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2 Ética e Política - Platão

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ÉTICA E POLÍTICA EM PLATÃO
Vida e contexto histórico
Platão pertence a uma das mais prestigiosas linhagens da aristocracia ateniense. Nasceu em 427 a.C. e morreu em 347 a.C. Por parte de mãe descendia de Sólon, por parte de pai de Codro, fundador de Atenas. Tinha dois irmãos: Adimanto e Glauco; e uma irmã: Potonè. Aos 20 anos passou a frequentar o círculo de Sócrates, levado por amigos. Na sua primeira viagem a Siracusa conheceu os pitagóricos e deve ter conhecido também o pensamento de Parmênides.
De um lado, ele ampliou o alcance da dialética socrática para responder a crise do conflito metafísico (teoria do conhecimento) Heráclito-Parmênides. De outro, ataca os sofistas, discutindo sobre a verdade e a falsidade no contexto epistemológico e metafísico. Os Sofistas eram professores dos políticos da época, de modo que, para Platão, influenciariam nas injustiças e perseguições que cometiam, motivo pelo qual busca combatê-los.
Atenas de sua vida
A Atenas que Platão conhece é a de Péricles, posterior à derrota na guerra do Peloponeso. Em grego Péricles significa: “cercado por glória”. Foi um célebre e influente estadista, orador e general da Grécia Antiga, um dos principais líderes democráticos de Atenas – estimulou a democracia ateniense, a tal ponto que seus críticos o chamaram de populista – e a maior personalidade política do século V a.C. Viveu durante a Era de Ouro de Atenas, no período entre as guerras Persas e Peloponésica. Promoveu as artes e a literatura, num período em que Atenas tinha a reputação de ser o centro educacional e cultural do mundo da Grécia Antiga. Iniciou um ambicioso projeto que construiu a maior parte das estruturas que ainda existem na Acrópole de Atenas, como o Partenon, que foi responsável por embelezar a cidade, exibir a sua glória e dar emprego à população. 
Durante sua juventude e vida adulta ocorreu a guerra do Peloponeso, com cidades se dividindo em alianças instáveis com Esparta e Atenas. Em 429 morre Péricles e a peste ataca a cidade. 
Após a Guerra, um golpe ocorre e a oligarquia – da qual Platão era parente – com o apoio das tropas espartanas, toma o poder dos democratas. Esse governo ficou conhecido como Tirania dos Trinta, porque era formado por trinta oligarcas. Ela dissolveu a Confederação de Delos e entregou o resto da frota Ateniense a Esparta. Platão viu Sócrates recusar-se a cumprir ordens injustas e ilegais desse governo. Com sua queda, Platão esperava um retorno das leis e do governo democrático, mas, em vez disso, viu Sócrates ser injustamente condenado e seus amigos, entre os quais ele próprio, postos sob suspeita. O desanimo o invade e, por isso, em 390 a.C viaja para o Egito, passa por Cirene em 389 a. C. e, finalmente em 388 a. C, aos quarenta anos, realiza sua primeira viagem a Siracusa, onde conhece o nobre Dião, sobrinho do tirano Dionísio I, ou Dionísio, o velho. A democracia foi restabelecida em 403 a.C
O declínio de Atenas marcou a ascensão de Esparta e desfez a única via possível para a unificação política do mundo grego, bastante afetada pela devolução aos Persas das cidades da Ásia Menor em troca do seu ouro. A substituição do império ateniense, baseado no projeto de Delos, por um sistema militarista, como o de Esparta, causou o desgaste do mundo helênico (a ruína econômica de várias cidades outrora consideradas poderosas, devido aos gastos exorbitantes com a guerra e disputas internas entre as principais cidades-Estado), porém manteve a independência do modelo espartano. Tempos depois, se aproveitando dessa situação, o rei macedônico, Filipe II, organiza um grande exército que conquistou os territórios gregos ao longo do século IV a.C.
Atenas de sua morte
A Atenas que Platão deixa está exausta e decadente, prestes a ser esmagada pelas tropas de Filipe da Macedônia na batalha de Queronéia, em 338 a. C. A pólis democrática terminou, a cultura tornou-se tagarelice, repetição morna do passado, saudosismo.
Obras
A República
Inspirada pela injusta democracia corrompida, no qual a filosofia é condenada, tendo como principal representação morte de Sócrates. De caráter ético e político – apesar de falar também da metafísica – busca mostrar a importância do filósofo – e, logo, do saber – que, então, não poderia ser perseguido por injustiças. 
Para Francisco Lissi, em “A República” a “relação entre saber e política mais evidente. Unir o conhecimento filosófico e poder político. Platão não foi o primeiro a associar politica a um saber: Heráclito critica a multidão que embora ignorante, não deixa de exercer um poder político. Protágoras que defendeu a lei como invenção dos bons legisladores antigos e Sócrates: defendia o caráter cientifico da política”. A República é o texto mais citado para comentar politica de Platão, o fazendo Popper em “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, no qual critica Platão.
No Livro VIII, Platão descreve uma cidade em que a liberdade é licença para se fazer o que se quer; a igualdade é promiscuidade e injustiça porque trata da mesma maneira o igual e o desigual; a participação é demagogia (hegemonia política das facções populares; poder de natureza tirânica ou imoral exercido em nome das multidões), a correção dos costumes é uma falsa aparência que encobre todo tipo de corrupção e vício; a qualidade das leis não se conserva porque elas são mudadas incessantemente segundo os interesses dos poderosos e não há respeito alguns por elas, motivo pelo qual Platão defende que apenas o monarca possa alterar a lei, divergindo do que entende Aristóteles. Assim, reina a injustiça, desrespeito, falta de comando e desordem moral. Para Platão, essas calamidades não são um acidente do regime democrático, mas estão contidas na sua essência, enquanto governo dos não-sábios, daqueles que não são dotados do conhecimento necessário, divergindo completamente do governo ideal, que seria do rei filósofo.
Para ele, a divisão de funções e trabalhos, conforme a qual a sociedade é organizada, deve surgir de maneira espontânea. As necessidades materiais, que crescem conforme o fazem as cidades, dão origem aos ofícios, surgindo classes diferenciadas:
- Ofícios e trabalhos materiais:
Para Reale é composta por agricultores, artesãos, carpinteiros, comerciantes e navegadores. Sua missão é produzir o necessário para vida material da cidade. O elemento da alma é a cuncupsciência/epithumia: desejo forte. Possuem domínio dos sentidos. É a classe mais numerosa;
- Guardiões
Surge em decorrência dos choques violentos com outras cidades. Composta por guardiões-militares que devem dedicar-se ao oficio da guerra. Para Reale, sua missão é velar pela segurança da cidade e defendê-la contra inimigos. A virtude é a coragem (andreia). O elemento que governa a alma é a ira (thumós), chamada de energia vital. Essa classe terá uma educação especial a partir da música e da matemática, num caminho que dura até os 35 anos. Esta educação especial tem, inclusive, a função de prepara-lo para o poder, para que saiba lidar bem com ele e não seja corrompido.
