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edufes EDITORA DA l.JNIVERSl:>ADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO REITOR I Rubens Sergio Rasseli V1cE-REITOR I Reinaldo Centoducatte SECRETÁRIA DE CULTURA I Rosana Paste Coordenadora da Edufes I Elia ~/larli Lucas CONSELHO EDITORIAL Cleonara M. Schwartz, Fausto Edmundo Lima Pereira, Francisco Mauri de Carvalho, João Luiz Cal mon Nogueira ela Gama, José Armínio Ferreira, Juçara Gorski Brittes, Maria Cristina C. Leandro Pereira, Maria José Vieira Matos, Márcio Paulo Czepak ,Waldir Cintra de Jesus Júnior e Wilberth Clayton Ferreira Salgueiro REVISÃO DE reo E NoRMATIZAÇÃO BIBUOGRÁFICA I Lucileide Andrade de Lima do Nascimento EDITORAÇAO, CAPA E PROJETO GRÃF1co I Denise Pimenta Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) ___ (Bib_lioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) P769 Política social, trabalho e subjetividade I Vania Marla Manfroi e Luiz Jorge Vasconcellos Pessõa de Mendonça (organizadores). - Vitória : EDUFES, 2008. 228 p. : il. ; 21 crn Universidade Federal do Espírito Santo. Programa de Pós-Graduação em Política Social. Bibliografia. ISBN: 978-85- 7772-026-2 1. Políticas públicas· Brasil. 2. Subjetividade .. 3 . .A.dolescentes - Aspectos sociais· Espínto Santo (Estado). 4. Drogas - Aspectos sociais - Vitória, Região Metropolitana de (ES). 5. Pobreza. 6. Brasil· Política social. l. Manfroi, Vania Maria. 11. Mendonça, Luiz Jorge Vasconcellos Pessõa de. lii. Universidade Federal do Espírito Santo. Programa de Pós-Graduação em Política Social. CDU: 316 SUMÁRIO Apresentação 7 Introdução 11 Parte 1 TRABALHO, INFORMALIDADE E FINANCIAMENTO DAS PolfTICAS PúBLICAS 17 Informalidade e Precarização no Mercado de Trabalho Brasileiro Liana Carleial e Manoel Luiz Malaguti 19 A Questão Metodológica na Discussão sobre a Centralidade do Trabalho Paulo Nakatani 47 Política Econômica e Políticas Sociais, de Fhc a Lula Reinaldo Carcanholo e grupo GEPEBra 67 Parte 2 ANALISE DE Pouncxs Seems ' 95 Um Regime Único de Aposentadoria no Brasil: Pontos para Reflexão Rosa Maria Marques e Alain Euzéby 97 A Política Social para Crianças e Adolescentes no Governo Lula: Mu dança ou Continuidade? Vania Maria Manfroi 113 O Estatuto da Criança e do Adolescente e Seus Novos Paradigmas: Considerações a Respeito do Adolescente em Conflito com a Lei no Estado Do Espírito Santo Eclinete Maria Rosa, Patrícia Calman Rangel, Érika Da Rós Cardoso, I lumberto Ribeiro Júnior 131 PoúTICA SOCIAL,TRABALHO E SvBJEnVIOADE somente sua pobreza para valorizar e confiar em suas competências. As entrevistas com os adolescentes e jovens mostram que o pro grama de ação complementar à escola, desenvolvido por ONGs, põe ênfase no sentido coletivo do projeto de vida, ou ainda no engajamen to cívico e bem público. Os adolescentes colocaram-se como sujeitos ativos do processo de mudanças na sociedade, elevaram o seu nível de participação política e estão utilizando a ampliação de suas habilidades em favor de seus interesses coletivos: conservação do meio ambiente, controle da qualidade da água e da poluição dos rios na região onde mo ram; melhoria das condições de vida da comunidade, campanhas con tra a mortalidade infantil, melhoria da qualidade da educação, acesso à cultura, ao lazer, redução do trabalho infantil, denúncia de maus-tratos das crianças e dos adolescentes e de exploração sexual, conquista dos seus direitos, movimentos nacionais pela paz e contra a violência, entre outros. Por meio da participação nas ONGs estão rompendo com a visão que os desqualifica e os denomina fracassados e incompetentes. REFERËNCIAS BARATA, Oscar Soares (Coord.l, Política Social. Lisboa: Instituto Su perior de Ciências Sociais e Políticas, 1998. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. LEE, Judith. The empowerment approach to social work practice. New York: Columim University Press, 1994. SILVA, Maria Liduína de Oliveira. Proteção integral e ações comple mentares: uma articulação entre Assistência Social e Educação. São Paulo: Cenpec, 2003. SPOSATI, Aldaíza. Vida urbana e gestão da pobreza. São Paulo: Cor tez, 1988 RODRIGUES, Maria Lucia. Horizontes do educador. CONGRESSO INTERNACIONAL DE Vi\LORES UNIVERSAIS E O FUTURO DA SOCIEDADE, 2001, São Paulo. Anais ... São Paulo: [s.n.], 2001. 190 PARTE 3 I POBREZA, EMANCIPAÇÃO e 5UBJETlll'AÇÃO POLÍTICAS DE SUBJETIVAÇÃO Leila Domingues MACHADO* Cadaformação histórica vê e faz ver tudo o que pode assim como diz tudo oque pode em função dascondições de enunciado e devisibilída de (DELEUZE,1988, p. 68) . O termo políticas de subjetivação se refere a um processo contínuo de produção social da subjetividade no que diz respeito à criação, bem como, à mortificação, da vida humana em sua integralidade. Dito de outra forma, a subjetividade não é uma instância privada e estanque do meio, também não é um receptáculo desse mesmo meio. Há entre subjetividade e sociedade uma produção que se dá em conjunto. Assim, determinadas condições de vida criam formas de se estar no mundo. Os aspectos econômicos e culturais, a cidade, o emprego e o desem prego, a escolaridade e o analfabetismo, o medo, a violência, a miséria, os fundamentalismos religiosos, as guerras, as etnias, as diferenças, os preconceitos, a solidariedade, os projetos de vida, a falta de perspecti va, as políticas públicas, dentre tantos outros aspectos, se misturam e dão corpo ao que se chama subjetividade. Todas as políticas que se en contram em curso no campo social produzem e expressam, ao mesmo tempo, modos de vida. Há uma