Prévia do material em texto
UNIDADE 2 – PSICANÁLISE: TEORIA E TÉCNICA O LEGADO FREUDIANO ATRAVÉS DO SURGIMENTO DAS DIFERENTES ESCOLAS PSICANALÍTICAS 1 O desdobramento do pensamento freudiano e as escolas de psicanálise Como sabemos, Sigmund Freud inventou a psicanálise e revolucionou a história do Ocidente nos séculos XIX e XX com as suas descobertas sobre o funcionamento dos mecanismos psíquicos. Por meio da escuta do paciente, Freud desenvolveu o conceito de inconsciente, sobre o qual se estruturam as suas teorias. A consistência de suas obras e o registro de suas pesquisas com seus pacientes se desdobraram em inúmeras escolas psicanalíticas guiadas por grandes autores, levando à frente conceitos importantes do trabalho freudiano, tais como: o inconsciente e a noção de transferência. Na unidade O Desdobramento do pensamento Freudiano e as escolas de Psicanálise, entraremos em contato com algumas dessas escolas que marcaram a experiência psicanalítica e nos permitiram até pensar sobre questões sobre as quais Freud não tinha se debruçado tanto em seus trabalhos. 1.1 Freud revoluciona a história Freud começou suas experiências clínicas a partir da observação dos atendimentos do médico francês Jean-Martin Charcot com pacientes denominadas histéricas. Charcot trabalhava com o método da hipnose como tratamento, e percebeu que as pacientes obtinham melhora no seu quadro. Sendo assim, a partir da efetividade observada, Freud dá início a seus atendimentos seguindo a metodologia utilizada pelo médico e passa a tentar construir saber e prática sobre as histéricas, pela técnica de hipnose no primeiro momento. No entanto, Freud vai além do seu mestre e entende que a etiologia da histeria tem a ver com uma questão psicológica e não necessariamente orgânica, como era pensado anteriormente por Charcot. Freud vai mais a fundo em seus estudos com essas pacientes e descobre uma origem sexual e inconsciente das manifestações conversivas das histéricas, ou seja, os sintomas de perda da voz, perda do andar, cegueira, surdez apresentados pelas pacientes histéricas, não se devia a uma neurose de fundamento traumático de disposição genital e que culminava na expressão corporal como acreditava Charcot, mas a um trauma que não necessariamente se passava no real, mas de ordem psíquica. Para ele, da mesma maneira que existe a realidade material de um sujeito, existe uma realidade psíquica que é construída e vivida como real por cada um dos sujeitos e memórias que não são acessíveis e/ou que podem ser fabricadas psicologicamente compõem o material inconsciente das pessoas e essas seriam a principal razão da histeria. Podemos dizer que, a partir dessas pacientes, Freud foi montando seu arcabouço teórico e trazendo mais consistência a sua psicanálise, a cura pela palavra. Renato Mezan (2007), dentro da formulação das três feridas narcísicas na história da humanidade, que transformaram a forma de ver o mundo e o homem, dá destaque a Freud, posto que com a evidenciação do inconsciente o autor afirma que o homem não age a partir de uma racionalidade pura, mas que ele também é movido por questões psíquicas inconscientes. A psicanálise de Freud foi composta da parte teórica e da parte prática, que eram construídas inseparalvelmente, no mesmo momento em que aplicava suas técnicas de tratamento, fabricava um saber sobre elas, fazendo seus registros teóricos que hoje compreendem a sua extensa obra de livros. Esses escritos permitiram que muitos estudiosos das dimensões psiquícas do homem dessem continuidade a psicanálise. 1.2 Carl Gustav Jung, discípulo de Freud Jung foi um importante médico psiquiatra suíço que criou a psicologia analítica no século XX. Porém, antes de fundar uma escola com as suas práticas e orientações conceituais, Jung foi um grande adepto das teorias freudianas, principalmente depois de entrar em contato com a obra “A Interpretação dos Sonhos” de Freud. Antes do seu encontro presencial com Freud, em 1907, Jung conduzia suas experiências em um laboratório experimental em Paris, com o seu método de associação de palavras para diagnóstico psiquiátrico. Jung até então tinha apenas contato ávido com as obras freudianas e via nele um importante interlocutor sobre a investigação dos processos da mente humana. Freud, por sua vez, também via com curiosidade as experimentações do jovem psiquiatra. Passaram, assim, a