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Lu ís C láudio Mendonça 
Figueiredo, em A inveru;ão do 
psico!ó,::ico - Quatro stculos de 
sul~;e tivação, problematiz.a o 
modo de s uh_ictivaçf1o contempo-
râneo, he m como as di versas 
concepçôcs contemporâneas da 
psicologia, como tendo se cons-
tituído num momento em que o 
ciclo d a rnodemidadc se encon-
t rd em pleno apogeu, ao mesmo 
tempo que já se anu nc ia sua <.t is-
solução. Para o autor, a expe-
riência suhjctiva pr6pria da mo-
dernidade deve sua emergênc ia a 
uma intensificação da vivência 
da diversidade e da mptura, que 
acontece desde o final do século 
XV, acompanhada de d iferentes 
tentativas de ordenação e de 
costura, que vão desembocar na 
formação daquilo que se con-
vencionou chamar de ·sujeito 
mode rno '. I~ este sujeito que, no 
fi nal do século XIX, vive seu 
apogeu e, ao mesmo tempo , o 
início de sua dissohu~ão : c omeça 
a desmoronar a ilusão de que o 
homem ocupa o centro do mun-
do e que, desde esse lugar, e le 
tudo vê c tudo pode, ilusão ali-
cen;ada no expurgo do cao~. O 
'psicológico', segu ndo o auto r. 
teria sido inventado e.x:namente 
a partir do que fo i expurgad o 
deste sujeito supostament~ unitá-
rio e soberano, e que se consti-
tuiu no objeto das psicologias. 
Para desenvolver estas idé-
ias, o autor rcalil.a uma instigan-
te investigação de fi!!uras que 
veiculam uma visão negativa do 
caos, rrodul.idas desde o século 
XVI ao XIX, na li teratura , na 
filosofia, na pintura e na música. 
Lu ís Cláudio \"lcndon<.;a 
Figueiredo, na.-.cido no R i o de 
Janeiro, em 1945, é psiçóloco 
mestre c doutor em ps icolo~i~ 
pela L:SP. C professor na L:niv~r­
sidadc deSão Pauloena f' l!C -SI', 
aonde coo rdena os cursos de 
Mestrado c Doutorado em Psi-
cologia Clínica: também diri <>e c- • 
na lJ]'.: Jr>, o Centro de Pesquisa 
em Psicologia e EducAção. F. 
autor de Psicologia, uma intro-
duçiW - Uma visão histórica da 
psicologia como cié11cia ( bluc, 
1991 ) c Matrizes do pensamento 
psicoló,::ico (Vozc~. JI.J<-J I 1, além 
de diversos trabalhos em rcvisl<ts 
cspcc i ai izadas. 
.'\ lista <:Gmp lcta Jas obra.-. pu-
hlicadas pela Ld itor:1 Escuta e 
al~uns t írulos do <.:atálogo da 
E.duc enc<)ntr::un-sc no final 
deste I ivr0. 
Notas 
I. Também E. Cassirer em Filosofia de la ílustración ( 1984 ), principalmente 
no capítulo dedicado às idéias estéticas, dedica uma especial atenção aos 
elementos românticos no ideário setecenlista. Este livro, o de Gusdorf e o 
de Gay (1977) foram as mais importantes fontes sobre concepções e 
perspectivas culturais do século XVIII. 
2. Vali-me, ainda. do texto de J. Habennas. Mudança estrutural da esfera 
pública ( 1984 ), que, por sua vez, muito deve à obra de Koselleck. 
3. Este estado de coisas e seus produtos políticos e ideológicos na Inglaterra 
do século XVII foram o tema do clássico de C. Hill. O mwulo de pollla· 
cabeça (1987 ). 
4. Embora os romances ingleses da época sejam os modelos e exemplares 
mais bem-acabados do novo gênero, a difusão do romance alcançou a 
literatura francesa e alemã; a adoção do estilo epistolar, por seu turno. foi 
mais do que mera 'imitação', e algumas das obras-primas da literatura 
universal seguiram este modelo. como As ligações perigosas de C. de 
Laclos ( 1782). na França. e Os .tofdmmtos do jovem Werther de Goethe 
(1774), na Alemanha. 
5. As análises desenvolvidas a seguir apóiam-se, mas não coincidem. com as 
de Ellemberger (1976) e de Van Den Herg (1974). 
6. Convém recordar que Mesmer era membro de Uma loja maçônica e que a 
maçonaria. apesar de combatida durante o tempo da imperatriz Maria 
Tereza, havia prosperado, fazendo adeptos no Império Austro-húngaro, 
entre burgueses, intelectuais artistas e mesmo clérigos e aristocratas. Consta 
que o próprio imperador José 11, que sucedeu Maria Tereza, aproximou-
se desta sociedade secreta. 
7. O ancien régime foi em toda a parte um grande gerador de espetáculos, e 
a versão austríaca do absolutismo, que se consolidou no século XVIII e 
sobreviveu ao absolutismo francês, notabilizou-se pela ênfase na 
teatralidade, no feérico, no ilusionista. Por outro lado, a reunião mesmeriana 
de elemenros iluministas, românticos e ancíe11 régime esteve presente, 
também - mas aqui num equilíbrio sublime -, na música do classicismo 
austríaco. composta por Haydn e pQr Mozart. este, por sinal. maçom e 
amigo de Mesmer, na casa de quem encenou pela primeira vez a ópera 
Bastien c Brutienne (cf. Brion. 1991; e Caznóck. 1992). 
128 
A GESTAÇÃO DO ESPAÇO PSICOLÓGICO 
NO SÉCULO XIX: LIBERALISMO, 
ROMANTISMO E REGIME DISCIPLINAR 
O século XIX pode ser e tem sido caracterizado como o do apogeu 
do liberalismo e do individualismo como princípios de organização 
econômica e política (cf., p. ex:., Polany, 1980). É sabido, também, que 
no campo das artes e da filosofia o século XIX assistiu ao pleno 
desabrochar dos movimentos românticos (cf.. p. ex:., Gusdorf, 1982 e 
l984). Finalmente, desde Foucault ( 1977) o mesmo século pode ser 
identificado como o do início de uma sociedade organizada pelo regime 
disciplinar. Poderíamos pensar que uma destas caracterizações deva 
prevalecer sobre as demais, ou ainda que elas se apliquem a diferentes 
nações ou subculturas, ou, finalmente, que correspondam a momentos 
distintos da história do Ocidente. Meu objetivo neste capítulo será o 
de defender a tese de que as três formas de entender o século XIX são 
legítimas simultaneamente, embora, está claro, contraditoriamente. Os 
deslinos do liberalismo, do romantismo e das práticas disciplinares foram 
bastante diversos; no entanto, nenhum deles perdeu de todo a vigência 
até os nossos dias, em que pesem as transfonnações porque passaram 
e os diferentes pesos que foram assumindo na cultura contemporânea. 
Pretendo ainda sugerir- deixando o desenvolvimento dos argumentos 
para uma outra ocasião - que o espaço psicológico, tal como hoje o 
conhecemos, nasceu e vive precisamente da articulação conflitiva 
daquelas três formas de pensar e praticar a vida em sociedade. 
As vicissitudes do liberammo e do individualismo 
O liberalismo na sua versilo original. formulada em suas linhas 
básicas por J ohn Locke ( 1632-1704 ), sustentava a tese dos direitos 
129 
naturais do indivíduo a serem defendidos e consagrados por um Estado 
nascido de um contrato livremente firmado entre indivíduos autônomos 
para garantir seus interesses. Ao Estado não cabia intervir e administrar 
a vida particular de ninguém, seja no plano das opiniões, seja no da 
vida doméstica, seja no dos negócios, mas apenas regular as relações 
entre indivíduos para que nenhum tivesse seus direitos violados pelos 
demais. Era fundamental, portanto, preservar os espaços da privacidade 
contra os abusos eventuais dos próprios poderes públicos, limitar o 
alcance ·e a força destes poderes: o monopólio estatal do poder de fazer 
justiça e punir deveria estar completamente subordinado à função de 
salvaguarda dos direitos individuais, entre os quais se destacavam os 
direitos à liberdade e à propriedade. Para manter o Estado nessa condição 
limitada, convinha separar os poderes (Poder Executivo, Legislativo e 
Judiciário), distribuí· los regionalmente (conforme o preconizado pela 
doutrina federali sta) e valorizar, à medida do possível, as tradições 
locais e as experiências particulares, com ê nfase na jurisprudência e na 
consideração de t:asos concretos, em detrimento de leis gerais e 
racionalmente construídas. Nem todas estas decorrências estavam 
previstas por Locke, mas todas pertencem ao mais genuíno espírito do 
liberalismo clássico, no qual o empirismo epistemológico e o respeito 
ao espaço privado são as duas faces do mesmo apego ao particular, ao 
individual. 
Foram estas as idéias políticas que criaram o terreno favorável para 
o pleno desenvolvimento de uma sociedade individualista e atomizada, 
em que os agentes econômicos se encontravam e se deixavam articular 
uns com os outros nos espaços livres dos mercados de bens e de 
trabalho. O liberalismo econôm ico (cf. Lukes, 1975;e Polany, 1980) 
defende a redução radical da presença do Estado na vida econômica, 
confiando de forma absoluta na iniciativa e na racionalidade individual 
dos agentes e na função auto-regulativa do mercado como aS condições 
suficientes para o progre~so e para a estabilidade da vida social. Ora, 
somente no final do século XVIll e no início do XIX a doutrina do 
liberalismo econômico e a auto-regulação da sociedade pelo mercado 
vieram à luz. 
No entanto, antes mesmo que o liberalismo alcançasse este nível 
de elaboração, havia surgido uma versão das idéias liberais que dava 
ao liberalismo um novo rumo que, progressivamente , o fo i 
130 
descaracterizando. Isto ocorreu através da obra de Jeremy Bentham 
( 1748- 1832), o criador do 'utilitarismo' . De uma certa fonna, pensar em 
termos de eficiência, interesse e uti lidade pertencia também à tradição 
liberal. Contudo. o utilitarismo irá substituir a crença e a defesa 
intransigente dos direitos naturais dos indivíduos pelo cálculo racional 
da fe licidade. Em outras palavras, a índole empírista do liberalismo vai 
ser aos poucos substituída pelo construtivismo racionalista. O Estado 
já não se ma ntém nos limi tes de suas antigas funções, mas vai 
gradativamente assumindo a de intervir positivamente na administração 
da vida social. ··A missão dos governantes consiste em promover a 
felicidade da sociedade, punindo e recompensando" {Bentharn [1789) 
1989; p. 19). 
Há. ainda, uma vertente libertária no movimento enquanto se trata 
de derrubar le is e tradições que obstruem a livre ação individual , a 
defesa pelos agentes sociais de seus interesses e felicidades . Todavia, 
mesmo este combate já não se centra na questão da liberdade e dos 
direitos naturais, senão que nas conseqüências positivas ou negativas 
das leis e das ações que propiciam ou proíbem. "O objetivo geral que 
caracteriza todas as leis ou que deveria caracterizá-las consiste em 
aumentar a feli cidade global da coletividade" (lbid.; p. 59). 
Por aí se vê que não apenas a ê nfase na garantia de direitos é 
substitu ída pe la ênfase nas conseqüências, com o estas são avaliadas 
em termos de 'coletividade' , de forma a, supostamente, favorecer a 
maioria. mesmo que em prej uízo de algun s indivíduos. Trata-se, 
efetivamente, de legislar e justificar as intervenções do poder público 
em termos da soma total da felicidade. Embora as perdas e ganhos em 
felicidade de cada indivíduo sejam as unidades básicas de cálculo - o 
que traduz uma posição predominantemente individualista -. o que 
importa ao final é reunir as felicidades de cada um no grande balanço 
coletivo da soma total de felicidade: 
A comunidade constitui uin corpo fi ctfcio, composto de pessoas 
individuais ( ... )Qual é nesse caso o interesse da comunidade? 
~inútil falar do interesse da comunidade se nilo se compreender qual é o 
interesse do indivíduo. Diz-se que uma coisa promove o interesse de um 
indivfduo, ou favorece ao interesse de um indivíduo quando tende a 
aumentar a soma lotai dos seus prazeres, ou então, o que vale afirmar o 
mesmo, quando tende a diminuir a soma total de suas dores. (lbíd.; p. 4) 
131 
naturais do indivíduo a serem defendidos e consagrados por um Estado 
nascido de um contrato livremente firmado entre indivíduos autônomos 
para garantir seus interesses. Ao Estado não cabia intervir e administrar 
a vida particular de ninguém, seja no plano das opiniões, seja no da 
vida doméstica, seja no dos negócios, mas apenas regular as relações 
entre indivíduos para que nenhum tivesse seus direitos violados pelos 
demais. Era fundamental, portanto, preservar os espaços da privacidade 
contra os abusos eventuais dos próprios poderes públicos, limitar o 
alcance ·e a força destes poderes: o monopólio estatal do poder de fazer 
justiça e punir deveria estar completamente subordinado à função de 
salvaguarda dos direitos individuais, entre os quais se destacavam os 
direitos à liberdade e à propriedade. Para manter o Estado nessa condição 
limitada, convinha separar os poderes (Poder Executivo, Legislativo e 
Judiciário), distribuí· los regionalmente (conforme o preconizado pela 
doutrina federali sta) e valorizar, à medida do possível, as tradições 
locais e as experiências particulares, com ê nfase na jurisprudência e na 
consideração de t:asos concretos, em detrimento de leis gerais e 
racionalmente construídas. Nem todas estas decorrências estavam 
previstas por Locke, mas todas pertencem ao mais genuíno espírito do 
liberalismo clássico, no qual o empirismo epistemológico e o respeito 
ao espaço privado são as duas faces do mesmo apego ao particular, ao 
individual. 
