Prévia do material em texto
Lu ís C láudio Mendonça Figueiredo, em A inveru;ão do psico!ó,::ico - Quatro stculos de sul~;e tivação, problematiz.a o modo de s uh_ictivaçf1o contempo- râneo, he m como as di versas concepçôcs contemporâneas da psicologia, como tendo se cons- tituído num momento em que o ciclo d a rnodemidadc se encon- t rd em pleno apogeu, ao mesmo tempo que já se anu nc ia sua <.t is- solução. Para o autor, a expe- riência suhjctiva pr6pria da mo- dernidade deve sua emergênc ia a uma intensificação da vivência da diversidade e da mptura, que acontece desde o final do século XV, acompanhada de d iferentes tentativas de ordenação e de costura, que vão desembocar na formação daquilo que se con- vencionou chamar de ·sujeito mode rno '. I~ este sujeito que, no fi nal do século XIX, vive seu apogeu e, ao mesmo tempo , o início de sua dissohu~ão : c omeça a desmoronar a ilusão de que o homem ocupa o centro do mun- do e que, desde esse lugar, e le tudo vê c tudo pode, ilusão ali- cen;ada no expurgo do cao~. O 'psicológico', segu ndo o auto r. teria sido inventado e.x:namente a partir do que fo i expurgad o deste sujeito supostament~ unitá- rio e soberano, e que se consti- tuiu no objeto das psicologias. Para desenvolver estas idé- ias, o autor rcalil.a uma instigan- te investigação de fi!!uras que veiculam uma visão negativa do caos, rrodul.idas desde o século XVI ao XIX, na li teratura , na filosofia, na pintura e na música. Lu ís Cláudio \"lcndon<.;a Figueiredo, na.-.cido no R i o de Janeiro, em 1945, é psiçóloco mestre c doutor em ps icolo~i~ pela L:SP. C professor na L:niv~r sidadc deSão Pauloena f' l!C -SI', aonde coo rdena os cursos de Mestrado c Doutorado em Psi- cologia Clínica: também diri <>e c- • na lJ]'.: Jr>, o Centro de Pesquisa em Psicologia e EducAção. F. autor de Psicologia, uma intro- duçiW - Uma visão histórica da psicologia como cié11cia ( bluc, 1991 ) c Matrizes do pensamento psicoló,::ico (Vozc~. JI.J<-J I 1, além de diversos trabalhos em rcvisl<ts cspcc i ai izadas. .'\ lista <:Gmp lcta Jas obra.-. pu- hlicadas pela Ld itor:1 Escuta e al~uns t írulos do <.:atálogo da E.duc enc<)ntr::un-sc no final deste I ivr0. Notas I. Também E. Cassirer em Filosofia de la ílustración ( 1984 ), principalmente no capítulo dedicado às idéias estéticas, dedica uma especial atenção aos elementos românticos no ideário setecenlista. Este livro, o de Gusdorf e o de Gay (1977) foram as mais importantes fontes sobre concepções e perspectivas culturais do século XVIII. 2. Vali-me, ainda. do texto de J. Habennas. Mudança estrutural da esfera pública ( 1984 ), que, por sua vez, muito deve à obra de Koselleck. 3. Este estado de coisas e seus produtos políticos e ideológicos na Inglaterra do século XVII foram o tema do clássico de C. Hill. O mwulo de pollla· cabeça (1987 ). 4. Embora os romances ingleses da época sejam os modelos e exemplares mais bem-acabados do novo gênero, a difusão do romance alcançou a literatura francesa e alemã; a adoção do estilo epistolar, por seu turno. foi mais do que mera 'imitação', e algumas das obras-primas da literatura universal seguiram este modelo. como As ligações perigosas de C. de Laclos ( 1782). na França. e Os .tofdmmtos do jovem Werther de Goethe (1774), na Alemanha. 5. As análises desenvolvidas a seguir apóiam-se, mas não coincidem. com as de Ellemberger (1976) e de Van Den Herg (1974). 6. Convém recordar que Mesmer era membro de Uma loja maçônica e que a maçonaria. apesar de combatida durante o tempo da imperatriz Maria Tereza, havia prosperado, fazendo adeptos no Império Austro-húngaro, entre burgueses, intelectuais artistas e mesmo clérigos e aristocratas. Consta que o próprio imperador José 11, que sucedeu Maria Tereza, aproximou- se desta sociedade secreta. 7. O ancien régime foi em toda a parte um grande gerador de espetáculos, e a versão austríaca do absolutismo, que se consolidou no século XVIII e sobreviveu ao absolutismo francês, notabilizou-se pela ênfase na teatralidade, no feérico, no ilusionista. Por outro lado, a reunião mesmeriana de elemenros iluministas, românticos e ancíe11 régime esteve presente, também - mas aqui num equilíbrio sublime -, na música do classicismo austríaco. composta por Haydn e pQr Mozart. este, por sinal. maçom e amigo de Mesmer, na casa de quem encenou pela primeira vez a ópera Bastien c Brutienne (cf. Brion. 1991; e Caznóck. 1992). 128 A GESTAÇÃO DO ESPAÇO PSICOLÓGICO NO SÉCULO XIX: LIBERALISMO, ROMANTISMO E REGIME DISCIPLINAR O século XIX pode ser e tem sido caracterizado como o do apogeu do liberalismo e do individualismo como princípios de organização econômica e política (cf., p. ex:., Polany, 1980). É sabido, também, que no campo das artes e da filosofia o século XIX assistiu ao pleno desabrochar dos movimentos românticos (cf.. p. ex:., Gusdorf, 1982 e l984). Finalmente, desde Foucault ( 1977) o mesmo século pode ser identificado como o do início de uma sociedade organizada pelo regime disciplinar. Poderíamos pensar que uma destas caracterizações deva prevalecer sobre as demais, ou ainda que elas se apliquem a diferentes nações ou subculturas, ou, finalmente, que correspondam a momentos distintos da história do Ocidente. Meu objetivo neste capítulo será o de defender a tese de que as três formas de entender o século XIX são legítimas simultaneamente, embora, está claro, contraditoriamente. Os deslinos do liberalismo, do romantismo e das práticas disciplinares foram bastante diversos; no entanto, nenhum deles perdeu de todo a vigência até os nossos dias, em que pesem as transfonnações porque passaram e os diferentes pesos que foram assumindo na cultura contemporânea. Pretendo ainda sugerir- deixando o desenvolvimento dos argumentos para uma outra ocasião - que o espaço psicológico, tal como hoje o conhecemos, nasceu e vive precisamente da articulação conflitiva daquelas três formas de pensar e praticar a vida em sociedade. As vicissitudes do liberammo e do individualismo O liberalismo na sua versilo original. formulada em suas linhas básicas por J ohn Locke ( 1632-1704 ), sustentava a tese dos direitos 129 naturais do indivíduo a serem defendidos e consagrados por um Estado nascido de um contrato livremente firmado entre indivíduos autônomos para garantir seus interesses. Ao Estado não cabia intervir e administrar a vida particular de ninguém, seja no plano das opiniões, seja no da vida doméstica, seja no dos negócios, mas apenas regular as relações entre indivíduos para que nenhum tivesse seus direitos violados pelos demais. Era fundamental, portanto, preservar os espaços da privacidade contra os abusos eventuais dos próprios poderes públicos, limitar o alcance ·e a força destes poderes: o monopólio estatal do poder de fazer justiça e punir deveria estar completamente subordinado à função de salvaguarda dos direitos individuais, entre os quais se destacavam os direitos à liberdade e à propriedade. Para manter o Estado nessa condição limitada, convinha separar os poderes (Poder Executivo, Legislativo e Judiciário), distribuí· los regionalmente (conforme o preconizado pela doutrina federali sta) e valorizar, à medida do possível, as tradições locais e as experiências particulares, com ê nfase na jurisprudência e na consideração de t:asos concretos, em detrimento de leis gerais e racionalmente construídas. Nem todas estas decorrências estavam previstas por Locke, mas todas pertencem ao mais genuíno espírito do liberalismo clássico, no qual o empirismo epistemológico e o respeito ao espaço privado são as duas faces do mesmo apego ao particular, ao individual. Foram estas as idéias políticas que criaram o terreno favorável para o pleno desenvolvimento de uma sociedade individualista e atomizada, em que os agentes econômicos se encontravam e se deixavam articular uns com os outros nos espaços livres dos mercados de bens e de trabalho. O liberalismo econôm ico (cf. Lukes, 1975;e Polany, 1980) defende a redução radical da presença do Estado na vida econômica, confiando de forma absoluta na iniciativa e na racionalidade individual dos agentes e na função auto-regulativa do mercado como aS condições suficientes para o progre~so e para a estabilidade da vida social. Ora, somente no final do século XVIll e no início do XIX a doutrina do liberalismo econômico e a auto-regulação da sociedade pelo mercado vieram à luz. No entanto, antes mesmo que o liberalismo alcançasse este nível de elaboração, havia surgido uma versão das idéias liberais que dava ao liberalismo um novo rumo que, progressivamente , o fo i 130 descaracterizando. Isto ocorreu através da obra de Jeremy Bentham ( 1748- 1832), o criador do 'utilitarismo' . De uma certa fonna, pensar em termos de eficiência, interesse e uti lidade pertencia também à tradição liberal. Contudo. o utilitarismo irá substituir a crença e a defesa intransigente dos direitos naturais dos indivíduos pelo cálculo racional da fe licidade. Em outras palavras, a índole empírista do liberalismo vai ser aos poucos substituída pelo construtivismo racionalista. O Estado já não se ma ntém nos limi tes de suas antigas funções, mas vai gradativamente assumindo a de intervir positivamente na administração da vida social. ··A missão dos governantes consiste em promover a felicidade da sociedade, punindo e recompensando" {Bentharn [1789) 1989; p. 19). Há. ainda, uma vertente libertária no movimento enquanto se trata de derrubar le is e tradições que obstruem a livre ação individual , a defesa pelos agentes sociais de seus interesses e felicidades . Todavia, mesmo este combate já não se centra na questão da liberdade e dos direitos naturais, senão que nas conseqüências positivas ou negativas das leis e das ações que propiciam ou proíbem. "O objetivo geral que caracteriza todas as leis ou que deveria caracterizá-las consiste em aumentar a feli cidade global da coletividade" (lbid.; p. 59). Por aí se vê que não apenas a ê nfase na garantia de direitos é substitu ída pe la ênfase nas conseqüências, com o estas são avaliadas em termos de 'coletividade' , de forma a, supostamente, favorecer a maioria. mesmo que em prej uízo de algun s indivíduos. Trata-se, efetivamente, de legislar e justificar as intervenções do poder público em termos da soma total da felicidade. Embora as perdas e ganhos em felicidade de cada indivíduo sejam as unidades básicas de cálculo - o que traduz uma posição predominantemente individualista -. o que importa ao final é reunir as felicidades de cada um no grande balanço coletivo da soma total de felicidade: A comunidade constitui uin corpo fi ctfcio, composto de pessoas individuais ( ... )Qual é nesse caso o interesse da comunidade? ~inútil falar do interesse da comunidade se nilo se compreender qual é o interesse do indivíduo. Diz-se que uma coisa promove o interesse de um indivfduo, ou favorece ao interesse de um indivíduo quando tende a aumentar a soma lotai dos seus prazeres, ou então, o que vale afirmar o mesmo, quando tende a diminuir a soma total de suas dores. (lbíd.; p. 4) 131 naturais do indivíduo a serem defendidos e consagrados por um Estado nascido de um contrato livremente firmado entre indivíduos autônomos para garantir seus interesses. Ao Estado não cabia intervir e administrar a vida particular de ninguém, seja no plano das opiniões, seja no da vida doméstica, seja no dos negócios, mas apenas regular as relações entre indivíduos para que nenhum tivesse seus direitos violados pelos demais. Era fundamental, portanto, preservar os espaços da privacidade contra os abusos eventuais dos próprios poderes públicos, limitar o alcance ·e a força destes poderes: o monopólio estatal do poder de fazer justiça e punir deveria estar completamente subordinado à função de salvaguarda dos direitos individuais, entre os quais se destacavam os direitos à liberdade e à propriedade. Para manter o Estado nessa condição limitada, convinha separar os poderes (Poder Executivo, Legislativo e Judiciário), distribuí· los regionalmente (conforme o preconizado pela doutrina federali sta) e valorizar, à medida do possível, as tradições locais e as experiências particulares, com ê nfase na jurisprudência e na consideração de t:asos concretos, em detrimento de leis gerais e racionalmente construídas. Nem todas estas decorrências estavam previstas por Locke, mas todas pertencem ao mais genuíno espírito do liberalismo clássico, no qual o empirismo epistemológico e o respeito ao espaço privado são as duas faces do mesmo apego ao particular, ao individual. Foram estas as idéias políticas que criaram o terreno favorável para o pleno desenvolvimento de uma sociedade individualista e atomizada, em que os agentes econômicos se encontravam e se deixavam articular uns com os outros nos espaços livres dos mercados de bens e de trabalho. O liberalismo econôm ico (cf. Lukes, 1975; e Polany, 1980) defende a redução radical da presença do Estado na vida econômica, confiando de forma absoluta na iniciativa e na racionalidade individual dos agentes e na função auto-regulativa do mercado como aS condições