corresponder-se, por meio de cartas ao longo dos anos que culminou no encontro dos dois. O laço foi então estabelecido e eles passaram a trocar muitas impressões e análises sobre casos clínicos. Jung chegou a ser presidente da Associação Internacional de Psicanálise e com a crença de ser considerado um sucessor fiel de Freud, chegou a ser denominado como seu príncipe herdeiro. Uma amizade e admiração que duraram sete anos, até que Jung resolve romper com o amigo por discordar que a origem das desordens psiquícas tinham relação com trauma de etiologia sexual. E Freud, de seu lado, não aceitava que Jung pudesse considerar questões espirituais como fundamento de pesquisa. Em 1930, eles rompem definitivamente e Jung inaugura a sua escola de Zurique com a psicologia analítica, com as suas terminologias próprias, mas ainda assim segue com o conceito de inconsciente apropriando-se e o expandindo. Clique para abrir a imagem no tamanho original Figura 1 - Carl JungFonte: rook76, Shutterstock, 2020. #PraCegoVer: A imagem mostra um selo em preto e branco, com o rosto de Carl Jung, na lateral do selo é possível ler “Carl Jung 1875-1961”, e abaixo do seu rosto o número 70 e a palavra “Helvetia”. 1.3 Jacques Lacan e a escola francesa de psicanálise Lacan foi um médico psiquiatra francês, cujo nome é de grande relevância para a história da psicanálise. A grande marca de Lacan para a psicanálise foi em 1951, como psicanalista, quando propôs um retorno a Freud. Criticou o trabalho dos pós-freudianos, principalmente da filha Anna Freud, que projetou a Psicologia do Ego, por eles se afastarem da psicanálise freudiana. De acordo com Elizabeth Roudinesco (1994), fundamental escritora sobre a obra lacaniana no Brasil, Lacan deu uma dimensão de intelectualidade ao trabalho de Sigmund. O retorno a Freud significava, na verdade, apresentar uma releitura de sua obra, não a partir da tradicionalidade freudiana, mas capturar o que Freud enunciou de: subversivo, vanguarda, e único sobre a dimensão psíquica. Considerando a lacuna que existia na psicanálise francesa na época, Lacan fundou a sua própria escola em 1964, a EFP (Escola Freudiana de Paris), estruturando os seus próprios conceitos, sempre em uma proposta de releitura dos trabalhos de Freud. 1.4 Wilhelm Reich e a sua terapia corporal Reich foi um importante nome da psicanálise e continua tendo muitos seguidores que aplicam seus conhecimentos na clínica até dos dias atuais. Médico de formação, o psicanalista húngaro conheceu Freud em 1919, quando escrevia um seminário sobre sexologia. Houve o interesse de fazer a formação em psicanálise, se constituindo como membro da Sociedade Psicanalítica de Viena, em 1930. Na história, Reich configura-se como um seguidor dissidente de Freud. Reich queria trazer com mais força os aspectos sociais, da conjuntura da 2ª Guerra Mundial, o nazismo em que viviam naquele momento, para a análise dos seus efeitos nas dinâmicas psíquicas. Acreditava que a origem das neuroses estava baseada nas disputas de poder presentes nas relações sociais. Reich destacava a relevância de que, na clínica, pudesse abrir espaço para que o paciente liberasse os sentimentos emocionais e sexuais próprio das relações amorosas. Destacou também a natureza fortemente sexual das energias presentes no corpo do paciente. Ainda que sendo contrário a algumas ideias de Freud, Reich o seguiu, principalmente na ideia de que a etiologia das neuroses está na função sexual que os sujeitos conseguem desempenhar. Reich foi considerado muito radical nas suas ideiassobre a sexualidade, no entanto escreveu grandes obras para o acervo da psicanálise, com conceituações próprias e experimentações corporais singulares, e fez afirmar que a psicanálise pode caminhar para diferentes lados, desde que mantendo seus pilares. Para entrar em maior aproximação com a psicanálise, é interessante ler o “Dicionário de Psicanálise” (ROUDINESCO E PLON, 1998). Lá se encontra um abecedário dos principais autores da psicanálise, além da explicação dos conceitos. 