo
liberal e as práticas disciplinares e entre outros aspectos do liberalismo
com as idéias e modos românticos. O mesmo vale para as outras
combinações. Isto significa que, paralelamente às linhas que ligam entre
si os três pólos, há outras sinalizando a su~ mútua rejeição. Rejeição.
porém, não consum ada numa separação efetiva. D esta tensão
persistente gera-se um território novo e, no século XIX, ainda sem nome.
É da natureza des te e spaço que e le seja um espaço de
desconhecimento. As relações de coali zão e de conflito que o
constituem sobrev ivem numa certa clandestinidade. Em particular, a
superfície Bentham e, mais ainda, a superfície Wagner, ou seja, as
afinidades entre liberalismo e romantismo, de um lado, e os
procedimentos disciplinares, do outro, são alvo de uma séria interdição
cognitiva. As vidas vivida.<; no interior deste espaço são vidas cindidas.
sobre as quais pesam os véus da ignorância e do esquecimento.
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As di versas versões contemporâneas da ps icologia. que se
cstahclecerão nesse território no final do século XIX c infcio do XX
(quando o território da ignorânda sofrer algumas transfo rmações
decisivas), vão se aproximar mais ou menos de uma das três superfícies.
Há psicologias claramente próximas da superfície Bentham, como os
comportamcntalismos di sciplinadores. Há outras mais próximas da
superfície Sruart Mill; penso , aqui, como exemplo, em algumas leituras
americanas da psicanálise, como a ·psicologia do se/f, de Kohut. Há,
fina lmente, as que se aproximam da superfície Wagner, libertárias,
e xpressivistas, profundamente domesticadoras; aqui se encaixam todos
os 'gurus', bruxos c 'fazedo(es de cabeça', q uase que indepen-
dentemente de suas idéias. se é que as têm.
Ao longo de cada superfície será ainda possível diferenóar as
escolas psicológicas ou as diferentes leituras de uma mesma escola pela
sua maior ou menor distância em relação a cada vértice do triângulo.
Por exemplo , sobre a superfíc ie Stuart Mill podemos situar a
'psicanálise do ego' próxima ao vértice liberal c a 'terapia não-diretiva'
de Rogers, próxima ao vértice romântico. Paradoxalmente, esla maior
proximidade R coloca Rogers, sem que isto possa ser facilmente acei to
e compreendido pelos rogerianos, mais próximo à superfície Wagner
(recorde-se, porém, os 'espetáculos de não-diretividade' em que Rogers
exibia seus 'solos' de compreensão cmpática diante de uma platéia de
disdpulos 'semimesmerizados'}. Em contrapartida, também quem se
aproxima muito do pólo liberal está se acercando da superfície Bentham:
os pressupostos funcionali stas e a índole adaptativa da psicanálise do
ego, por exemplo, já foram sobejamente explicitados.
Algumas destas psicologias p<~rcccm perfeitamente s atisfeitas
consigo ~esmas e dispostas a contribuir para o esquecimento do próprio
processo constitutivo do território que ocupam. É realmente d ifícil para
quem se !\itua muito próximo a uma das s uperfícies admitir seus
compromissos com o pólo de que mais se distanciou e que, no e ntanto,
é um elemento constitutivo do seu territóri o. Outras, no e ntanto,
parecem interessadas em recordar. Será possível, contudo, empreender
a recordação como tarefa crítica conscrvand<rse no lugar do psicólogo?
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Notas
I . A conexão entre Bentham e Skinner é praticamente óbvia para quem conheça
os dois autores. Para os que não conhecem o pensamento skinneriano, sugiro
a leitura de qualquer texto de Skinner que trate da análise ou do delineamento
de sociedades e culturas como, por exemplo, os artigos sobre o tema
publicados em Comingências de reforçamento e o romance utópico Walden
/1. Uma excelente análise do pensamento político do autor foi realizada por
Maria Amália Pie Abib Andery (1990).
2. De muito me valeu. entre outros, o trabalho de I. Berlin ( 1981) sobre Stuan
Míll no contexto da história do liberalismo.
3. A estas razões seria também necessário acrescentar as oriundas de uma nova
conjuntura política em que a classe operária, através de sindicatos e partidos
de massa, começa a ter uma presença política substancial e que exige uma
mais eticieme e organizada presença política e repressiva do Estado burguês.
4. Nesta interpretação do romantismo, além do contato com as obras literárias
c musicais de autores da época e dos elementos oferecidos por Gusdorf ( 1982
e 1984), tirei grande proveito do livro de Morse Peckham. Beyond the tragic
visíon. The quest for idemity in lhe ni11etecnth ceniury•.Este ensaio de Peckham,
ao menos entre nós muito pouco divulgado, será também uma fonte
indispensável para o próximo capítulo.
5. Esta questão recebeu um tratamento original por Sennen (1978), em que me
inspirei para a presente análise.
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PARA ALÉM DO ESTILO.
UM LUGAR PARA A PSICOLOGIA
No capítulo IV deste livro l"onnulci a tese de que ao longo de
todo o século passado os processos de subjetivação enraizaram-se em
um território triangular balizado pelos valores e procedimentos
iluministas, pelos modos românticos e pelas novas práticas de exercício
de poder. que, no conjunto, constituem o regime disciplinar
radiografado por Foucault ( 1977). Vimos. então. como estes três
vértices criam entre si vínculos complexos, marcados por mútuas
afinidades c mútuas oposições. O caráter constitucionalmente conflitivo
deste espaço o tornaria um território de desconhecimento, já que
qualquer posição dentro dele contém em si aspectos interditados à
consciência reflexiva.
Ora, o que vai caracterizar a segunda metade do século XIX,
prolongando-se numa trajetória sinuosa, · mas reconhecível ao longo
do século XX, são algumas alterações nos pesos específicos, nas
formas de manifestação e modos de operação daqueles pólos. Em linhas
gerais, expandiram-se e aprofundaram-se as práticas disciplinares à
medida que se foi configurando o que alguns autores denominam de
sociedade administrada ou capitalismo tardio (Haberrnas, 1978 e 1981).
Os procedimentos de exame, avaliação, programação e controle foram
invadindo de forma insidiosa todos os refúgios em que os indivíduos
procuravam se abrigar do liberalismo e em que procuravam se nutrir e
desenvolver com espontaneidade as personalidades românticas. Com
isso. a separação entre esferas pública e privada perdeu muito da sua
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