Foram estas as idéias políticas que criaram o terreno favorável para 
o pleno desenvolvimento de uma sociedade individualista e atomizada, 
em que os agentes econômicos se encontravam e se deixavam articular 
uns com os outros nos espaços livres dos mercados de bens e de 
trabalho. O liberalismo econôm ico (cf. Lukes, 1975; e Polany, 1980) 
defende a redução radical da presença do Estado na vida econômica, 
confiando de forma absoluta na iniciativa e na racionalidade individual 
dos agentes e na função auto-regulativa do mercado como aS condições 
suficientes para o progre~so e para a estabilidade da vida social. Ora, 
somente no final do século XVIll e no início do XIX a doutrina do 
liberalismo econômico e a auto-regulação da sociedade pelo mercado 
vieram à luz. 
No entanto, antes mesmo que o liberalismo alcançasse este nível 
de elaboração, havia surgido uma versão das idéias liberais que dava 
ao liberalismo um novo rumo que, progressivamente , o fo i 
130 
descaracterizando. Isto ocorreu através da obra de Jeremy Bentham 
( 1748- 1832), o criador do 'utilitarismo' . De uma certa fonna, pensar em 
termos de eficiência, interesse e uti lidade pertencia também à tradição 
liberal. Contudo. o utilitarismo irá substituir a crença e a defesa 
intransigente dos direitos naturais dos indivíduos pelo cálculo racional 
da fe licidade. Em outras palavras, a índole empírista do liberalismo vai 
ser aos poucos substituída pelo construtivismo racionalista. O Estado 
já não se ma ntém nos limi tes de suas antigas funções, mas vai 
gradativamente assumindo a de intervir positivamente na administração 
da vida social. ··A missão dos governantes consiste em promover a 
felicidade da sociedade, punindo e recompensando" {Bentharn [1789) 
1989; p. 19). 
Há. ainda, uma vertente libertária no movimento enquanto se trata 
de derrubar le is e tradições que obstruem a livre ação individual , a 
defesa pelos agentes sociais de seus interesses e felicidades . Todavia, 
mesmo este combate já não se centra na questão da liberdade e dos 
direitos naturais, senão que nas conseqüências positivas ou negativas 
das leis e das ações que propiciam ou proíbem. "O objetivo geral que 
caracteriza todas as leis ou que deveria caracterizá-las consiste em 
aumentar a feli cidade global da coletividade" (lbid.; p. 59). 
Por aí se vê que não apenas a ê nfase na garantia de direitos é 
substitu ída pe la ênfase nas conseqüências, com o estas são avaliadas 
em termos de 'coletividade' , de forma a, supostamente, favorecer a 
maioria. mesmo que em prej uízo de algun s indivíduos. Trata-se, 
efetivamente, de legislar e justificar as intervenções do poder público 
em termos da soma total da felicidade. Embora as perdas e ganhos em 
felicidade de cada indivíduo sejam as unidades básicas de cálculo - o 
que traduz uma posição predominantemente individualista -. o que 
importa ao final é reunir as felicidades de cada um no grande balanço 
coletivo da soma total de felicidade: 
A comunidade constitui uin corpo fi ctfcio, composto de pessoas 
individuais ( ... )Qual é nesse caso o interesse da comunidade? 
~inútil falar do interesse da comunidade se nilo se compreender qual é o 
interesse do indivíduo. Diz-se que uma coisa promove o interesse de um 
indivfduo, ou favorece ao interesse de um indivíduo quando tende a 
aumentar a soma lotaidos seus prazeres, ou então, o que vale afirmar o 
mesmo, quando tende a diminuir a soma total de suas dores. (lbíd.; p. 4) 
131 
Bentham não fica, como se sabe, na fo rmulação das questões 
meramente filosóficas e programáticas, mas procura elaborar as regras 
de cálculos, tanto para a avaliação das felicidades individuais como para 
a estimativa da soma total de felicidade. 
Não só as leis são concebidas por Bentham como instrumentos 
destinados a produzir conseqüências - e não mais garantir d ireitos -
como a eficácia delas deveria repousar numa concepção da natureza 
humana marcada pelo princípio utilitário. Os homens, para Bentham, são 
sensíveis às conseqüências do que fazem: "A natureza colocou o 
gênero humano sob o domfnio de dois senhores soberanos: a dor e o 
prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer bem como 
determinar o que na realidade faremos" (lbid.; p. 3). 
As le is devem ser elaboradas de forma a programar a liberação de 
castigos e recompensas e, a longo prazo, propiciar uma ampliação das 
oportunidades de condutas recompensadas. 
Trata-se, sem dúvida, de uma versão racionalista, construtiva e 
tecnocrática do liberalismo: os indivíduos são ainda as unidades bási-
cas da ação e são deixados 'livres' para escolher entre castigos e re-
compensas. Ao Estado não cabe uma função primordialmente coerciti-
va, mas não se espera dele, tampouco, a garantia dos direitos naturais 
do indivíduo: ele intervém e administra através do controle das priva-
ções, das punições e das recompensas liberadas para os comportamen-
tos individuais. instaurando uma nova modalidade de poder. Uma for-
ma acabada e sofisti cada de be nthamism o será desenvolvida no século 
XX, na 'engenharia comportamental' de B . F. Sk:inner} Já o próprio 
Bcnthum, contudo, foi capaz de propostas bastante complexas de pro-
gramação de 'contingências ambientais ' , como as industry-houses e, 
cabe recordar, foi dele a invenção do patropticon, consagrado por Fo~-
cault ( 1977) corno emblema do regime disciplinar. · 
Neste regime, o Estado e suas agências educacionais, corretivas, 
sanitárias e militares assumem novas funções ; da mesma forma, a família 
deixa de ser o espaço da liberdade p ri vada, em contraposição às regras 
dos espaços públicos (como no século XVIII; cf. cap. 3), para se 
converter, ela também, numa agência disciplinadora destinada a, 
simultaneamente. individualizar e normatizar suas crianças, jovens e 
adultos. (Nestas novas condições, como assinala Sennett, 1978, a 
liberdade individual poderá com mais sucesso ser procurada no 
132 
anonimato das c idades do que dentro de qualquer coletividade regida 
pelo princípio utilitário.) 
Por tudo isso. Bentham é na tradição liberal uma espécie de ovelha 
negra. Mesmo um liberalismo reformista como o de Dewey, que não 
está absolutamente livre da m arca utilitária, procura restaurar o valor 
da liberdade individual que o cálculo da felicidade total de Bentham 
havia desconsiderado (Dewey, 1970). Os liberais contemporâneos mais 
comprometidos com o liberalismo clássico, como Hayeck, tendem a nem 
considerar Bentham como um dos seus e não o perdoam pela tendência 
coletivista que ele introduziu no ideário liberal e pela introdução de 
elementos racionalistas e construtivistas na boa tradição inglesa (Gray, 
1988; e Hayeck, 1967). 
Estas transform ações do ve lho liberalismo no u til itarismo 
disciplinador no séc ulo XIX, antes de se fazer sentir no plano da vida 
social como uma tendência dom inante, foi vivida na pele por um dos 
grandes nomes da tradição liberal: John Stuart Mill ( 1806-1873).2 
O pai de Stuart Mill , James Mill (1173-1836), foi o principal 
d iscípulo e aliado de Bentham e organizou sua família e educou seus 
J1lhos seguindo estritamente suas opções filosóficas e políticas. John 
foi submetido a uma rígida e produtiva disciplina capaz de constituí-lo. 
desde tenra idade, num modelo de individualidade oitocentista. Nada 
impediu, contudo, que e le viesse a sofrer durante a adolescência e início 
da idade adulta uma série de cri ses existenciais. Queixava-se ele de um 
vazio. de uma aridez. de uma falta de sentido c de valores autênticos 
que o tornam uma das primeiras vítimas notáveis do niilismo. Foi no 
contexto dessas crises que se deu sua aproximação aos româ nticos 
ing leses e alemães, alguns dos quai s se tornaram seus grandes 
inspiradores e lhe forneceram os temas e valores em tomo dos quais 
elaborou sua versão do liberalismo . 
. Na obra de Stuart Mill há claros ingredientes da tradição iluminista: 
por exemplo, ele se dedicou ao desenvolvimento dos princípios do 
associacionismo que lhe proporcionavam uma concepção c ientifica, 
elementarista e mecanicista da menle: Concebeu, igualmente, a criação 
da e to logia, compreendida por ele como a ciência que decifra o caráter 
a partir das condutas. Trata-se, neste caso, de um esforço intelectual 
que de alguma fonna se aproxima da fis iognomia de Lavater (cf. cap. 3) 
e da frenologia de Gall; ambas as disciplinas obedeciam ao mesmo intuito 
133 
Bentham não fica, como se sabe, na fo rmulação das questões 
meramente filosóficas e programáticas, mas procura elaborar as regras 
de cálculos, tanto para a avaliação das felicidades individuais como para 
a estimativa da soma total de felicidade. 
Não só as leis são concebidas por Bentham como instrumentos 
destinados a produzir conseqüências - e não mais garantir d ireitos -
como a eficácia delas deveria repousar numa concepção da natureza 
humana marcada pelo princípio utilitário. Os homens, para Bentham, são 
sensíveis às conseqüências do que fazem: "A natureza colocou o 
gênero humano sob o domfnio de dois senhores soberanos: a dor e o 
prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer bem como 
determinar o que na realidade faremos" (lbid.; p. 3). 
As le is devem ser elaboradas de forma a programar a liberação de 
castigos e recompensas e, a longo prazo, propiciar uma ampliação das 
oportunidades de condutas recompensadas. 
Trata-se, sem dúvida, de uma versão racionalista, construtiva e 
tecnocrática do liberalismo: os indivíduos são ainda as unidades bási-
cas da ação e são deixados 'livres' para escolher entre castigos e re-
compensas. Ao Estado não cabe uma função primordialmente coerciti-
va, mas não se espera dele, tampouco, a garantia dos direitos naturais 
do indivíduo: ele intervém e administra através do controle das priva-
ções, das punições e das recompensas liberadas para os comportamen-
tos individuais. instaurando uma nova modalidade de poder. Uma for-
ma acabada e sofisti cada de be nthamism o será desenvolvida no século 
XX, na 'engenharia comportamental' de B . F. Sk:inner} Já o próprio 
Bcnthum, contudo, foi capaz de propostas bastante complexas de pro-
gramação de 'contingências ambientais ' , como as industry-houses e, 
cabe recordar, foi dele a invenção do patropticon, consagrado por Fo~-
cault ( 1977) corno emblema do regime disciplinar. · 
Neste regime, o Estado e suas agências educacionais, corretivas, 
sanitárias e militares assumem novas funções ; da mesma forma, a família 
deixa de ser o espaço da liberdade p ri vada, em contraposição às regras 
dos espaços públicos (como no século XVIII; cf. cap. 3), para se 
converter, ela também, numa agência disciplinadora destinada a, 
simultaneamente. individualizar e normatizar suas crianças, jovens e 
adultos. (Nestas novas condições, como assinala Sennett, 1978, a 
liberdade individual poderá com mais sucesso ser procurada no 
132 
anonimato das c idades do que dentro de qualquer coletividade regida 
pelo princípio utilitário.) 
Por tudo isso. Bentham é na tradição liberal uma espécie de ovelha 
negra. Mesmo um liberalismo reformista como o de Dewey, que não 
está absolutamente livre da m arca utilitária, procura restaurar o valor 
da liberdade individual que o cálculo da felicidade total de Bentham 
havia desconsiderado (Dewey, 1970). Os liberais contemporâneos mais 
comprometidos como liberalismo clássico, como Hayeck, tendem a nem 
considerar Bentham como um dos seus e não o perdoam pela tendência 
coletivista que ele introduziu no ideário liberal e pela introdução de 
ele mentos racionalistas e construtivistas na boa tradição inglesa (Gray, 
1988; e Hayeck, 1967). 
Estas transform ações do ve lho liberalismo no u til itarismo 
disciplinador no séc ulo XIX, antes de se fazer sentir no plano da vida 
social como uma tendência dom inante, foi vivida na pele por um dos 
grandes nomes da tradição liberal: John Stuart Mill ( 1806-1873).2 
O pai de Stuart Mill , James Mill (1173-1836), foi o principal 
d iscípulo e aliado de Bentham e organizou sua família e educou seus 
J1lhos seguindo estritamente suas opções filosóficas e políticas. John 
foi submetido a uma rígida e produtiva disciplina capaz de constituí-lo. 
desde tenra idade, num modelo de individualidade oitocentista. Nada 
impediu, contudo, que e le viesse a sofrer durante a adolescência e início 
da idade adulta uma série de cri ses existenciais. Queixava-se ele de um 
vazio. de uma aridez. de uma falta de sentido c de valores autênticos 
que o tornam uma das primeiras vítimas notáveis do niilismo. Foi no 
contexto dessas crises que se deu sua aproximação aos româ nticos 
ing leses e alemães, alguns dos quai s se tornaram seus grandes 
inspiradores e lhe forneceram os temas e valores em tomo dos quais 
elaborou sua versão do liberalismo . 