- Reis-filósofos
Grupo seleto que exercerá a função mais importante: a de governo. Para Reale, sua missão é legislar e velar pelo cumprimento da lei. Tem poder absoluto sobre as classes inferiores. A virtude é a sabedoria e a prudência. O politico é formado por técnica e sabedoria.
Assim, Platão ilustra as qualidades de cada classe com o mito fenício das raças de Hesíodo: todos os homens são filhos da terra, mas os deuses os deram almas distintas, tratando-se de uma diferença natural, na alma da pessoa.
Vegetti, porém, questiona se o filósofo não poderia, como qualquer outro, ultrapassar a filosofia e alcançar uma tirania, dizendo que “o projeto da realeza filosófica se aproximaria assim de outra forma de soberania, a tirania, pois exigia a submissão do corpo cívico. Seria necessário dispor de um tirano reeducado-filosoficamente”, como Platão tenta fazer com Dionísio II, como mencionado.
“Para ele o rei-filósofo podia ter dois rostos: o do conselheiro e legislador do bom tirano exposto nas Leis; ou o tirano-filósofo que seaproxima do home régio do Político. O projeto platônico exige um estado de exceção no qual a realeza filosófica e o poder tirânico acabam quase por sobrepor-se e identificar-se”. Assim o político filósofo chega no limite de se tornar um tirano.
A dificuldade em aceitar o filósofo não ocorre quando apreendemos que há uma divisão natural da cidade, entre quem possui ou não poder. Os interlocutores de Sócrates atacavam-no com a crítica de que o poder seja dado por um critério de conhecimento, exclusivo do filósofo. Este ataque não provinha do povo, mas dos sofistas, indivíduos cultos. Mais tarde o povo se une a eles, de modo que Butti observa como estes falsos políticos influenciam o povo a pensar na filosofia como uma corrupção da juventude, uma forma degenerada de conhecimento. Oliveira também destaca como Platão confronta esta visão que o senso comum passa ao povo sobre a filosofia, buscando modifica-la com esta política. Assim, quando Sócrates inclui a definição de filósofo em sua defesa, atacando as demais formas de cultura, literatura e arte, não está tentando convencer os demais a seguir o caminho da filosofia, mas a aceitar o poder que é dado aos que são naturalmente filósofos. 
Carta 7
“Muitos odeiam a tirania apenas para que possam estabelecer a sua.” Nos  livros  VIII e IX  da República, Platão propõe que a versão corrompida do regime perfeito (o governo do rei filósofo) é a tirania, que aparece como o último estágio de sua degeneração. Não esclarece se o processo pelo qual os  governos degeneram constitui um ciclo, que recomeça, sendo, então, possível passar da tirania para a monarquia.
De qualquer forma, Platão foi um combatente da tirania (versão corrompida do regime perfeito – o do rei filósofo), mas não desprezou a oportunidade de promover a sua reeducação. Assim, a Carta 7 foi uma tentativa de efetivar o rei filósofo. Deste modo, quando em 367 a.C., Dion chama Platão de volta à Siracusa pois Dionísio I havia morrido e seria sucedido por Dionísio II, Platão vê uma chance de reeducar o governante e colocar em prática seus entendimentos, mudando os rumos políticos da cidade preparando o novo tirano para expulsar os cartagineses da Sicília. A viagem foi fracassada, assim como seria quando ele fosse chamado novamente a Siracusa.
Critica, porém, Gilda Naécia Maciel de Barros: “Mas, que aproximação pode ser estabelecida entre sábio e esse governante de regime de exceção? Que intimidade pode nascer entre a filosofia e essa figura do homem forte, geralmente hábil estratego, com dotes superiores, que controla, com a força, o destino de uma comunidade? Até que ponto, na Grécia antiga, a maioria do povo conseguia compreender a ideia platônica da coalescência entre o conhecimento e o poder?”
O Político
Platão pensa a política através do conhecimento, definindo o rei como filósofo. Buscava assim construir uma política nova, fazer uma renovação/revolução política, diante da política corrompida de Atenas que observava. 
Conforme Eric Voegelin em “A ordem e história: Platão e Aristóteles”, o homem deve imitar a ordem do universo nas instituições e em suas leis. “Já que é difícil encontrar o rei ideal, o poder do monarca deve ser substituído pela ditadura da lei”.
Conforme Eric Voegelin em “A ordem e história: Platão e Aristóteles”: “O politico ordena a sociedade e a alma do individuo. Esta ordem é o objetivo mais fundamental das normas sociais [...]”
- A ciência real
As ciências/artes podem ser divididas em teóricas e práticas. São teóricas as separadas da ação, dirigidas apenas para o conhecimento. São práticas as que se relacionam com qualquer “forma de construção manual, estão ligadas originalmente à ação e o seu concurso à ciência faz com que sejam produzidos corpos que antes não existiam”. A ciência do rei é teórica, pois ele “não recorre à força das mãos ou ao vigor de seu corpo, mas à força de sua inteligência e de sua alma”.
No rei, no senhor de escravos, no cabeça de casal e no simples cidadão que eventualmente dê conselhos ao soberano existe a mesma ciência pois, por exemplo, não há diferença entre o governo de uma casa e o de uma cidade. Enquanto o chefe de família busca uni-la, o governante busca unir a cidade. Assim, “só há uma ciência, quer se diga real, política ou econômica”. Ainda, uma vez que a ciência de um verdadeiro rei, é a ciência própria do rei, aquele que a tiver, sendo rei ou simples cidadão, terá direito, em virtude de sua arte, ao título real. É possível fazer “da ciência política e do político, da ciência real e do homem real, uma só unidade”. Assim, não pode o cidadão comum dar conselhos ao rei.
As ciências teóricas podem ser críticas ou diretivas: por exemplo, um calculista, apenas realiza os cálculos, julga os números, um trabalho apenas teórico; já o arquiteto também precisa observar e dirigir os trabalhos manuais, apesar de não realiza-los.
A arte de dirigir pode ser divida: o rei segue suas próprias ordens, havendo um poder pessoal, sua arte é autodirigente. O político governa a si mesmo, a sua própria vida, de forma justa, e por isso pode governar os outros. Por outro lado, intérprete, patrão de barco, adivinho e arauto, seguem ordens de outrem, havendo um poder de empréstimo.
As ciências diretivas também podem ser divididas conforme o que buscam produzir: seres animados ou inanimados. A ciência do rei reina sobre os seres vivos, diferente da arquitetura, por exemplo, que dirige coisas sem vida. 
A criação de seres vivos pode ser individual ou coletiva, o cuidado pelos seres que vivem em rebanhos. O rei cuida dos seres humanos e dos animais mansos, ou seja, domesticáveis – que aceitam o governante por saberem que ele é o ideal, dotado da ciência de governar. Estes animais podem ser aquáticos ou terrestres, e os podem voar ou andar sobre a terra. A arte real se refere apenas aos que andam.
É possível dividir a arte de criar animais através de dois caminhos. 