corporeidade histórica e singular que ressoa as diferentes facetas com que valores, saberes, crenças se efetivam em uma determi nada época. Formas de humanidade, de política, de conhecimento, en fim, formas de vida se engendram nesse processo. Os contornos dessas transformações nos assinalam para a impossibilidade de naturalizarmos um corpo históri~o que se metamorfoseia no embate de forças que, no presente, reverberam variações na subjetividade. Mas, o que chamamos de corpo histórico? De que tipo de história se trata? Poderíamos ser tentados a dizer que a história seria um encadea mento de fatos, uma sucessão de fatos distribuídos em uma linha reta e contínua do tempo: passado, depois presente e depois futuro. Partindo de um ponto de origem, seguiríamos acompanhando um fato após ou tro em direção a um suposto ponto de chegada, determinado e inscrito no infinito. * Doutora em Psicologia Clínica PUC-SP, Professora do Departamento de Psico logia, do Programa de Pós-Graduação em Política Social e do Programa de Pós Graduação em Psicologia Institucional. I OUFES j 2008 191 PolfrlCA SOCIAi. TRABALHO E SUBJETIVIDADE A história seria definida como um conjunto de fatos verdadeiros que vão sempre se sucedendo e que vão sempre sendo superados. O passado passou, o presente já está passando e o futuro já vai chegar. O passado explica o presente e no futuro se localiza o ponto de chegada previamente determinado. Numa sucessão contínua de fatos, os con ceitos despontariam como descobertas. Assim, partindo de um ponto de origem, que transcende a própria história, e em direção a um ponto de chegada, que também a transcenderia, o conhecimento seguiria uma evolução linear, neutra, universal e obstinada pela verdade, pelo seu aperfeiçoamento. Nesse tipo de concepção histórica deixam de aparecer muitas his tórias, muitos nomes, acontecimentos, amores e desamores, acertos, equívocos, falhas, e, tudo isso, faz parte da história. Não de uma histó ria asséptica, mas da história que envolve a todos nós e que construímos em nosso cotidiano. A partir de uma outra perspectiva, seria impossível pensar a história como um emaranhado de linhas tortuosas, que vem e que vão, que se misturam, que se tocam e se afastam. Passado, presente passado e fu turo se embaralham. O passado não explica o presente, ele nos mostra aproximações e, sobretudo, diferenças. Não porque evoluímos ou re trocedemos e sim porque sempreocorrem transformações. Uma história sempre localizável, sempre pontual, e que exatamen te por isso não pode nunca ser tratada como uma história universal e neutra, generalista e totalizante. A análise histórica só se torna possível a partir das desnaturalizações, ou melhor,ã-partirdo momeñtoemque todo um contexto sócio-histórico-político-cultural-econômico oferece,. ~ suporte para a sua compreensao. "' " .. Determinadas condições históricas possibilitam a emergência de certos jogos de sa ber e de certas relações de poder. Saberes e poderes que se produzem no emaranhado de muitas histórias, que constituem corpos, que incitam paixões, onde se travam lutas, onde há acertos e desacertos, há dúvidas e se ensaiam respostas e onde questões se proli feram. O conhecimento deixa de ocupar o lugar de verdade-absoluta para assumir a conotação de uma resposta-provisória para as questões que emergem em uma dada época e em um dado lugar. Os conceitos são invenções, são instrumentos de análise, também provisórios e também datáveis. isto porque o mundo muda, porque as pessoas mudam, por que mudam seus prob!emas, mudam suas indagações. Como um con ceito que permaneceria imutável poderia dar conta das transformações que ocorrem? Pode-se fingir que as mudanças não ocorreram ou pode- 192 PARIE 3 J 1>0SREZA, EMANCIPAÇÃO E SUBJETIVAÇAO se ficar repetindo a mesma explicação para o que já se tornou diverso. É preciso pensar o presente historicamente, nem antes e nem fora do tempo, com seus limites e possibilidades. Até porque o possível não é o que está dado e sim nossa ousadia de inventar sonhos e torná-los atuais. A conceituação de subjetividade, presente na obra de Foucault, Guattari e Deleuze, se coaduna a essa acepção de história. De início é preciso que fique claro que ao falarmos de subjetividade não estamos nos referindo à unidade e nem à uniformidade. Osmodos de subjetiva ção colocam-se como subjetividades sempre em processo de mutação. Modos de subjetivação seriam antes maneiras, disposições, meios sem pre diversos com que as configurações subjetivas se engendram. Sugerimos pensar os modos de subjetivação como processos de composição, decomposição e recomposição de sentidos múltiplos, que se forjam nos encontros que experimentamos junto à imprevisibilidade dos acontecimentos que constituem nossas vidas. Vida que é feita de movimentos, de partículas e de forças que se conectam, que se desco nectam e se re-conectam, que se misturam e semetamorfoseiam. Esses movimentos são o expresso de interfaces, de misturas, enfim, de com posições dinâmicas. Nada está parado, portanto, nada se mantém idên tico. A estabilidade, vivida por nós como tão necessária, é sempre pro visória. O curioso é que, muitas vezes, o movimento escapa ao nosso olhar e tornamos estático o que não está parado. No entanto, bastaria deslocar nosso olhar, mudar nossa perspectiva para percebermos esses movimentos. Nesse sentido, a subjetividade também não está parada, os modos de subjetivação se processamjunto à vida e aos seus movimentos, junto aos acontecimentos que se dão no dia-a-dia, sejam eles mais ou menos \ imprevisíveis. Desse