2 A história da psicanálise na grã-bretanha: Anna Freud, Melanie Klein e o Grupo do Meio (middle group) As ideias de Freud tiveram grande permeabilidade não só no círculo de pesquisadores acerca dos eventos psíquicos, mas também influenciou diferentes escolas de pensamento e matérias de ciências humanas pelo mundo todo, produzindo um modo de ver e pensar o homem e sua cultura. A psicanálise se tornou: um dispositivo de investigação da psique humana, uma teoria sobre o funcionamento e o modo de agir do homem, e um modelo de tratamento. Neste pensamento, percorreremos aqui como foi a introdução da psicanálise na Grã- Bretanha e os principais autores que levaram a psicanálise adiante, construindo novos arsenais teóricos, principalmente, desenvolvendo a análise aplicada ao universo infantil. 2.1 Introdução da Psicanálise na Grã-Bretanha Foi a partir do neuropsiquiatra e psicanalista do País de Gales, Alfred Ernest Jones, no século XX, que a psicanálise foi difundida na Grã-Bretanha. Da mesma maneira que Jung, foi por meio do contato com a obra “A Interpretação dos Sonhos” de Freud que Jones começou a utilizar a prática psicanalítica como método de trabalho em 1906. Não obstante, de acordo com Roudinesco e Plon (1998), foi Jung que apresentou Jones, como um jovem inglês que conhece muito os textos freudianos e pratica a psicanálise, a Freud. Em 1908, Jones conheceu Freud em um congresso em Viena e, a partir desse momento, constituiu-se uma grande amizade, entre trocas de cartas. Jones, então, tomou como missão instalar e defender a prática freudiana em diferentes países anglófonos: Índia, Estados Unidos, Canadá, e Grã-Bretanha. Como grande entusiasta do trabalho freudiano, Jones escreveu uma biografia de Freud em três volumes, além de ter inaugurado a APA (Associação Psicanalítica Americana), com parceria de J.J. Putnam, cujos membros advinham do Canadá e de outros lugares da América. Mesmo durante a primeira guerra mundial (1914), Jones continuou atendendo pela psicanálise e ficou conhecido por clinicar e produzir conhecimento, acerca dos neuróticos vindos da guerra. Foi Jones o pai do conceito de racionalização, que foi empregado por Freud como um dos mecanismos de defesa. Além disso, criou outros conceitos importantes para a ampliação do saber psicanalítico. Contudo, não foi somente Jones a trabalhar com a psicanálise na Grã-Bretanha, outros renomados psicanalistas também ajudaram a expandir o conhecimento psicanalítico por lá. 2.2 Melanie Klein e o seu encontro com Ernest Jones Melanie Klein, diferentemente dos demais psicanalistas de seu tempo, não era médica. Nasceu em Viena, em 1882, e estabeleceu contato com a psicanálise a partir da grande obra de Freud, “A Interpretação dos Sonhos”. Neste ritmo, decidiu começar a fazer análise com Sándor Ferenczi, um psicanalista húngaro significativo colaborador de Freud. De acordo com Grosskurth (1992), Ferenczi chamou a sua atenção para a sua grande habilidade em entender as crianças e o quanto ela poderia instrumentalizar isso através da psicanálise. Klein constrói assim seu percurso pelo atendimento de crianças pela psicanálise e em 1926, Ernest Jones a convida para residir em Londres, pois queria que suas filhas e esposa fizessem análise com ela. Klein deixa Berlim, começa a fazer parte da produção e difusão da psicanálise na Grã-Bretanha, sendo um nome importante na Sociedade Britânica de Psicanálise. Melanie queria ser reconhecida como discípula e continuadora das obras freudianas, no entanto, suas ideias apresentavam transformações na teoria do desenvolvimento da mente e na concepção de confito mental. Nas suas investigações clínicas, por exemplo, propunha que a noção de conflito mental estava sustentada na luta de emoções e fantasias inconscientes entre os objetos internos e externos. Essa perspectiva entrava em divergência com a concepção tradicional de conflito da psicanálise, que o entendia como a luta entre a pulsão sexual e a de defesa. Mesmo sendo grande referência e tendo trazido muitas contribuições para a psicanálise, Klein entrou em muitos embates dentro da Sociedade Britânica de Psicanálise. O primeiro foi com Anna Freud, em 1927, sobre algumas pontuações sobre a análise infantil e a noção de transferência dentro desse universo. Anna sustentava uma posição mais clássica dos princípios da psicanálise de seu pai e via em Klein uma dissidência dessas ideias. O outro foi com outro membro da sociedade, Edward Glover que indicou a expulsão de Klein por se afastar das ideias pilares da psicanálise. Desses confrontos, para não dissolver a sociedade, sugeriu-se uma divisão dentro dela entre os seguidores de Klein e os de Anna, escola inglesa e escola de Viena, respectivamente. Outros psicanalistas que criticavam algumas concepções da teoria tradicional e concordavam com algumas ideias de Klein, criaram o Middle Group (grupo do meio). 