. Na obra de Stuart Mill há claros ingredientes da tradição iluminista: 
por exemplo, ele se dedicou ao desenvolvimento dos princípios do 
associacionismo que lhe proporcionavam uma concepção c ientifica, 
elementarista e mecanicista da menle: Concebeu, igualmente, a criação 
da e to logia, compreendida por ele como a ciência que decifra o caráter 
a partir das condutas. Trata-se, neste caso, de um esforço intelectual 
que de alguma fonna se aproxima da fis iognomia de Lavater (cf. cap. 3) 
e da frenologia de Gall; ambas as disciplinas obedeciam ao mesmo intuito 
133 
de correlacionar o público ao privado, dando ao privado uma expressão 
pública legítima (a fisionomia para Lavater, a conformação do crânio 
para GaH e os comportamentos para Stuart Míll) e, em contrapartida, 
pennitindo o conhecimento público de uma esfera de privacidade. É de 
interesse assinalar, inclusive, como na obra contemporânea de Honoré 
de Bal zac ( I 799-1850) as três abordagens são mobilizadas na 
caracterização dos personagens. Na verdade, embora não cite Stuart 
Mill - mas se refere profusamente aos outros dois -, Balzac concebia 
sua obra ficcional como obra de conhecimento sociológico e ela de fato 
pode ser lida como uma concretização do projeto etológico de Mil I. 
Contudo, o que mais nos pode interessar neste momento é a 
reunião de elementos liberais e românticos promovida por este genuíno 
filho precoce do regime disciplinar. 
No seu clássico On liberty (I 859), que traz como epígrafe um tre-
cho de Humboldt que nos coloca de chofre no seio do ideário românti-
co. Stuart Mil! formula uma proposta de metas e formas de vida social e 
política em que as conquistas civis liberais são colocadas a serviço dos 
valores românticos. Decerto que as marcas da disciplinet e da doutrina 
utilitária estão aí presentes; estão, contudo, confinadas a certas situa-
ções-limite que envolvem procedimentos de exclusão. Por exemplo, o 
governante progressista e civilizado tem o direito de exercer o poder 
disciplinador sobre os bárbaros, excluídos da civilização; a coerção da 
espontaneidade é também justificada quando o Estado tem de lidar com 
marginais e criminosos que põem em risco os direilos alheios. 
134 
Existe, contudo, uma esfera da ação na qual a sociedade. em co.ntraposi-
ção ao indivíduo, só 1em interesse indireto, supondo-se mesmo que te-
nha algum: queremos nos referir àquela que compreende toda a parte da 
vida e da conduta pessoais que somente afetam o próprio indivíduo (. .. ) 
Tal, portanto, a região apropriada da liberdade humana. Compreende, em 
primeiro lugar, o domínio interior da consciência, a liberdade de pensa-
mento, de senlimento, a liberdade absoluta de opinião e de sentimento 
em lodos os assuntos pniticos e e:r.peculati vos,. científicos, morais e teo-
lógicos( ... } Em segundo lugar, o princípio exige liberdade de gostos e de 
ocupações, a de formular um plano de vida que esteja de acordo com o 
caráter do indivíduo, a de fazer o que se deseja ( ... ) Em terceiro lugar. da 
liberdade de cada indivCduo result.a a liberdade, dentro de certos limites, 
de combinação entre indivíduos, a liberdade de se unirem para qualquer 
fim que não envolva danos a terceiros. (Stuan Mill, 1963; p. 15-grito meu) 
É in!eressante observar no trecho acima como, de penneio aos 
velhos temas liberais da 'liherdade negativa' (a 1iberdade exercida no 
espaço esvaziado de controles sociais. ou seja, a liberdade na área da 
ftào-imeiferêucia; cf. Berlin, 1981; p. J36). já se insinua um tema novo: 
o da liberdade para a formulação de um projeto individual de vida 
conforme o caráter do indivíduo. Nesta noção de 'caráter individual; se 
expressa a crença em diferença~ qualitativas entre indivíduos, ou seja, 
em diferenças de personalidade. e na noção de 'projeto' a liberdade se 
idcntilica com a aulonomia e com o autodesenvolvimento. 
No capítulo I (introdução) de On /ibeny, Stuart Mill deixava muito 
claro estar escrevendo num momento em que as liberdades estão sendo 
ameaçadas pelo "fortalecimento da sociedade" , o que em nossa 
linguagem se expressarià como a expansão do regime disciplinar. O 
segundo capítulo trata da liberdade de pensamento e de discussão e, 
apesar de inleressante, não é onde se revela a maior originalidade do 
autor. Já o terceiro capítulo intitula-se 'Da individualidade como um dos 
elementos do bem-estar' e é aí que aflorao ideário romântico: a ênfao;e 
na diversidade, na singularidade, na espontaneidade e na interioridade 
dos indivíduos; por exemplo: 
A na!ureza humana não é máquina que se possa construir conforme um 
modelo qualquer, regulando-se para executar exatamente a tarefa que se 
lhe prescrever, mas uma árvore, que precisa crescer e desenvolver-se de 
todos os lados, de acordo com a tendência de forças interiores que o fazem 
um ser vivo. (lbid.; p. 67) 
Há aí uma valorização c interpretação da vida para romântico 
nenhum colocar defeito. Como estamos longe da aridez do mecanismo 
associacionista ou da psÍcologia dos castigos e recompensas num texto 
como o que transcrevo a seguir: 
Conceder-se-á provavelmente ser desejável que exercitem os homens o 
emendímento ( ... ) Admite-se, até certo ponto, que deve ser nosso o 
entendimento; mas não se observa a mesma boa vontade no sentido de 
admitir que também devam ser nossos os nossos desejos e impulsos ( ... ) 
Contudo. desejos e impulsos tonnam pane do ser humant> perfeito, tanto 
quanto crenças e restrições; sendo os impulsos fortes somente perigosos 
quando nào convenientemente equilibrados, quando um grupo de objetivos 
e inclinações adquire intensidade, enquanto outros. que com eles devem 
coexistir, permanecem fracos e inativos ( ... ) Impulsos fortes nada mais 
135 
de correlacionar o público ao privado, dando ao privado uma expressão 
pública legítima (a fisionomia para Lavater, a conformação do crânio 
para GaH e os comportamentos para Stuart Míll) e, em contrapartida, 
pennitindo o conhecimento público de uma esfera de privacidade. É de 
interesse assinalar, inclusive, como na obra contemporânea de Honoré 
de Bal zac ( I 799-1850) as três abordagens são mobilizadas na 
caracterização dos personagens. Na verdade, embora não cite Stuart 
Mill - mas se refere profusamente aos outros dois -, Balzac concebia 
sua obra ficcional como obra de conhecimento sociológico e ela de fato 
pode ser lida como uma concretização do projeto etológico de Mil I. 
Contudo, o que mais nos pode interessar neste momento é a 
reunião de elementos liberais e românticos promovida por este genuíno 
filho precoce do regimedisciplinar. 
No seu clássico On liberty (I 859), que traz como epígrafe um tre-
cho de Humboldt que nos coloca de chofre no seio do ideário românti-
co. Stuart Mil! formula uma proposta de metas e formas de vida social e 
política em que as conquistas civis liberais são colocadas a serviço dos 
valores românticos. Decerto que as marcas da disciplinet e da doutrina 
utilitária estão aí presentes; estão, contudo, confinadas a certas situa-
ções-limite que envolvem procedimentos de exclusão. Por exemplo, o 
governante progressista e civilizado tem o direito de exercer o poder 
disciplinador sobre os bárbaros, excluídos da civilização; a coerção da 
espontaneidade é também justificada quando o Estado tem de lidar com 
marginais e criminosos que põem em risco os direilos alheios. 
134 
Existe, contudo, uma esfera da ação na qual a sociedade. em co.ntraposi-
ção ao indivíduo, só 1em interesse indireto, supondo-se mesmo que te-
nha algum: queremos nos referir àquela que compreende toda a parte da 
vida e da conduta pessoais que somente afetam o próprio indivíduo (. .. ) 
Tal, portanto, a região apropriada da liberdade humana. Compreende, em 
primeiro lugar, o domínio interior da consciência, a liberdade de pensa-
mento, de senlimento, a liberdade absoluta de opinião e de sentimento 
em lodos os assuntos pniticos e e:r.peculati vos,. científicos, morais e teo-
lógicos( ... } Em segundo lugar, o princípio exige liberdade de gostos e de 
ocupações, a de formular um plano de vida que esteja de acordo com o 
caráter do indivíduo, a de fazer o que se deseja ( ... ) Em terceiro lugar. da 
liberdade de cada indivCduo result.a a liberdade, dentro de certos limites, 
de combinação entre indivíduos, a liberdade de se unirem para qualquer 
fim que não envolva danos a terceiros. (Stuan Mill, 1963; p. 15-grito meu) 
É in!eressante observar no trecho acima como, de penneio aos 
velhos temas liberais da 'liherdade negativa' (a 1iberdade exercida no 
espaço esvaziado de controles sociais. ou seja, a liberdade na área da 
ftào-imeiferêucia; cf. Berlin, 1981; p. J36). já se insinua um tema novo: 
o da liberdade para a formulação de um projeto individual de vida 
conforme o caráter do indivíduo. Nesta noção de 'caráter individual; se 
expressa a crença em diferença~ qualitativas entre indivíduos, ou seja, 
em diferenças de personalidade. e na noção de 'projeto' a liberdade se 
idcntilica com a aulonomia e com o autodesenvolvimento. 
No capítulo I (introdução) de On /ibeny, Stuart Mill deixava muito 
claro estar escrevendo num momento em que as liberdades estão sendo 
ameaçadas pelo "fortalecimento da sociedade" , o que em nossa 
linguagem se expressarià como a expansão do regime disciplinar. O 
segundo capítulo trata da liberdade de pensamento e de discussão e, 
apesar de inleressante, não é onde se revela a maior originalidade do 
autor. Já o terceiro capítulo intitula-se 'Da individualidade como um dos 
elementos do bem-estar' e é aí que aflorao ideário romântico: a ênfao;e 
na diversidade, na singularidade, na espontaneidade e na interioridade 
dos indivíduos; por exemplo: 
A na!ureza humana não é máquina que se possa construir conforme um 
modelo qualquer, regulando-se para executar exatamente a tarefa que se 
lhe prescrever, mas uma árvore, que precisa crescer e desenvolver-se de 
todos os lados, de acordo com a tendência de forças interiores que o fazem 
um ser vivo. (lbid.; p. 67) 
Há aí uma valorização c interpretação da vida para romântico 
nenhum colocar defeito. Como estamos longe da aridez do mecanismo 
associacionista ou da psÍcologia dos castigos e recompensas num texto 
como o que transcrevo a seguir: 
Conceder-se-á provavelmente ser desejável que exercitem os homens o 
emendímento ( ... ) Admite-se, até certo ponto, que deve ser nosso o 
entendimento; mas não se observa a mesma boa vontade no sentido de 
admitir que também devam ser nossos os nossos desejos e impulsos ( ... ) 
Contudo. desejos e impulsos tonnam pane do ser humant> perfeito, tanto 
quanto crenças e restrições; sendo os impulsos fortes somente perigosos 
quando nào convenientemente equilibrados, quando um grupo de objetivos 
e inclinações adquire intensidade, enquanto outros. que com eles devem 
coexistir, permanecem fracos e inativos ( ... ) Impulsos fortes nada mais 
135 
são que o outro nome para a energia( ... ) Aqueles cujos impulsos e desejos 
são próprios, conforme desenvolvido.~ e modificados pela cultura que lhes 
é peculiar- díz-se possuir caráter (lbíd.; p. 68) 
Vinte e três anos depois da morte do pai, o filho de James Mill 
franqueia o acesso aos próprios desejos! É inevitável que esta 
concepção da natureza humana como desejante e impulsiva, é inevitável 
que esta 'energética' e esta concepção não-disciplinar do controle dos 
impulsos (trata-se de desenvolvê-los em equilíbrio conflitivo e não de 
domá-los e extingui-los) nos leve a pensar em Freud (que, por sinal, 
traduziu Stuart Mill para o alemão), assim como Bentham nos evocara a 
lembrança de Skinner. 
É ainda no combate ao regime disciplinar que Stuart Mill se opõe 
ao calv inismo e à sua ênfase na contenção dos impulsos e na 
obediência, para concluir: "Não é desgastando no sentido da 
uniformidade tudo que é individual nos homens, mas cultivando-o e 
suscitando-o, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses 
de terceiros, que os seres humanos se tomam objeto de contemplação, 
nobre e belo" (Ibid.; P- 71 )-
0 reconhecimento e a valorização das diferenças individuais 
acarretam a reivindicação da desigualdade e diversidade nos modos de 
vida, a liberdade de opções e a tolerância diante das minorias. 
O quarto capítulo trata dos mesmos temas sob o ângulo dos limites 
da autoridade da sociedade sobre os indivíduos; e o capítulo final 
reafirma as mesmas teses no contexto de aJguns exemplos práticos. 
O maior mérito de On liberty reside, creio eu, no seu valor como 
testemunho pessoal de um filósofo que, tendo sofrido na carne o impacto 
da disciplína utilitarista e vendo ao seu redor crescerem as forças 
coletivas, os controles sociais, o peso da administração burocrática e 
as malhas finas da opinião pública, tenta defender os espaços 
ameaçados da privacidade e da liberdade nesta versão romantizada do 
liberalismo. 