modo, precisamos nos mover frente ao que nos acontece. Paraisso,é necessário promovermos incessantemente monta gens que conectam, desconectam, re-conectam o que vemos, ouvimos, sentimos, falamos, pensamos, sonhamos, lembramos, esperamos ... En tretanto, muitas vezes, experimentar a criação de novas montagens se torna algo bastante difícil porque nos grudamos naquilo que temos e no que já conhecemos. A complexidade que delineia a atualidade tem convocado a realiza ção de estudos transdisciplinares com o intuito de lançar algumas re flexões sobre o que vivemos. Um ponto a ser destacado em meio a esse campo problemático se refere aos entrecruzamentos que embaralham poder e vida colocando em funcionamento políticas de subjetivação. Contudo, nosso intuito é muito mais o de percorrer alguns conceitos EDUFES I 2008 193 ' 1( llt-r --------PouTICA SOCIAL, ÎRABALHO E 5USJETIVIDllDE r- '::_yy '(7; I que possam funcionar como 'disparadores' de discussões, apresentado os a partir de três séries: poder, resistência e biopolíticas.- - ------ ---- 51:RIE 1 PoDER Uma situação estratégica complexa nomeada poder, que não coinci de com algo que se possua ou que se doe, nem que se troque ou que se adquira, nem que se retome ou que se perca ou que se guarde. Enfim, o poder não se refere à propriedade e nem a algo substancializado. É poder sem rei, é poder anónimo ou estratégias sem sujeito, que geram, entretanto, um emaranhado de políticas de subjetivação. Poderíamos dizer até que o poder em 'si mesmo' não é nada: o poder funciona. Misturando-se a Nietzsche, Foucault afirma que nomeamos 'poder' às correlações de forças que se fazem por combates, por enfrentamentos, por lutas. Assim, o poder deve sempre ser pensado como relações de poder. Por ser relações de forças, o poder não tem forma e nem é uma re lação entre formas. A relação de forças se faz por afetos, por 'estados de poder' locais, mas não localizáveis por serem móveis, difusos e ins táveis. Pelo poder de afetar e de ser afetado, por afetos ativos (suscitar, incitar etc.) e afetos reativos (ser incitado, ser suscitado) presentes em cada força. "O poder de ser afetado é como uma matéria· da força, e o. , -=-.poder de afetar é como urna/função da força" (DELEUZE, 1988, p. 79). Embora essa 'matéria' e essa 'função' não tenham ainda uma forma. Somente quando as relações de força se atualizam, quando se encarnam, é que assumem formas, percorrendo todo o campo social nas formas do dizer e nas formas do ver. O poder não vê e não fala, mas faz ver e falar. Enquanto o poder é relação de forças, é exercício, o saber é relação de formas, é regulamento. Entre ambos há heterogeneidades, press u po sições entrecruzadas, capturas recíRrocas e imanência mútua. 52.. poder . envolve matérias.não formadas ~~ão formalizadas, enquanto o-saber envolve funções forrnallzadàs'ê'fiiatérias formadas. As relaçöc. de forças desestabilizam as formas, alteram suas direções e contorno Enquanto os saberes dão forma a estas relações de força. Pensar o poder como anônimo ou como estratégias sem sujeito näe se refere a urna ausência de pessoas, grupos ou lnstltuíções envolvld.i-, nesse exercício. O anonimato se. refere a um deslocamento da questão 'Quem tem o poder?' para~~ornó_ ~rn_ poder se exércêr Quer;1 tem (J poder seria antes uma questao labtrfntlca Isso porque o poder e onlpn sente e ao mesmo tempo um não lugar fixo ou central. Está em tudo 1• , -i¡ ._ e ,,., 1 )1 i~/.){10 · 194 . ú) ~ +Q..... (.fa ..r. PARTE 3 I POBREZA, EMAIKCPllÇM E SUBIETlVllÇÁO em toda parte, se produz a cada instante, no entanto, não engloba tudo sob uma invencível unidade. A resistência é primeira. Ela não é poder e nem contra-poder, não é uma recusa antes uma permanente insistência. O poder 'não é tudo: entretanto, ele quer nos fazer continuamente acreditar em sua onipotência. Esta se desfaz na ausência de invencíveis entidades globais. O que faz com que não haja um alvo inerte e nem uma hegemonia nos mecanismos de poder. ...começar a análise pelo 'como' é introduzir a suspeita de que o 'poder' não existe; é perguntar, em todo caso, a que conteúdos significativos podemos visar quando usamos este termo majestoso, globalizante e substantiñcador; é desconfiar que deixamos escapar um conjunto de realidades bastante complexo, quando engatinhamos indefinidamente diante da dupla interrogação: 'O que é o poder?"De onde vem o poder? (FOUCAULT, 1995, p. 240). Não importa tanto 'quem' e sim 'o que faz funcionar: isso porque o 'quem' é contingente ou numa dada situação poderia ser qualquer um de nós. "Todos nós temos fascismo na cabeça; e mais fundamentalmen te ainda: todos nós temos poder no corpo': Tal deslocamento traz à cena a pertinência da análise de nossas diversas práticas, de quais regi mes elas instauram. Parece-nos mais familiar eleger vilões, entretanto, é preciso pensar sobre o podercomo algo que se exerce, que circula e forma redes, algo que cria e transita pelo que criou, coloca em xeque os. ,maruquersrnos, E se nos apaixonamos pelo poder é porque este funciona escamo teando sempre sua face intolerável. Não se quer á. ~ominaç~,>não há aí um pacto. Trata-se de sedução. Quanto mais acreditamos dominar e controlar, mais nos deixamos capturar por dispositivos de dominação e controle. O desejo de ser dominado ou a suposta aquiescência ao do mínio ou a servidão seria a dupla face do desejo de dominar. Em outras palavras, quanto mais desejamos controlar mais estamos submetidos ao poder do controle, mais o reverenciamos. Imanência do poder que solicita sempre análises do que fazemos