2.3 Anna Freud Anna Freud foi a última filha de Freud, formada em pedagogia, atuou como tal entre os anos de 1914 a 1920. O trabalho como professora infantil, durante um tempo, foi o que subsidiou seu trabalho como psicanalista infantil. Analisada pelo pai, logo se juntou ao grupo de discípulos de Freud na psicanálise. O pai a instrumentalizou nos seus estudos, mas a Anna foi deixada a missão de expandir os saberes da psicanálise acerca do tratamento de crianças, posto que Freud estudava o desenvolvimento das questões psíquicas da infância, a partir dos relatos de seus pacientes adultos e não diretamente no trabalho com a criança. Anna seguiu com a sua escola de Viena e é até hoje uma importante referência dentro da clínica infantil. 2.4 Middle Group (grupo do meio) e a sua constituição O Middle Group surge a partir da necessidade de analistas como Balint, Fairbairn, Guntrip, Winnicott entre outros de seguir com uma psicanálise mais reformadora, ou seja, um grupo de pessoas que reconhecem a obra de Freud, mas entendem que ela pode sofrer intervenções. Uma tradição independente britânica. Dentre os seus maiores expoentes, Winnicott se destacou pelas inovações trazidas à psicanálise, inclusive pensando a cultura, a violência e o infantil como importantes elementos para pensar a clínica. Winnicott adotou a postura de apoiar a divisão da Sociedade Britânica de Psicanálise, pois acreditava que “como qualquer outra sociedade, com o fato de existirem diferenças científicas que acabam por se resolver automaticamente com o decorrer do tempo, concomitantemente ao fato de surgirem diferenças novas” (Winnicott, 1990, p. 63). Optava, assim, por não se aliar a nenhuma dessas escolas e seguir de modo independente no desenvolvimento de suas ideias. As contribuições de Winnicott são imensuráveis para a psicanálise, principalmente para o atendimento de crianças. Para entrar em um maior contato com a obra winnicottiana, recomenda-se a leitura de “O brincar e a realidade” (WINNICOT, 1971). 3 Contribuições de Anna Freud: psicanálise e pedagogia Anna Freud, sexta e última filha de Freud, como pedagoga de formação e tendo trabalhado como professora infantil, construiu seu percurso pela psicanálise através da psicanálise com crianças. Grande admiradora do pai, tornou-se sua discípula, confidente e cuidadora. 3.1 As contribuições de Anna Freud Foi em 1922 que Anna publicou seu primeiro artigo, referente ao trabalho psicanalítico cujo título era “Fantasias e devaneiosdiurnos de uma criança espancada”. Em 1927, publicou aquela que viria a ser o seu principal trabalho, “O tratamento psicanalítico das crianças”. Aos poucos foi assumindo cargos institucionais importantes, tais como a direção do Instituto de Viena. Porém, o título mais importante era carregar a representação da ortodoxia psicanalítica de Viena, ou seja, ser representante da fidelidade com as obras do pai. Criou, assim, institutos de educação e formação para habilitar analistas dentro da práxis freudiana, primordialmente no que se referia à aplicação da psicanálise na educação de crianças. Anna queria imprimir uma pedagogia psicanalítica, criando uma escola especial que era composta por crianças cujos pais se analisavam, o objetivo era educar as crianças pela psicanálise. Anna acreditava que uma criança é frágil demais para ser submetida a uma fiel análise, levando em conta nesta análise o exame do inconsciente. Por este motivo, a clínica com a criança deveria ser aplicada pela família ou parentes, ou, no máximo, por instituições educativas. A psicanalista pressupunha a dificuldade de análise do complexo de édipo da criança, posto que o seu supereu não estava amadurecido. Desta maneira, a psicanálise com crianças deve ser acompanhada de ação educativa, em conjunto com os pais. Segundo Roudinesco e Plon (1998), alguns críticos apontam para a falha de Anna de não ter se debruçado sobre a relação do laço dos filhos com a mãe, apenas da relação com o pai. Foi deste movimento que Anna enfatizou a pedagogia do eu em oposição ao exame do inconsciente. A pedagogia do eu se firma na ideia de dar destaque ao ego na personalidade, sem diminuir a importância do Id e os obstáculos colocados pelo supereu. A crença segue na noção de que o ego