No mesmo século, porém, há uma outra obra, que inclusive exerceu 
considerável influência sobre Stuart Mill, que trata das mesmas 
questões com uma perspicácia e uma capacidade analítica (e profética) 
inigualáveis. Retiro-me a A democracia na América (( 1835-1840] 1987), 
de Alexis de Tocqueville ( 1805-1859)_ 
Tocqueville costuma ser lembrado como um arguto e pioneiro 
estudioso do individualismo moderno e, sem dúvida nenhuma, o livro 
136 
contém algumas passagens antológicas. No entanto, como veremos, o 
individualismo segundo Tocqueville não consiste apenas na separação 
e autonomização dos indivíduos, no seu virtual isolamento das 
coletividades e das tradições, no investimento maciço de cada um em 
si mesmo e na própria independência. O individualismo simultaneamente 
constitui. valoriza e enfraquece o indivíduo, dá-lhe mais status e 
responsabilidades e lhe traz mais ameaças e desamparo. Talvez o que 
haja de mais instigante nas análises de Tocqueville sejam as relações 
que estabelece entre uma cultura indi vidualista e as novas forças c 
fom1as do despotismo. Ele observa tanto um crescimento dos espaços 
de individuação como dos poderes das agências governamentais e da 
opinião pública, os quais tendem a invadir progressivamente as esferas 
da privacidade. São os próprios indivíduos livres, mas apequenados, 
que se entregam a estes novos déspotas, vigilantes e meticulosos, 
organizadores detalhistas das crenças, das condutas e dos sentimentos 
comuns. 
É assim que, depois de enaltecer a pretensão de cada americano 
julgar-se capaz de fonnular seus próprios juízos e defender com bravura 
a independência de pensamento e expressão, Tocqueville ( 1987; p. 326) 
nos alerta: "Nos Estados Unidos a maioria encarrega-sede fornecer aos 
indivíduos uma infinidade de opiniões completas e assim os alivia da 
obrigação de fonnular opiniões que lhes sejam próprias". 
Da mesma fonna quanto aos sentimentos; embora os homens 
numa cultura individualista voltem para si todos os seus sentimentos, 
rel:onheccndo que não devem esperar dos demais muita atenção e 
apoio, 
... sentem a necessidade de um socorro estranho. Nestes extremos voltam 
naturalmente seus olhares para este ser imenso, o único que se eleva no 
meio llo abatimento universal. É para ele que as suas necessidades e 
sobretudo os seus desejos constantemente os impelem; é ele que tal 
cidadão acaba por considerar como o sustentáculo único e necessário da 
fraqucta individual. (lbid.; p. 515) 
Este ser imenso tanto pode ser o Estado napoleônico como a 
grande burocracia estatal de um Estado democrático " ... e o braço deste 
Estado vai procurar cada homem em particular no meio da multidão (lbid.; 
p. 447); ou seja, exerce sobre cada indivíduo aquele poder cotidiano e 
invisível que ao mesmo tempo controla e individualiza. 
137 
são que o outro nome para a energia( ... ) Aqueles cujos impulsos e desejos 
são próprios, conforme desenvolvido.~ e modificados pela cultura que lhes 
é peculiar- díz-se possuir caráter (lbíd.; p. 68) 
Vinte e três anos depois da morte do pai, o filho de James Mill 
franqueia o acesso aos próprios desejos! É inevitável que esta 
concepção da natureza humana como desejante e impulsiva, é inevitável 
que esta 'energética' e esta concepção não-disciplinar do controle dos 
impulsos (trata-se de desenvolvê-los em equilíbrio conflitivo e não de 
domá-los e extingui-los) nos leve a pensar em Freud (que, por sinal, 
traduziu Stuart Mill para o alemão), assim como Bentham nos evocara a 
lembrança de Skinner. 
É ainda no combate ao regime disciplinar que Stuart Mill se opõe 
ao calv inismo e à sua ênfase na contenção dos impulsos e na 
obediência, para concluir: "Não é desgastando no sentido da 
uniformidade tudo que é individual nos homens, mas cultivando-o e 
suscitando-o, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses 
de terceiros, que os seres humanos se tomam objeto de contemplação, 
nobre e belo" (Ibid.; P- 71 )-
0 reconhecimento e a valorização das diferenças individuais 
acarretam a reivindicação da desigualdade e diversidade nos modos de 
vida, a liberdade de opções e a tolerância diante das minorias. 
O quarto capítulo trata dos mesmos temas sob o ângulo dos limites 
da autoridade da sociedade sobre os indivíduos; e o capítulo final 
reafirma as mesmas teses no contexto de aJguns exemplos práticos. 
O maior mérito de On liberty reside, creio eu, no seu valor como 
testemunho pessoal de um filósofo que, tendo sofrido na carne o impacto 
da disciplína utilitarista e vendo ao seu redor crescerem as forças 
coletivas, os controles sociais, o peso da administração burocrática e 
as malhas finas da opinião pública, tenta defender os espaços 
ameaçados da privacidade e da liberdade nesta versão romantizada do 
liberalismo. 
No mesmo século, porém, há uma outra obra, que inclusive exerceu 
considerável influência sobre Stuart Mill, que trata das mesmas 
questões com uma perspicácia e uma capacidade analítica (e profética) 
inigualáveis. Retiro-me a A democracia na América (( 1835-1840] 1987), 
de Alexis de Tocqueville ( 1805-1859)_ 
Tocqueville costuma ser lembrado como um arguto e pioneiro 
estudioso do individualismo moderno e, sem dúvida nenhuma, o livro 
136 
contém algumas passagens antológicas. No entanto, como veremos, o 
individualismo segundo Tocqueville não consiste apenas na separação 
e autonomização dos indivíduos, no seu virtual isolamento das 
coletividades e das tradições, no investimento maciço de cada um em 
si mesmo e na própria independência. O individualismo simultaneamente 
constitui. valoriza e enfraquece o indivíduo, dá-lhe mais status e 
responsabilidades e lhe traz mais ameaças e desamparo. Talvez o que 
haja de mais instigante nas análises de Tocqueville sejam as relações 
que estabelece entre uma cultura indi vidualista e as novas forças c 
fom1as do despotismo. Ele observa tanto um crescimento dos espaços 
de individuação como dos poderes das agências governamentais e da 
opinião pública, os quais tendem a invadir progressivamente as esferas 
da privacidade. São os próprios indivíduos livres, mas apequenados, 
que se entregam a estes novos déspotas, vigilantes e meticulosos, 
organizadores detalhistas das crenças, das condutas e dos sentimentos 
comuns. 
É assim que, depois de enaltecer a pretensão de cada americano 
julgar-se capaz de fonnular seus próprios juízos e defender com bravura 
a independência de pensamento e expressão, Tocqueville ( 1987; p. 326) 
nos alerta: "Nos Estados Unidos a maioria encarrega-se de fornecer aos 
indivíduos uma infinidade de opiniões completas e assim os alivia da 
obrigação de fonnular opiniões que lhes sejam próprias". 
Da mesma fonna quanto aos sentimentos; embora os homens 
numa cultura individualista voltem para si todos os seus sentimentos, 
rel:onheccndo que não devem esperar dos demais muita atenção e 
apoio, 
... sentem a necessidade de um socorro estranho. Nestes extremos voltam 
naturalmente seus olhares para este ser imenso, o único que se eleva no 
meio llo abatimento universal. É para ele que as suas necessidades e 
sobretudo os seus desejos constantemente os impelem; é ele que tal 
cidadão acaba por considerar como o sustentáculo único e necessário da 
fraqucta individual. (lbid.; p. 515) 
Este ser imenso tanto pode ser o Estado napoleônico como a 
grande burocracia estatal de um Estado democrático " ... e o braço deste 
Estado vai procurar cada homem em particular no meio da multidão (lbid.; 
p. 447); ou seja, exerce sobre cada indivíduo aquele poder cotidiano e 
invisível que ao mesmo tempo controla e individualiza. 
137 
Em toda parte, o Estado passa a dirigir cada vez mais por si mesmo os 
menores cidadãos e a conduzir so7.inho cada um deles, nas menores 
questões ( ... ) Não só o puder do soberano é amplo, como acabamos de 
ver na esfera antiga dos antigos poderes, mas esta não basta mais para 
contê-lo e vai se propagar no domínio que até agora fora reservado à 
independência individual ( ... ) As~eguro que não há pars da Europa onde 
a administração não se tenha tornado n!io só mais centralizada, mas 
também mais inquisitiva e minuciosa; por toda a parte ela penetra mais 
além que outrora nos afa7.eres privados; regula à sua maneira mais 
numerosas ações e ações menores. e estabelece-se em melhor posição 
todos os dias. ao lado, em volta e acima de cada indivfduo para ajudá-lo, 
aconselhá-lo e exercer a coerção sobre ele. (lbid.; pp. 522-523) 
O texto, vale recordar, é de 1840. Não conheço descrição mais 
nítida do que 135 anos depois Foucault viria 'descobrir' com grande 
estardalhaço: o regime disciplinar com toda " ... a minúcia dos 
regulamentos. o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mfnimas 
parcelas da vida e do corpo ... " (Foucault, 1977; p. 129). 
Curiosamente, Tocqueville nãu é citado por Foucault. 
Tocqueville está perfeitamente ciente de que o próprio 
desenvolvimento da economia c da sociedade burguesa e industrial 
exigem maiores intervenções do Estado. maiores investimentos, mais 
regulamentação e mais administração. Antecipa-se nesta sua 
compreensão do processo à tese de K. Polany de que os avanços da 
administração burocrática e os recuos da liberdade individual atendem 
mais às demandas de uma sociedade burguesa, que assistia aos 
repetidos fracassos do mercado como dispositivo de auto-regulação, 
do que a um complô antiliberal, taJ como os pr.óprios liberais costumam 
entender a história do 1 iberalismo (Polany, 1980). 3 
No entanto. o que me parece ainda mais original e revelador na 
análise de Tocqueville é a sua tese de que a regulação completa, capilar 
e abrangente das existências individuais não é apenas imposta pelo 
Estado em atenção às demandas da economia e da grande política,mas 
é como que solicitada pelos indivíduos autônomos e livres. 
Individualismo e centralização administrativa não são meros opostos~ 
liberalismo e regime disciplinar mantêm entre si relações muito mais 
perversas do que poderia parecer à primeira vista: 
138 
Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser 
produzido no mundo: vejo uma multidao inumerável de homens 
semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos à 
procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. 
Cada um deles. afastado dos demais, é como que estranho ao destino de 
todos os outros: seus filhos e seus amigos paniculares para ele constituem 
toda a espécie humana; quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao 
lado deles, mas não os vê; tnca-os. mas não os sente, existe apenas em si 
c para si mesmo ... 
Acima destes eleva-se um poder imenso e tutelar que se encarrega de 
garantir o seu pra1.er e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso. 
regular, previdente e brando ( ... )Trabalha de bom grado para a sua 
felicidade, mas deseja ser o seu único agente c árbitro exclusivo; provê a 
sua segurança. conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria, 
regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe falta tirar-lhes 
inteiramente, senão o incômodo de pcn~ar e a angústia de viver '! 
(Tocqueville, 1987; pp. 531-532) 
Segundo Tocqueville os riscos do despotismo moderno, esta 
outra face do moderno individualismo, seriam maiores na Europa 
continental, onde inexistia uma longa tradição de liberdades individuais, 
do que nos Estados Unidos c na Inglaterra. Po't outro lado, mais que 
em qualquer outra pane, a ditadura da opinião pública seria poderosa 
nos Estados Unido~. onde inexistiam tradições culturais fortes o 
suficiente para se contrapor às pressões das idéias majoritárias. 
É um texto de 150 anos atrás e quase não há nada a acrescentar. 
Cabe-nos apenas observar a ine xorável expansão da sociedade 
admini strada (Habermas, 1978; e Polany, 1980) e da sua expressão em 
formas políticas autoritárias e totalitárias; tudo isso em contraponto 
apenas aparentemente dissonante com o aprofundamento do 
individualismo c com as repetidas ressurreições do idcário liberal. 
Convém agora acompanhar as peripécias da outra vertente do 
pensamento de Stuart Mill, aquela que lhe dera sangue novo e alma 
nova para reanimar o liberalismo fraudulento de Jercmy Bentham: a 
vertente romântica. 
O romantismo: promessas e realizações~ 
As relações dos movimentos românticos com o pensamento li bem! 
e com a forma de individualismo que lhe corresponde e, mais ainda, 
com as práticas de poder do regime disciplinar são, à primeira vista, de 
139 
Em toda parte, o Estado passa a dirigir cada vez mais por si mesmo os 
menores cidadãos e a conduzir so7.inho cada um deles, nas menores 
questões ( ... ) Não só o puder do soberano é amplo, como acabamos de 
ver na esfera antiga dos antigos poderes, mas esta não basta mais para 
contê-lo e vai se propagar no domínio que até agora fora reservado à 
independência individual ( ... ) As~eguro que não há pars da Europa onde 
a administração não se tenha tornado n!io só mais centralizada, mas 
também mais inquisitiva e minuciosa; por toda a parte ela penetra mais 
além que outrora nos afa7.eres privados; regula à sua maneira mais 
numerosas ações e ações menores. e estabelece-se em melhor posição 
todos os dias. ao lado, em volta e acima de cada indivfduo para ajudá-lo, 
aconselhá-lo e exercer a coerção sobre ele. (lbid.; pp. 522-523) 
O texto, vale recordar, é de 1840. Não conheço descrição mais 
nítida do que 135 anos depois Foucault viria 'descobrir' com grande 
estardalhaço: o regime disciplinar com toda " ... a minúcia dos 
regulamentos. o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mfnimas 
parcelas da vida e do corpo ... " (Foucault, 1977; p. 129). 
Curiosamente, Tocqueville nãu é citado por Foucault. 
Tocqueville está perfeitamente ciente de que o próprio 
desenvolvimento da economia c da sociedade burguesa e industrial 
exigem maiores intervenções do Estado. maiores investimentos, mais 
regulamentação e mais administração. Antecipa-se nesta sua 
compreensão do processo à tese de K. Polany de que os avanços da 
administração burocrática e os recuos da liberdade individual atendem 
mais às demandas de uma sociedade burguesa, que assistia aos 
repetidos fracassos do mercado como dispositivo de auto-regulação, 
do que a um complô antiliberal, taJ como os pr.óprios liberais costumam 
entender a história do 1 iberalismo (Polany, 1980). 3 
No entanto. o que me parece ainda mais original e revelador na 
análise de Tocqueville é a sua tese de que a regulação completa, capilar 
e abrangente das existências individuais não é apenas imposta pelo 
Estado em atenção às demandas da economia e da grande política, mas 
é como que solicitada pelos indivíduos autônomos e livres. 