funcionar por diferentes vias, mas que não coincide corn transcen dentes. O poder não é algo exterior que vem incidir sobre nós. Nem, tampouco, é fixo, imutável ou se exerce de cima para baixo, o poder circula e, assim, torna-se inconcebível pensa-lo como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo. Os regimes de dominação funcionam em cadeia, ou melhor, a dominação não é de 'um' sobre 'todos; mas de todos sobre todos e cada um. Mesmo que possamos eleger num dado momento certo foco, nos equivocamos ao concebê-lo como central. COUFES I 2008 195 < 196 11 •UFES I 2008 197 l?olfTICA SOCIAi., ÎRA6ALHO E SUBJETIVIOAO!: , PART£ 3 I POBREZA, EMANCIP1\çAo E sunJETIVAÇAo O poder coloca em jogo relações entre ìndivfduoszentre grupos, e são essas relações de poder que cabe serem analisadas. Entretanto, a idéia de relação não deve ser pensada como uma ação direta sobre o ou tro. A violência sim é uma ação direta sobre o outro, sobre seu corpo. O poder, ao contrário, envolve uma ação sobre uma ação possível. É preciso que entre os indivíduos envolvidos haja um espaço de liberdade, ou melhor, que a ação não se faça sobre um alvo inerte e sim que nessa ação sobre ação se abram campos de resposta, reações, efeitos, inven ções. A violência e o consentimento podem ser seus efeitos ou instru mentos, mas nunca princípio. A coação seria uma forma de relação já saturada ou a interrupção da própria relação. Só há relaçõe¿_~od~ onde há possibilidade de resistência. O poder ordena as probabilidades-e o eventuali é da ordem do governo (poder de afetar) mais do que do afrontamento. ...é um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeito~ivos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, arnplla'òli limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolu tamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir (FOUCAULT, 1995, p. 243). constituem os súditos, ou ainda, como os corpos, os desejos, os pensa mentos são capturados num regime de sujeição. Percorrer os exercícios de poder em suas extremidades, em suas formas mais regionais e locais, em sua capilaridade, lá onde investe instituições, onde forja instrumen tos de intervenção. Pois ao mesmo tempo em que se retiram de cena uma unidade e um centro, também se retira a culpa, os maniqueísmos, os dualismos ontológicos, ou melhor, esses não são fundamentos do poder e sim alguns dos seus possíveis efeitos. A noção de poder em Foucault (1985; 1999), não se confunde com um modo de sujeição que se faça sob a forma da lei ou de um sistema global e hegemônico de dominação localizado num Estado, num esta belecimento, numa classe, num grupo, num indivíduo ou em qualquer outro ponto. Não se trata do modelo do direito e nem do modelo da soberania. Tais formas regulamentadas são efeitos de conjunto dos di versos mecanismos de poder e de seus instrumentos . Um regime de dominação não é conseqüência da ação de um in divíduo, de uma classe, de um Estado, ao contrário, um regime de dominação se configura por múltiplos mecanismos de poder que vão constituindo formas de Estado, de classe, de individualidade. Mas ao mesmo tempo em que essas configurações são efeitos desses múltiplos mecanismos também são seus intermediários, ou seja, o poder transita pelo que constitui ou tudo o que constitui também o faz funcionar. Em suma, cada um de nós, em cada um de nossos atos, pode reforçar mais ou menos muitos dispositivos de poder. Em contrapartida, cada um de nós, em cada uma de nossas práticas cotidianas, pode dar vazão, fazer expandir múltiplas resistências, enfim, criação de ilimitadas linhas de fuga aos regimes de dominação que se configuram em nossos dinamis mos espaço-temporals. Estados de poder - disposições/ modos de se estar - localizáveis (' instáveis, pois engendrados nas correlações de forças, em seus desequl líbrios. f:- correlação de forças não é um jogo entre forças mais fortes é1 forças mais fracas, há diferença, heterogeneidade, instabilidade, mobl lídade. Correlação de forças são processos. Quando se configuram dh tri6Ûiçõesãe poder eapropriações de saber é porque ocorreu um ecru no processor uma parada no processo como diriam Deleuze e GuatC111I (1972, p. 9-1 O). Não em função das forças serem heterogêneas e 1,hn da desigualdade transfigurar-se em coágulos de dominação. E asslm u dispositivos de dominação assumem ares de hegemonia, contudo.a du minação pode ser global e não totalizadora e estável, ou seja, regl1r11 • de dominação estão por toda parte tanto quanto linhas de reslstéru I I que instauram deslocamentos/ que quebram os modelos, que rom1J1 1,1 unidades. É preciso estar atento para as formas com que. cada um de nô•, f, funcionar uma estratégia de dominação, através de diversas téenle ,11 , táticas/ a tornando global. Duplo condicionamento entre estrau 11, globais e táticas locais, nenhuma descontinuidade, porém ncnl1111,1 homogeneidade. Não cabe uma indagação por culpados, mas C(':)t1H1 51:RIE 2 RESISTËNCIAS O poder seria a guerra continuada por outros meios (FOUCAULT, 1999, p. 22). Entretanto, a imagem de guerra não parece ser convocada em suas clássicas polarizações - aliados e inimigos, vencedores e ven cidos -, mas no jogo que comporta as relações de forças, nas multipli cidades presentes no combate, na disseminação desse funcionamento que atravessa e cria instituições, corpos, desejos. Correlação de forças tensa, difusa, desequilibrada, heterogênea, instável, desigual, móvel e contínua. PolfTICA SOClllL,ÎRABALHO E SuaJETIVIDADE ... multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando ca