O caminho mais curto e menos problemático divide os animais em quadrúpedes e bípedes. Assim, apenas os animais com asas estão ao lado do ser humano, e é possível isolá-lo separando os animais com penas dos sem penas. Deste modo, a arte real é arte de pastorear os homens, ela cuida de homens que vivem em comunidade, em rebanho. Esta ideia de rebanho é interessante pois, posteriormente, Nietzsche fala da questão do rebanho e do ressentimento, apesar de não estar, necessariamente, referindo-se a Platão.
- A diferença entre o político e outros pastores
É necessário, então, distinguir o político, enquanto pastor dos homens, de outros pastores, o que será feito utilizando-se da lenda de Atreu e Tiestes.
Segundo ela, Atreu convidou Tiestes e seu filho para jantar. Quando este estava brincando, Atreu, prendeu-o, matou-o e, assou sua carne e a pôs na mesa para ser servida. Tiestes, sem de nada suspeitar, comeu-a. Perguntando onde estava o menino, Atreu, sorridente, mostrou-lhe a cabeça do pequeno, explicando que há pouco ele comera a carne do próprio filho. De acordo com a mitologia, o sol é a coroa brilhante do deus que dia após dia percorre num carro a abóboda celeste, produzindo a luz do dia. A divindade em questão tudo vê, e, quando presenciou o crime, virou a direção do carro. E desde então o sol não mais nasce no oeste e sim a leste. Outros astros o acompanharam, mudando do mesmo modo o sentido de seus movimentos.
Assim, algumas vezes é o próprio Deus que dirige o curso do universo e preside à sua revolução. Outras vezes, terminados os períodos que lhe foram determinados, ele o deixa seguir, e então, por si mesmo, “o universo retoma o seu curso circular, em sentido inverso [...].”
Por ocasião daquela inversão, todos os seres vivos pararam na idade em que estavam, progredindo em sentido contrário. Os cabelos brancos dos velhos tomaram-se pretos e os cadáveres dos que haviam padecido retornavam à vida. Não podiam, porém, procriarem-se uns aos outros, motivo pelo qual se fala de uma raça nascida da própria terra. 
Esta ordem em que tudo nascia de si mesmo para servir aos homens, não tem relação alguma com o ciclo oraem curso: pertencia ao ciclo precedente. Nesse tempo, a direção e a vigilância de Deus se exerciam, tal como hoje, sobre todo o movimento circular, e essa mesma vigilância ainda existia localmente através dos deuses encarregados de governar todas as partes do mundo. Os homens não tinham preocupação alguma para viver, pois era o próprio Deus que os pastoreava. “Sob o seu governo, não havia Estado, constituição, nem a posse de mulheres e crianças, pois era do seio da terra que todos nasciam, sem nenhuma lembrança de suas existências anteriores. Em compensação tinham em quantidade os frutos das árvores e de toda uma vegetação generosa, recebendo-os, sem cultivá-los, de uma terra que, por si mesma os oferecia. Nus, sem leito, viviam no mais das vezes ao ar livre, pois as estações lhes eram tão amenas que nada podiam sofrer, e por leitos tinham a relva macia que brotava da terra. Era esta [...] a vida que se levava sob o império de Crono [...]”, tratando-se do estado de natureza, no qual não haviam leis.
Caso estes homens tenham usado estas vantagens para praticar a filosofia, seria possível dizer que eram mais felizes do que os homens do presente. Isto não se daria, porém, se apenas se ocuparam em fartar-se de alimentos e bebidas. 
De qualquer forma, quando se completou o tempo determinado e chegada a hora em que deveria produzir-se a mudança, o piloto do universo, abandonou este posto e voltou a apenas observar, os deuses locais seguindo-o. O mundo, levado por sua tendência e seu destino natural, moveu-se em sentido contrário, passando a se autogovernar. Buscava-se relembrar as instruções do criador, de quem se recebeu tudo que é belo. Todavia, com o passar do tempo, e do esquecimento, tornaram-se mais poderosos os males que resultam de sua constituição anterior, sua turbulência primitiva que acabou por alcançar seu alcançou o seu apogeu, arriscando-se à sua própria destruição e à de tudo o que ele encerra. Assim, deus, compreendendo o perigo em que o mundo se encontra, temendo que tudo se dissolvesse no caos, retoma o controle.
Quando o mundo, por um movimento reverso, desviou-se para o modo atual de geração, a evolução das idades parou uma segunda vez para voltar num sentido contrário. Os corpos recém-nascidos da terra tomaram-se grisalhos, definharam e voltaram à terra. Uma vez que o mundo se tomara o seu próprio senhor, também as suas partes deveriam, conceber, dar à luz e criar por si mesmas. Privados dos cuidados do deus que os possuía e os mantinha sob sua guarda, nos primeiros tempos, não tiveram qualquer indústria ou arte. Foi desde este momento de abandono, em que seus alimentos deixaram de vir-lhes espontaneamente, e em que não sabiam ainda procurá-los, pois nunca tiveram esta necessidade, que, segundo as tradições, nos foram dadas, pelos deuses, lições e ensinamentos indispensáveis: o fogo por Prometeu; as artes por Hefeto e sua companheira; as sementes e as plantas por outras divindades.
Assim, esta alternância do movimento afeta não só o domínio da natureza, mas também o domínio do homem em sociedade. No primeiro ciclo o próprio deus supervisiona os homens, depois da mudança os homens tem que apreender a governar a si mesmos, passando do estado de natureza para a vida social e política. Para isso criam leis e formas de governo. Deste modo, a politica também tem uma visão cíclica.
Conforme Eric Voegelin em “A ordem e história: Platão e Aristóteles”: “O homem deve imitar a ordem do universo nas instituições e em suas leis”. A figura do pastor divino, porém, ainda muito elevada para um rei; os políticos de hoje, sendo por nascimento muito semelhantes aos seus súditos, aproximam-se deles, ainda mais, pela educação e instrução que recebem. Sendo o rei o pastor dos homens, é possível que ele “tenha um rival, titular de outra arte, que afirme e pretenda com ele participar da arte da criação do rebanho.” O criador de bois, por exemplo: “[...] É ele que alimenta o seu rebanho, é ele o médico e só ele escolhe os coitos [...] é o único parteiro competente. [...] nenhum outro é mais capaz de acalmá-los e de consolá-los por meio de sons. Sabe executar excelentemente a música de que seu rebanho gosta [...].” Assim, comerciantes, agricultores, moleiros, atletas e médicos, poderiam afirmam que cuidam da criação dos homens, não apenas dos membros do rebanho, mas também dos governantes. 
Os verdadeiros rivais do político são os sofistas e políticos de Atenas, pois não tem a capacidade de governar mas estão sempre no poder pelo uso da retórica. Assim, é preciso separar a arte do político daquelas que, entre os homens, lhe é semelhante. Isto poderá ser feito como foi feito ao dividir a arte de cuidar de rebanhos, procedendo por distinções análogas.
- A arte da tecedura – causas próprias e causas auxiliares
“Consideremos [...] que tudo aquilo que se produz é objeto de duas artes.” “Um é causa simplesmente auxiliar da produção, outro a sua própria causa.” “Todas as artes que não produzem a coisa propriamente mas que fornecem àquelas que a produzem os instrumentos indispensáveis à sua execução são apenas causas auxiliares; ao passo que as que a produzem são causas próprias.” 