Individualismo e centralização administrativa não são meros opostos~ 
liberalismo e regime disciplinar mantêm entre si relações muito mais 
perversas do que poderia parecer à primeira vista: 
138 
Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser 
produzido no mundo: vejo uma multidao inumerável de homens 
semelhantes e iguais, que sem descanso se voltam sobre si mesmos à 
procura de pequenos e vulgares prazeres, com os quais enchem a alma. 
Cada um deles. afastado dos demais, é como que estranho ao destino de 
todos os outros: seus filhos e seus amigos paniculares para ele constituem 
toda a espécie humana; quanto ao restante dos seus concidadãos, está ao 
lado deles, mas não os vê; tnca-os. mas não os sente, existe apenas em si 
c para si mesmo ... 
Acima destes eleva-se um poder imenso e tutelar que se encarrega de 
garantir o seu pra1.er e velar sobre a sua sorte. É absoluto, minucioso. 
regular, previdente e brando ( ... )Trabalha de bom grado para a sua 
felicidade, mas deseja ser o seu único agente c árbitro exclusivo; provê a 
sua segurança. conduz os seus principais negócios, dirige a sua indústria, 
regula as suas sucessões, divide as suas heranças; que lhe falta tirar-lhes 
inteiramente, senão o incômodo de pcn~ar e a angústia de viver '! 
(Tocqueville, 1987; pp. 531-532) 
Segundo Tocqueville os riscos do despotismo moderno, esta 
outra face do moderno individualismo, seriam maiores na Europa 
continental, onde inexistia uma longa tradição de liberdades individuais, 
do que nos Estados Unidos c na Inglaterra. Po't outro lado, mais que 
em qualquer outra pane, a ditadura da opinião pública seria poderosa 
nos Estados Unido~. onde inexistiam tradições culturais fortes o 
suficiente para se contrapor às pressões das idéias majoritárias. 
É um texto de 150 anos atrás e quase não há nada a acrescentar. 
Cabe-nos apenas observar a ine xorável expansão da sociedade 
admini strada (Habermas, 1978; e Polany, 1980) e da sua expressão em 
formas políticas autoritárias e totalitárias; tudo isso em contraponto 
apenas aparentemente dissonante com o aprofundamento do 
individualismo c com as repetidas ressurreições do idcário liberal. 
Convém agora acompanhar as peripécias da outra vertente do 
pensamento de Stuart Mill, aquela que lhe dera sangue novo e alma 
nova para reanimar o liberalismo fraudulento de Jercmy Bentham: a 
vertente romântica. 
O romantismo: promessas e realizações~ 
As relações dos movimentos românticos com o pensamento li bem! 
e com a forma de individualismo que lhe corresponde e, mais ainda, 
com as práticas de poder do regime disciplinar são, à primeira vista, de 
139 
franca exposição. Contudo, tanto o romantismo como o iluminismo no 
século XVIII corrcsponderam a movimentos de exteriorização das 
experiências privatizadas; por exemplo, na França c na Alemanha foram 
plataformas críticas às convenções, regras e procedimentos de controle 
absolutistas impostos às esferas públicas (cf. cap. 3). Não s6 pela origem 
comum , mas pela convi vência de temas iluministas e românticos em 
diversas obras doséculo XVII impõe-se a necessidade de compreender 
iluminismo c romanlismo de forma menos dicotômica e mais articulada. 
Finalmente, a versào do liberalismo de Stuart Mill, que acabamos de 
resenhar, mostra como em pleno século XIX o pensamento liberal 
precisou recorrer ao idcário romântico para' se fortalecer na sua luta 
contra os avanços do regime disciplinar. Como todas estas evidências 
não nos devem impedir de também reconhecer o conflito entre iluminismo 
e romantismo, a tarefa da análise deve ser, exatamente, a de revelar como 
se constitui este campo em que ilum inismo e romantismo se reúnem e 
se separam como ingredientes mutuamente indispensáveis de uma 
mesma configuração ideológica. As relações do pensamento romântico 
com o regime disciplinar, entretanto, poderiam ainda nos parecer menos 
complexas, resolvendo-se na forma de pura oposíção. Também aqui. 
porém, a realidade não se mostra tão simples, e uma das tarefas da 
análise será a de expor os vínculos menos evidentes que conduzem as 
águas românticas para o moinho da sociedade administrada. ~ Deixarei 
para uma outra ocasião a ou1ra face do problema, ou seja, a que nos 
revela os avanços do regime disciplinar engrossando as águas 
românticas. 
Comecemos acompanhando a expansão do pensamento romântico 
como crítica ao iluminismo, ao liberalismo e ao individualismo da 
ilustração. Coube , sem dúvida. aos artistas, músicos, poetas e 
pensadores românticos pôr em questão as perspectivas do iluminismo 
como princípio civilizatório. Tanto a epistemologia iluminista- empírica 
e racional - como os valores liberais de independência individual, e a 
conj ugação destes traços numa interpretação individual ista da vida 
social (a qual incluía tanto a noção de um contrato firmado entre 
indivíduos livres para a instituição da sociedade como a articulação dos 
átomos econômicos através dos mercados e de suas leis impessoais) 
foram rejeitados. O próprio termo- 'individualismo' -nasceu na França 
como conseqüência de uma reação negativa· do pensamento conservador 
140 
romântico aos ideais e realizações da Revolução Francesa (Lukes, 1975) 
e com este sentido pejorativo o tenno invadiu outros ares culturais. 
Os movimentos român ticos, na sua dimensão política, se 
apresentaram ora como um a face nitidamente conservadora e 
tmdicionalista. buscando em fonnas arcaicas de organização social uma 
saída para os impasses do individualismo, ora com uma face 
revolucionári a, lançando-se , então, na direção do fu turo para a 
superação do individualismo ilustrado. Nem sempre as duas vertentes 
ficavam completamente separáveis uma da outra. De qualquer fonna, 
ambas sempre corresponderam a um proj eto de restauração . 
Restauração de formas orgânicas de vida social, restauração de valores 
autênticos, restauração de modos de relação entre os homens e entre 
eles e o mundo físi co c histórico que trariam de volta a integridade, a 
espontaneidade c a fecundidade da vida coletiva e individual. Nesta 
m edida, os românticos criaram. e les tamhém, uma noção de 
individualidade, melhor dizendo, de personalidade, não mais definido 
pelo isolamento e pela privacidade nem pela identidade social, mas pela 
capacidade de se autopropulsionar, autodesenvolver, de criar e, na 
própria criação, transcender-se e integrar-se às coletividades e tradições . 
Estas, por sua vez, também eram concebidas sob a forma da 
personalidade: o espírito do povo, o espírito da língua, o espírito da 
religião etc. que são menos um conjunto de traços identificatórios do 
que matrizes de experiências, representações , sentimentos e 
possibilidades existenciais. 
Com o romantismo, passa-se de uma noção de liberdade negativa 
-a liberdade exercida no terreno da não-interferência- para uma versão 
m oderna na liberdade positiva - como 'autonomia' c auto-
engendramento -, processos estes que implicam tanto a transfonnação 
dos sujeitos naquilo que eles de fato são (a constituição de uma 
personalidade singularizada), como na permanente perda de suas 
identidades convencionais: o 'tornar-se o que verdadeiramente se é' 
contrapondo-se ao 'conservar os papéis e as máscaras socialmente 
convencionadas'. 
É sob este aspecto que fazem sentido as diatribes românticas 
contra os 'filisteus', contra os hipócritas, mesquinhos, acomodados e 
medíocres, os homens livres com suas pequenas ambições; a defesa 
romântica das paixões, dos impulsos, dos estados alterados da 
141 
franca exposição. Contudo, tanto o romantismo como o iluminismo no 
século XVIII corrcsponderam a movimentos de exteriorização das 
experiências privatizadas; por exemplo, na França c na Alemanha foram 
plataformas críticas às convenções, regras e procedimentos de controle 
absolutistas impostos às esferas públicas (cf. cap. 3). Não s6 pela origem 
comum , mas pela convi vência de temas iluministas e românticos em 
diversas obras do século XVII impõe-se a necessidade de compreender 
iluminismo c romanlismo de forma menos dicotômica e mais articulada. 
Finalmente, a versào do liberalismo de Stuart Mill, que acabamos de 
resenhar, mostra como em pleno século XIX o pensamento liberal 
precisou recorrer ao idcário romântico para' se fortalecer na sua luta 
contra os avanços do regime disciplinar. Como todas estas evidências 
não nos devem impedir de também reconhecer o conflito entre iluminismo 
e romantismo, a tarefa da análise deve ser, exatamente, a de revelar como 
se constitui este campo em que ilum inismo e romantismo se reúnem e 
se separam como ingredientes mutuamente indispensáveis de uma 
mesma configuração ideológica. As relações do pensamento romântico 
com o regime disciplinar, entretanto, poderiam ainda nos parecer menos 
complexas, resolvendo-se na forma de pura oposíção. Também aqui. 
porém, a realidade não se mostra tão simples, e uma das tarefas da 
análise será a de expor os vínculos menos evidentes que conduzem as 
águas românticas para o moinho da sociedade administrada. ~ Deixarei 
para uma outra ocasião a ou1ra face do problema, ou seja, a que nos 
revela os avanços do regime disciplinar engrossando as águas 
românticas. 
Comecemos acompanhando a expansão do pensamento romântico 
como crítica ao iluminismo, ao liberalismo e ao individualismo da 
ilustração. Coube , sem dúvida. aos artistas, músicos, poetas e 
pensadores românticos pôr em questão as perspectivas do iluminismo 
como princípio civilizatório. Tanto a epistemologia iluminista- empírica 
e racional - como os valores liberais de independência individual, e a 
conj ugação destes traços numa interpretação individual ista da vida 
social (a qual incluía tanto a noção de um contrato firmado entre 
indivíduos livres para a instituição da sociedade como a articulação dos 
átomos econômicos através dos mercados e de suas leis impessoais) 
foram rejeitados. O próprio termo- 'individualismo' -nasceu na França 
como conseqüência de uma reação negativa· do pensamento conservador 
140 
romântico aos ideais e realizações da Revolução Francesa (Lukes, 1975) 
e com este sentido pejorativo o tenno invadiu outros ares culturais. 
Os movimentos român ticos, na sua dimensão política, se 
apresentaram ora como um a face nitidamente conservadora e 
tmdicionalista. buscando em fonnas arcaicas de organização social uma 
saída para os impasses do individualismo, ora com uma face 
revolucionári a, lançando-se , então, na direção do fu turo para a 
superação do individualismo ilustrado. Nem sempre as duas vertentes 
ficavam completamente separáveis uma da outra. De qualquer fonna, 
ambas sempre corresponderam a um proj eto de restauração . 
Restauração de formas orgânicas de vida social, restauração de valores 
autênticos, restauração de modos de relação entre os homens e entre 
eles e o mundo físi co c histórico que trariam de volta a integridade, a 
espontaneidade c a fecundidade da vida coletiva e individual. Nesta 
m edida, os românticos criaram. e les tamhém, uma noção de 
individualidade, melhor dizendo, de personalidade, não mais definido 
pelo isolamentoe pela privacidade nem pela identidade social, mas pela 
capacidade de se autopropulsionar, autodesenvolver, de criar e, na 
própria criação, transcender-se e integrar-se às coletividades e tradições . 
Estas, por sua vez, também eram concebidas sob a forma da 
personalidade: o espírito do povo, o espírito da língua, o espírito da 
religião etc. que são menos um conjunto de traços identificatórios do 
que matrizes de experiências, representações , sentimentos e 
possibilidades existenciais. 
Com o romantismo, passa-se de uma noção de liberdade negativa 
-a liberdade exercida no terreno da não-interferência- para uma versão 
m oderna na liberdade positiva - como 'autonomia' c auto-
engendramento -, processos estes que implicam tanto a transfonnação 
dos sujeitos naquilo que eles de fato são (a constituição de uma 
personalidade singularizada), como na permanente perda de suas 
identidades convencionais: o 'tornar-se o que verdadeiramente se é' 
contrapondo-se ao 'conservar os papéis e as máscaras socialmente 
convencionadas'. 
É sob este aspecto que fazem sentido as diatribes românticas 
contra os 'filisteus', contra os hipócritas, mesquinhos, acomodados e 
medíocres, os homens livres com suas pequenas ambições; a defesa 
romântica das paixões, dos impulsos, dos estados alterados da 
141 
consciência (a valorização das drogas alucinógenas, do sonambulismo, 
das experiências mediúni cas e êxtases etc.); a defesa da absoluta 
liberdade de criação e rransfiguração- o culto romântico de Dionísio • 
a valorização da alienação, da loucura, dos desdobramentos da 
personalidade, da dissolução dos limites; o desdém para com as 
representações racionais e para com os interesses egoístas (ou egóicos); 
o cultivo da imersão nos processos vitais da natureza e da história e a 
procura de participaç.ão nas vivências míticas e arquetípicas, tudo isso 
faz sentido no bojo das grandes p romessas restauradoras do 
romancismo. Assim como Bentham nos recordara Skinner e o liberalismo 
de Stuart Mill nos evocara Freud, é inevitável aqui pensar em Jung (cf., 
a propósito, a excelente análise de Rieff, 1990; cap. 5). 