suficientes para o progre~so e para a estabilidade da vida social. Ora, somente no final do século XVIll e no início do XIX a doutrina do liberalismo econômico e a auto-regulação da sociedade pelo mercado vieram à luz. No entanto, antes mesmo que o liberalismo alcançasse este nível de elaboração, havia surgido uma versão das idéias liberais que dava ao liberalismo um novo rumo que, progressivamente , o fo i 130 descaracterizando. Isto ocorreu através da obra de Jeremy Bentham ( 1748- 1832), o criador do 'utilitarismo' . De uma certa fonna, pensar em termos de eficiência, interesse e uti lidade pertencia também à tradição liberal. Contudo. o utilitarismo irá substituir a crença e a defesa intransigente dos direitos naturais dos indivíduos pelo cálculo racional da fe licidade. Em outras palavras, a índole empírista do liberalismo vai ser aos poucos substituída pelo construtivismo racionalista. O Estado já não se ma ntém nos limi tes de suas antigas funções, mas vai gradativamente assumindo a de intervir positivamente na administração da vida social. ··A missão dos governantes consiste em promover a felicidade da sociedade, punindo e recompensando" {Bentharn [1789) 1989; p. 19). Há. ainda, uma vertente libertária no movimento enquanto se trata de derrubar le is e tradições que obstruem a livre ação individual , a defesa pelos agentes sociais de seus interesses e felicidades . Todavia, mesmo este combate já não se centra na questão da liberdade e dos direitos naturais, senão que nas conseqüências positivas ou negativas das leis e das ações que propiciam ou proíbem. "O objetivo geral que caracteriza todas as leis ou que deveria caracterizá-las consiste em aumentar a feli cidade global da coletividade" (lbid.; p. 59). Por aí se vê que não apenas a ê nfase na garantia de direitos é substitu ída pe la ênfase nas conseqüências, com o estas são avaliadas em termos de 'coletividade' , de forma a, supostamente, favorecer a maioria. mesmo que em prej uízo de algun s indivíduos. Trata-se, efetivamente, de legislar e justificar as intervenções do poder público em termos da soma total da felicidade. Embora as perdas e ganhos em felicidade de cada indivíduo sejam as unidades básicas de cálculo - o que traduz uma posição predominantemente individualista -. o que importa ao final é reunir as felicidades de cada um no grande balanço coletivo da soma total de felicidade: A comunidade constitui uin corpo fi ctfcio, composto de pessoas individuais ( ... )Qual é nesse caso o interesse da comunidade? ~inútil falar do interesse da comunidade se nilo se compreender qual é o interesse do indivíduo. Diz-se que uma coisa promove o interesse de um indivfduo, ou favorece ao interesse de um indivíduo quando tende a aumentar a soma lotaidos seus prazeres, ou então, o que vale afirmar o mesmo, quando tende a diminuir a soma total de suas dores. (lbíd.; p. 4) 131 Bentham não fica, como se sabe, na fo rmulação das questões meramente filosóficas e programáticas, mas procura elaborar as regras de cálculos, tanto para a avaliação das felicidades individuais como para a estimativa da soma total de felicidade. Não só as leis são concebidas por Bentham como instrumentos destinados a produzir conseqüências - e não mais garantir d ireitos - como a eficácia delas deveria repousar numa concepção da natureza humana marcada pelo princípio utilitário. Os homens, para Bentham, são sensíveis às conseqüências do que fazem: "A natureza colocou o gênero humano sob o domfnio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer bem como determinar o que na realidade faremos" (lbid.; p. 3). As le is devem ser elaboradas de forma a programar a liberação de castigos e recompensas e, a longo prazo, propiciar uma ampliação das oportunidades de condutas recompensadas. Trata-se, sem dúvida, de uma versão racionalista, construtiva e tecnocrática do liberalismo: os indivíduos são ainda as unidades bási- cas da ação e são deixados 'livres' para escolher entre castigos e re- compensas. Ao Estado não cabe uma função primordialmente coerciti- va, mas não se espera dele, tampouco, a garantia dos direitos naturais do indivíduo: ele intervém e administra através do controle das priva- ções, das punições e das recompensas liberadas para os comportamen- tos individuais. instaurando uma nova modalidade de poder. Uma for- ma acabada e sofisti cada de be nthamism o será desenvolvida no século XX, na 'engenharia comportamental' de B . F. Sk:inner} Já o próprio Bcnthum, contudo, foi capaz de propostas bastante complexas de pro- gramação de 'contingências ambientais ' , como as industry-houses e, cabe recordar, foi dele a invenção do patropticon, consagrado por Fo~- cault ( 1977) corno emblema do regime disciplinar. · Neste regime, o Estado e suas agências educacionais, corretivas, sanitárias e militares assumem novas funções ; da mesma forma, a família deixa de ser o espaço da liberdade p ri vada, em contraposição às regras dos espaços públicos (como no século XVIII; cf. cap. 3), para se converter, ela também, numa agência disciplinadora destinada a, simultaneamente. individualizar e normatizar suas crianças, jovens e adultos. (Nestas novas condições, como assinala Sennett, 1978, a liberdade individual poderá com mais sucesso ser procurada no 132 anonimato das c idades do que dentro de qualquer coletividade regida pelo princípio utilitário.) Por tudo isso. Bentham é na tradição liberal uma espécie de ovelha negra. Mesmo um liberalismo reformista como o de Dewey, que não está absolutamente livre da m arca utilitária, procura restaurar o valor da liberdade individual que o cálculo da felicidade total de Bentham havia desconsiderado (Dewey, 1970). Os liberais contemporâneos mais comprometidos com o liberalismo clássico, como Hayeck, tendem a nem considerar Bentham como um dos seus e não o perdoam pela tendência coletivista que ele introduziu no ideário liberal e pela introdução de elementos racionalistas e construtivistas na boa tradição inglesa (Gray, 1988; e Hayeck, 1967). Estas transform ações do ve lho liberalismo no u til itarismo disciplinador no séc ulo XIX, antes de se fazer sentir no plano da vida social como uma tendência dom inante, foi vivida na pele por um dos grandes nomes da tradição liberal: John Stuart Mill ( 1806-1873).2 O pai de Stuart Mill , James Mill (1173-1836), foi o principal d iscípulo e aliado de Bentham e organizou sua família e educou seus J1lhos seguindo estritamente suas opções filosóficas e políticas. John foi submetido a uma rígida e produtiva disciplina capaz de constituí-lo. desde tenra idade, num modelo de individualidade oitocentista. Nada impediu, contudo, que e le viesse a sofrer durante a adolescência e início da idade adulta uma série de cri ses existenciais. Queixava-se ele de um vazio. de uma aridez. de uma falta de sentido c de valores autênticos que o tornam uma das primeiras vítimas notáveis do niilismo. Foi no contexto dessas crises que se deu sua aproximação aos româ nticos ing leses e alemães, alguns dos quai s se tornaram seus grandes inspiradores e lhe forneceram os temas e valores em tomo dos quais elaborou sua versão do liberalismo . . Na obra de Stuart Mill há claros ingredientes da tradição iluminista: por exemplo, ele se dedicou ao desenvolvimento dos princípios do associacionismo que lhe proporcionavam uma concepção c ientifica, elementarista e mecanicista da menle: Concebeu, igualmente, a criação da e to logia, compreendida por ele como a ciência que decifra o caráter a partir das condutas. Trata-se, neste caso, de um esforço intelectual que de alguma fonna se aproxima da fis iognomia de Lavater (cf. cap. 3) e da frenologia de Gall; ambas as disciplinas obedeciam ao mesmo intuito 133 Bentham não fica, como se sabe, na fo rmulação das questões meramente filosóficas e programáticas, mas procura elaborar as regras de cálculos, tanto para a avaliação das felicidades individuais como para a estimativa da soma total de felicidade. Não só as leis são concebidas por Bentham como instrumentos destinados a produzir conseqüências - e não mais garantir d ireitos - como a eficácia delas deveria repousar numa concepção da natureza humana marcada pelo princípio utilitário. Os homens, para Bentham, são sensíveis às conseqüências do que fazem: "A natureza colocou o gênero humano sob o domfnio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer bem como determinar o que na realidade faremos" (lbid.; p. 3). As le is devem ser elaboradas de forma a programar a liberação de castigos e recompensas e, a longo prazo, propiciar uma ampliação das oportunidades de condutas recompensadas. Trata-se, sem dúvida, de uma versão racionalista, construtiva e tecnocrática do liberalismo: os indivíduos são ainda as unidades bási- cas da ação e são deixados 'livres' para escolher entre castigos e re- compensas. Ao Estado não cabe uma função primordialmente coerciti- va, mas não se espera dele, tampouco, a garantia dos direitos naturais do indivíduo: ele intervém e administra através do controle das priva- ções, das punições e das recompensas liberadas para os comportamen- tos individuais. instaurando uma nova modalidade de poder. Uma for- ma acabada e sofisti cada de be nthamism o será desenvolvida no século XX, na 'engenharia comportamental' de B . F. Sk:inner} Já o próprio Bcnthum, contudo, foi capaz de propostas bastante complexas de pro- gramação de 'contingências ambientais ' , como as industry-houses e, cabe recordar, foi dele a invenção do patropticon, consagrado por Fo~- cault ( 1977) corno emblema do regime disciplinar. · Neste regime, o Estado e suas agências educacionais, corretivas, sanitárias e militares assumem novas funções ; da mesma forma, a família deixa de ser o espaço da liberdade p ri vada, em contraposição às regras dos espaços públicos (como no século XVIII; cf. cap. 3), para se converter, ela também, numa agência disciplinadora destinada a, simultaneamente. individualizar e normatizar suas crianças, jovens e adultos. (Nestas novas condições, como assinala Sennett, 1978, a liberdade individual poderá com mais sucesso ser procurada no 132 anonimato das c idades do que dentro de qualquer coletividade regida pelo princípio utilitário.) Por tudo isso. Bentham é na tradição liberal uma espécie de ovelha negra. Mesmo um liberalismo reformista como o de Dewey, que não está absolutamente livre da m arca utilitária, procura restaurar o valor da liberdade individual que o cálculo da felicidade total de Bentham havia desconsiderado (Dewey, 1970). Os liberais contemporâneos mais comprometidos como liberalismo clássico, como Hayeck, tendem a nem considerar Bentham como um dos seus e não o perdoam pela tendência coletivista que ele introduziu no ideário liberal e pela introdução de ele mentos racionalistas e construtivistas na boa tradição inglesa (Gray, 1988; e Hayeck, 1967). Estas transform ações do ve lho liberalismo no u til itarismo disciplinador no séc ulo XIX, antes de se fazer sentir no plano da vida social como uma tendência dom inante, foi vivida na pele por um dos grandes nomes da tradição liberal: John Stuart Mill ( 1806-1873).2 O pai de Stuart Mill , James Mill (1173-1836), foi o principal d iscípulo e aliado de Bentham e organizou sua família e educou seus J1lhos seguindo estritamente suas opções filosóficas e políticas. John foi submetido a uma rígida e produtiva disciplina capaz de constituí-lo. desde tenra idade, num modelo de individualidade oitocentista. Nada impediu, contudo, que e le viesse a sofrer durante a adolescência e início da idade adulta uma série de cri ses existenciais. Queixava-se ele de um vazio. de uma aridez. de uma falta de sentido c de valores autênticos que o tornam uma das primeiras vítimas notáveis do niilismo. Foi no contexto dessas crises que se deu sua aproximação aos româ nticos ing leses e alemães, alguns dos quai s se tornaram seus grandes inspiradores e lhe forneceram os temas e valores em tomo dos quais elaborou sua versão do liberalismo . . Na obra de Stuart Mill há claros ingredientes da tradição iluminista: por exemplo, ele se dedicou ao desenvolvimento dos princípios do associacionismo que lhe proporcionavam uma concepção c ientifica, elementarista e mecanicista da menle: Concebeu, igualmente, a criação da e to logia, compreendida por ele como a ciência que decifra o caráter a partir das condutas. Trata-se, neste caso, de um esforço intelectual que de alguma fonna se aproxima da fis iognomia de Lavater (cf. cap. 3) e da frenologia de Gall; ambas as disciplinas obedeciam ao mesmo intuito 133 de correlacionar o público ao privado, dando ao privado uma expressão pública legítima (a fisionomia para Lavater, a conformação do crânio para GaH e os comportamentos para Stuart Míll) e, em contrapartida, pennitindo o conhecimento público de uma esfera de privacidade. É de interesse assinalar, inclusive, como na obra contemporânea de Honoré de Bal zac ( I 799-1850) as três abordagens são mobilizadas na caracterização dos personagens. Na verdade, embora não cite Stuart Mill - mas se refere profusamente aos outros dois -, Balzac concebia sua obra ficcional como obra de conhecimento sociológico e ela de fato pode ser lida como uma concretização do projeto etológico de Mil I. Contudo, o que mais nos pode interessar neste momento é a reunião de elementos liberais e românticos promovida por este genuíno filho precoce do regime disciplinar. No seu clássico On liberty (I 859), que traz como epígrafe um tre- cho de Humboldt que nos coloca de chofre no seio do ideário românti- co. Stuart Mil! formula uma proposta de metas e formas de vida social e política em que as conquistas civis liberais são colocadas a serviço dos valores românticos. Decerto que as marcas da disciplinet e da doutrina utilitária estão aí presentes; estão, contudo, confinadas a certas situa- ções-limite que envolvem procedimentos de exclusão. Por exemplo, o governante progressista e civilizado tem o direito de exercer o poder disciplinador sobre os bárbaros, excluídos da civilização; a coerção da espontaneidade é também justificada quando o Estado tem de lidar com marginais e criminosos que põem em risco os direilos alheios. 