deias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais (FOUCAULT, 1985, p. 88-9). As relações de poder implicam exercícios de liberdade, ou melhor, o poder implica sempre resistências. Na verdade, a resistência é primeira. Só podemos falar em relações de poder quando são possíveis desloca mentos, limites, escapes, reações imprevisíveis. Entre poder e resistên cia há uma incitação recíproca e uma provocação permanente. Não se trata de confronto ou de exclusão entre poder e resistência e sim de um jogo complexo: a resistência é condição de existência do poder e seu suporte permanente, enfim, se não há resistência resta apenas a coerção pura e simples da violência A resistência seria o limite permanente do poder ou seu ponto de inversão. Poder e resistências são irredutíveis e, ao mesmo tempo, indissociáveis. ... no centro das relações de poder e como condição permanente de sua existência, há uma 'insubmissão' e liberdades essencialmente renitentes, não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual; toda relação de poder implica, então, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta, sem que para tanto venhama se superpor, a perderem sua especificidade e finalmente a se confundirern. Elas constituem reciprocamente uma espécie de limite permanente.de ponto de inversão possível. (. ..) Instabilidade, portanto, que faz com que os mesmos processos, os mesmos acontecimentos, as mesma» transformações possam ser decifrados tanto no interior de uma histórln de lutas quanto na história das relações e dos dispositivos de podo, (FOUCAULT, 1995, p. 249). As linhas de resistência, espalhadas por toda a rede de poder, crlam imprevisibilidades no que parecia previsível, incertezas no que pa roc lii certo, possibilidades no que parecia impossível, fugas no que estava capturado. Pontos móveis e transitórios, mais ou menos densos, t1n entanto, seu roçar por corpos e almas criam regiões irredutíveis, pr,I, incitam uma arte de viver. A resistência nos faz insistir, colocar em movimento, nos colee.u mos em movimento, contaminar, possibilitar, deslocar, escolher tn111 198 PARTE 3 I POBREZA, EMAMCIPAÇAD E SUDIETIVAÇÃO quais forças se irá compor. Pois, todas as coisas possuem múltiplos sen tidos que dependem da pluralidade de forças em que estão amparadas. Essa multiplicidade é insistentemente capturada por clichês que a que rem tornar homogênea, que pasteurizam a diversidade de seus senti dos, que transformam as diferenças em oposições binárias, que tentam domar a heterogênese e nos fazer crer que as estratégias de dominação seriam hegemônicas. 51:RIE 3 ßlOPOLfTICAS Foucault distingue duas formas de ação sobre a vida e sobre a morte: o poder soberano e o poder de regulamentação ou biopoder. O so berano tinha direito de vida e de morte com relação a todos, o que significava que por meio do poder soberano se podia 'fazer morrer ou deixar viver' Os súditos permaneceriam vivos. ou seriam eventualmen te mortos, de acordo com as circunstâncias de uma vontade soberana. No entanto, não é sobre a vida que esse dispositivo de poder age, ou melhor, a ação que se dá sobre a vida é a de a extinguir. Não cabe ao po der soberano administrar a vida ou gerir o 'fazer viver. O direito sobre a vida se realiza através do poder de matar. No séc. XIX, podemos acompanhar uma outra forma de direito so bre a vida e a morte, que emerge nesta época com maior visibilidade, mas vem se constituindo desde meados do séc. XVII e possui, na atua lidade, sutis e pregnantes efeitos. O poder de regulamentação funciona fazendo viver e deixando .morrer. O biopoder somente pôde se cons tituir em função de uma tecnologia de poder que já se disseminava, ou seja, o poder disciplinar. Estas tecnologias de controle sobre o corpo individual criaram um campo de possibilidade para a emergência de um .poder que incide sobre a vida da população. O poder de regulamentação seria uma: . .. tecnologia de poder que não exclui a primeira, que não exclui a técnica disciplinar, mas que a embute, que a integra, que a modifica parcial mente e que, sobretudo, vai utiliza-la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplinar prévia (FOUCAULT, 1999, p. 288-9) Em função destas duas formas de poder - disciplina e regulamenta ção- não estarem em um mesmo nível, elas não se excluem e até podem se articular. As 'sociedades de normalização' ressoam, então, o entre cruzamento entre a norma da disciplina e a norma da regulamentação. CDUFES I i.008 199 PARTE 3 I POBREZA, EMANCIPAçAo e sua1envAçAoPounc« SocrM,ÎRABALHOE SUBJETIVIDADE Opoder de regulamentação concebe a morte como algo permanente que corrói, diminui e enfraquece a vida. Todos são portadores da morte, enfim, todos são alvo da necessidade desse controle sobre as possíveis doenças, sobre o acidental, sobre o eventual, sobre o que desvirtua, so bre o que retiraria a vida de um suposto equilíbrio. A população emerge assim como um problema político, econômico e científico, como um problema de poder. O que se quer é o estabeleci mento de uma regularidade através de mecanismos globais de controle. O biopoder quer 'fazer viver e deixar morrer' Seu alvo é a regulamen tação da vida, o controle de seus acidentes, de suas eventualidades, de suas deficiências. Ele engendra 'como se vive' cotidianamente. Todas as biotecnologias visam prolongar a vida. Então, a morte será o que escapa ao poder e por isso o que deve ser escondido, o que deve ser vivido privadamente. O poder tomou poss~ da vida. Ele vai do indivíduo à população,.do corpo à espécie, do privado às cidades. Foucault