Esta distinção pode aplicar-se à arte da tecedura: as artes que “fornecem os fusos, as lançadeiras e os demais instrumentos necessários à produção da vestimenta, nós chamaríamos auxiliares, enquanto as demais, que a executam e fabricam diretamente, seriam suas causas.” O verdadeiro trabalho da lã também pode ser dividido em operações que separam (como desembaraçar a lã) e que unem. A arte de unir tem como finalidade torcer ou entrelaçar. Ela pode ser definida como a união da urdidura e da trama, que são fabricadas por artes específicas, da seguinte forma:
· Urdidura: “[...] entre os produtos da cardadura, existe um que possui comprimento e largura, a que chamamos roca”. “[...] pela fiação rotativa no fuso, que a transforma num sólido fio, obteremos o fio da urdidura”;
· Trama: “[...] as fibras que produzem apenas fios frouxos e que possuem justamente a flexibilidade necessária para se entrelaçarem na urdidura e resistirem às trações da tecedura, chamamos fios da trama e dizemos que a arte que preside sua colocação tem por finalidade a fabricação da trama.”
Separada a arte real das demais “artes que possuem o mesmo domínio e, especialmente, de todas aquelas relativas aos rebanhos”, resta separar as artes auxiliares das produtoras, que se encontram no interior das cidades, observando cada um dos objetos que delas resultam:
1. Instrumentos;
2. Vasilhames: não são instrumentos, visto que não são fabricados para produzir outras coisas, mas para conservá-las;
3. Veículos: são obra do carpinteiro, do oleiro e do ferreiro;
4. Objetos relacionados ao abrigo - vestuário, armas, muros e abrigos de terra ou pedras: são obra do arquiteto ou do tecelão;
5. Objetos de divertimento: como ornamentação, pintura e música produzem, cuja finalidade é o nosso prazer;
6. Objetos que servem de corpo a tudo isso, aquilo de que e no que todas as artes fabricam suas obras: ouro, prata e tudo que se extrai das minas, tudo que corta ou seciona a madeira a fim de fornecê-la ao carpinteiro ou ao cesteiro, a arte de descascar plantas ou àquela do curtidor tirando a pele aos animais, todas as artes conexas, àquelas que preparam a cortiça, o papiro, as ataduras. Com tudo isto formaremos um todo a que chamaremos a primeira aquisição do homem, todo isento ainda de qualquer composição e que não é a obra da ciência real;
7. Alimentação: alimento e todas as coisas que, reunindo-se ao nosso corpo, são próprias ao sustento de suas partes. Elas pertencem à agricultura, caça, ginástica, medicina e cozinha, não à política.
- A norma/constituição verdadeira
São as formas de governo/constituição: a monarquia, o governo de um pequeno número de pessoas e a soberania da massa/democracia. A forma correta de governo é a de apenas um, de dois, ou de quando muito alguns, não sendo possível que um grande número de pessoas adquira esta ciência, uma vez que só merecem o título de rei os quepossuem a ciência real, quer reinem ou não.
“Considerando os caracteres que essas formas apresentarem, opressão ou liberdade, pobreza e riqueza, legalidade ou ilegalidade, podemos dividir em duas cada uma das duas primeiras formas”:
· Monarquia: pode ser tirania (quando o tirano toma o poder a força, não por ser dotado da ciência real, que lhe daria direito a governar) ou realeza (quando o rei, por ser dotado da ciência real, é aceito de boa vontade);
· Governo de poucos: pode ser aristocracia ou oligarquia. 
“Apenas, na democracia, é indiferente que a massa domine aqueles que têm fortuna, com ou sem seu assentimento, ou que as leis sejam estritamente observadas ou desprezadas; ninguém ousa alterar-lhe o nome.”
O que deve distingui-las, porém, é a presença da ciência real, não a liberdade ou a opressão, a pobreza ou a riqueza, alguns ou muitos. 
Assim como aos médicos, quer nos curem contra ou por nossa própria vontade, quer sigam regras escritas ou as dispensem, quer sejam pobres ou ricos, não hesitamos em chamá-los médicos, desde que ajam para o bem do corpo, melhorando seu estado.
O mesmo ocorre com o político, não importa sua forma de ação, enquanto se valerem da ciência e da justiça, a fim de conservá-la, tornando-a a melhor possível, teremos uma constituição que deve ser considerada como a única correta. Apenas caso o governante passe a desconsiderar o bem comum e governar para seu próprio benefício – inclusive em nome disso alterando as leis – será um tirano. 
“Boas pessoas não precisam de leis para obrigá-las a agir responsavelmente, enquanto as pessoas ruins encontrarão um modo de contornar as leis.” 
- A ilegalidade ideal – a força impondo o bem
“[...] a legislação é função real; entretanto o mais importante não é dar força às leis, mas ao homem real, dotado de prudência.” “A lei jamais seria capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, o melhor e o mais justo para todos, de modo a ordenar as prescrições mais convenientes. A diversidade que há entre os homens e as ações, e por assim dizer, a permanente instabilidade das coisas humanas, não admite em nenhuma arte, e em assunto algum, um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos [...]”.
Apesar de as leis não serem a regra perfeita, sua elaboração é necessária pois, o legislador, tendo que prescrever obrigações de justiça e contratos recíprocos, jamais seria capaz, promulgando decretos gerais, de aplicar, a cada indivíduo, a regra exata que lhe convém, assim como o organizador de uma corrida apenas estabelece normas gerais, não sendo capaz de adequá-las às especificidades de cada um.
Caso um médico, ao viajar, persuadido de que seus pacientes não se lembrarão das prescrições feitas, deixe uma prescrição, e, ao retornar, descubra medicamentos mais eficazes para trata-lo, deverá fazer uma nova prescrição, não se apegar à anterior. O mesmo se pode dizer da legislação. Todavia, ao contrário, diz-se que “se alguém conhece leis melhores que as existentes não tem o direito de dá-las à sua própria cidade senão com o consentimento de cada cidadão; de outro modo não.” “[...] se alguém dispensa esse consentimento [da lei] e impõe a reforma pela força, que nome se dará a esse golpe?” Trata-se da tirania. O filósofo que age sem levar em conta as leis se torna tirano. Assim, Platão não afasta as leis, o que pode rebater a crítica de Veggetti, que parece alinhar o filósofo ao tirano, enquanto ambos diferem pois o filósofo segue as leis, enquanto o tirano não o faz.
“Suponhamos um médico que não procura persuadir seu doente e, senhor de sua arte, impõe [...] o que julga melhor, não importando os preceitos escritos.” A vitima não poderia dizer que foi objeto de manobras desinteligentes e prejudiciais. Da mesma forma, não se poderia chamar de injusto ou mal aqueles que “[...] foram obrigados a transgredir a lei escrita ou costumeira para agir de um modo mais justo, útil e belo [...]”.
“[...] o chefe pode ou não lançar mão da persuasão [...] ater-se às leis escritas ou livrar-se delas, desde que governe utilmente”. “Os códigos são imitações da verdade e o verdadeiro politico pode agir de um modo diferente se lhe parecer que valha mais a pena [...]”