Trata-se, é c laro, de uma restauração paradoxal, que pode passar 
pela fragmentação da identidade e pela mais desregrada extravagância. 
A fragmentação da identidade, de uma certa forma. é a condição e a 
conseqüência de um processo de crescimento e florescimento da 
personalidade, com todo o seu potencial de variação e com toda a recusa 
a subordinar-se aos moldes das representações convencionais. É típica 
do romantismo a tematização da dupla ou tripla identidade. Basta que 
se recorde a respeito a obra musical de Schumann. Quanto à 
extravagância, Binswanger ( 1977) ensina que se trata de uma posição 
existencial insustentável: na extravagância, o sujeito .. que foi além de 
todo limite razoável" coloca-se a uma altura na qual se vê encalacrado, 
sem forças para subir mais nem condições de descer para o terreno da 
humana co nvivência . Os que se fragmentam ou extravagam 
enlouquecem ou morrem, ou ambos, o que de fato foi o destino de 
diversos românticos notáveis. 
O romantismo levado a estas últimas conseqüências nunca foi 
mais que uma coisa de ' eleitos'. Aliás, sua força se nutria exatamente 
da condição de marginalidade que lhe era destinada numa sociedade 
que se pensava predominantemente a partir das concepções liberais e 
que já começava a se organizar, sob a égide do regime disciplinar. No 
entanto. a música composta pelos românticos, a poesia escrita por e les 
c os quadros que pintavam mantinham com o público uma relação 
contraditória: nela estava presente tanto o escândalo e a mútua agressão 
como a reverência e mesmo a veneração às grandes personalidades 
criativas: os gênios. A isto precisaremos retornar quando for o caso de 
tratar das relações do romantismo com o regime disciplinar. 
142 
Em formas e versões menos contundentes e dissonantes. as idéias 
e modos românti cos podem se r perfe itamente assimilados pelo 
liberalismo, trazendo-lhe os valores e metas que vão preencher o vazio 
deixado pela redução da vida social à dimensão puramente instrumental, 
racional e calculadora. Foi o que vimos no liberalismo de Stuart Mill: a 
defesa da liberdade negativa é complementada pela valorização da 
liberdade positiva. tal como aparece na idéia de um projeto de vida que 
permita o desabrochar das virtualidades, das tendências espontâneas 
ao desenvolvimento individual (neste aspecto, Stuart Mill parece estar 
mais próximo de Rogers do que de Freud, de quem se aproximava pelo 
lado da energétka e dos desejos). 
Creio que é esta maneira de conceber a vida social como condição 
mais ou menos favorável ao desenvolvimento pessoal e o uso deste 
critério para avaliar, tomar decisões e participar da vida em sociedade 
e, ainda mais, para se omitir de qualquer participação, que irá caracterizar 
a invasão do público pelo privado identificada por Sennet na segunda 
metade do século XIX. Enquanto no liberalismo original a cesura entre 
as esferas da privacidade e da publicidade tinha de ser conservada, já 
que a liberdade no espaço de não-interferência requer exatamente a clara 
delimitação do privativo, o liberalismo romantizado, embora se proponha 
também a sublinhar a invi olabilidade do privado, conduz a uma 
perspectiva de inversão: são os valores e procedimentos da privacidade 
que passam a se elevar como organizadores e jufzes da vida pública. 
Desta maneira, es taríamos diante de uma decorrência ' natural' do 
desinvestimento do social e do superínvestimento do privado de que 
já nos falara Tocqueville. Isto, entretanto, é apenas um lado da questão, 
e , talvez, o lado menos elucidativo do que se passou. O que não se 
pode esquecer são os vínculos positivos do pensamento e das práticas 
românticas com a sociedade administrada. 
Sabe-se. por exemplo. que as intervenções estatais visando limitar 
a liberdade de ação dos agentes econômicos e restringir, assim, o poder 
de auto-regulação espontânea dos mercados de bens e de trabalho 
foram promovidas por polfticos conservadores, aderidos às críticas 
românticas ao liberalismo e ao individualismo clássicos (Dewey. 1970). 
Isto quer dizer que os avanços da ordem administrativa não foram 
necessariamente obra do liberalismo benthamista, disciplinador, embora 
na verdade estas intervenções respondessem a demandas de 
ajustamento do sistema econômico e social e, a longo prazo, tenham 
143 
consciência (a valorização das drogas alucinógenas, do sonambulismo, 
das experiências mediúni cas e êxtases etc.); a defesa da absoluta 
liberdade de criação e rransfiguração- o culto romântico de Dionísio • 
a valorização da alienação, da loucura, dos desdobramentos da 
personalidade, da dissolução dos limites; o desdém para com as 
representações racionais e para com os interesses egoístas (ou egóicos); 
o cultivo da imersão nos processos vitais da natureza e da história e a 
procura de participaç.ão nas vivências míticas e arquetípicas, tudo isso 
faz sentido no bojo das grandes p romessas restauradoras do 
romancismo. Assim como Bentham nos recordara Skinner e o liberalismo 
de Stuart Mill nos evocara Freud, é inevitável aqui pensar em Jung (cf., 
a propósito, a excelente análise de Rieff, 1990; cap. 5). 
Trata-se, é c laro, de uma restauração paradoxal, que pode passar 
pela fragmentação da identidade e pela mais desregrada extravagância. 
A fragmentação da identidade, de uma certa forma. é a condição e a 
conseqüência de um processo de crescimento e florescimento da 
personalidade, com todo o seu potencial de variação e com toda a recusa 
a subordinar-se aos moldes das representações convencionais. É típica 
do romantismo a tematização da dupla ou tripla identidade. Basta que 
se recorde a respeito a obra musical de Schumann. Quanto à 
extravagância, Binswanger ( 1977) ensina que se trata de uma posição 
existencial insustentável: na extravagância, o sujeito .. que foi além de 
todo limite razoável" coloca-se a uma altura na qual se vê encalacrado,sem forças para subir mais nem condições de descer para o terreno da 
humana co nvivência . Os que se fragmentam ou extravagam 
enlouquecem ou morrem, ou ambos, o que de fato foi o destino de 
diversos românticos notáveis. 
O romantismo levado a estas últimas conseqüências nunca foi 
mais que uma coisa de ' eleitos'. Aliás, sua força se nutria exatamente 
da condição de marginalidade que lhe era destinada numa sociedade 
que se pensava predominantemente a partir das concepções liberais e 
que já começava a se organizar, sob a égide do regime disciplinar. No 
entanto. a música composta pelos românticos, a poesia escrita por e les 
c os quadros que pintavam mantinham com o público uma relação 
contraditória: nela estava presente tanto o escândalo e a mútua agressão 
como a reverência e mesmo a veneração às grandes personalidades 
criativas: os gênios. A isto precisaremos retornar quando for o caso de 
tratar das relações do romantismo com o regime disciplinar. 
142 
Em formas e versões menos contundentes e dissonantes. as idéias 
e modos românti cos podem se r perfe itamente assimilados pelo 
liberalismo, trazendo-lhe os valores e metas que vão preencher o vazio 
deixado pela redução da vida social à dimensão puramente instrumental, 
racional e calculadora. Foi o que vimos no liberalismo de Stuart Mill: a 
defesa da liberdade negativa é complementada pela valorização da 
liberdade positiva. tal como aparece na idéia de um projeto de vida que 
permita o desabrochar das virtualidades, das tendências espontâneas 
ao desenvolvimento individual (neste aspecto, Stuart Mill parece estar 
mais próximo de Rogers do que de Freud, de quem se aproximava pelo 
lado da energétka e dos desejos). 
Creio que é esta maneira de conceber a vida social como condição 
mais ou menos favorável ao desenvolvimento pessoal e o uso deste 
critério para avaliar, tomar decisões e participar da vida em sociedade 
e, ainda mais, para se omitir de qualquer participação, que irá caracterizar 
a invasão do público pelo privado identificada por Sennet na segunda 
metade do século XIX. Enquanto no liberalismo original a cesura entre 
as esferas da privacidade e da publicidade tinha de ser conservada, já 
que a liberdade no espaço de não-interferência requer exatamente a clara 
delimitação do privativo, o liberalismo romantizado, embora se proponha 
também a sublinhar a invi olabilidade do privado, conduz a uma 
perspectiva de inversão: são os valores e procedimentos da privacidade 
que passam a se elevar como organizadores e jufzes da vida pública. 
Desta maneira, es taríamos diante de uma decorrência ' natural' do 
desinvestimento do social e do superínvestimento do privado de que 
já nos falara Tocqueville. Isto, entretanto, é apenas um lado da questão, 
e , talvez, o lado menos elucidativo do que se passou. O que não se 
pode esquecer são os vínculos positivos do pensamento e das práticas 
românticas com a sociedade administrada. 
Sabe-se. por exemplo. que as intervenções estatais visando limitar 
a liberdade de ação dos agentes econômicos e restringir, assim, o poder 
de auto-regulação espontânea dos mercados de bens e de trabalho 
foram promovidas por polfticos conservadores, aderidos às críticas 
românticas ao liberalismo e ao individualismo clássicos (Dewey. 1970). 
Isto quer dizer que os avanços da ordem administrativa não foram 
necessariamente obra do liberalismo benthamista, disciplinador, embora 
na verdade estas intervenções respondessem a demandas de 
ajustamento do sistema econômico e social e, a longo prazo, tenham 
143 
beneficiado as perspectivas tecnocrálicas (Polany, 1980). As idéias e 
iniciativas coletivistas que emergiram no início e se expandiram na 
segunda metade do século XIX, tanto no campo das'forças de 'esquerda' 
como nas de 'direila' , devem, desse modo, mais ao ideário romântico 
que a uma ideologia tecnocrática, consolidada quando as práticas 
administrativas já estavam bem instaladas. Nesta medida, romantismo e 
disciplina unem-se contra o liberalismo, embora esta união passe quase 
sempre desapercebida. 
Não só no terreno das leis e da grande polftica a coalizão anti libe-
ral pode ser reconhecK!a. A personalidade carismática, capaz de exer-
cer um controle supra-racional sobre os homens, de mobilizar suas pai-
xões, conquistar suas mentes, modelar suas crenças, empolgar suas 
vontades e conduzir suas ações é na política e nas artes o retrato do 
gênio romântico. 
Uma novela de Balzac (Ursu/n Mirouet, I 841) relala uma história 
passada na década de 1830, na qual se contrapõe a figura de um velho 
cientista, antíclerical, amigo pessoal e aliado dos ilumin istas 
revolucionários, empírico e racional, incrédulo e autoconfiante, de um 
lado, e, do outro, os vestígios renascentes do mesmerismo. É a vingança 
de Mesmer contra a comissão de sábios ilustrados que o desmascarou: 
desta vez é o velho médico que se converte depois de assistir a uma 
sessão de telepatia. A descrição que Balzac ([1841] 1990; v. 5, p. 73) 
nos dá do grande mago é a completa apresentação da personalidade 
romântica em sua plenitude. O trecho é longo, mas vale a pena 
reproduzi-lo: 
144 
Naquele momento. exibia-se em Paós um homem exuaoroinário. Dotado. 
pela fé, de um incalculável poder e que dispunha das faculdades magnéticas 
em todas as suas aplicações. Esse grande desconhecido que ainda vive, 
não somente curava por si mesmo, à distância, as doenças mais cruéis, 
mais inveteradas, súbita e radicalmente, como outrora o salvador dos 
homens, mas ainda produzia instantaneamente os fenômenos mais 
curiosos do sonambulismo, subjugando as vontades mais rebeldes. A 
fisionomia deste desconhecido. que diz não depender senào de Deus e 
comunicar-se com os anjos, como Swedenborg, é a de um leão; brilha 
nela uma energia concentrada, irresistível. Seus traços. singulannente 
delineados. têm um aspecto terrível e fulminante. Sua voz que vem da 
profundidade do ser, é como que carregada de fluido magnético: penetra 
no ouvinte por todos os poros. 
Algo deste esplendor, desta vontade e deste poder é o que se 
procurava nos artistas, românticos, principalmente nos músicos, nos 
concertistas e, entre eles, de preferência nos solistas, com seus solos e 
seus sóis. A grande capacidade de subjugar era encontrada em particular 
no político de massas que faz sua aparição na época (tal como Sennelt 
analisa o poeta Lamartine 'enrolando' a multidão) e no regente de 
orquestra, outro emblema do romantismo. 