134 Existe, contudo, uma esfera da ação na qual a sociedade. em co.ntraposi- ção ao indivíduo, só 1em interesse indireto, supondo-se mesmo que te- nha algum: queremos nos referir àquela que compreende toda a parte da vida e da conduta pessoais que somente afetam o próprio indivíduo (. .. ) Tal, portanto, a região apropriada da liberdade humana. Compreende, em primeiro lugar, o domínio interior da consciência, a liberdade de pensa- mento, de senlimento, a liberdade absoluta de opinião e de sentimento em lodos os assuntos pniticos e e:r.peculati vos,. científicos, morais e teo- lógicos( ... } Em segundo lugar, o princípio exige liberdade de gostos e de ocupações, a de formular um plano de vida que esteja de acordo com o caráter do indivíduo, a de fazer o que se deseja ( ... ) Em terceiro lugar. da liberdade de cada indivCduo result.a a liberdade, dentro de certos limites, de combinação entre indivíduos, a liberdade de se unirem para qualquer fim que não envolva danos a terceiros. (Stuan Mill, 1963; p. 15-grito meu) É in!eressante observar no trecho acima como, de penneio aos velhos temas liberais da 'liherdade negativa' (a 1iberdade exercida no espaço esvaziado de controles sociais. ou seja, a liberdade na área da ftào-imeiferêucia; cf. Berlin, 1981; p. J36). já se insinua um tema novo: o da liberdade para a formulação de um projeto individual de vida conforme o caráter do indivíduo. Nesta noção de 'caráter individual; se expressa a crença em diferença~ qualitativas entre indivíduos, ou seja, em diferenças de personalidade. e na noção de 'projeto' a liberdade se idcntilica com a aulonomia e com o autodesenvolvimento. No capítulo I (introdução) de On /ibeny, Stuart Mill deixava muito claro estar escrevendo num momento em que as liberdades estão sendo ameaçadas pelo "fortalecimento da sociedade" , o que em nossa linguagem se expressarià como a expansão do regime disciplinar. O segundo capítulo trata da liberdade de pensamento e de discussão e, apesar de inleressante, não é onde se revela a maior originalidade do autor. Já o terceiro capítulo intitula-se 'Da individualidade como um dos elementos do bem-estar' e é aí que aflorao ideário romântico: a ênfao;e na diversidade, na singularidade, na espontaneidade e na interioridade dos indivíduos; por exemplo: A na!ureza humana não é máquina que se possa construir conforme um modelo qualquer, regulando-se para executar exatamente a tarefa que se lhe prescrever, mas uma árvore, que precisa crescer e desenvolver-se de todos os lados, de acordo com a tendência de forças interiores que o fazem um ser vivo. (lbid.; p. 67) Há aí uma valorização c interpretação da vida para romântico nenhum colocar defeito. Como estamos longe da aridez do mecanismo associacionista ou da psÍcologia dos castigos e recompensas num texto como o que transcrevo a seguir: Conceder-se-á provavelmente ser desejável que exercitem os homens o emendímento ( ... ) Admite-se, até certo ponto, que deve ser nosso o entendimento; mas não se observa a mesma boa vontade no sentido de admitir que também devam ser nossos os nossos desejos e impulsos ( ... ) Contudo. desejos e impulsos tonnam pane do ser humant> perfeito, tanto quanto crenças e restrições; sendo os impulsos fortes somente perigosos quando nào convenientemente equilibrados, quando um grupo de objetivos e inclinações adquire intensidade, enquanto outros. que com eles devem coexistir, permanecem fracos e inativos ( ... ) Impulsos fortes nada mais 135 de correlacionar o público ao privado, dando ao privado uma expressão pública legítima (a fisionomia para Lavater, a conformação do crânio para GaH e os comportamentos para Stuart Míll) e, em contrapartida, pennitindo o conhecimento público de uma esfera de privacidade. É de interesse assinalar, inclusive, como na obra contemporânea de Honoré de Bal zac ( I 799-1850) as três abordagens são mobilizadas na caracterização dos personagens. Na verdade, embora não cite Stuart Mill - mas se refere profusamente aos outros dois -, Balzac concebia sua obra ficcional como obra de conhecimento sociológico e ela de fato pode ser lida como uma concretização do projeto etológico de Mil I. Contudo, o que mais nos pode interessar neste momento é a reunião de elementos liberais e românticos promovida por este genuíno filho precoce do regimedisciplinar. No seu clássico On liberty (I 859), que traz como epígrafe um tre- cho de Humboldt que nos coloca de chofre no seio do ideário românti- co. Stuart Mil! formula uma proposta de metas e formas de vida social e política em que as conquistas civis liberais são colocadas a serviço dos valores românticos. Decerto que as marcas da disciplinet e da doutrina utilitária estão aí presentes; estão, contudo, confinadas a certas situa- ções-limite que envolvem procedimentos de exclusão. Por exemplo, o governante progressista e civilizado tem o direito de exercer o poder disciplinador sobre os bárbaros, excluídos da civilização; a coerção da espontaneidade é também justificada quando o Estado tem de lidar com marginais e criminosos que põem em risco os direilos alheios. 134 Existe, contudo, uma esfera da ação na qual a sociedade. em co.ntraposi- ção ao indivíduo, só 1em interesse indireto, supondo-se mesmo que te- nha algum: queremos nos referir àquela que compreende toda a parte da vida e da conduta pessoais que somente afetam o próprio indivíduo (. .. ) Tal, portanto, a região apropriada da liberdade humana. Compreende, em primeiro lugar, o domínio interior da consciência, a liberdade de pensa- mento, de senlimento, a liberdade absoluta de opinião e de sentimento em lodos os assuntos pniticos e e:r.peculati vos,. científicos, morais e teo- lógicos( ... } Em segundo lugar, o princípio exige liberdade de gostos e de ocupações, a de formular um plano de vida que esteja de acordo com o caráter do indivíduo, a de fazer o que se deseja ( ... ) Em terceiro lugar. da liberdade de cada indivCduo result.a a liberdade, dentro de certos limites, de combinação entre indivíduos, a liberdade de se unirem para qualquer fim que não envolva danos a terceiros. (Stuan Mill, 1963; p. 15-grito meu) É in!eressante observar no trecho acima como, de penneio aos velhos temas liberais da 'liherdade negativa' (a 1iberdade exercida no espaço esvaziado de controles sociais. ou seja, a liberdade na área da ftào-imeiferêucia; cf. Berlin, 1981; p. J36). já se insinua um tema novo: o da liberdade para a formulação de um projeto individual de vida conforme o caráter do indivíduo. Nesta noção de 'caráter individual; se expressa a crença em diferença~ qualitativas entre indivíduos, ou seja, em diferenças de personalidade. e na noção de 'projeto' a liberdade se idcntilica com a aulonomia e com o autodesenvolvimento. No capítulo I (introdução) de On /ibeny, Stuart Mill deixava muito claro estar escrevendo num momento em que as liberdades estão sendo ameaçadas pelo "fortalecimento da sociedade" , o que em nossa linguagem se expressarià como a expansão do regime disciplinar. O segundo capítulo trata da liberdade de pensamento e de discussão e, apesar de inleressante, não é onde se revela a maior originalidade do autor. Já o terceiro capítulo intitula-se 'Da individualidade como um dos elementos do bem-estar' e é aí que aflorao ideário romântico: a ênfao;e na diversidade, na singularidade, na espontaneidade e na interioridade dos indivíduos; por exemplo: A na!ureza humana não é máquina que se possa construir conforme um modelo qualquer, regulando-se para executar exatamente a tarefa que se lhe prescrever, mas uma árvore, que precisa crescer e desenvolver-se de todos os lados, de acordo com a tendência de forças interiores que o fazem um ser vivo. (lbid.; p. 67) Há aí uma valorização c interpretação da vida para romântico nenhum colocar defeito. Como estamos longe da aridez do mecanismo associacionista ou da psÍcologia dos castigos e recompensas num texto como o que transcrevo a seguir: Conceder-se-á provavelmente ser desejável que exercitem os homens o emendímento ( ... ) Admite-se, até certo ponto, que deve ser nosso o entendimento; mas não se observa a mesma boa vontade no sentido de admitir que também devam ser nossos os nossos desejos e impulsos ( ... ) Contudo. desejos e impulsos tonnam pane do ser humant> perfeito, tanto quanto crenças e restrições; sendo os impulsos fortes somente perigosos quando nào convenientemente equilibrados, quando um grupo de objetivos e inclinações adquire intensidade, enquanto outros. que com eles devem coexistir, permanecem fracos e inativos ( ... ) Impulsos fortes nada mais 135 são que o outro nome para a energia( ... ) Aqueles cujos impulsos e desejos são próprios, conforme desenvolvido.~ e modificados pela cultura que lhes é peculiar- díz-se possuir caráter (lbíd.; p. 68) Vinte e três anos depois da morte do pai, o filho de James Mill franqueia o acesso aos próprios desejos! É inevitável que esta concepção da natureza humana como desejante e impulsiva, é inevitável que esta 'energética' e esta concepção não-disciplinar do controle dos impulsos (trata-se de desenvolvê-los em equilíbrio conflitivo e não de domá-los e extingui-los) nos leve a pensar em Freud (que, por sinal, traduziu Stuart Mill para o alemão), assim como Bentham nos evocara a lembrança de Skinner. É ainda no combate ao regime disciplinar que Stuart Mill se opõe ao calv inismo e à sua ênfase na contenção dos impulsos e na obediência, para concluir: "Não é desgastando no sentido da uniformidade tudo que é individual nos homens, mas cultivando-o e suscitando-o, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses de terceiros, que os seres humanos se tomam objeto de contemplação, nobre e belo" (Ibid.; P- 71 )- 0 reconhecimento e a valorização das diferenças individuais acarretam a reivindicação da desigualdade e diversidade nos modos de vida, a liberdade de opções e a tolerância diante das minorias. O quarto capítulo trata dos mesmos temas sob o ângulo dos limites da autoridade da sociedade sobre os indivíduos; e o capítulo final reafirma as mesmas teses no contexto de aJguns exemplos práticos. O maior mérito de On liberty reside, creio eu, no seu valor como testemunho pessoal de um filósofo que, tendo sofrido na carne o impacto da disciplína utilitarista e vendo ao seu redor crescerem as forças coletivas, os controles sociais, o peso da administração burocrática e as malhas finas da opinião pública, tenta defender os espaços ameaçados da privacidade e da liberdade nesta versão romantizada do liberalismo. No mesmo século, porém, há uma outra obra, que inclusive exerceu considerável influência sobre Stuart Mill, que trata das mesmas questões com uma perspicácia e uma capacidade analítica (e profética) inigualáveis. Retiro-me a A democracia na América (( 1835-1840] 1987), de Alexis de Tocqueville ( 1805-1859)_ Tocqueville costuma ser lembrado como um arguto e pioneiro estudioso do individualismo moderno e, sem dúvida nenhuma, o livro 136 contém algumas passagens antológicas. No entanto, como veremos, o individualismo segundo Tocqueville não consiste apenas na separação e autonomização dos indivíduos, no seu virtual isolamento das coletividades e das tradições, no investimento maciço de cada um em si mesmo e na própria independência. O individualismo simultaneamente constitui. valoriza e enfraquece o indivíduo, dá-lhe mais status e responsabilidades e lhe traz mais ameaças e desamparo. Talvez o que haja de mais instigante nas análises de Tocqueville sejam as relações que estabelece entre uma cultura indi vidualista e as novas forças c fom1as do despotismo. Ele observa tanto um crescimento dos espaços de individuação como dos poderes das agências governamentais e da opinião pública, os quais tendem a invadir progressivamente as esferas da privacidade. São os próprios indivíduos livres, mas apequenados, que se entregam a estes novos déspotas, vigilantes e meticulosos, organizadores detalhistas das crenças, das condutas e dos sentimentos comuns. É assim que, depois de enaltecer a pretensão de cada americano julgar-se capaz de fonnular seus próprios juízos e defender com bravura a independência de pensamento e expressão, Tocqueville ( 1987; p. 326) nos alerta: "Nos Estados Unidos a maioria encarrega-sede fornecer aos indivíduos uma infinidade de opiniões completas e assim os alivia da obrigação de fonnular opiniões que lhes sejam próprias". Da mesma fonna quanto aos sentimentos; embora os homens numa cultura individualista voltem para si todos os seus sentimentos, rel:onheccndo que não devem esperar dos demais muita atenção e apoio, ... sentem a necessidade de um socorro estranho. Nestes extremos voltam naturalmente seus olhares para este ser imenso, o único que se eleva no meio llo abatimento universal. É para ele que as suas necessidades e sobretudo os seus desejos constantemente os impelem; é ele que tal cidadão acaba por considerar como o sustentáculo único e necessário da fraqucta individual. (lbid.; p. 515) Este ser imenso tanto pode ser o Estado napoleônico como a grande burocracia estatal de um Estado democrático " ... e o braço deste Estado vai procurar cada homem em particular no meio da multidão (lbid.; p. 447); ou seja, exerce sobre cada indivíduo aquele poder cotidiano e invisível que ao mesmo tempo controla e individualiza. 