- A legalidade necessária: os dois perigos
A massa “[...] jamais se apropriará perfeitamente de uma tal ciência de sorte a se tornar capaz de administrar com inteligência uma cidade e que, ao contrário, é a um pequeno número, a algumas unidades, a uma só, que é necessário pedir esta única constituição verdadeira; e as demais, finalmente, devem ser consideradas imitações [...]”
Caso não se verifique a forma correta de governo/constituição, aquela que houver procurará imitá-la, adotando suas leis e modo de agir, ainda que não seja o mais justo. Todavia, há uma solução mais justa e bela que esta, qual seja, “proibir a todas as pessoas, na cidade, de transgredir as leis, e punir pela morte ou pelos maiores suplícios aquele que ousar fazê-la [...]”, utilizando-se da técnica jurídica. “Já que é difícil encontrar o rei ideal, o poder do monarca deve ser substituído pela ditadura da lei”, assim, a lei e a monarquia do filósofo estão de acordo.
Isto é necessário pois, retomando a analogia com o navio, imagine “um armador, maior e mais forte de todos aqueles embarcados no navio, mas surdo e de vista um tanto curta, e com conhecimentos de navegação da mesma forma limitados; os marinheiros lutam uns contra os outros para o comando do navio, acreditando que cada um deles devesse comandar [como fazem os rivais do político], sem ter apreendido todavia qualquer arte de navegação, sem poder apresentar seu instrutor ou quando a teria aprendido”. 
Conforme Gabrielle Corneli “O jogo da imagem é consistente com a ideia geral destas passagens da República, nas quais os guardiães-filósofos são a única possibilidade de salvação de uma cidade de outra forma condenada ao naufrágio. O capitão verdadeiro, educado na arte da navegação, exerce fundamentalmente a ἐπιμέλεια, que traduzimos por ocupar-se de, mas cujo sentido é certamente mais complexo, articulando ao mesmo tempo a ideia do estudo/preparação com aquela da vigilância atenta e concreta. Ambas atividades facilmente atribuíveis ao ofício de um timoneiro”.
Da mesma forma, na política, suponha-se que o povo reclame de que sofre nas mãos do governante “[...] queiram [os governantes] maltratar indignamente e o farão, cortando, queimando, exigindo pagamentos que são verdadeiros tributos dos quais uma parte pequena ou nula é empregada em proveito do doente, e o resto para seu uso próprio ou de sua casa; e, o que é pior, deixam-se por fim comprar pelos parentes ou outros inimigos do doente, e o matam. Os pilotos por sua vez fazem mil coisas semelhantes: maquinam astuciosamente para abandonar homens em qualquer lugar solitário quando se põem ao largo, fazem manobras falsas em pleno oceano, jogando homens ao mar, planejando mais outras traições”. Suponha-se que, diante disso “[...] reunir-nos-íamos em assembleia [...] permitindo aos incompetentes e pessoas de todas as profissões dar opinião sobre a navegação e as doenças, dizendo como devem ser aplicados os remédios e os instrumentos de medicina aos enfermos, como devem ser manobrados os navios e os instrumentos náuticos [...]. As decisões tomadas pela multidão” seriam escritas ou teriam força de costume, seriam o critério pelo qual se regulariam a navegação por mar e o tratamento dos enfermos, o que tornaria a vida insuportável.
Caso isto acontecesse, de tempos em tempos chefes seriam escolhidos por sorteio, e eles deveriam agir conforme a lei escrita. Ao fim de cada governo, seria necessário organizarem-se tribunais aos quais os governantes deveriam prestar contas. Qualquer um poderia acusá-los de não terem seguido a lei ou os costumes. Aos condenados, seriam fixadas penas a aplicar ou multas a pagar. O mesmo ocorreria com a medicina e a navegação.
[Platão também entende que a democracia seria “demasiado aberta”, dando espaço para a mudança desenfreada das leis, inclusive por parte de uma ou outra pessoa que pudesse ser condenadopor violá-la – imaginar que alguém violou uma lei e, para não ser punido, queira substituí-la por outra, na qual sua conduta não é mais condenada]
Assim, seria necessário ainda elaborar a seguinte lei: quem procurasse estudar a arte náutica/navegação ou a medicina “sobre os ventos frios e quentes, fora das leis escritas”, não seria um médico ou piloto, mas um visionário ou sofista fraseador, podendo, por tal, ser acusado em um tribunal. Poderia ser condenado se for provado que “instrui jovens e velhos no desprezo às leis e à palavra escrita [...]. Pois não temos o direito de sermos mais sábios que as leis”. Medicina e navegação, por exemplo, não seriam mais orientados pela ciência, mas pelas leis, o que geraria problemas.
Pior ainda seria se o governante não respeite a lei escrita “tendo em vista uma vantagem qualquer ou simplesmente um capricho pessoal”, pois “as leis resultam de múltiplas experiências e cada artigo é apresentado ao povo através da orientação e exortação de conselheiros bem-intencionados”. Seria, então, necessário proibir que o individuo ou a massa infrinjam a lei.
- As constituições imperfeitas
Porém, estas leis, estes códigos, são apenas “imitações da verdade executadas o mais perfeitamente possível, sob a inspiração daqueles que sabem”.
Assim, quando os ricos que realizam esta imitação, a constituição/governo se chama aristocracia. Mas se não observam as leis, será uma oligarquia. Se houver um chefe único, independentemente de ele possuir ou não a ciência, ele será chamado de rei. Se, porém, um falso chefe, age contra a lei e contra o chefe competente, a pretexto de assim exigir o bem maior, quando, na verdade, é guiado por cobiça e ignorância, tomando o poder a força, não porque é seu direito por ser dotado da ciência real, será chamado de tirano. 
Uma vez que estas formas de constituição são apenas imitações, o indivíduo ou massa que possuindo leis, resolve agir contrariamente a elas, acreditando assim agir melhor, estará agindo da mesma forma que o político verdadeiro, apesar de não saber disso, já que, como já falado, alguém não dotado da arte real jamais poderia assimilá-la.
Porém, uma vez que em muitos locais vigem constituições imperfeitas, é necessário analisar qual delas torna a vida menos desagradável, analisando-se os resultados de cada forma de governo. Para isto, é necessário considerar o que ocorre em cada um deles quando se segue e quando não se segue a lei (o que não seria necessário considerar num governo adequado).
· Governo de um: é a melhor forma de governo imperfeita quando submetida à lei, e a pior quando estas forem violadas;
· Governo de poucos: é o intermediário;
· Governo de muitos: é a pior forma de governo imperfeita quando submetida à lei, e a melhor quando estas forem violadas.
Todos aqueles que desempenham um papel nas constituições imperfeitas, exceto aqueles que possuem conhecimentos, devem ser rejeitados como falsos políticos, criadores das piores ilusões, grandes charlatães e, por isso, os maiores sofistas entre todos os sofistas.