Dos músicos e regentes, nenhum como Wagner (1813-1883) 
personificou tão bem e deliberadamente o carisma e o projeto 
restaurador. Na carta de desagravo que Baudelaire ([1861] 1990; p. 43) 
lhe enviou depois de uma exibição fracassada em Paris, há repetidas 
menções à natureza subjugante desta música: 
Ele possui a arte de traduzir, por meio de gradações sutis, tudo que há 
de excessivo, imenso, ambicioso, no homem espiritual e natural. Parece, 
às vezes, ao escutarmos esta música ardcme e despótica, que 
reencontramos pintadas sobre o fundo das trevas. dilacerado pelo 
devaneio, as vertiginosas concepções do ópio. (Grifo meu) 
O elogio de Baudelaire nos traz de volta e condensado na figura 
de Wagner todo o idcário romântico, e por isso vale a pena reproduzi-
lo um pouco mais: 
Jã observamos, creio. dois homens em Richard Wagner, o homem da 
ordem e o homem apaixonado. É do homem apaixonado. do homem de 
sentimento que se trata aqui. No menor de seus trechos ele inscreve sua 
personalidade com tanto ardor, que não será muito difícil realizar esta 
procura de sua qualidade principal. Desde o princípio, uma consideração 
surpreendera-me vivamente: é que na parte voluptuosa e orgíaca da 
abertura da Tannhãuser, o artista pusera tanta força, desenvolvera tanta 
energia quanto na pintura da misticidade que caracteriza a abertura de 
Lohengrin ( ... )O que me parece, portanto. antes de mais nada, marcar de 
maneira inesquecível a música deste mestre é a intensidade nervosa, a 
violência nas paixões e na vontade( ... ) Tudo que implicamas palavras: 
vontade, desejo, concentração, intensidade nervosa, explosão, sente-se e 
faz-se adivinhar em suas obras. Não creio me iludir nem enganar quem 
quer que seja ao afinnar que vejo ar a5 principais caracterfstícas do 
fenômeno que denomi~amos gênio. (lbid.; p. 93) 
Nem todos os artistas românticos tiveram a capacidade de Wagner 
para conciliar a ordem e a paixão na criação e na realização de obras de 
145 
beneficiado as perspectivas tecnocrálicas (Polany, 1980). As idéias e 
iniciativas coletivistas que emergiram no início e se expandiram na 
segunda metade do século XIX, tanto no campo das'forças de 'esquerda' 
como nas de 'direila' , devem, desse modo, mais ao ideário romântico 
que a uma ideologia tecnocrática, consolidada quando as práticas 
administrativas já estavam bem instaladas. Nesta medida, romantismo e 
disciplina unem-se contra o liberalismo, embora esta união passe quase 
sempre desapercebida. 
Não só no terreno das leis e da grande polftica a coalizão anti libe-
ral pode ser reconhecK!a. A personalidade carismática, capaz de exer-
cer um controle supra-racional sobre os homens, de mobilizar suas pai-
xões, conquistar suas mentes, modelar suas crenças, empolgar suas 
vontades e conduzir suas ações é na política e nas artes o retrato do 
gênio romântico. 
Uma novela de Balzac (Ursu/n Mirouet, I 841) relala uma história 
passada na década de 1830, na qual se contrapõe a figura de um velho 
cientista, antíclerical, amigo pessoal e aliado dos ilumin istas 
revolucionários, empírico e racional, incrédulo e autoconfiante, de um 
lado, e, do outro, os vestígios renascentes do mesmerismo. É a vingança 
de Mesmer contra a comissão de sábios ilustrados que o desmascarou: 
desta vez é o velho médico que se converte depois de assistir a uma 
sessão de telepatia. A descrição que Balzac ([1841] 1990; v. 5, p. 73) 
nos dá do grande mago é a completa apresentação da personalidade 
romântica em sua plenitude. O trecho é longo, mas vale a pena 
reproduzi-lo: 
144 
Naquele momento. exibia-se em Paós um homem exuaoroinário. Dotado. 
pela fé, de um incalculável poder e que dispunha das faculdades magnéticas 
em todas as suas aplicações. Esse grande desconhecido que ainda vive, 
não somente curava por si mesmo, à distância, as doenças mais cruéis, 
mais inveteradas, súbita e radicalmente, como outrora o salvador dos 
homens, mas ainda produzia instantaneamente os fenômenos mais 
curiosos do sonambulismo, subjugando as vontades mais rebeldes. A 
fisionomia deste desconhecido. que diz não depender senào de Deus e 
comunicar-se com os anjos, como Swedenborg, é a de um leão; brilha 
nela uma energia concentrada, irresistível. Seus traços. singulannente 
delineados. têm um aspecto terrível e fulminante. Sua voz que vem da 
profundidade do ser, é como que carregada de fluido magnético: penetra 
no ouvinte por todos os poros. 
Algo deste esplendor, desta vontade e deste poder é o que se 
procurava nos artistas, românticos, principalmente nos músicos, nos 
concertistas e, entre eles, de preferência nos solistas, com seus solos e 
seus sóis. A grande capacidade de subjugar era encontrada em particular 
no político de massas que faz sua aparição na época (tal como Sennelt 
analisa o poeta Lamartine 'enrolando' a multidão) e no regente de 
orquestra, outro emblema do romantismo. 
Dos músicos e regentes, nenhum como Wagner (1813-1883) 
personificou tão bem e deliberadamente o carisma e o projeto 
restaurador. Na carta de desagravo que Baudelaire ([1861] 1990; p. 43) 
lhe enviou depois de uma exibição fracassada em Paris, há repetidas 
menções à natureza subjugante desta música: 
Ele possui a arte de traduzir, por meio de gradações sutis, tudo que há 
de excessivo, imenso, ambicioso, no homem espiritual e natural. Parece, 
às vezes, ao escutarmos esta música ardcme e despótica, que 
reencontramos pintadas sobre o fundo das trevas. dilacerado pelo 
devaneio, as vertiginosas concepções do ópio. (Grifo meu) 
O elogio de Baudelaire nos traz de volta e condensado na figura 
de Wagner todo o idcário romântico, e por isso vale a pena reproduzi-
lo um pouco mais: 
Jã observamos, creio. dois homens em Richard Wagner, o homem da 
ordem e o homem apaixonado. É do homem apaixonado. do homem de 
sentimento que se trata aqui. No menor de seus trechos ele inscreve sua 
personalidade com tanto ardor, que não será muito difícil realizar esta 
procura de sua qualidade principal. Desde o princípio, uma consideração 
surpreendera-me vivamente: é que na parte voluptuosa e orgíaca da 
abertura da Tannhãuser, o artista pusera tanta força, desenvolvera tanta 
energia quanto na pintura da misticidade que caracteriza a abertura de 
Lohengrin ( ... )O que me parece, portanto. antes de mais nada, marcar de 
maneira inesquecível a música deste mestre é a intensidade nervosa, a 
violência nas paixões e na vontade( ... ) Tudo que implicam as palavras: 
vontade, desejo, concentração, intensidade nervosa, explosão, sente-se e 
faz-se adivinhar em suas obras. Não creio me iludir nem enganar quem 
quer que seja ao afinnar que vejo ar a5 principais caracterfstícas do 
fenômeno que denomi~amos gênio. (lbid.; p. 93) 
Nem todos os artistas românticos tiveram a capacidade de Wagner 
para conciliar a ordem e a paixão na criação e na realização de obras de 
145 
arte lotais que colhem e orquestram todos os sentidos do público e 
conduzem emoções e vontades despoticamente. Muitas das obras 
românticas são, antes, testemunhos dos processos de fragmentação de 
identidades sob o impacto do florescimento da personalidade do artista 
(que eu conheça, apenas a Comédia humana de Balzac revela uma 
capacidade de subordinar uma infinidade de caracteres, traços e destinos 
a uma concepção ordenada e subjugan te da vida comparável à de 
Wagner; contudo, mesmo a( não se encontram os efeitos despóticos 
das óperas wagnerianas). De qualquer modo, a intenção restauradora 
esteve sempre presente, e as obras de Wagner apenas realizam esta 
imen!fão profunda de todo o movimento. Nesta realização, porém, 
ressalta, como se viu no dis~;urso de Baudelaire, a vinculação 
subterrânea do romantismo, mesmo o mais revolucionário (era, por sinal, 
o caso de Wagner), com a docílização dos homens subj ugados pela 
exibição da força, da vontade e do poder. Baudelaire. inclusive, com a 
finalidade de demonstrar que as posições políticas do autor não contam 
para nada na apreciação de sua música, observa, en passam, que 
Wagner che ga a Paris a convite de Luís Napoleão e revel a, 
candidamente: "O próprio sucesso de Wagner não deu razão a suas 
previsões e a suas esperanças [revolucionárias], pois foi preciso, na 
França, a ordem de um dlspota para fazer executar a obra de um 
revolucionário" (lbid., p. 47). 
O território da ignorância 
No século XIX conviveram três pólos de idéias e práticas de 
organização da vida em sociedade: o liberalismo e os romantismos em 
suas diversas versões e o regime d iscipli nar. este acompanhado 
progressivamente dos seus discursos legitimadores, muitos dos quais 
de extração romântica e outros de extração utilitária. Falar em 
convivência, no entanto, e mesmo de convivência complexa é ainda dizer 
pouco. Considerando-se as relações de complementaridade e conflito 
que unem e separam cada um destes pólos dos outros dois, podemos 
conceber a formação de um novo território no qual as experiências 
individuais e coletivas se estabelecem, constroem e ganham sentido. 
Trata-se de um espaço triangular como no esquema abaixo 
146 
L 
D 
w 
Ao pólo L, de liberalismo, pertencem os valores e práticas do 
individualismo ilustrado. Temos, então, como ideal, o reinado do ·eu' 
soberano com identidades nitidamente delimitadas, autocontidas, 
autodominadas e autoconhecidas, capazes de se contrastarem umas em 
relação às outras, capazes de permanência e invariância ao longo do 
tempo e das condições. Ternos, ainda aqui, uma clara ~eparação ~ntre 
as esferas da privacidade e da publicidade: nesta dommam as leas, as 
convenções, o decoroe o princípio da racionalidade e da funcionalidade; 
à outra caberia o exercício da liberdade individual concebida corno 
tenitório livre da interferência alheia. 
Ao pólo R, de romantismo . pertencem os valores da 
espontaneidade impulsiva, com identidades debilmente delimitadas, 
porque atravessadas pelas forças da natureza, da coletividade e_ da 
história, que se fazem ouvir de 'dentro' e não são impostas pelos háb1tos 
e pelas conveniências civilizadas. A potência des~s força~ promo:e 
uma restauração do contato do homem com as ongens pre-pessoaas, 
pré-racionais e pré-civilizadas do 'eu', com os elementos da animal i~, 
da infância etc. Esta restauração propulsiona, idealmente, uma especte 
de autodesenvolvimento que se faz à custa dos limites e da unidade 
identitária e que é marcado por crises, experiências de desagregação, 
adoecimento, loucura e morte. 
Finalmente, ao pólo D, de disciplina, pertencem as no vas 
tecnologias de poder, tanto as que se exercem sobre identidades 
reconhecíveis e manipuláveis segundo o princípio da razão calculadora, 
funcáonal e administrativa, como as que se abatem sobre identidades 
debilme nte estruturadas e passívei s de manipulação mediante a 
147 
arte lotais que colhem e orquestram todos os sentidos do público e 
conduzem emoções e vontades despoticamente. Muitas das obras 
românticas são, antes, testemunhos dos processos de fragmentação de 
identidades sob o impacto do florescimento da personalidade do artista 
(que eu conheça, apenas a Comédia humana de Balzac revela uma 
capacidade de subordinar uma infinidade de caracteres, traços e destinos 
a uma concepção ordenada e subjugan te da vida comparável à de 
Wagner; contudo, mesmo a( não se encontram os efeitos despóticos 
das óperas wagnerianas). De qualquer modo, a intenção restauradora 
esteve sempre presente, e as obras de Wagner apenas realizam esta 
imen!fão profunda de todo o movimento. Nesta realização, porém, 
ressalta, como se viu no dis~;urso de Baudelaire, a vinculação 
subterrânea do romantismo, mesmo o mais revolucionário (era, por sinal, 
o caso de Wagner), com a docílização dos homens subj ugados pela 
exibição da força, da vontade e do poder. Baudelaire. inclusive, com a 
finalidade de demonstrar que as posições políticas do autor não contam 
para nada na apreciação de sua música, observa, en passam, que 
Wagner che ga a Paris a convite de Luís Napoleão e revel a, 
candidamente: "O próprio sucesso de Wagner não deu razão a suas 
previsões e a suas esperanças [revolucionárias], pois foi preciso, na 
França, a ordem de um dlspota para fazer executar a obra de um 
revolucionário" (lbid., p. 47). 
O território da ignorância 
No século XIX conviveram três pólos de idéias e práticas de 
organização da vida em sociedade: o liberalismo e os romantismos em 
suas diversas versões e o regime d iscipli nar. este acompanhado 
progressivamente dos seus discursos legitimadores, muitos dos quais 
de extração romântica e outros de extração utilitária. Falar em 
convivência, no entanto, e mesmo de convivência complexa é ainda dizer 
pouco. Considerando-se as relações de complementaridade e conflito 
que unem e separam cada um destes pólos dos outros dois, podemos 
conceber a formação de um novo território no qual as experiências 
individuais e coletivas se estabelecem, constroem e ganham sentido. 
Trata-se de um espaço triangular como no esquema abaixo 
146 
L 
D 
w 
Ao pólo L, de liberalismo, pertencem os valores e práticas do 
individualismo ilustrado. Temos, então, como ideal, o reinado do ·eu' 
soberano com identidades nitidamente delimitadas, autocontidas, 
autodominadas e autoconhecidas, capazes de se contrastarem umas em 
relação às outras, capazes de permanência e invariância ao longo do 
tempo e das condições. Ternos, ainda aqui, uma clara ~eparação ~ntre 
as esferas da privacidade e da publicidade: nesta dommam as leas, as 
convenções, o decoro e o princípio da racionalidade e da funcionalidade; 
à outra caberia o exercício da liberdade individual concebida corno 
tenitório livre da interferência alheia. 
Ao pólo R, de romantismo . pertencem os valores da 
espontaneidade impulsiva, com identidades debilmente delimitadas, 
porque atravessadas pelas forças da natureza, da coletividade e_ da 
história, que se fazem ouvir de 'dentro' e não são impostas pelos háb1tos 
e pelas conveniências civilizadas. A potência des~s força~ promo:e 
uma restauração do contato do homem com as ongens pre-pessoaas, 
pré-racionais e pré-civilizadas do 'eu', com os elementos da animal i~, 
da infância etc. Esta restauração propulsiona, idealmente, uma especte 
de autodesenvolvimento que se faz à custa dos limites e da unidade 
identitária e que é marcado por crises, experiências de desagregação, 
adoecimento, loucura e morte. 