tem funcionamento independente e com iniciativa, sem mais pensar a estruturação psíquica como centrada no Id. Além de escoar e preservar a obra do seu pai, fundar escolas de cuidado para crianças, sua útilma contribuição teórica foi a importância dos mecanismos de defesa, o que definiu o annafreudismo pelo mundo. Assista aí 3.2 As divergências teóricas com Melanie Klein Na história da psicanálise britânica, está marcada a divergência teórica entre Anna e Klein, que foi separada nos movimentos do annafreudismo e do kleinismo. De um lado, Anna representando o classicismo psicanalítico pós-freudiano da psicanálise originária de Viena e do outro Klein como reformadora, querendo para si o título de fiel discípula de Freud. A divergência entre elas se firma na forma de conceber o tratamento de crianças, enquanto Anna privilegia a análise do eu e dos mecanismos de defesa; Klein acreditava que algumas problemáticas não conseguem ser verbalizadas ou expressadas, mas continuam fabricando ansiedade na criança, sua clínica segue na análise das neuroses, fantasias inconscientes e na análise do complexo de édipo tanto das crianças pequenas, quanto dos boderlines, além do trabalho de investigação das relações com as mães – o que Anna não focou em sua clínica. Anna, por sua vez, na clínica das psicoses de crianças concebia que a análise devia passar da mesma maneira que a das neuroses, trazendo para este ser “uma dimensão social e profilática” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 25), enquanto Klein levava em conta apenas a realidade psíquica ou imaginário dos sujeitos. 4 Contribuições de Melanie Klein: as fases pré-genitais e outras contribuições Klein edificou e construiu a técnica da psicanálise de crianças, permitindo o desenvolvimento de uma perspectiva diferente do desenvolvimento infantil. Ainda que a análise de crianças tivesse tido início com o próprio Freud, com o caso do pequeno Hans, a análise não foi feita diretamente com o menino, mas com as memórias trazidas em análise pelo pai do pequeno Hans. A Klein restou a missão de ampliar o universo da psicanálise clínica, trazendo o tratamento de pacientes psicóticos, boderlines e autistas como possíveis, o que não era recomendado por Freud na época. Klein constituiu-se, deste modo, como peça chave dentro da psicanálise. 4.1 A releitura kleiniana sobre o complexo de édipo e as fases pré-genitais Klein fez uma releitura da teoria da sexualidade freudiana, fundamentada no que denominou de posição depressiva e posição esquizoparanóide. Essas posições dizem respeito a maneiras de operar das relações com os objetos e os mecanismos de defesa atrelados a eles. Assim, na posição esquizoparanoide: (...) o amor e o ódio, bem como os aspectos bons e maus do seio, são mantidos amplamente separados um do outro" (KLEIN, 1991, p.71-72), e na posição depressiva são unificados, pois "a ansiedade depressiva é intensificada (...) o bebê sente que destruiu ou está destruindo um objeto inteiro com sua voracidade e agressão incontroláveis (...) sente que esses impulsos destrutivos são dirigidos contra uma pessoa amada" (KLEIN, 1991, p.73). Klein, através da sua prática clínica, começou a postular que o complexo de édipo acontece antes do que Freud acreditava, na fase de vida de uma criança. Para ela, acontece aos 2 anos de idade. Mais à frente, Klein vai defender a ideia de que o complexo está presente desde o momento em que a criança desmama, produzido pela frustração. Por esta antecipação do complexo, a instância psíquica – superego -, aparece de modo muito mais violento e impositivo nas crianças do que nos adultos, devido ao grande medo inconsciente de ser castrado pelo pai. Em 1928, Klein publica o artigo “Estágios iniciais do conflito edipiano”, as ideias ali contidas abrem margem para pensar que o complexo de édipo tem seu começo ainda em fases pré-genitais do desenvolvimento, fase em que o objeto ainda é parcial. Para ela, o complexo de édipo – que tem início no período de desmame - incide sobre o pavor da castração e o sentimento de culpa, e é neste momento em que se forma o superego. Tal afirmativa se afasta mais uma vez de Freud, posto que ele compreende que esta instância psíquica será formada apenas no final da passagem da criança pelo complexo de édipo. Klein concebeu, assim, o desenvolvimento libidinal em estágios psicossexuais a contar do primeiro