- Eliminação das artes auxiliares
Ainda resta separar as ciências que são parentes do gênero real, estando muito próximas a ele. São elas “a ciência militar, a ciência jurídica e toda essa retórica aliada da ciência real, que, de comum acordo com ela, emprestando à justiça sua força persuasiva, governa toda a atividade no interior das cidades”. 
Existem ciências que exigem o aprendizado de habilidades manuais, como a musica. É outra ciência que determina quais ciências exigirão este aprendizado e aquela é superior a estas. O mesmo ocorre entre a ciência que decide sobre a necessidade ou não de persuadir e aquela que ensina a persuadir. A retórica é a ciência que ensina a persuadir, mas é a arte de governar que decide quando é preciso usar a persuasão.
Isto também se aplica à arte militar/ciência de fazer guerra – que é subordinada à ciência real, que decide quando fazer guerra – e à arte de julgar – que também é subordinada à arte real, sendo apenas guardiã das leis elaboradas pelo rei e subordinada a sua força.
Assim, é possível perceber que a ciência real não possui obrigações práticas: dirige, ao contrário, aquelas que existem para realizar essas obrigações.
- A natureza social e suas contradições
Retomando-se o exemplo da tecedura, a ciência real é o entrelaçamento que une os demais elementos. Resta descrever sua natureza, sua maneira de entrelaçar, e a qualidade do tecido que ela assim nos oferece. 
“Em muitas circunstâncias, quando nos sentimos encantados pela velocidade, pela força, pela vivacidade do pensamento, do corpo ou da voz, nossa admiração encontra apenas uma palavra para se exprimir: energia.” Porém, a maneira tranquila, sábia e pacífica com que algo se realiza também pode ser objeto de elogios. Fala-se, então, da sobriedade. Tratam-se de caracteres opostos que compõem a virtude. Todavia, uma cidade energia demais, ou seja, violenta demais, pode ser perigosa, ao colocar-se constantemente em guerra. Por outro lado, também o é uma cidade pacifica demais, pois, ao abandonar a prática da guerra e não mais educar seus jovens para tal, fica vulnerável ao primeiro ataque.
Por isso, em relação àqueles que, sob a égide das leis, ministram a instrução e a educação, a ciência real “reservará a si a autoridade diretiva, não permitindo treinamento algum que não tenda a facilitar sua própria amálgama [fusão perfeita de coisas ou pessoas distintas que formam um todo], formando caracteres que se prestem a isso, e recomendará a eles que tudo ensinem nesse espírito. Se houver caracteres aos quais não seja possível comunicar energia [como a coragem], temperança [como a sabedoria] e outras inclinações virtuosas, que sejam arrastados, ao contrário, pelo ímpeto de natureza má, ao ateísmo, à imoderação e à injustiça, deles se livrando a ciência real, por sentenças de morte ou exílio e por penas as mais infamantes.” 
“Aqueles que permanecem na ignorância e abjeção ela submeterá ao jugo da escravidão.” 
Quanto aos demais, que possam ser amalgamados uns aos outros, “se se inclinarem mais para a energia [...] a ciência real marcará o seu lugar na urdidura; os outros que se inclinam mais para a moderação constituem [...] o tecido flexível e brando da trama. Sendo opostas suas tendências, a política se esforça por uni-los e entrelaçá-los da seguinte maneira [...] reúne, em primeiro lugar, segundo as afinidades, a parte eterna de sua alma com um fio divino, e em seguida, depois dessa parte divina, une a parte animal com fios humanos.” Ou seja, o político – e somente ele, dotado de ciência real, pode fazê-lo – imprimirá nos espíritos formados pela boa educação, opiniões verdadeiras sobre o belo, o bom, o justo e seus opostos. Ao ser penetrada por tais opiniões, uma alma enérgica se suavizaria, enquanto o moderado se tornaria sóbrio e prudente. Isto eliminaria os problemas causados pela pendencia a apenas um destes caracteres, tornando possível a vida na cidade. Esta arte de unir os cidadãos, trazer a harmonia à cidade, como quem tece é chamada de prudência, que é uma virtude possuída pelo rei-filósofo. Assim, o politico ordena a sociedade e a alma do individuo. Esta ordem é o objetivo mais fundamental das normas sociais, “o tema principal é determinar como seria o governante ideal da polis”. A vida harmoniosa tem como resultado a felicidade.
Assim, a justiça, para Platão, ultrapassa o aspecto legislativo, de caráter político, pois ela não seria alcançada através da lei, e alcança o aspecto ético dos indivíduos, pois pode ser alcançada pela própria convivência entre eles.
Ainda, “é somente entre caracteres em que a nobreza é inata e mantida pela educação que as leis poderão criar este laço; é para eles que a arte criou esse remédio”, que é como um laço divino que une as partes da virtude e que não poderia unir bons com maus ou maus com maus. Restam, por fim, os laços humanos, “que se criam, entre cidades, pelos casamentos que elas autorizam e pela troca de seus jovens; e, entre particulares, pelos casamentos que contratam”.
Existem,porém, os que recusam tais alianças, como os que se preocupam com o cuidado da raça, buscando relacionar-se apenas com outros enérgicos, se forem enérgicos, e outros moderadores, se forem moderadores. “Eles agem fora de todo bom senso, buscando apenas o comodismo imediato e, unindo-se a seus semelhantes, cheios de aversão pelos outros, deixam-se guiar sobretudo por suas antipatias.” Deveriam, ao contrário, misturar-se, para que não ocorram os problemas de violência (no caso do enérgico) e fraqueza (no caso do reservado), que naturalmente ocorre quando a alma se reproduz a mesma (enérgica ou reservada) durante muitas gerações.
Não será difícil formar tais laços, caso as duas raças tenham a mesma opinião sobre o bem e o mal. “E aqui está, pois, a verdadeira função dessa arte real de tecedura: jamais permitir o estabelecimento do divórcio entre o caráter moderado e o caráter enérgico, antes uni-los pela comunidade de opiniões, honras e glórias, pela troca de promessas, para fazer deles um tecido flexível e, como se diz, bem cerrado, confiando-lhes sempre em comum as magistraturas nas cidades.” Isto se dá da seguinte forma: “Onde for necessário um único chefe, escolher um que tenha esse duplo caráter; onde são necessários muitos, formar partes iguais das duas naturezas.”
Há, porém, um paradigma acerca da teoria do conhecimento do político: é preciso buscar a verdade, mas quem parte de uma opinião falsa pode alcançar a verdade e a sabedoria?
As leis
De caráter jurídico-filosófico, é a última obra de Platão, não foi finalizada, visto que ele faleceu antes de completa-la. Nele, Platão busca estabelecer normas, uma constituição, fazendo uma medida entre o que é a realidade e o que ele gostaria que fosse.