Finalmente, ao pólo D, de disciplina, pertencem as no vas 
tecnologias de poder, tanto as que se exercem sobre identidades 
reconhecíveis e manipuláveis segundo o princípio da razão calculadora, 
funcáonal e administrativa, como as que se abatem sobre identidades 
debilme nte estruturadas e passívei s de manipulação mediante a 
147 
evocação calculada de forças s uprapessoais encarnadas em figuras 
carismáticas o u projetadas e m lendas e mitos saudosist as o u 
revolucionários. 
Estes pólos atraem-se e repelem-se. As linhas cheias ligando-os 
dois a dois correspondem às suas mais ou m enos dissimuladas relações 
de afinidade e complementaridade. Para nosso uso, podemos designar 
estru; superfícies com o nome de alguns dos personagens da história. 
Teríamos, assim, uma superfície Betrtham ligando o liberali!\mo ao regime 
disciplinar. Nesta superticie os procedimentos disciplinares encontram-
se com seus objetos precípuos - os indivíduos Jivres -e, na direção 
oposta, os átomos sociais encontram-se com seus controles próprios. 
Todos saem fortalecidos deste encontro. A linha que liga o liberalismo 
ao romantismo pode ser designada como superfície StUilrt Mill. Nela 
os ingredi e ntes românticos alimentam os projetos de vida dos 
indivíduos, e estes, por sua vez, acolhem os elementos românticos na 
intimidade de seus lares e, mais ainda, de suas fantasias . Novamente, 
aqui. todos se revigoram nesta coalizão. Finalmente, a linha que liga a 
disciplina ao romantismo poderia ser chamada de superfície Wagner. 
Nesta superfície articulam-se as forças e o poder da Vida e da Vontade 
(tudo em maiúsculas, como convém) aos procedimentos de contro le 
carismático e docilizadores da disciplina. 
Obviamente, não são os mesmos aspectos de cada pólo q ue 
entram em contato com um ou outro dos dois outros vértices. Há 
afinidades entre, por exemplo, determinados aspectos do individualismo 
liberal e as práticas disciplinares e entre outros aspectos do liberalismo 
com as idéias e modos românticos. O mesmo vale para as outras 
combinações. Isto significa que, paralelamente às linhas que ligam entre 
si os três pólos, há outras sinalizando a su~ mútua rejeição. Rejeição. 
porém, não consum ada numa separação efetiva. D esta tensão 
persistente gera-se um território novo e, no século XIX, ainda sem nome. 
É da natureza des te e spaço que e le seja um espaço de 
desconhecimento. As relações de coali zão e de conflito que o 
constituem sobrev ivem numa certa clandestinidade. Em particular, a 
superfície Bentham e, mais ainda, a superfície Wagner, ou seja, as 
afinidades entre liberalismo e romantismo, de um lado, e os 
procedimentos disciplinares, do outro, são alvo de uma séria interdição 
cognitiva. As vidas vivida.<; no interior deste espaço são vidas cindidas. 
sobre as quais pesam os véus da ignorância e do esquecimento. 
148 
As di versas versões contemporâneas da ps icologia. que se 
cstahclecerão nesse território no final do século XIX c infcio do XX 
(quando o território da ignorânda sofrer algumas transfo rmações 
decisivas), vão se aproximar mais ou menos de uma das três superfícies. 
Há psicologias claramente próximas da superfície Bentham, como os 
comportamcntalismos di sciplinadores.Há outras mais próximas da 
superfície Sruart Mill; penso , aqui, como exemplo, em algumas leituras 
americanas da psicanálise, como a ·psicologia do se/f, de Kohut. Há, 
fina lmente, as que se aproximam da superfície Wagner, libertárias, 
e xpressivistas, profundamente domesticadoras; aqui se encaixam todos 
os 'gurus', bruxos c 'fazedo(es de cabeça', q uase que indepen-
dentemente de suas idéias. se é que as têm. 
Ao longo de cada superfície será ainda possível diferenóar as 
escolas psicológicas ou as diferentes leituras de uma mesma escola pela 
sua maior ou menor distância em relação a cada vértice do triângulo. 
Por exemplo , sobre a superfíc ie Stuart Mill podemos situar a 
'psicanálise do ego' próxima ao vértice liberal c a 'terapia não-diretiva' 
de Rogers, próxima ao vértice romântico. Paradoxalmente, esla maior 
proximidade R coloca Rogers, sem que isto possa ser facilmente acei to 
e compreendido pelos rogerianos, mais próximo à superfície Wagner 
(recorde-se, porém, os 'espetáculos de não-diretividade' em que Rogers 
exibia seus 'solos' de compreensão cmpática diante de uma platéia de 
disdpulos 'semimesmerizados'}. Em contrapartida, também quem se 
aproxima muito do pólo liberal está se acercando da superfície Bentham: 
os pressupostos funcionali stas e a índole adaptativa da psicanálise do 
ego, por exemplo, já foram sobejamente explicitados. 
Algumas destas psicologias p<~rcccm perfeitamente s atisfeitas 
consigo ~esmas e dispostas a contribuir para o esquecimento do próprio 
processo constitutivo do território que ocupam. É realmente d ifícil para 
quem se !\itua muito próximo a uma das s uperfícies admitir seus 
compromissos com o pólo de que mais se distanciou e que, no e ntanto, 
é um elemento constitutivo do seu territóri o. Outras, no e ntanto, 
parecem interessadas em recordar. Será possível, contudo, empreender 
a recordação como tarefa crítica conscrvand<rse no lugar do psicólogo? 
149 
evocação calculada de forças s uprapessoais encarnadas em figuras 
carismáticas o u projetadas e m lendas e mitos saudosist as o u 
revolucionários. 
Estes pólos atraem-se e repelem-se. As linhas cheias ligando-os 
dois a dois correspondem às suas mais ou m enos dissimuladas relações 
de afinidade e complementaridade. Para nosso uso, podemos designar 
estru; superfícies com o nome de alguns dos personagens da história. 
Teríamos, assim, uma superfície Betrtham ligando o liberali!\mo ao regime 
disciplinar. Nesta superticie os procedimentos disciplinares encontram-
se com seus objetos precípuos - os indivíduos Jivres -e, na direção 
oposta, os átomos sociais encontram-se com seus controles próprios. 
Todos saem fortalecidos deste encontro. A linha que liga o liberalismo 
ao romantismo pode ser designada como superfície StUilrt Mill. Nela 
os ingredi e ntes românticos alimentam os projetos de vida dos 
indivíduos, e estes, por sua vez, acolhem os elementos românticos na 
intimidade de seus lares e, mais ainda, de suas fantasias . Novamente, 
aqui. todos se revigoram nesta coalizão. Finalmente, a linha que liga a 
disciplina ao romantismo poderia ser chamada de superfície Wagner. 
Nesta superfície articulam-se as forças e o poder da Vida e da Vontade 
(tudo em maiúsculas, como convém) aos procedimentos de contro le 
carismático e docilizadores da disciplina. 
Obviamente, não são os mesmos aspectos de cada pólo q ue 
entram em contato com um ou outro dos dois outros vértices. Há 
afinidades entre, por exemplo, determinados aspectos do individualismo 
liberal e as práticas disciplinares e entre outros aspectos do liberalismo 
com as idéias e modos românticos. O mesmo vale para as outras 
combinações. Isto significa que, paralelamente às linhas que ligam entre 
si os três pólos, há outras sinalizando a su~ mútua rejeição. Rejeição. 
porém, não consum ada numa separação efetiva. D esta tensão 
persistente gera-se um território novo e, no século XIX, ainda sem nome. 
É da natureza des te e spaço que e le seja um espaço de 
desconhecimento. As relações de coali zão e de conflito que o 
constituem sobrev ivem numa certa clandestinidade. Em particular, a 
superfície Bentham e, mais ainda, a superfície Wagner, ou seja, as 
afinidades entre liberalismo e romantismo, de um lado, e os 
procedimentos disciplinares, do outro, são alvo de uma séria interdição 
cognitiva. As vidas vivida.<; no interior deste espaço são vidas cindidas. 
sobre as quais pesam os véus da ignorância e do esquecimento. 
148 
As di versas versões contemporâneas da ps icologia. que se 
cstahclecerão nesse território no final do século XIX c infcio do XX 
(quando o território da ignorânda sofrer algumas transfo rmações 
decisivas), vão se aproximar mais ou menos de uma das três superfícies. 
Há psicologias claramente próximas da superfície Bentham, como os 
comportamcntalismos di sciplinadores. Há outras mais próximas da 
superfície Sruart Mill; penso , aqui, como exemplo, em algumas leituras 
americanas da psicanálise, como a ·psicologia do se/f, de Kohut. Há, 
fina lmente, as que se aproximam da superfície Wagner, libertárias, 
e xpressivistas, profundamente domesticadoras; aqui se encaixam todos 
os 'gurus', bruxos c 'fazedo(es de cabeça', q uase que indepen-
dentemente de suas idéias. se é que as têm. 
Ao longo de cada superfície será ainda possível diferenóar as 
escolas psicológicas ou as diferentes leituras de uma mesma escola pela 
sua maior ou menor distância em relação a cada vértice do triângulo. 
Por exemplo , sobre a superfíc ie Stuart Mill podemos situar a 
'psicanálise do ego' próxima ao vértice liberal c a 'terapia não-diretiva' 
de Rogers, próxima ao vértice romântico. Paradoxalmente, esla maior 
proximidade R coloca Rogers, sem que isto possa ser facilmente acei to 
e compreendido pelos rogerianos, mais próximo à superfície Wagner 
(recorde-se, porém, os 'espetáculos de não-diretividade' em que Rogers 
exibia seus 'solos' de compreensão cmpática diante de uma platéia de 
disdpulos 'semimesmerizados'}. Em contrapartida, também quem se 
aproxima muito do pólo liberal está se acercando da superfície Bentham: 
os pressupostos funcionali stas e a índole adaptativa da psicanálise do 
ego, por exemplo, já foram sobejamente explicitados. 
Algumas destas psicologias p<~rcccm perfeitamente s atisfeitas 
consigo ~esmas e dispostas a contribuir para o esquecimento do próprio 
processo constitutivo do território que ocupam. É realmente d ifícil para 
quem se !\itua muito próximo a uma das s uperfícies admitir seus 
compromissos com o pólo de que mais se distanciou e que, no e ntanto, 
é um elemento constitutivo do seu territóri o. Outras, no e ntanto, 
parecem interessadas em recordar. Será possível, contudo, empreender 
a recordação como tarefa crítica conscrvand<rse no lugar do psicólogo? 
149 
Notas 
I . A conexão entre Bentham e Skinner é praticamente óbvia para quem conheça 
os dois autores. Para os que não conhecem o pensamento skinneriano, sugiro 
a leitura de qualquer texto de Skinner que trate da análise ou do delineamento 
de sociedades e culturas como, por exemplo, os artigos sobre o tema 
publicados em Comingências de reforçamento e o romance utópico Walden 
/1. Uma excelente análise do pensamento político do autor foi realizada por 
Maria Amália Pie Abib Andery (1990). 
2. De muito me valeu. entre outros, o trabalho de I. Berlin ( 1981) sobre Stuan 
Míll no contexto da história do liberalismo. 
3. A estas razões seria também necessário acrescentar as oriundas de uma nova 
conjuntura política em que a classe operária, através de sindicatos e partidos 
de massa, começa a ter uma presença política substancial e que exige uma 
mais eticieme e organizada presença política e repressiva do Estado burguês. 
4. Nesta interpretação do romantismo, além do contato com as obras literárias 
c musicais de autores da época e dos elementos oferecidos por Gusdorf ( 1982 
e 1984), tirei grande proveito do livro de Morse Peckham. Beyond the tragic 
visíon. The quest for idemity in lhe ni11etecnth ceniury•.Este ensaio de Peckham, 
ao menos entre nós muito pouco divulgado, será também uma fonte 
indispensável para o próximo capítulo. 
5. Esta questão recebeu um tratamento original por Sennen (1978), em que me 
inspirei para a presente análise. 
150 
PARA ALÉM DO ESTILO. 
UM LUGAR PARA A PSICOLOGIA 
No capítulo IV deste livro l"onnulci a tese de que ao longo de 
todo o século passado os processos de subjetivação enraizaram-se em 
um território triangular balizado pelos valores e procedimentos 
iluministas, pelos modos românticos e pelas novas práticas de exercício 
de poder. que, no conjunto, constituem o regime disciplinar 
radiografado por Foucault ( 1977). Vimos. então. como estes três 
vértices criam entre si vínculos complexos, marcados por mútuas 
afinidades c mútuas oposições. O caráter constitucionalmente conflitivo 
deste espaço o tornaria um território de desconhecimento, já que 
qualquer posição dentro dele contém em si aspectos interditados à 
consciência reflexiva. 
Ora, o que vai caracterizar a segunda metade do século XIX, 
prolongando-se numa trajetória sinuosa, · mas reconhecível ao longo 
do século XX, são algumas alterações nos pesos específicos, nas 
formas de manifestação e modos de operação daqueles pólos. Em linhas 
gerais, expandiram-se e aprofundaram-se as práticas disciplinares à 
medida que se foi configurando o que alguns autores denominam de 
sociedade administrada ou capitalismo tardio (Haberrnas, 1978 e 1981). 
Os procedimentos de exame, avaliação, programação e controle foram 
invadindo de forma insidiosa todos os refúgios em que os indivíduos 
procuravam se abrigar do liberalismo e em que procuravam se nutrir e 
desenvolver com espontaneidade as personalidades românticas. Com 
isso. a separação entre esferas pública e privada perdeu muito da sua 
151

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