137 são que o outro nome para a energia( ... ) Aqueles cujos impulsos e desejos são próprios, conforme desenvolvido.~ e modificados pela cultura que lhes é peculiar- díz-se possuir caráter (lbíd.; p. 68) Vinte e três anos depois da morte do pai, o filho de James Mill franqueia o acesso aos próprios desejos! É inevitável que esta concepção da natureza humana como desejante e impulsiva, é inevitável que esta 'energética' e esta concepção não-disciplinar do controle dos impulsos (trata-se de desenvolvê-los em equilíbrio conflitivo e não de domá-los e extingui-los) nos leve a pensar em Freud (que, por sinal, traduziu Stuart Mill para o alemão), assim como Bentham nos evocara a lembrança de Skinner. É ainda no combate ao regime disciplinar que Stuart Mill se opõe ao calv inismo e à sua ênfase na contenção dos impulsos e na obediência, para concluir: "Não é desgastando no sentido da uniformidade tudo que é individual nos homens, mas cultivando-o e suscitando-o, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses de terceiros, que os seres humanos se tomam objeto de contemplação, nobre e belo" (Ibid.; P- 71 )- 0 reconhecimento e a valorização das diferenças individuais acarretam a reivindicação da desigualdade e diversidade nos modos de vida, a liberdade de opções e a tolerância diante das minorias. O quarto capítulo trata dos mesmos temas sob o ângulo dos limites da autoridade da sociedade sobre os indivíduos; e o capítulo final reafirma as mesmas teses no contexto de aJguns exemplos práticos. O maior mérito de On liberty reside, creio eu, no seu valor como testemunho pessoal de um filósofo que, tendo sofrido na carne o impacto da disciplína utilitarista e vendo ao seu redor crescerem as forças coletivas, os controles sociais, o peso da administração burocrática e as malhas finas da opinião pública, tenta defender os espaços ameaçados da privacidade e da liberdade nesta versão romantizada do liberalismo. No mesmo século, porém, há uma outra obra, que inclusive exerceu considerável influência sobre Stuart Mill, que trata das mesmas questões com uma perspicácia e uma capacidade analítica (e profética) inigualáveis. Retiro-me a A democracia na América (( 1835-1840] 1987), de Alexis de Tocqueville ( 1805-1859)_ Tocqueville costuma ser lembrado como um arguto e pioneiro estudioso do individualismo moderno e, sem dúvida nenhuma, o livro 136 contém algumas passagens antológicas. No entanto, como veremos, o individualismo segundo Tocqueville não consiste apenas na separação e autonomização dos indivíduos, no seu virtual isolamento das coletividades e das tradições, no investimento maciço de cada um em si mesmo e na própria independência. O individualismo simultaneamente constitui. valoriza e enfraquece o indivíduo, dá-lhe mais status e responsabilidades e lhe traz mais ameaças e desamparo. Talvez o que haja de mais instigante nas análises de Tocqueville sejam as relações que estabelece entre uma cultura indi vidualista e as novas forças c fom1as do despotismo. Ele observa tanto um crescimento dos espaços de individuação como dos poderes das agências governamentais e da opinião pública, os quais tendem a invadir progressivamente as esferas da privacidade. São os próprios indivíduos livres, mas apequenados, que se entregam a estes novos déspotas, vigilantes e meticulosos, organizadores detalhistas das crenças, das condutas e dos sentimentos comuns. É assim que, depois de enaltecer a pretensão de cada americano julgar-se capaz de fonnular seus próprios juízos e defender com bravura a independência de pensamento e expressão, Tocqueville ( 1987; p. 326) nos alerta: "Nos Estados Unidos a maioria encarrega-se de fornecer aos indivíduos uma infinidade de opiniões completas e assim os alivia da obrigação de fonnular opiniões que lhes sejam próprias". Da mesma fonna quanto aos sentimentos; embora os homens numa cultura individualista voltem para si todos os seus sentimentos, rel:onheccndo que não devem esperar dos demais muita atenção e apoio, ... sentem a necessidade de um socorro estranho. Nestes extremos voltam naturalmente seus olhares para este ser imenso, o único que se eleva no meio llo abatimento universal. É para ele que as suas necessidades e sobretudo os seus desejos constantemente os impelem; é ele que tal cidadão acaba por considerar como o sustentáculo único e necessário da fraqucta individual. (lbid.; p. 515) Este ser imenso tanto pode ser o Estado napoleônico como a grande burocracia estatal de um Estado democrático " ... e o braço deste Estado vai procurar cada homem em particular no meio da multidão (lbid.; p. 447); ou seja, exerce sobre cada indivíduo aquele poder cotidiano e invisível que ao mesmo tempo controla e individualiza. 137 Em toda parte, o Estado passa a dirigir cada vez mais por si mesmo os menores cidadãos e a conduzir so7.inho cada um deles, nas menores questões ( ... ) Não só o puder do soberano é amplo, como acabamos de ver na esfera antiga dos antigos poderes, mas esta não basta mais para contê-lo e vai se propagar no domínio que até agora fora reservado à independência individual ( ... ) As~eguro que não há pars da Europa onde a administração não se tenha tornado n!io só mais centralizada, mas também mais inquisitiva e minuciosa; por toda a parte ela penetra mais além que outrora nos afa7.eres privados; regula à sua maneira mais numerosas ações e ações menores. e estabelece-se em melhor posição todos os dias. ao lado, em volta e acima de cada indivfduo para ajudá-lo, aconselhá-lo e exercer a coerção sobre ele. (lbid.; pp. 522-523) O texto, vale recordar, é de 1840. Não conheço descrição mais nítida do que 135 anos depois Foucault viria 'descobrir' com grande estardalhaço: o regime disciplinar com toda " ... a minúcia dos regulamentos. o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mfnimas parcelas da vida e do corpo ... " (Foucault, 1977; p. 129). Curiosamente, Tocqueville nãu é citado por Foucault. Tocqueville está perfeitamente ciente de que o próprio desenvolvimento da economia c da sociedade burguesa e industrial exigem maiores intervenções do Estado. maiores investimentos, mais regulamentação e mais administração. Antecipa-se nesta sua compreensão do processo à tese de K. Polany de que os avanços da administração burocrática e os recuos da liberdade individual atendem mais às demandas de uma sociedade burguesa, que assistia aos repetidos fracassos do mercado como dispositivo de auto-regulação, do que a um complô antiliberal, taJ como os pr.óprios liberais costumam entender a história do 1 iberalismo (Polany, 1980). 3 No entanto. o que me parece ainda mais original e revelador na análise de Tocqueville é a sua tese de que a regulação completa, capilar e abrangente das existências individuais não é apenas imposta pelo Estado em atenção às demandas da economia e da grande política,mas é como que solicitada pelos indivíduos autônomos e livres. Individualismo e centralização administrativa não são meros opostos~ liberalismo e regime disciplinar mantêm entre si relações muito mais perversas do que poderia parecer à primeira vista: 138 Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser produzido no mundo: vejo uma multidao inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos à procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. Cada um deles. afastado dos demais, é como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos paniculares para ele constituem toda a espécie humana; quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; tnca-os. mas não os sente, existe apenas em si c para si mesmo ... Acima destes eleva-se um poder imenso e tutelar que se encarrega de garantir o seu pra1.er e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso. regular, previdente e brando ( ... )Trabalha de bom grado para a sua felicidade, mas deseja ser o seu único agente c árbitro exclusivo; provê a sua segurança. conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria, regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe falta tirar-lhes inteiramente, senão o incômodo de pcn~ar e a angústia de viver '! (Tocqueville, 1987; pp. 531-532) Segundo Tocqueville os riscos do despotismo moderno, esta outra face do moderno individualismo, seriam maiores na Europa continental, onde inexistia uma longa tradição de liberdades individuais, do que nos Estados Unidos c na Inglaterra. Po't outro lado, mais que em qualquer outra pane, a ditadura da opinião pública seria poderosa nos Estados Unido~. onde inexistiam tradições culturais fortes o suficiente para se contrapor às pressões das idéias majoritárias. É um texto de 150 anos atrás e quase não há nada a acrescentar. Cabe-nos apenas observar a ine xorável expansão da sociedade admini strada (Habermas, 1978; e Polany, 1980) e da sua expressão em formas políticas autoritárias e totalitárias; tudo isso em contraponto apenas aparentemente dissonante com o aprofundamento do individualismo c com as repetidas ressurreições do idcário liberal. Convém agora acompanhar as peripécias da outra vertente do pensamento de Stuart Mill, aquela que lhe dera sangue novo e alma nova para reanimar o liberalismo fraudulento de Jercmy Bentham: a vertente romântica. O romantismo: promessas e realizações~ As relações dos movimentos românticos com o pensamento li bem! e com a forma de individualismo que lhe corresponde e, mais ainda, com as práticas de poder do regime disciplinar são, à primeira vista, de 139 Em toda parte, o Estado passa a dirigir cada vez mais por si mesmo os menores cidadãos e a conduzir so7.inho cada um deles, nas menores questões ( ... ) Não só o puder do soberano é amplo, como acabamos de ver na esfera antiga dos antigos poderes, mas esta não basta mais para contê-lo e vai se propagar no domínio que até agora fora reservado à independência individual ( ... ) As~eguro que não há pars da Europa onde a administração não se tenha tornado n!io só mais centralizada, mas também mais inquisitiva e minuciosa; por toda a parte ela penetra mais além que outrora nos afa7.eres privados; regula à sua maneira mais numerosas ações e ações menores. e estabelece-se em melhor posição todos os dias. ao lado, em volta e acima de cada indivfduo para ajudá-lo, aconselhá-lo e exercer a coerção sobre ele. (lbid.; pp. 522-523) O texto, vale recordar, é de 1840. Não conheço descrição mais nítida do que 135 anos depois Foucault viria 'descobrir' com grande estardalhaço: o regime disciplinar com toda " ... a minúcia dos regulamentos. o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mfnimas parcelas da vida e do corpo ... " (Foucault, 1977; p. 129). Curiosamente, Tocqueville nãu é citado por Foucault. Tocqueville está perfeitamente ciente de que o próprio desenvolvimento da economia c da sociedade burguesa e industrial exigem maiores intervenções do Estado. maiores investimentos, mais regulamentação e mais administração. Antecipa-se nesta sua compreensão do processo à tese de K. Polany de que os avanços da administração burocrática e os recuos da liberdade individual atendem mais às demandas de uma sociedade burguesa, que assistia aos repetidos fracassos do mercado como dispositivo de auto-regulação, do que a um complô antiliberal, taJ como os pr.óprios liberais costumam entender a história do 1 iberalismo (Polany, 1980). 