Comentadores
Principais pontos
Para Chauí, são os principais pontos, as principais ideias trazidas pela obra de Platão:
· A política não é uma arte ou uma técnica, mas uma ciência;
· Uma vez que só se alcança a justiça através do bem, a relação entre política e ética é de extrema importância; a ética é um aspecto essencial da política;
· A distinção das formas de governo – pelo número e pela qualidade dos governantes ou detentores do poder – definidas pela primeira vez por Platão;
· O verdadeiro rei será sempre o filósofo, a cidade depende do conhecimento da filosofia para ser justa, a filosofia que possibilita pensar uma politica do bem e justa para todos;
· A finalidade de politica não é o poder, mas antes a justiça para o bem comum da cidade;
· O político é quem é dotado de prudência, ou seja, tem a capacidade de reunir as diversas contradições que se encontram dentro da cidade e manter sua ordem;
· Cada forma de governo pode ser corrompida ou degradada e transformar-se numa forma política degradada ou perversa;
· O regime político correto é substituído por um regime político corrompido, de modo que a política se realiza num tempo cíclico no qual o movimento de passagem das formas legitimas é inverso ao de passagem das ilegítimas;
· O homem só é livre na pólis e participando da vida política;
· A verdadeira vida ética só é possível na polis;
· O homem deve ser educado e formado para ser um cidadão;
· Platão não aceita a retórica dos sofistas;
· Platão não admira a democracia e a tirania.
Aponta Emilia Maria Mendonça de Morais:
· O gênero humano só ficará livre de seus males quando os filósofos ascenderem ao poder ou quando aqueles que detêm o poder, sob a proteção divina, consagrarem-se à filosofia. O filósofo, homem divino, não deverá se evadir da missão de contribuir para instaurar um governo justo, desde que seja solicitado para isso;
· O filósofo é aquele que sofre todas as penas e a quem não se pode imputar nada de ímpio [desumano; cruel; bárbaro]. O melhor para si mesmo e para a pólis, é procurar sempre o mais belo ou o mais justo, quaisquer que sejam as consequências que se possa sofrer. A injustiça é o maior mal; padecer injustiça, é o menor;
· O domínio de si, a temperança como regra de vida e prescrição primordial do filósofo aos que visam ao governo da pólis;
· Sócrates reconhecido como o mais justo de todos os homens de seu tempo;
· A lei igual para todos é condição para que os governantes injustos não continuem sucedendo-se uns aos outros e para o estabelecimento de um regime político justo;
· Tal como o jovem matemático seria o condutor político – capacidade de aprender aliada à afinidade com a justiça;
· O desapreço da filosofia entre os homens comuns;
· Que o sábio exorte a sua cidade contra os males que a corrompem, sem correr o risco de morrer ou falar em vão e, Platão adverte, sem se valer da coerção ou de violência contra o governo estabelecido;
· A verdadeira comunidade entre os homens é aquela criada pela educação;
· Faz-se necessário restabelecer a crença nas antigas e santas doutrinas que preconizam ser a alma humana imortal e sujeita a julgamento e sofrimentos após a sua separação do corpo;
· A opinião verdadeira é a que deveria ser incutida em todos os cidadãos de uma pólis bem governada; 
· As quatro virtudes: justiça, prudência, coragem e temperança; 
· O pensamento em seu mais alto grau é uma aquisição daquele que o persegue; decorre do convívio com um mestre e de um longo e persistente exercício da filosofia, seguidos de uma apreensão súbita da própria alma daquele que o vivencia; não pode ser comunicado através de fórmulas prescritas ou escritas por outrem;
· Os nomes, as definições e as representações dos seres, assim como o próprio processo que culmina no conhecimento, não devem ser confundidos com a realidade mesma daquilo que é conhecido; 
· O sábio e o bom piloto do barco que simboliza a pólis, pressentem as tempestades que a abalam, mas poderá vir a submergir por não ter previsto a violência das mesmas.
A cidade justa
A questão trazida em “A República” é “o que é a justiça?”. 
Para Polermaco, é dar a cada um o que é devido (senso comum). Para Trasímaco é o poder do mais forte. Segundo Glauco, ela é praticada somente porque os homens temem os castigos se forem injustos. Sobre isto, no segundo livro da República, Platão narra o mito do anel de Giges, que tornaria quem o usa invisível, de modo que poderia praticar injustiças sem ser castigado. Ensina Platão, porém, que os fins – injustiças – não justificam os meios – como a obtenção de poder, de modo que as injustiças praticadas devem ser punidas. A justiça é valiosa em si mesma, não apenas quando posta em prática para se obter outros ganhos, e apenas o justo é feliz – aquele que obtiver, por meios injustos, ganhos que acredita que o farão feliz, ainda será mais infeliz que aquele que seguiu o caminho da justiça e não obteve tais ganhos.
A teoria da justiça na República desenvolve e prepara a psicologia e a ética; a justiça ou virtude no homem, é o governo dos apetites e da cólera pela razão, essa mesma teoria antes de ser aplicada ao indivíduo é aplicada à cidade. Ou seja, a cidade justa deve ser controlada, guiada pela racionalidade, pelo conhecimento; a justiça, assim, só seria alcançada através do logos/razão.
O conhecimento do bem e a Pólis
- O conceito de bem e sua relação com a política
Gadamer, no texto “A ideia do bem entre Platão e Aristóteles”, traça uma importante explicação do conceito de bem e sua relação com a política de Platão:
As principais ideias trazidas por Platão são: bem, justiça e beleza. Elas são unidas pela ideia de bem, que Platão coloca como o conhecimento maior. Assim, as demais ideias só podem ser alcançadas através da ideia de bem. Por este motivo ela é entendida como causa de todas as ideias, do conhecimento e da verdade; como o início de tudo. “No livro IV da Republica: ‘aqui, portanto, o Bem ainda é definido simplesmente como todo conhecimento de tudo o que é vantajoso para todos e para o todo.’” 
Assim, apenas através do bem, é que se pode alcançar a justiça. Deste modo estabelece-se uma relação entre ética (bem) e política (justiça).
“No contexto da politéia [Cidade-Estado], o bem se apresenta muito mais como o unificador do múltiplo, articulando-se, pois, exatamente para a duplicidadeinterna e para a função dialética do uno.” Além da já mencionada função unificadora do bem, é preciso lembrar da chamada dialética ascendente e descendente, composta pela passagem da doxa/opinião para o conhecimento/episteme/filosofia, representada pela saída da caverna, somada ao retorno do filósofo a ela. Ou seja, como já mencionado, o filósofo, que conhece o bem, precisa participar da vida política e guiar os que não são dotados desta sabedoria.
 “A ideia de Bem exerce a função prática de orientação para a vida justa, na medida em que esta é um misto de prazer e saber, e sua mistura, descrita no final, pauta-se de forma esclarecida sobre a ideia-guia de moderação, comedimento, racionalidade”.
“O bem seria realização do impulso de vida ou saber do bem como na República”. O bem é o impulso ao conhecimento e à vida justa/justiça, levando a ela.
 “De certa maneira, é insignificante afirmar que, somente conhecendo a ideia do bem, será possível conhecer todo o outro bem que houver. No inicio, a questão do bem foi introduzida com essa fórmula esquemática, segundo a qual o bem também seria aquilo por meio do que todas as outras virtudes se tornariam úteis e valiosas”.
 “O bem somente existe para nós no dom que é por ele conferido: conhecimento e verdade”, ou seja, o bem é o alcance do conhecimento e da verdade.