ano de idade, entendendo que a relação arcaica com a mãe é o mais importante ingrediente de constituição do psiquismo. A estruturação da libido, pela ótica kleiniana, é separada em uma etapa pré-genital, com os estágios: sádico-oral; sádico-uretral; e sádico-anal, em que o sadismo predomina; e em uma etapa genital, quando a libido se superpõe ao sadismo. Assista aí 4.2 A noção de posição para Melanie Klein Em sua clínica, Klein definiu duas posições para dizer como as ansiedades se organizavam entorno dos sujeitos, como se erijiem as suas defesas e as formas de efetuar relações com os objetos. Essa foi uma contribuição de suma importância para a psicanálise. Quando a autora vai estruturar a sua teoria do desenvolvimento, ela se baseia na observação da experiência emocional da criança. As experiências emocionais são constituídas para além da relação com os objetos reais, mas em como a criança apreende ou internaliza essas relações, num mecanismo sucessivo de introjeção e projeção, isto é, o real para a criança é como ela consegue simbolizar as relações com os objetos os quais ela vai lidando na vida. Sendo assim, a teoria do desenvolvimento mental kleiniana se define por ser uma teoria da mente e suas formas majoritárias de funcionamento, uma teoria de como as crianças usam os seus processos psíquicos para observar, compreender, negar, modificar ou pensar sobre a realidade. Ela vai instituir, desta forma, as duas posições como modo organizativo do funcionamento psíquico dentro da teoria do desenvolvimento mental, em que elas podem se alternar ao longo da vida do sujeito, posto que a ideia de posição vem, justamente, para interromper com a lógica de tempo cronológico, muito marcada por alguns autores desenvolvimentistas, tais como JeanPiaget. De forma esquemática, podemos dizer que a teoria das posições de Klein tem por objetivo orientar a nossa visão sobre as formas psíquicas dos sujeitos, as maneiras pelas quais eles se percebem e organizam as suas existências. Esse modo singular de perceber o mundo e a si está permeado por defesas, ansiedades e maneiras de se relacionar e essas características definem como o sujeito vai olhar o mundo. Pensar o desenvolvimento humano a partir dessas duas posições é entendê-lo como duas atitudes mentais possíveis de se aparecer nas pessoas. As posições depressivas e esquizoparanóides são descrições sobre os esquemas psíquicos que produzem formas de ser e vivenciar o mundo. De acordo com Klein (1969), é possível que haja uma alternância entre essas duas posições, estando sempre vinculada à aptidão do ego de sustentar as ansiedades e angústias provenientes dos elementos paradoxais da experiência. Na teoria kleiniana, estas posições nunca são vencidas, o máximo que se pode é estabelecer uma relação de diálogo entre elas, um encadeamento entre si em que cada estado pela qual passa o sujeito e a forma com que o ego consegue se estruturar pode criar, conservar ou contraditar o outro. 4.3 Posição depressiva e esquizoparanoide Ao longo da sua trajetória pela psicanálise, Klein vai montando com maior clareza a sua definição de posição, a importância delas e a forma organizativa das duas posições. No entanto, o que representam as posições depressiva e esquizoparanoide? Para a autora, a posição esquizoparanoide, com toda a configuração emocional existente, é o primeiro meio do bebê para montar as suas vivências. É como o bebê se utiliza de toda a primitividade do seu ego para estruturar suas percepções de mundo. A autora vai insistir na ideia de que o bebê, desde o seu nascimento, pela existência desse ego rudimentar, já consegue viver a ansiedade, usar mecanismos de defesa e criar relações com objetos tanto na realidade, quanto na fantasia. O bebê, na concepção de Klein, é um bebê que precisa se ver com a experiência interna das pulsões de vida e de morte, e com as imposições instintuais saciadas ou não, com o prazer advindo da satisfação e o desprazer da agressividade presentes quando se é contrariado. Já a posição depressiva significa uma evolução tanto do aspecto psíquico quando da experiência emocional, posto que diz sobre a oportunidade de vivenciar a subjetividade, se dando conta da alternância na relação com o objeto e se organizando para estruturar as emoções advindas desta percepção. Obviamente não se manifestando da mesma maneira que a posição esquizoparanoide em que