3 No entanto. o que me parece ainda mais original e revelador na análise de Tocqueville é a sua tese de que a regulação completa, capilar e abrangente das existências individuais não é apenas imposta pelo Estado em atenção às demandas da economia e da grande política, mas é como que solicitada pelos indivíduos autônomos e livres. Individualismo e centralização administrativa não são meros opostos~ liberalismo e regime disciplinar mantêm entre si relações muito mais perversas do que poderia parecer à primeira vista: 138 Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser produzido no mundo: vejo uma multidao inumerável de homens semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos à procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. Cada um deles. afastado dos demais, é como que estranho ao destino de todos os outros: seus filhos e seus amigos paniculares para ele constituem toda a espécie humana; quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao lado deles, mas não os vê; tnca-os. mas não os sente, existe apenas em si c para si mesmo ... Acima destes eleva-se um poder imenso e tutelar que se encarrega de garantir o seu pra1.er e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso. regular, previdente e brando ( ... )Trabalha de bom grado para a sua felicidade, mas deseja ser o seu único agente c árbitro exclusivo; provê a sua segurança. conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria, regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe falta tirar-lhes inteiramente, senão o incômodo de pcn~ar e a angústia de viver '! (Tocqueville, 1987; pp. 531-532) Segundo Tocqueville os riscos do despotismo moderno, esta outra face do moderno individualismo, seriam maiores na Europa continental, onde inexistia uma longa tradição de liberdades individuais, do que nos Estados Unidos c na Inglaterra. Po't outro lado, mais que em qualquer outra pane, a ditadura da opinião pública seria poderosa nos Estados Unido~. onde inexistiam tradições culturais fortes o suficiente para se contrapor às pressões das idéias majoritárias. É um texto de 150 anos atrás e quase não há nada a acrescentar. Cabe-nos apenas observar a ine xorável expansão da sociedade admini strada (Habermas, 1978; e Polany, 1980) e da sua expressão em formas políticas autoritárias e totalitárias; tudo isso em contraponto apenas aparentemente dissonante com o aprofundamento do individualismo c com as repetidas ressurreições do idcário liberal. Convém agora acompanhar as peripécias da outra vertente do pensamento de Stuart Mill, aquela que lhe dera sangue novo e alma nova para reanimar o liberalismo fraudulento de Jercmy Bentham: a vertente romântica. O romantismo: promessas e realizações~ As relações dos movimentos românticos com o pensamento li bem! e com a forma de individualismo que lhe corresponde e, mais ainda, com as práticas de poder do regime disciplinar são, à primeira vista, de 139 franca exposição. Contudo, tanto o romantismo como o iluminismo no século XVIII corrcsponderam a movimentos de exteriorização das experiências privatizadas; por exemplo, na França c na Alemanha foram plataformas críticas às convenções, regras e procedimentos de controle absolutistas impostos às esferas públicas (cf. cap. 3). Não s6 pela origem comum , mas pela convi vência de temas iluministas e românticos em diversas obras doséculo XVII impõe-se a necessidade de compreender iluminismo c romanlismo de forma menos dicotômica e mais articulada. Finalmente, a versào do liberalismo de Stuart Mill, que acabamos de resenhar, mostra como em pleno século XIX o pensamento liberal precisou recorrer ao idcário romântico para' se fortalecer na sua luta contra os avanços do regime disciplinar. Como todas estas evidências não nos devem impedir de também reconhecer o conflito entre iluminismo e romantismo, a tarefa da análise deve ser, exatamente, a de revelar como se constitui este campo em que ilum inismo e romantismo se reúnem e se separam como ingredientes mutuamente indispensáveis de uma mesma configuração ideológica. As relações do pensamento romântico com o regime disciplinar, entretanto, poderiam ainda nos parecer menos complexas, resolvendo-se na forma de pura oposíção. Também aqui. porém, a realidade não se mostra tão simples, e uma das tarefas da análise será a de expor os vínculos menos evidentes que conduzem as águas românticas para o moinho da sociedade administrada. ~ Deixarei para uma outra ocasião a ou1ra face do problema, ou seja, a que nos revela os avanços do regime disciplinar engrossando as águas românticas. Comecemos acompanhando a expansão do pensamento romântico como crítica ao iluminismo, ao liberalismo e ao individualismo da ilustração. Coube , sem dúvida. aos artistas, músicos, poetas e pensadores românticos pôr em questão as perspectivas do iluminismo como princípio civilizatório. Tanto a epistemologia iluminista- empírica e racional - como os valores liberais de independência individual, e a conj ugação destes traços numa interpretação individual ista da vida social (a qual incluía tanto a noção de um contrato firmado entre indivíduos livres para a instituição da sociedade como a articulação dos átomos econômicos através dos mercados e de suas leis impessoais) foram rejeitados. O próprio termo- 'individualismo' -nasceu na França como conseqüência de uma reação negativa· do pensamento conservador 140 romântico aos ideais e realizações da Revolução Francesa (Lukes, 1975) e com este sentido pejorativo o tenno invadiu outros ares culturais. Os movimentos român ticos, na sua dimensão política, se apresentaram ora como um a face nitidamente conservadora e tmdicionalista. buscando em fonnas arcaicas de organização social uma saída para os impasses do individualismo, ora com uma face revolucionári a, lançando-se , então, na direção do fu turo para a superação do individualismo ilustrado. Nem sempre as duas vertentes ficavam completamente separáveis uma da outra. De qualquer fonna, ambas sempre corresponderam a um proj eto de restauração . Restauração de formas orgânicas de vida social, restauração de valores autênticos, restauração de modos de relação entre os homens e entre eles e o mundo físi co c histórico que trariam de volta a integridade, a espontaneidade c a fecundidade da vida coletiva e individual. Nesta m edida, os românticos criaram. e les tamhém, uma noção de individualidade, melhor dizendo, de personalidade, não mais definido pelo isolamento e pela privacidade nem pela identidade social, mas pela capacidade de se autopropulsionar, autodesenvolver, de criar e, na própria criação, transcender-se e integrar-se às coletividades e tradições . Estas, por sua vez, também eram concebidas sob a forma da personalidade: o espírito do povo, o espírito da língua, o espírito da religião etc. que são menos um conjunto de traços identificatórios do que matrizes de experiências, representações , sentimentos e possibilidades existenciais. Com o romantismo, passa-se de uma noção de liberdade negativa -a liberdade exercida no terreno da não-interferência- para uma versão m oderna na liberdade positiva - como 'autonomia' c auto- engendramento -, processos estes que implicam tanto a transfonnação dos sujeitos naquilo que eles de fato são (a constituição de uma personalidade singularizada), como na permanente perda de suas identidades convencionais: o 'tornar-se o que verdadeiramente se é' contrapondo-se ao 'conservar os papéis e as máscaras socialmente convencionadas'. É sob este aspecto que fazem sentido as diatribes românticas contra os 'filisteus', contra os hipócritas, mesquinhos, acomodados e medíocres, os homens livres com suas pequenas ambições; a defesa romântica das paixões, dos impulsos, dos estados alterados da 141 franca exposição. Contudo, tanto o romantismo como o iluminismo no século XVIII corrcsponderam a movimentos de exteriorização das experiências privatizadas; por exemplo, na França c na Alemanha foram plataformas críticas às convenções, regras e procedimentos de controle absolutistas impostos às esferas públicas (cf. cap. 3). Não s6 pela origem comum , mas pela convi vência de temas iluministas e românticos em diversas obras do século XVII impõe-se a necessidade de compreender iluminismo c romanlismo de forma menos dicotômica e mais articulada. Finalmente, a versào do liberalismo de Stuart Mill, que acabamos de resenhar, mostra como em pleno século XIX o pensamento liberal precisou recorrer ao idcário romântico para' se fortalecer na sua luta contra os avanços do regime disciplinar. Como todas estas evidências não nos devem impedir de também reconhecer o conflito entre iluminismo e romantismo, a tarefa da análise deve ser, exatamente, a de revelar como se constitui este campo em que ilum inismo e romantismo se reúnem e se separam como ingredientes mutuamente indispensáveis de uma mesma configuração ideológica. As relações do pensamento romântico com o regime disciplinar, entretanto, poderiam ainda nos parecer menos complexas, resolvendo-se na forma de pura oposíção. Também aqui. porém, a realidade não se mostra tão simples, e uma das tarefas da análise será a de expor os vínculos menos evidentes que conduzem as águas românticas para o moinho da sociedade administrada. ~ Deixarei para uma outra ocasião a ou1ra face do problema, ou seja, a que nos revela os avanços do regime disciplinar engrossando as águas românticas. Comecemos acompanhando a expansão do pensamento romântico como crítica ao iluminismo, ao liberalismo e ao individualismo da ilustração. Coube , sem dúvida. aos artistas, músicos, poetas e pensadores românticos pôr em questão as perspectivas do iluminismo como princípio civilizatório. Tanto a epistemologia iluminista- empírica e racional - como os valores liberais de independência individual, e a conj ugação destes traços numa interpretação individual ista da vida social (a qual incluía tanto a noção de um contrato firmado entre indivíduos livres para a instituição da sociedade como a articulação dos átomos econômicos através dos mercados e de suas leis impessoais) foram rejeitados. O próprio termo- 'individualismo' -nasceu na França como conseqüência de uma reação negativa· do pensamento conservador 140 romântico aos ideais e realizações da Revolução Francesa (Lukes, 1975) e com este sentido pejorativo o tenno invadiu outros ares culturais. Os movimentos român ticos, na sua dimensão política, se apresentaram ora como um a face nitidamente conservadora e tmdicionalista. buscando em fonnas arcaicas de organização social uma saída para os impasses do individualismo, ora com uma face revolucionári a, lançando-se , então, na direção do fu turo para a superação do individualismo ilustrado. Nem sempre as duas vertentes ficavam completamente separáveis uma da outra. De qualquer fonna, ambas sempre corresponderam a um proj eto de restauração . Restauração de formas orgânicas de vida social, restauração de valores autênticos, restauração de modos de relação entre os homens e entre eles e o mundo físi co c histórico que trariam de volta a integridade, a espontaneidade c a fecundidade da vida coletiva e individual. Nesta m edida, os românticos criaram. e les tamhém, uma noção de individualidade, melhor dizendo, de personalidade, não mais definido pelo isolamentoe pela privacidade nem pela identidade social, mas pela capacidade de se autopropulsionar, autodesenvolver, de criar e, na própria criação, transcender-se e integrar-se às coletividades e tradições . Estas, por sua vez, também eram concebidas sob a forma da personalidade: o espírito do povo, o espírito da língua, o espírito da religião etc. que são menos um conjunto de traços identificatórios do que matrizes de experiências, representações , sentimentos e possibilidades existenciais. Com o romantismo, passa-se de uma noção de liberdade negativa -a liberdade exercida no terreno da não-interferência- para uma versão m oderna na liberdade positiva - como 'autonomia' c auto- engendramento -, processos estes que implicam tanto a transfonnação dos sujeitos naquilo que eles de fato são (a constituição de uma personalidade singularizada), como na permanente perda de suas identidades convencionais: o 'tornar-se o que verdadeiramente se é' contrapondo-se ao 'conservar os papéis e as máscaras socialmente convencionadas'. É sob este aspecto que fazem sentido as diatribes românticas contra os 'filisteus', contra os hipócritas, mesquinhos, acomodados e medíocres, os homens livres com suas pequenas ambições; a defesa romântica das paixões, dos impulsos, dos estados alterados da 141 consciência (a valorização das drogas alucinógenas, do sonambulismo, das experiências mediúni cas e êxtases etc.); a defesa da absoluta liberdade de criação e rransfiguração- o culto romântico de Dionísio • a valorização da alienação, da loucura, dos desdobramentos da personalidade, da dissolução dos limites; o desdém para com as representações racionais e para com os interesses egoístas (ou egóicos); o cultivo da imersão nos processos vitais da natureza e da história e a procura de participaç.