também nos diz que o advento da bomba atômica intro duziu questões quanto ao poder. É dado ao humano o poder de fabricar a vida até o limite de também fabricar algo monstruoso. O poder que gera também mata a própria vida? O poder soberano teria tomado de assalto o biopoder? Entretanto, o que está em funcionamento não é "fazer morrer e deixar viver" ou a lógica do poder soberano. Talvez, também não seja mais "fazer viver e deixar morrer". Estaríamos diante de um excesso do biopoder que utiliza o 'direito soberano' de matar (lógica de um novo Império?). O excesso do biopoder sobre o direito soberano o aproxima do poder de decidir o que deve viver e o que deve morrer: "se você quer viver, é preciso que você faça morrer, é preciso que você possa matar" (FOUCAULT, 1999, p. 305). Esse 'direito de morte' vai ser exercido de uma forma bastante pe culiar. Ele não diz respeito a um poder soberano ~d~ fa~e~ morrer, nem a um enfrenta mento e sim a uma\ rèl~ão pautada no biológico:O que significa que a morte assume o se'fflrC!o de preservação da própria vida. . É uma morte que se justifica pela vida. Poderíamos dizer que seria uma espécie de 'fazer morrer para fazer viver' ou 'fazer viver fazendo mot· rer: Não é uma coincidência que essa lógica se pareça tanto com CJ', pressupostos nazistas. O que se quer matar não é um inimigo ou um adversário no sentido político. O que se quer matar é um perigo, os que se tornaram peri[Jt.> sos para a-vida de uma p~pulação,. A morte respaldada pelo blopodn êoinciêfè ëõm a eliminação de um perigo biológico ou com a ellmlun ção do que ameaça à vida. Os terroristas ameaçam a vida e por ISS(') r, extermínio deles é 'justificado' e 'aceito; ou melhor, naturalizado, ''A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo" (FOUCAULT, 1999, p. 306). E o que seria este racismo? Um corte no domínio da vida entre o que deve viver e o que deve morrer. Deixar morrer ou fazer morrer, esse excesso do biopoder que geri, gera, e também cessa, cansa, priva de vida, faz funcionar muitas formas de morte. Não se trata somente do assassinato de menores infratores ou de detentos em rebelião ou de sem-terras que invadem propriedades ou de populações que não cumprem os 'acordos de paz' da Otan. Não se trata somente dos tantos que morrem de fome ou de doenças banais. Tirar a vida não é somente "o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte ou, pura e simples mente, a morte política, a expulsão, a rejeição etc" (FOUCAULT, 1999, p. 306). Em suma, sob a forma de perigo biológico ou de ameaça à vida de alguns se justifica politicamente a eliminação de muitos. Produz-se uma diversidade de formas de exclusão - social, cultural, econômica, política ... - até um limite em que se exclui a vida sob o intuito de garan tir a própria vida. A sensação de que o perigo está disseminado por toda a parte for talece o exercício do biopoder. Todos querem garantir a própria vida mesmo que isso incorra na morte de outros. Na verdade, o outro que se quer matar perde o estatuto de cidadania para ser recoberto pelo da periculosidade. Assim, não é uma pessoa que se quer matar e sim um perigo eminente. A morte causa menos dor e mais alívio. As tantas e recentes cenas de "guerra" provocam mais uma torcida em favor de uma 'raça' não-terrorista vencedora do que uma perplexidade frente aos níveis de degradação humana. A vida parece ter se tornado um produto a ser consumido. O que pode fazer corn que associedades estejam mais voltadas para os códigos ' do consumidor do que para as reivindicações de cidadania. Neste caso, se o produto vida encontra-se ameaçado é preciso colocá-lo disponível. A 'quebra do código' não se coloca, desta forma, nas 'mortes para ga rantir vidas' ou no 'fazer morrer para fazer viver' e sim na interrupção do consumo ou na interrupção da vida percebida como produto a ser consumido. I fv ¡:o. 1 'V . l · ' ' · ' ' 4 • ' " , • ,¿ ~.,,. , I - L..J Quando ~da um funciona por rivalidade, não se acredita que o que está em funcionamento são mortificações. O maior poderio sobre a vida, ou melhor, a maior eficácia do biopoder ao fabricar modos de vida, se coloca exatamente através da maior naturalização de seus dispositi vos. O poder realiza uma eficaz política sobre a vida cada vez que cada um de nós reforça, incita, vigia, majora, organiza, ordena, multiplica, ., EDUfES I 2008( C;~\_. \~ v ti L 201200 202 .., . EDUFES I 2008 203 POLITICA SOCIAL, ÎRA9.~LHO E SußJEl'IVJDADE PARTE 3 I POBREZA, EMAl~CIPAÇÃO E SUßJETIVAÇAO qualifica, mede, avalia, hierarquiza ou faz funcionar uma complexa rede de dispositivos de controle. Há uma proliferação de tecnologias políti cas que vão investir todo o espaço-tempo da existência. Contudo, se as tecnologias de poder tem incidido cada vez sobre a vida e sobre as subjetivações, é também por elas que passam as maiores forças de resistência. A vida insiste em escapar continuamente. Quanto mais se é alvo de controle tanto mais po~emos acionar em nossas vidas focos de resistências: "as forças que resistiram se apoiaram exatamente naquilo sobre o que ele [poder] investe - isto é, na vida e no homem enquanto ser vivo" (FOUCAULT, 1985, p. 186). Os processos de poder se caracterizam menos por uma potência sem limites e mais por uma ineficácia constitutiva. Pois o poder é cego e produz cegueira, faz ressoar impotências, é onipresente e não oniscien te. Por isso a necessidade de produção de tantas tecnologias de domi nação e de controle. O poder freqüentemente está em um impasse ou frente a frente com o que lhe escapa. "Quando o poder se torna