a experiência da relação com o objeto é parcial; na posição depressiva, o sujeito se observa e a sua relação como total (amando e odiando, tendo qualidades e defeitos, os aspectos ambivalentes no geral). Na mesma medida, entendendo que os objetos podem frustrar ou saciar, sem que isto gere uma cisão ou um mecanismo de defesa. Podemos dizer que a posição depressiva aumenta o saber sobre si mesmo e sobre o mundo, mas coloca o sujeito diante de novas ansiedades. A ansiedade presente na posição esquizoparanoide era da ordem de uma intimidação de um perseguidor externo em que a ele era nominada a fonte do mau; na posição depressiva o aspecto da maldade advém da própria pessoa, tem a dimensão interna e esse movimento cria ansiedades de outras magnitudes. Como poderei ver a mim mesmo como possuindo características ruins? Como posso me relacionar com outras pessoas se posso ser uma ameaça para elas? Como posso investir em um relacionamento amoroso se posso vir a odiá-la? Como posso lidar com o fato de que esta outra pessoa é um ser independente de mim e que não posso controlá-la? Essas são algumas das perguntas feitas por aqueles que se encontram na posição depressiva, tendo que se ver com a constatação de que pode conter aspectos não tão bons em si mesmos. 4.4 Contribuições de Melanie Klein: a técnica do brincar Foi, a partir da década de 1920, que Klein começou a desenvolver seu trabalho com crianças e bebês e, por meio dos atendimentos, foi aprimorando seu ferramental teórico. Como chegar até ao universo infantil entendendo que eles não conseguem elaborar a fala? Klein introduziu, assim, a técnica do brincar. Através dela, a psicanalista pode acessar as fixações e experiências mais profundas recalcadas da criança e intervir no seu desenvolvimento. Segundo Klein (1969), a diferença entre o brincar e a associação-livre dos adultos era apenas técnica, estando de acordo com as normas e atingindo resultados semelhantes. A divergência é apenas a adaptação para o psiquismo da criança. O brincar infantil coloca em vigência simbólica as ansiedades, fantasias e seus conflitos inconscientes. Como, no brincar, nas histórias que criam, nos desenhos que fazem, se expressam como se estivessem falando, o objetivo é que a criança consiga, através do brincar, o controle de suas angústias, angústia que lhe é desagradável, lhe infringe sofrimento e atrapalha seu desenvolvimento. Clique para abrir a imagem no tamanho original Figura 2 - O brincar infantilFonte: kate_sept2004, istock, 2020. #PraCegoVer: A imagem mostra uma mulher com uma criança no colo, que está brincando com cubos de madeira que contém letras. Na clínica kleiniana, com crianças, foi concebida a expressão tanto do complexo de édipo e do superego, quanto da possibilidade da transferência nas fases iniciais do desenvolvimento infantil, o que ia de encontro à concepção de Anna Freud. A meta do psicanalista no tratamento da criança é acessar a angústia infantil, mobilizá-la, acolhê-la e traduzir em palavras para a criança aquilo que ela sente, permitindo que este pequeno paciente simbolize suas questões. A angústia também pode aparecer por meio de suas defesas, nesses momentos, é preciso dar nome e interpretar essas defesas para ir ao encontro das angústias recalcadas e as fantasias inconscientes que a engendraram. Sendo assim, a análise kleiniana segue pela tríade: ANGÚSTICA, DEFESA E FANTASIA INCONSCIENTE. Como era percebida a efetividade do tratamento kleiniano? Quando as crianças demonstravam grande prazer em seus jogos, ela consegue converter questões que aguentou passivamente em algo mais ativo, alterando a dor para o prazer, transferindo os processos penosos intrapsíquicos para fora. Assista aí É ISSO AÍ! Nesta unidade, você teve a oportunidade de: conhecer e reconhecer a importância e influência da obra freudiana na cultura, e modos de ver e pensar o homem; ver o legado das obras freudianas se desdobrar nas diferentes escolas de psicanálise pelo mundo; conhecer sobre a história da psicanálise na grã-bretanha e aprender sobre os grandes autores/analistas que se formaram neste país, cuja obra ainda tem importante contribuição para a psicanálise; aprender sobre as contribuições de Anna Freud e as teorias que fundamentaram a sua escola de Viena; aprender sobre as contribuições de Melanie Klein e o marco de suas teorias para a psicanálise infantil. REFERÊNCIAS