ão nas vivências míticas e arquetípicas, tudo isso faz sentido no bojo das grandes p romessas restauradoras do romancismo. Assim como Bentham nos recordara Skinner e o liberalismo de Stuart Mill nos evocara Freud, é inevitável aqui pensar em Jung (cf., a propósito, a excelente análise de Rieff, 1990; cap. 5). Trata-se, é c laro, de uma restauração paradoxal, que pode passar pela fragmentação da identidade e pela mais desregrada extravagância. A fragmentação da identidade, de uma certa forma. é a condição e a conseqüência de um processo de crescimento e florescimento da personalidade, com todo o seu potencial de variação e com toda a recusa a subordinar-se aos moldes das representações convencionais. É típica do romantismo a tematização da dupla ou tripla identidade. Basta que se recorde a respeito a obra musical de Schumann. Quanto à extravagância, Binswanger ( 1977) ensina que se trata de uma posição existencial insustentável: na extravagância, o sujeito .. que foi além de todo limite razoável" coloca-se a uma altura na qual se vê encalacrado, sem forças para subir mais nem condições de descer para o terreno da humana co nvivência . Os que se fragmentam ou extravagam enlouquecem ou morrem, ou ambos, o que de fato foi o destino de diversos românticos notáveis. O romantismo levado a estas últimas conseqüências nunca foi mais que uma coisa de ' eleitos'. Aliás, sua força se nutria exatamente da condição de marginalidade que lhe era destinada numa sociedade que se pensava predominantemente a partir das concepções liberais e que já começava a se organizar, sob a égide do regime disciplinar. No entanto. a música composta pelos românticos, a poesia escrita por e les c os quadros que pintavam mantinham com o público uma relação contraditória: nela estava presente tanto o escândalo e a mútua agressão como a reverência e mesmo a veneração às grandes personalidades criativas: os gênios. A isto precisaremos retornar quando for o caso de tratar das relações do romantismo com o regime disciplinar. 142 Em formas e versões menos contundentes e dissonantes. as idéias e modos românti cos podem se r perfe itamente assimilados pelo liberalismo, trazendo-lhe os valores e metas que vão preencher o vazio deixado pela redução da vida social à dimensão puramente instrumental, racional e calculadora. Foi o que vimos no liberalismo de Stuart Mill: a defesa da liberdade negativa é complementada pela valorização da liberdade positiva. tal como aparece na idéia de um projeto de vida que permita o desabrochar das virtualidades, das tendências espontâneas ao desenvolvimento individual (neste aspecto, Stuart Mill parece estar mais próximo de Rogers do que de Freud, de quem se aproximava pelo lado da energétka e dos desejos). Creio que é esta maneira de conceber a vida social como condição mais ou menos favorável ao desenvolvimento pessoal e o uso deste critério para avaliar, tomar decisões e participar da vida em sociedade e, ainda mais, para se omitir de qualquer participação, que irá caracterizar a invasão do público pelo privado identificada por Sennet na segunda metade do século XIX. Enquanto no liberalismo original a cesura entre as esferas da privacidade e da publicidade tinha de ser conservada, já que a liberdade no espaço de não-interferência requer exatamente a clara delimitação do privativo, o liberalismo romantizado, embora se proponha também a sublinhar a invi olabilidade do privado, conduz a uma perspectiva de inversão: são os valores e procedimentos da privacidade que passam a se elevar como organizadores e jufzes da vida pública. Desta maneira, es taríamos diante de uma decorrência ' natural' do desinvestimento do social e do superínvestimento do privado de que já nos falara Tocqueville. Isto, entretanto, é apenas um lado da questão, e , talvez, o lado menos elucidativo do que se passou. O que não se pode esquecer são os vínculos positivos do pensamento e das práticas românticas com a sociedade administrada. Sabe-se. por exemplo. que as intervenções estatais visando limitar a liberdade de ação dos agentes econômicos e restringir, assim, o poder de auto-regulação espontânea dos mercados de bens e de trabalho foram promovidas por polfticos conservadores, aderidos às críticas românticas ao liberalismo e ao individualismo clássicos (Dewey. 1970). Isto quer dizer que os avanços da ordem administrativa não foram necessariamente obra do liberalismo benthamista, disciplinador, embora na verdade estas intervenções respondessem a demandas de ajustamento do sistema econômico e social e, a longo prazo, tenham 143 consciência (a valorização das drogas alucinógenas, do sonambulismo, das experiências mediúni cas e êxtases etc.); a defesa da absoluta liberdade de criação e rransfiguração- o culto romântico de Dionísio • a valorização da alienação, da loucura, dos desdobramentos da personalidade, da dissolução dos limites; o desdém para com as representações racionais e para com os interesses egoístas (ou egóicos); o cultivo da imersão nos processos vitais da natureza e da história e a procura de participaç.ão nas vivências míticas e arquetípicas, tudo isso faz sentido no bojo das grandes p romessas restauradoras do romancismo. Assim como Bentham nos recordara Skinner e o liberalismo de Stuart Mill nos evocara Freud, é inevitável aqui pensar em Jung (cf., a propósito, a excelente análise de Rieff, 1990; cap. 5). Trata-se, é c laro, de uma restauração paradoxal, que pode passar pela fragmentação da identidade e pela mais desregrada extravagância. A fragmentação da identidade, de uma certa forma. é a condição e a conseqüência de um processo de crescimento e florescimento da personalidade, com todo o seu potencial de variação e com toda a recusa a subordinar-se aos moldes das representações convencionais. É típica do romantismo a tematização da dupla ou tripla identidade. Basta que se recorde a respeito a obra musical de Schumann. Quanto à extravagância, Binswanger ( 1977) ensina que se trata de uma posição existencial insustentável: na extravagância, o sujeito .. que foi além de todo limite razoável" coloca-se a uma altura na qual se vê encalacrado,sem forças para subir mais nem condições de descer para o terreno da humana co nvivência . Os que se fragmentam ou extravagam enlouquecem ou morrem, ou ambos, o que de fato foi o destino de diversos românticos notáveis. O romantismo levado a estas últimas conseqüências nunca foi mais que uma coisa de ' eleitos'. Aliás, sua força se nutria exatamente da condição de marginalidade que lhe era destinada numa sociedade que se pensava predominantemente a partir das concepções liberais e que já começava a se organizar, sob a égide do regime disciplinar. No entanto. a música composta pelos românticos, a poesia escrita por e les c os quadros que pintavam mantinham com o público uma relação contraditória: nela estava presente tanto o escândalo e a mútua agressão como a reverência e mesmo a veneração às grandes personalidades criativas: os gênios. A isto precisaremos retornar quando for o caso de tratar das relações do romantismo com o regime disciplinar. 142 Em formas e versões menos contundentes e dissonantes. as idéias e modos românti cos podem se r perfe itamente assimilados pelo liberalismo, trazendo-lhe os valores e metas que vão preencher o vazio deixado pela redução da vida social à dimensão puramente instrumental, racional e calculadora. Foi o que vimos no liberalismo de Stuart Mill: a defesa da liberdade negativa é complementada pela valorização da liberdade positiva. tal como aparece na idéia de um projeto de vida que permita o desabrochar das virtualidades, das tendências espontâneas ao desenvolvimento individual (neste aspecto, Stuart Mill parece estar mais próximo de Rogers do que de Freud, de quem se aproximava pelo lado da energétka e dos desejos). Creio que é esta maneira de conceber a vida social como condição mais ou menos favorável ao desenvolvimento pessoal e o uso deste critério para avaliar, tomar decisões e participar da vida em sociedade e, ainda mais, para se omitir de qualquer participação, que irá caracterizar a invasão do público pelo privado identificada por Sennet na segunda metade do século XIX. Enquanto no liberalismo original a cesura entre as esferas da privacidade e da publicidade tinha de ser conservada, já que a liberdade no espaço de não-interferência requer exatamente a clara delimitação do privativo, o liberalismo romantizado, embora se proponha também a sublinhar a invi olabilidade do privado, conduz a uma perspectiva de inversão: são os valores e procedimentos da privacidade que passam a se elevar como organizadores e jufzes da vida pública. Desta maneira, es taríamos diante de uma decorrência ' natural' do desinvestimento do social e do superínvestimento do privado de que já nos falara Tocqueville. Isto, entretanto, é apenas um lado da questão, e , talvez, o lado menos elucidativo do que se passou. O que não se pode esquecer são os vínculos positivos do pensamento e das práticas românticas com a sociedade administrada. Sabe-se. por exemplo. que as intervenções estatais visando limitar a liberdade de ação dos agentes econômicos e restringir, assim, o poder de auto-regulação espontânea dos mercados de bens e de trabalho foram promovidas por polfticos conservadores, aderidos às críticas românticas ao liberalismo e ao individualismo clássicos (Dewey. 1970). Isto quer dizer que os avanços da ordem administrativa não foram necessariamente obra do liberalismo benthamista, disciplinador, embora na verdade estas intervenções respondessem a demandas de ajustamento do sistema econômico e social e, a longo prazo, tenham 143 beneficiado as perspectivas tecnocrálicas (Polany, 1980). As idéias e iniciativas coletivistas que emergiram no início e se expandiram na segunda metade do século XIX, tanto no campo das'forças de 'esquerda' como nas de 'direila' , devem, desse modo, mais ao ideário romântico que a uma ideologia tecnocrática, consolidada quando as práticas administrativas já estavam bem instaladas. Nesta medida, romantismo e disciplina unem-se contra o liberalismo, embora esta união passe quase sempre desapercebida. Não só no terreno das leis e da grande polftica a coalizão anti libe- ral pode ser reconhecK!a. A personalidade carismática, capaz de exer- cer um controle supra-racional sobre os homens, de mobilizar suas pai- xões, conquistar suas mentes, modelar suas crenças, empolgar suas vontades e conduzir suas ações é na política e nas artes o retrato do gênio romântico. Uma novela de Balzac (Ursu/n Mirouet, I 841) relala uma história passada na década de 1830, na qual se contrapõe a figura de um velho cientista, antíclerical, amigo pessoal e aliado dos ilumin istas revolucionários, empírico e racional, incrédulo e autoconfiante, de um lado, e, do outro, os vestígios renascentes do mesmerismo. É a vingança de Mesmer contra a comissão de sábios ilustrados que o desmascarou: desta vez é o velho médico que se converte depois de assistir a uma sessão de telepatia. A descrição que Balzac ([1841] 1990; v. 5, p. 73) nos dá do grande mago é a completa apresentação da personalidade romântica em sua plenitude. O trecho é longo, mas vale a pena reproduzi-lo: 144 Naquele momento. exibia-se em Paós um homem exuaoroinário. Dotado. pela fé, de um incalculável poder e que dispunha das faculdades magnéticas em todas as suas aplicações. Esse grande desconhecido que ainda vive, não somente curava por si mesmo, à distância, as doenças mais cruéis, mais inveteradas, súbita e radicalmente, como outrora o salvador dos homens, mas ainda produzia instantaneamente os fenômenos mais curiosos do sonambulismo, subjugando as vontades mais rebeldes. A fisionomia deste desconhecido. que diz não depender senào de Deus e comunicar-se com os anjos, como Swedenborg, é a de um leão; brilha nela uma energia concentrada, irresistível. Seus traços. singulannente delineados. têm um aspecto terrível e fulminante. Sua voz que vem da profundidade do ser, é como que carregada de fluido magnético: penetra no ouvinte por todos os poros. Algo deste esplendor, desta vontade e deste poder é o que se procurava nos artistas, românticos, principalmente nos músicos, nos concertistas e, entre eles, de preferência nos solistas, com seus solos e seus sóis. A grande capacidade de subjugar era encontrada em particular no político de massas que faz sua aparição na época (tal como Sennelt analisa o poeta Lamartine 'enrolando' a multidão) e no regente de orquestra, outro emblema do romantismo. Dos músicos e regentes, nenhum como Wagner (1813-1883) personificou tão bem e deliberadamente o carisma e o projeto restaurador. Na carta de desagravo que Baudelaire ([1861] 1990; p. 43) lhe enviou depois de uma exibição fracassada em Paris, há repetidas menções à natureza subjugante desta música: Ele possui a arte de traduzir, por meio de gradações sutis, tudo que há de excessivo, imenso, ambicioso, no homem espiritual e natural. Parece, às vezes, ao escutarmos esta música ardcme e despótica, que reencontramos pintadas sobre o fundo das trevas. dilacerado pelo devaneio, as vertiginosas concepções do ópio. (Grifo meu) O elogio de Baudelaire nos traz de volta e condensado na figura de Wagner todo o idcário romântico, e por isso vale a pena reproduzi- lo um pouco mais: Jã observamos, creio. dois homens em Richard Wagner, o homem da ordem e o homem apaixonado. É do homem apaixonado. do homem de sentimento que se trata