biopoder, a resistência se torna poder da vida, poder-vltal.." (DELEUZE, 1988, p. 99). Desta forma, podemos pensar que as políticas que incidem sobre a vida abarcam tanto dispo sitivos de biopoder quanto exercício de resistências. Biopolíticas que envolvem poder sobre a vida e potência de vida. Tensão que se faz na gestão cotidiana de cada uma de nossas vidas. Biotecnologias que não devam responder somente aos interesses do capital. Necessidade inces sante de avaliarmos o quanto trabalhamos para a mortificação ou para a expansão da vida. Necessidade incessante de escolhas que respondam mais aos princípios éticos do que ao consumo dos modelos de sucesso amplamente ofertados no mercado. ...a resistência vem primeiro, na medida em que as relações de poder se conservam por inteiro no diagrama, enquanto as resistências estão necessariamente numa relação direta com o lado de fora, de onde os diagramas vieram. De forma que um campo social mais resiste do que cria estratégias, e o pensamento do lado de fora é um pensamento da resistência (DELEUZE, 1988, p. 96). PoLíTICAS DE SUBJETIVAÇÃO _!.s políticas de subjetivação, biopolíticas, vinculadas a um processo C,<?_ntÍnUO de produção_social da- subjetividade, pÓdem se encaminhar !anto para a mortlficação quanto para a promoção de melhores con dições de vida. No-entanto, acreditarmos que elas não nos dizem res pelte, corño se tratasse de uma instância transcendente, faz com que 'lavemos nossas mãos' Mas, elas nunca ficam limpas! De que tipo de vida se fala? De que tipo de existência? Como inven tar linhas de resistência à sobrevida? Temos nos tornado cegos, mudos e surdos para a transmutação desse estado de coisas. Entretanto, cada um de nós é um espaço-tempo de guerra. E... , ' . . Foucault é um pensador do duplo, ou melhor, um pensador das multiplicidades. Não há em Foucault proposições de conceitos abso lutos ou que funcionem por generalizações. Neste sentido, Foucault busca em Maurice Blanchot (1987; 2001) a idéia de Fora, para falar de um pensamento do Fora ou de um pensamento da resistência. Onde a palavra Fora assumiria o sentido de algo mais longínquo que toda exte rioridade e, ao mesmo tempo, mais próximo que qualquer interioridade. Um Fora que não nos é exterior e nem tampouco interior. Fora dos dia gramas de poder que nos capturavam e que ajudamos a difundir. Fora de nossos interesses particulares, de nossas certezas. Fora como abertura à indeterminação, ao inimaginável, ao indizível, ao inumano, ao impen sável, ao imprevisível, ao intempestivo, enfim, uma potência dispersa, onde qualquer forma que se ofereça será sempre demasiadamente velha ou nova, demasiadamente estranha ou familiar (FOUCAULT, 1990, p. 72). As subjetlvaçöes são proc~sos de composição de uma multipllcl dacie:-de forças em devir permanente. Não são o Fora, mas uma Dobra do Fora, uma 'invaginação' do Fora. Tamóém 12or iss_o, as subjetlvaçôc- gù.ärdam essa "potência astuciòsa de resistência". - I...essa guerra está presente em todos os verbos freqüentados por esse mim mesmo, como tatear, olhar, ouvir, comer, beber, trabalhar, escrever, dizer, amar, lutar etc. E em cada um deles, com seus problemas próprios e com as questões que os atravessam, há o risco dos desdobramentos do fazer no vasto pêndulo cadenciado pelo liberar e controlar, cadência perturbada a cada emergência das circunstâncias (ORLANDI, 2002, p. 236). Uma guerra que envolve uma infinidade de controles que nos atravessam, que produzem formatações aos valores dominantes, bem como, linhas de resistência que nos permitem escapar a esses controles, nos forçando a criar outras possibilidades de vida. Por isso, os sentidos precisam escapar às tantas máquinas abstratas de sobrecodificação que funcionam corno indústrias de sentidos seriali zados. Essas máquinas estão espalhadas por tudo, produzindo verdades científicas, políticas, morais, midiáticas ... Não é só informação o que produzem, fabricam gente. Muitas vezes, intoleráveis modos de se estar nos verbos da vida. Os olhos fechados e saturados de imagens. A boca V PoLITICA SoctAL,ÎRA9ALHO E SUBJETIVIDADE cerrada e repleta de palavras gastas. Não é a saturação de imagens que nos faz ver melhor. Não é a saturação de palavras que nos faz ouvir ou dizer outra coisa. Sabemos da curiosa mistura de enriquecimento e empobrecimento que resultou disso tudo até agora: uma aparente democratização do acesso aos dados e aos saberes, associada a um fechamento segregativo de suas instâncias de elaboração; uma multiplicação dos ângulos de abordagem antropológica e uma mestiçagem planetária das culturas, paradoxal mente contemporâneas de uma ascensão dos particularismos e dos racismos; uma imensa extensão dos campos de investigação técnico científicos e estéticos evoluindo num contexto moral de insipidez e de sencanto (GUATIARI, 1993, p. 177). Guattari nos sugere a necessidade de umfii_propriação existen~ que "permitirá a cada um assumir plenamente sua potencialidade pro cessual e fazer, talvez, com que esse planeta, hoje vivido como um infer no por quatro quintos de sua população, transforme-se num universo de encantamentos criadores (GUATTARI, 1993, p. 188):' Talvez, este--- ---seja um meio que nos conduza a possibilitar as palavras dizerem algg_ dlfêrerife do que sempre dizem, a possibilitar o olhar ver algo diferente do que sempre vê, a possibilitar outras formas de vida. Essas formas alternativas de reapropriação existencial e de autovaloriza ção podem tornar-se, amanhã, a razão de viver de coletividades huma nas e de indivíduos que se recusam a