aqui. No menor de seus trechos ele inscreve sua personalidade com tanto ardor, que não será muito difícil realizar esta procura de sua qualidade principal. Desde o princípio, uma consideração surpreendera-me vivamente: é que na parte voluptuosa e orgíaca da abertura da Tannhãuser, o artista pusera tanta força, desenvolvera tanta energia quanto na pintura da misticidade que caracteriza a abertura de Lohengrin ( ... )O que me parece, portanto. antes de mais nada, marcar de maneira inesquecível a música deste mestre é a intensidade nervosa, a violência nas paixões e na vontade( ... ) Tudo que implicamas palavras: vontade, desejo, concentração, intensidade nervosa, explosão, sente-se e faz-se adivinhar em suas obras. Não creio me iludir nem enganar quem quer que seja ao afinnar que vejo ar a5 principais caracterfstícas do fenômeno que denomi~amos gênio. (lbid.; p. 93) Nem todos os artistas românticos tiveram a capacidade de Wagner para conciliar a ordem e a paixão na criação e na realização de obras de 145 beneficiado as perspectivas tecnocrálicas (Polany, 1980). As idéias e iniciativas coletivistas que emergiram no início e se expandiram na segunda metade do século XIX, tanto no campo das'forças de 'esquerda' como nas de 'direila' , devem, desse modo, mais ao ideário romântico que a uma ideologia tecnocrática, consolidada quando as práticas administrativas já estavam bem instaladas. Nesta medida, romantismo e disciplina unem-se contra o liberalismo, embora esta união passe quase sempre desapercebida. Não só no terreno das leis e da grande polftica a coalizão anti libe- ral pode ser reconhecK!a. A personalidade carismática, capaz de exer- cer um controle supra-racional sobre os homens, de mobilizar suas pai- xões, conquistar suas mentes, modelar suas crenças, empolgar suas vontades e conduzir suas ações é na política e nas artes o retrato do gênio romântico. Uma novela de Balzac (Ursu/n Mirouet, I 841) relala uma história passada na década de 1830, na qual se contrapõe a figura de um velho cientista, antíclerical, amigo pessoal e aliado dos ilumin istas revolucionários, empírico e racional, incrédulo e autoconfiante, de um lado, e, do outro, os vestígios renascentes do mesmerismo. É a vingança de Mesmer contra a comissão de sábios ilustrados que o desmascarou: desta vez é o velho médico que se converte depois de assistir a uma sessão de telepatia. A descrição que Balzac ([1841] 1990; v. 5, p. 73) nos dá do grande mago é a completa apresentação da personalidade romântica em sua plenitude. O trecho é longo, mas vale a pena reproduzi-lo: 144 Naquele momento. exibia-se em Paós um homem exuaoroinário. Dotado. pela fé, de um incalculável poder e que dispunha das faculdades magnéticas em todas as suas aplicações. Esse grande desconhecido que ainda vive, não somente curava por si mesmo, à distância, as doenças mais cruéis, mais inveteradas, súbita e radicalmente, como outrora o salvador dos homens, mas ainda produzia instantaneamente os fenômenos mais curiosos do sonambulismo, subjugando as vontades mais rebeldes. A fisionomia deste desconhecido. que diz não depender senào de Deus e comunicar-se com os anjos, como Swedenborg, é a de um leão; brilha nela uma energia concentrada, irresistível. Seus traços. singulannente delineados. têm um aspecto terrível e fulminante. Sua voz que vem da profundidade do ser, é como que carregada de fluido magnético: penetra no ouvinte por todos os poros. Algo deste esplendor, desta vontade e deste poder é o que se procurava nos artistas, românticos, principalmente nos músicos, nos concertistas e, entre eles, de preferência nos solistas, com seus solos e seus sóis. A grande capacidade de subjugar era encontrada em particular no político de massas que faz sua aparição na época (tal como Sennelt analisa o poeta Lamartine 'enrolando' a multidão) e no regente de orquestra, outro emblema do romantismo. Dos músicos e regentes, nenhum como Wagner (1813-1883) personificou tão bem e deliberadamente o carisma e o projeto restaurador. Na carta de desagravo que Baudelaire ([1861] 1990; p. 43) lhe enviou depois de uma exibição fracassada em Paris, há repetidas menções à natureza subjugante desta música: Ele possui a arte de traduzir, por meio de gradações sutis, tudo que há de excessivo, imenso, ambicioso, no homem espiritual e natural. Parece, às vezes, ao escutarmos esta música ardcme e despótica, que reencontramos pintadas sobre o fundo das trevas. dilacerado pelo devaneio, as vertiginosas concepções do ópio. (Grifo meu) O elogio de Baudelaire nos traz de volta e condensado na figura de Wagner todo o idcário romântico, e por isso vale a pena reproduzi- lo um pouco mais: Jã observamos, creio. dois homens em Richard Wagner, o homem da ordem e o homem apaixonado. É do homem apaixonado. do homem de sentimento que se trata aqui. No menor de seus trechos ele inscreve sua personalidade com tanto ardor, que não será muito difícil realizar esta procura de sua qualidade principal. Desde o princípio, uma consideração surpreendera-me vivamente: é que na parte voluptuosa e orgíaca da abertura da Tannhãuser, o artista pusera tanta força, desenvolvera tanta energia quanto na pintura da misticidade que caracteriza a abertura de Lohengrin ( ... )O que me parece, portanto. antes de mais nada, marcar de maneira inesquecível a música deste mestre é a intensidade nervosa, a violência nas paixões e na vontade( ... ) Tudo que implicam as palavras: vontade, desejo, concentração, intensidade nervosa, explosão, sente-se e faz-se adivinhar em suas obras. Não creio me iludir nem enganar quem quer que seja ao afinnar que vejo ar a5 principais caracterfstícas do fenômeno que denomi~amos gênio. (lbid.; p. 93) Nem todos os artistas românticos tiveram a capacidade de Wagner para conciliar a ordem e a paixão na criação e na realização de obras de 145 arte lotais que colhem e orquestram todos os sentidos do público e conduzem emoções e vontades despoticamente. Muitas das obras românticas são, antes, testemunhos dos processos de fragmentação de identidades sob o impacto do florescimento da personalidade do artista (que eu conheça, apenas a Comédia humana de Balzac revela uma capacidade de subordinar uma infinidade de caracteres, traços e destinos a uma concepção ordenada e subjugan te da vida comparável à de Wagner; contudo, mesmo a( não se encontram os efeitos despóticos das óperas wagnerianas). De qualquer modo, a intenção restauradora esteve sempre presente, e as obras de Wagner apenas realizam esta imen!fão profunda de todo o movimento. Nesta realização, porém, ressalta, como se viu no dis~;urso de Baudelaire, a vinculação subterrânea do romantismo, mesmo o mais revolucionário (era, por sinal, o caso de Wagner), com a docílização dos homens subj ugados pela exibição da força, da vontade e do poder. Baudelaire. inclusive, com a finalidade de demonstrar que as posições políticas do autor não contam para nada na apreciação de sua música, observa, en passam, que Wagner che ga a Paris a convite de Luís Napoleão e revel a, candidamente: "O próprio sucesso de Wagner não deu razão a suas previsões e a suas esperanças [revolucionárias], pois foi preciso, na França, a ordem de um dlspota para fazer executar a obra de um revolucionário" (lbid., p. 47). O território da ignorância No século XIX conviveram três pólos de idéias e práticas de organização da vida em sociedade: o liberalismo e os romantismos em suas diversas versões e o regime d iscipli nar. este acompanhado progressivamente dos seus discursos legitimadores, muitos dos quais de extração romântica e outros de extração utilitária. Falar em convivência, no entanto, e mesmo de convivência complexa é ainda dizer pouco. Considerando-se as relações de complementaridade e conflito que unem e separam cada um destes pólos dos outros dois, podemos conceber a formação de um novo território no qual as experiências individuais e coletivas se estabelecem, constroem e ganham sentido. Trata-se de um espaço triangular como no esquema abaixo 146 L D w Ao pólo L, de liberalismo, pertencem os valores e práticas do individualismo ilustrado. Temos, então, como ideal, o reinado do ·eu' soberano com identidades nitidamente delimitadas, autocontidas, autodominadas e autoconhecidas, capazes de se contrastarem umas em relação às outras, capazes de permanência e invariância ao longo do tempo e das condições. Ternos, ainda aqui, uma clara ~eparação ~ntre as esferas da privacidade e da publicidade: nesta dommam as leas, as convenções, o decoroe o princípio da racionalidade e da funcionalidade; à outra caberia o exercício da liberdade individual concebida corno tenitório livre da interferência alheia. Ao pólo R, de romantismo . pertencem os valores da espontaneidade impulsiva, com identidades debilmente delimitadas, porque atravessadas pelas forças da natureza, da coletividade e_ da história, que se fazem ouvir de 'dentro' e não são impostas pelos háb1tos e pelas conveniências civilizadas. A potência des~s força~ promo:e uma restauração do contato do homem com as ongens pre-pessoaas, pré-racionais e pré-civilizadas do 'eu', com os elementos da animal i~, da infância etc. Esta restauração propulsiona, idealmente, uma especte de autodesenvolvimento que se faz à custa dos limites e da unidade identitária e que é marcado por crises, experiências de desagregação, adoecimento, loucura e morte. Finalmente, ao pólo D, de disciplina, pertencem as no vas tecnologias de poder, tanto as que se exercem sobre identidades reconhecíveis e manipuláveis segundo o princípio da razão calculadora, funcáonal e administrativa, como as que se abatem sobre identidades debilme nte estruturadas e passívei s de manipulação mediante a 147 arte lotais que colhem e orquestram todos os sentidos do público e conduzem emoções e vontades despoticamente. Muitas das obras românticas são, antes, testemunhos dos processos de fragmentação de identidades sob o impacto do florescimento da personalidade do artista (que eu conheça, apenas a Comédia humana de Balzac revela uma capacidade de subordinar uma infinidade de caracteres, traços e destinos a uma concepção ordenada e subjugan te da vida comparável à de Wagner; contudo, mesmo a( não se encontram os efeitos despóticos das óperas wagnerianas). De qualquer modo, a intenção restauradora esteve sempre presente, e as obras de Wagner apenas realizam esta imen!fão profunda de todo o movimento. Nesta realização, porém, ressalta, como se viu no dis~;urso de Baudelaire, a vinculação subterrânea do romantismo, mesmo o mais revolucionário (era, por sinal, o caso de Wagner), com a docílização dos homens subj ugados pela exibição da força, da vontade e do poder. Baudelaire. inclusive, com a finalidade de demonstrar que as posições políticas do autor não contam para nada na apreciação de sua música, observa, en passam, que Wagner che ga a Paris a convite de Luís Napoleão e revel a, candidamente: "O próprio sucesso de Wagner não deu razão a suas previsões e a suas esperanças [revolucionárias], pois foi preciso, na França, a ordem de um dlspota para fazer executar a obra de um revolucionário" (lbid., p. 47). O território da ignorância No século XIX conviveram três pólos de idéias e práticas de organização da vida em sociedade: o liberalismo e os romantismos em suas diversas versões e o regime d iscipli nar. este acompanhado progressivamente dos seus discursos legitimadores, muitos dos quais de extração romântica e outros de extração utilitária. Falar em convivência, no entanto, e mesmo de convivência complexa é ainda dizer pouco. Considerando-se as relações de complementaridade e conflito que unem e separam cada um destes pólos dos outros dois, podemos conceber a formação de um novo território no qual as experiências individuais e coletivas se estabelecem, constroem e ganham sentido. Trata-se de um espaço triangular como no esquema abaixo 146 L D w Ao pólo L, de liberalismo, pertencem os valores e práticas do individualismo ilustrado. Temos, então, como ideal, o reinado do ·eu' soberano com identidades nitidamente delimitadas, autocontidas, autodominadas e autoconhecidas, capazes de se contrastarem umas em relação às outras, capazes de permanência e invariância ao longo do tempo e das condições. Ternos, ainda aqui, uma clara ~eparação ~ntre as esferas da privacidade e da publicidade: nesta dommam as leas, as convenções, o decoro e o princípio da racionalidade e da funcionalidade; à outra caberia o exercício da liberdade individual concebida corno tenitório livre da interferência alheia. Ao pólo R, de romantismo . pertencem os valores da espontaneidade impulsiva, com identidades debilmente delimitadas, porque atravessadas pelas forças da natureza, da coletividade e_ da história, que se fazem ouvir de 'dentro' e não são impostas pelos háb1tos e pelas conveniências civilizadas. A potência des~s força~ promo:e uma restauração do contato do homem com as ongens pre-pessoaas, pré-racionais e pré-civilizadas do 'eu', com os elementos da animal i~, da infância etc. Esta restauração propulsiona, idealmente, uma especte de autodesenvolvimento que se faz à custa dos limites e da unidade identitária e que é marcado por crises, experiências de desagregação, adoecimento, loucura e morte. Finalmente, ao pólo D, de disciplina, pertencem as no vas tecnologias de poder, tanto as que se exercem sobre identidades reconhecíveis e manipuláveis segundo o princípio da razão calculadora, funcáonal e administrativa, como as que se abatem sobre identidades debilme nte estruturadas e passívei s de manipulação mediante a 147 evocação calculada de forças s uprapessoais encarnadas em figuras carismáticas o u projetadas e m lendas e mitos saudosist as o u revolucionários. Estes pólos atraem-se e repelem-se. As linhas cheias ligando-os dois a dois correspondem às suas mais ou m enos dissimuladas relações de afinidade e complementaridade. Para nosso uso, podemos designar estru; superfícies com o nome de alguns dos personagens da história. Teríamos, assim, uma superfície Betrtham ligando o liberali!