entregar-se à entropia mortífera, característica do período que estamos vivendo (1993, p. 191 ). Trata-se da constituição de processos de singularização e é aí que frequentemente se dão as armadilhas das máquinas absfrãtas de sobre-,_ codificação, na medida em que se confunde particular com singular. · O particularse refere ao que é próprio, íntimo, idiossincrático. Ora esse é exatamente o conceito do marketing que mais vende produtos atualmente: um banco só seu, um gerente só seu, um tênis feito sob medida pra você. O singular se opõe ao particular, entretanto, não se opõe ao comum. As singularidades são relativas às diferenças, bem como, o comum, as sim, o comum e o singular se intercambiam na multidão, um conjunto de singularidades cooperantes (NEGRI, 2005). Negri (1988) irá tra balhar a idéia de constituição do comum a partir da noção de comum, como processo de produção ontológico, presente na obra inacabada de Deleuze: La Grandeur de Marx. O comum se opõe ao uno, à unidade, 204 PARTE 3 I POBREZA, EMANCIPAÇÃO E SUBJETIVAÇÃO à soberania do poder, à concepção de poder hegemônico, ele se refere à própria concepção de comunismo, ao "conceito de comunismo que se constrói no livro inacabado de Deleuze" (NEGRI, 1998, p. 41 ). O comum não é o igual. O comum é feito de diferenças, ao mesmo tempo, é condição das mobilizações produtivas (LAZZARATO, 2007). Nesse sentido, a concepção de reapropriação existencial se refere à ética, a uma constituição ética de si. Entretanto, essa constituição de si não pode ser hiperindividual, privatizante, pois isso é o que mais esta mos vivendo e é o que mais nos mortifica. Poderíamos dizer que se trata de uma ética de intercâmbios entre o singular e o comum. O que nos remete ao conceito de complementaridade ou complexidade da física quântica, que poderia ser traduzido da seguinte forma: você quer ser feliz; mas, é possível ser feliz sozinho? Quando você compra ou ganha um carro e coloca alarme, paga caro por seguros, contrata empresas de rastreamento por satélite e ainda fecha os vidros quando para no sinal, porque o seqüestro relâmpago é real, o medo é real, fica evidente que não dá pra ser feliz sozinho. A não redistribuição de renda, as produ ções constantes de desigualdades, de bolsões de miséria absoluta, que bra qualquer suposta 'corrente de felicidade' e aciona um estrondoso alarme que evidencia que as relações de poder se espalham por toda ma lha social redistribuindo constantemente 'quem' se submete e 'quem' é submetido a que. As subjetivações estão em processo. Caso pudéssemos fotografá la, a foto mostrar-nos-ia apenas uma de suas formas, a forma daquele momento. Forma que pode durar mais ou menos tempo, mas que não é imutável. Quando se fala a minha subjetividade, a minha opinião, o meu desejo, não se trata de algo interno que se revela ao exterior. As formas subjetivas são compostas socialmente. Todo sujeito é sempre coletivo. Quando falo muitas vozes falam em mim, muitas histórias atravessam a '·minha história. Embora haja uma composição singular em mim, que me difere de outros, que difere cada um, somente a composição é singular. Os pedaços de que é feita são pedaços partilhados por muita gente. Os regimes de dominação que estão em curso em nosso tempo pro duzem o 'individualismo' como desejo e como necessidade. Demarcar distinções se parece com apólices-seguro de competência e sucesso, deixa-se de ser solidário. Ao mesmo tempo, cada um de nós se perde em meio a uma massa homogênea de gente que pensa igual, se veste igual, deseja igual. As diferenças, ao contrário do que poderíamos supor, são muito pouco exercidas. Sob uma enxurrada de moralismos e preconceitos, quem não está sob o signo dos modelos da época precisa ser calado, EDVFES I 2008 205 POLITICA SOCIAl, ÎRA8ALHO E St18JETIVIOAOE PARTI; 3 I POBREZA, EMAIKIPAÇÃO E SUBJETIVAÇÃO pois incomodam, evidenciam que as coisas podem seguir outros ru mos. Uma reapropriação existencial implica um exercício ético, o que di fere de uma adequação e se remete à promoção de mutações subjetivas coadunadas à resistência e não ao padecimento, reversão das tantas prá ticas de dominação das quais participamos. Este processo envolve ava liações do que cada um de nós faz funcionar, tanto no que diz respeito a si quanto aos outros. Escolhas entre o que e quando faço viver e o que e quando faço morrer, a mim mesmo e aos outros. Invenção de políticas de subjetivação menos coadunadas com o poder do capital e mais com prometidas com a potência da vida. A reapropriação existencial implica pararmos de 'lavar as mãos: implica a participação, a constituição de comuns, a "capacidade de assumir nas próprias mãos as condições bio políticas da existência" (NEGRI, 2005). LAZARATO, Mauricio. O papel da cultura e da comunicação no capi talismo contemporâneo. Seminário A Constituição do Comum: cul tura e conflitos no capitalismo contemporâneo. Vitória, 21 de maio de 2007. NEGRI, Antonio. A constituição do comum. li Seminário Internacio nal - Capitalismo Cognitivo: 'Economia do Conhecimento e a Cons tituição do Comum. Ministério da Cultura, Brasília, 24 de outubro de 2005. Disponível em: http://www.cultura.gov.br. ___ . El exilio. Barcelona: El Viejo Topo, 1998. ORLANDI, Luiz B. Lacerda. Que estamos ajudando a fazer de nós mesmos? ln: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B. Lacerda; VEI GA-NETO, Alfredo (Org.). Imagens de Foucault e Deleuze: resso nâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 217-238.REFERËNCIAS Blanchot, M. 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