\mo ao regime disciplinar. Nesta superticie os procedimentos disciplinares encontram- se com seus objetos precípuos - os indivíduos Jivres -e, na direção oposta, os átomos sociais encontram-se com seus controles próprios. Todos saem fortalecidos deste encontro. A linha que liga o liberalismo ao romantismo pode ser designada como superfície StUilrt Mill. Nela os ingredi e ntes românticos alimentam os projetos de vida dos indivíduos, e estes, por sua vez, acolhem os elementos românticos na intimidade de seus lares e, mais ainda, de suas fantasias . Novamente, aqui. todos se revigoram nesta coalizão. Finalmente, a linha que liga a disciplina ao romantismo poderia ser chamada de superfície Wagner. Nesta superfície articulam-se as forças e o poder da Vida e da Vontade (tudo em maiúsculas, como convém) aos procedimentos de contro le carismático e docilizadores da disciplina. Obviamente, não são os mesmos aspectos de cada pólo q ue entram em contato com um ou outro dos dois outros vértices. Há afinidades entre, por exemplo, determinados aspectos do individualismo liberal e as práticas disciplinares e entre outros aspectos do liberalismo com as idéias e modos românticos. O mesmo vale para as outras combinações. Isto significa que, paralelamente às linhas que ligam entre si os três pólos, há outras sinalizando a su~ mútua rejeição. Rejeição. porém, não consum ada numa separação efetiva. D esta tensão persistente gera-se um território novo e, no século XIX, ainda sem nome. É da natureza des te e spaço que e le seja um espaço de desconhecimento. As relações de coali zão e de conflito que o constituem sobrev ivem numa certa clandestinidade. Em particular, a superfície Bentham e, mais ainda, a superfície Wagner, ou seja, as afinidades entre liberalismo e romantismo, de um lado, e os procedimentos disciplinares, do outro, são alvo de uma séria interdição cognitiva. As vidas vivida.<; no interior deste espaço são vidas cindidas. sobre as quais pesam os véus da ignorância e do esquecimento. 148 As di versas versões contemporâneas da ps icologia. que se cstahclecerão nesse território no final do século XIX c infcio do XX (quando o território da ignorânda sofrer algumas transfo rmações decisivas), vão se aproximar mais ou menos de uma das três superfícies. Há psicologias claramente próximas da superfície Bentham, como os comportamcntalismos di sciplinadores.Há outras mais próximas da superfície Sruart Mill; penso , aqui, como exemplo, em algumas leituras americanas da psicanálise, como a ·psicologia do se/f, de Kohut. Há, fina lmente, as que se aproximam da superfície Wagner, libertárias, e xpressivistas, profundamente domesticadoras; aqui se encaixam todos os 'gurus', bruxos c 'fazedo(es de cabeça', q uase que indepen- dentemente de suas idéias. se é que as têm. Ao longo de cada superfície será ainda possível diferenóar as escolas psicológicas ou as diferentes leituras de uma mesma escola pela sua maior ou menor distância em relação a cada vértice do triângulo. Por exemplo , sobre a superfíc ie Stuart Mill podemos situar a 'psicanálise do ego' próxima ao vértice liberal c a 'terapia não-diretiva' de Rogers, próxima ao vértice romântico. Paradoxalmente, esla maior proximidade R coloca Rogers, sem que isto possa ser facilmente acei to e compreendido pelos rogerianos, mais próximo à superfície Wagner (recorde-se, porém, os 'espetáculos de não-diretividade' em que Rogers exibia seus 'solos' de compreensão cmpática diante de uma platéia de disdpulos 'semimesmerizados'}. Em contrapartida, também quem se aproxima muito do pólo liberal está se acercando da superfície Bentham: os pressupostos funcionali stas e a índole adaptativa da psicanálise do ego, por exemplo, já foram sobejamente explicitados. Algumas destas psicologias p<~rcccm perfeitamente s atisfeitas consigo ~esmas e dispostas a contribuir para o esquecimento do próprio processo constitutivo do território que ocupam. É realmente d ifícil para quem se !\itua muito próximo a uma das s uperfícies admitir seus compromissos com o pólo de que mais se distanciou e que, no e ntanto, é um elemento constitutivo do seu territóri o. Outras, no e ntanto, parecem interessadas em recordar. Será possível, contudo, empreender a recordação como tarefa crítica conscrvand<rse no lugar do psicólogo? 149 evocação calculada de forças s uprapessoais encarnadas em figuras carismáticas o u projetadas e m lendas e mitos saudosist as o u revolucionários. Estes pólos atraem-se e repelem-se. As linhas cheias ligando-os dois a dois correspondem às suas mais ou m enos dissimuladas relações de afinidade e complementaridade. Para nosso uso, podemos designar estru; superfícies com o nome de alguns dos personagens da história. Teríamos, assim, uma superfície Betrtham ligando o liberali!\mo ao regime disciplinar. Nesta superticie os procedimentos disciplinares encontram- se com seus objetos precípuos - os indivíduos Jivres -e, na direção oposta, os átomos sociais encontram-se com seus controles próprios. Todos saem fortalecidos deste encontro. A linha que liga o liberalismo ao romantismo pode ser designada como superfície StUilrt Mill. Nela os ingredi e ntes românticos alimentam os projetos de vida dos indivíduos, e estes, por sua vez, acolhem os elementos românticos na intimidade de seus lares e, mais ainda, de suas fantasias . Novamente, aqui. todos se revigoram nesta coalizão. Finalmente, a linha que liga a disciplina ao romantismo poderia ser chamada de superfície Wagner. Nesta superfície articulam-se as forças e o poder da Vida e da Vontade (tudo em maiúsculas, como convém) aos procedimentos de contro le carismático e docilizadores da disciplina. Obviamente, não são os mesmos aspectos de cada pólo q ue entram em contato com um ou outro dos dois outros vértices. Há afinidades entre, por exemplo, determinados aspectos do individualismo liberal e as práticas disciplinares e entre outros aspectos do liberalismo com as idéias e modos românticos. O mesmo vale para as outras combinações. Isto significa que, paralelamente às linhas que ligam entre si os três pólos, há outras sinalizando a su~ mútua rejeição. Rejeição. porém, não consum ada numa separação efetiva. D esta tensão persistente gera-se um território novo e, no século XIX, ainda sem nome. É da natureza des te e spaço que e le seja um espaço de desconhecimento. As relações de coali zão e de conflito que o constituem sobrev ivem numa certa clandestinidade. Em particular, a superfície Bentham e, mais ainda, a superfície Wagner, ou seja, as afinidades entre liberalismo e romantismo, de um lado, e os procedimentos disciplinares, do outro, são alvo de uma séria interdição cognitiva. As vidas vivida.<; no interior deste espaço são vidas cindidas. sobre as quais pesam os véus da ignorância e do esquecimento. 148 As di versas versões contemporâneas da ps icologia. que se cstahclecerão nesse território no final do século XIX c infcio do XX (quando o território da ignorânda sofrer algumas transfo rmações decisivas), vão se aproximar mais ou menos de uma das três superfícies. Há psicologias claramente próximas da superfície Bentham, como os comportamcntalismos di sciplinadores. Há outras mais próximas da superfície Sruart Mill; penso , aqui, como exemplo, em algumas leituras americanas da psicanálise, como a ·psicologia do se/f, de Kohut. Há, fina lmente, as que se aproximam da superfície Wagner, libertárias, e xpressivistas, profundamente domesticadoras; aqui se encaixam todos os 'gurus', bruxos c 'fazedo(es de cabeça', q uase que indepen- dentemente de suas idéias. se é que as têm. Ao longo de cada superfície será ainda possível diferenóar as escolas psicológicas ou as diferentes leituras de uma mesma escola pela sua maior ou menor distância em relação a cada vértice do triângulo. Por exemplo , sobre a superfíc ie Stuart Mill podemos situar a 'psicanálise do ego' próxima ao vértice liberal c a 'terapia não-diretiva' de Rogers, próxima ao vértice romântico. Paradoxalmente, esla maior proximidade R coloca Rogers, sem que isto possa ser facilmente acei to e compreendido pelos rogerianos, mais próximo à superfície Wagner (recorde-se, porém, os 'espetáculos de não-diretividade' em que Rogers exibia seus 'solos' de compreensão cmpática diante de uma platéia de disdpulos 'semimesmerizados'}. Em contrapartida, também quem se aproxima muito do pólo liberal está se acercando da superfície Bentham: os pressupostos funcionali stas e a índole adaptativa da psicanálise do ego, por exemplo, já foram sobejamente explicitados. Algumas destas psicologias p<~rcccm perfeitamente s atisfeitas consigo ~esmas e dispostas a contribuir para o esquecimento do próprio processo constitutivo do território que ocupam. É realmente d ifícil para quem se !\itua muito próximo a uma das s uperfícies admitir seus compromissos com o pólo de que mais se distanciou e que, no e ntanto, é um elemento constitutivo do seu territóri o. Outras, no e ntanto, parecem interessadas em recordar. Será possível, contudo, empreender a recordação como tarefa crítica conscrvand<rse no lugar do psicólogo? 149 Notas I . A conexão entre Bentham e Skinner é praticamente óbvia para quem conheça os dois autores. Para os que não conhecem o pensamento skinneriano, sugiro a leitura de qualquer texto de Skinner que trate da análise ou do delineamento de sociedades e culturas como, por exemplo, os artigos sobre o tema publicados em Comingências de reforçamento e o romance utópico Walden /1. Uma excelente análise do pensamento político do autor foi realizada por Maria Amália Pie Abib Andery (1990). 2. De muito me valeu. entre outros, o trabalho de I. Berlin ( 1981) sobre Stuan Míll no contexto da história do liberalismo. 3. A estas razões seria também necessário acrescentar as oriundas de uma nova conjuntura política em que a classe operária, através de sindicatos e partidos de massa, começa a ter uma presença política substancial e que exige uma mais eticieme e organizada presença política e repressiva do Estado burguês. 4. Nesta interpretação do romantismo, além do contato com as obras literárias c musicais de autores da época e dos elementos oferecidos por Gusdorf ( 1982 e 1984), tirei grande proveito do livro de Morse Peckham. Beyond the tragic visíon. The quest for idemity in lhe ni11etecnth ceniury•.Este ensaio de Peckham, ao menos entre nós muito pouco divulgado, será também uma fonte indispensável para o próximo capítulo. 5. Esta questão recebeu um tratamento original por Sennen (1978), em que me inspirei para a presente análise. 150 PARA ALÉM DO ESTILO. UM LUGAR PARA A PSICOLOGIA No capítulo IV deste livro l"onnulci a tese de que ao longo de todo o século passado os processos de subjetivação enraizaram-se em um território triangular balizado pelos valores e procedimentos iluministas, pelos modos românticos e pelas novas práticas de exercício de poder. que, no conjunto, constituem o regime disciplinar radiografado por Foucault ( 1977). Vimos. então. como estes três vértices criam entre si vínculos complexos, marcados por mútuas afinidades c mútuas oposições. O caráter constitucionalmente conflitivo deste espaço o tornaria um território de desconhecimento, já que qualquer posição dentro dele contém em si aspectos interditados à consciência reflexiva. Ora, o que vai caracterizar a segunda metade do século XIX, prolongando-se numa trajetória sinuosa, · mas reconhecível ao longo do século XX, são algumas alterações nos pesos específicos, nas formas de manifestação e modos de operação daqueles pólos. Em linhas gerais, expandiram-se e aprofundaram-se as práticas disciplinares à medida que se foi configurando o que alguns autores denominam de sociedade administrada ou capitalismo tardio (Haberrnas, 1978 e 1981). Os procedimentos de exame, avaliação, programação e controle foram invadindo de forma insidiosa todos os refúgios em que os indivíduos procuravam se abrigar do liberalismo e em que procuravam se nutrir e desenvolver com espontaneidade as personalidades românticas. Com isso. a separação entre esferas pública e privada perdeu muito da sua 151