“A politéia também fala do bem na vida humana”.
 “A questão do bem e especialmente a questão do bem no sentido de areté [da virtude], da excelência do cidadão justo da polis, sempre dominaram nos escritos platônicos”. Assim, o bem em Platão está relacionado à excelência do cidadão justo dentro da pólis, proporcionado pela combinação de virtudes possibilitada pelo governante filósofo.
- A virtude
“Fala no Protágoras da unidade das muitas virtudes. E coloca a coragem como virtude especial exigida dos soldados. Coragem também é conhecimento. O significado universal de coragem que Platão quer mostrar torna-se evidente ao lhe oferecermos a referencia mais genérica e abrangente que inclui a ‘coragem civil’: é o perigo do conformismo, contra o qual se faz necessária a coragem que não se deixa enganar, mas que ‘sabe’”.
“A Politéia trata também da unidade na multiplicidade. A multiplicidade dos estamentos (divisões sociais), assim como as das partes da alma, é ordenada na direção da unidade e da harmonia [tal harmonização sendo responsabilidade do rei-filósofo]. No livro IV pode-se ler o ordenamento do Estado em estamentos, e, em seguida, o ordenamento da alma no tocantes às virtudes.”
- O mito da caverna e o conhecimento
“É o morador da caverna que muito bem sabe como costumam ocorrer as coisas na vida social e política, e que as práticas costumam, ali, conduzir a êxitos. O que ele não sabe e nem mesmo chega a indagar é sobre o Bem, aonde tudo supostamente deveria dar.” O morador da caverna, que vive na doxa, no senso comum tem os conhecimentos práticos, mas não conhece o bem.
“O bem que o retornado enxergou no mundo exterior não é nada daquilo que os agrilhoados da caverna queiram conhecer um pouco.”
“Apenas a dialética [a saída da caverna que representa a doxa e a descoberta do conhecimento] desperta da perplexidade para o sonho do mundo da vida”.
- Ética e responsabilidade
“O fato do dom do esclarecimento e a responsabilidade integrarem a conduta ética certamente também inclui que a totalidade da consciência e do ser ético sempre estão em jogo.” “O dom do esclarecimento não pode estar restrito a uma ou outra manifestação ética”.
- A dialética ascendente e descendente – o retorno à caverna
“A educação dos guardiões, conduzida através das diversas disciplinas das ciências matemáticas para a dialética, para a arte da distinção, é educação por meio de theoría e para a theoría”. A política é uma ciência teórica. “Tal fato conduz, do momento de conhecimento que está contido em cada areté, aparentemente para bem longe. Sim, no final, a relação do interesse teorético, no qual são formados os guardiões, para com a tarefa de liderança política à qual se destinam acaba-se agravando até gerar um conflito. Está claro que os libertados da caverna da experiência sensualmente turva e da rotina pratica, os liberados para a theoría, são incapazes – objeta-se – de sentir, espontaneamente, um impulso que os leve de volta à caverna da politica, na qual se encontra todo o conhecimento inexato e onde tudo sempre ocorre de forma equivocada.” 
Novamente, é preciso relembrar que o filósofo, ao sair da caverna, não tem o impulso de voltar a ela, preferindo contemplar as ideias, o conhecimento alcançado. Todavia, diante de injustiças, da perseguição da filosofia pela cidade, o filósofo é quase obrigado a retornar para dar liberdade ao pensar filosófico. Defende Richard Oliveira no texto “A Demiurga Política”, que trata do texto “As Leis”, que esta “descida dos filósofos ao plano da cidade [...] é forçada, uma coerção, porquanto os filósofos, deixados a si mesmo, jamais retornariam de forma voluntária ao interior da caverna, permanecendo, antes, inteiramente dedicados á pesquisa intelectual da verdade, e considerando-se, por isso, já nessa vida, como habitantes privilegiados das ilhas dos bem aventurados”.
- Política utópica
“No estado nefelibático (que vive nas nuvens), politéia platônica, todos os problemas, que em outra situação confundiriam e distorceriam a vida sócioestatal, certamente são resolvidos de forma ideal. Cada individuo faz a sua parte, e tudo é organizado de modo tal que o bem-estar coletivo tende a crescer. Aos detentores do conhecimento, educados como líderes da pólis e formados para a ciência, as vias em que deverão mover-se estão preestabelecidas, da mesma maneira que ocorre com outros estamentos.” “Está claro que essa pólis ideal não pode ser realizada. Todas as condições para sua viabilidade, desde a comunidade de mulheres e crianças, passando pelo domínio dos filósofos, até a retirada de todos os indivíduos maiores de 10 anos da cidade a ser reorganizada, dão provas de sua impossibilidade.” “O princípio fundamental da utopia estatal platônica consistia em educar os ‘guardiões’ [o filósofo teria um educação diferenciada na vida política e militar e na música], em cuja as mãos estava o poder, de forma tal que eles fossem imunes à sedução pelo poder”, de modo que sua política seja voltada à propagação do bem à todos na pólis, e não centrada em seu próprio poder.
“Afinal de contas, Platão imagina toda uma cidade em que, formalmente um super-éthos, uma formidável habituação com a virtude, dá o tom. Por certo, esse aspecto do éthos somente vem à tona em uma representação quase mítica de um novo super-éthos, e não conceitualmente. O ‘domínio dos filósofos’ permanece uma terrível provocação, na medida em que, com isso, o conhecimento puro, a theoría, a indagação humana acerca da vida correta, a indagação acerca do bem, parece precisar ser respondida. Urge que nos indaguemos sobre o alvo para o qual aponta a utopia platônica.” Assim, Gadamer critica Platão e questiona se política e filosofia não seriam incompatíveis.
Conforme Oliveira “a filosofia se define, na perspectiva platônica, como uma atividade ou práxis libertadora, cujo dinamismo se funda numa lenta e paciente pedagogia do olhar humano, numa educação da visão para o exercício do questionamento.” Assim, a filosofia não é apenas um conhecimento teórico que foge da realidade, mas que busca revolucioná-la. Desse modo, se a política de Platão, de um lado, é vista como utópica, de outro, pode ser vista como revolucionária.
Política e busca da felicidade
Diz Antônio Martins, em “Filosofia e Política em Platão”, “o texto platónico está animado pela convicção de que se há algum caminho acessível aos mortais para encontrar uma resposta à pergunta socrática — como devemos viver? — ele passa necessariamente pela filosofia. Com ela aprenderiam a melhor maneira de viver e compreenderiam que ser justo em todas as circunstâncias e jamais cometer uma injustiça mesmo com o risco de se ser vítima de injustiça(s) — é a melhor maneira de conseguir a mais perfeita realizaçãocomo homem ao alcance de cada cidadão. É neste contexto que se coloca em Platão a problemática da eudaimonia”. Assim, um sujeito só poderia ser feliz sendo justo, e a justiça como já visto, é alcançada através do bem. É necessário lembrar, porém, que a felicidade não é um tema central em Platão, como é em Aristóteles, mas um acréscimo. 
Justiça no Górgias
Górgias é um sofista, sobre o qual Platão trata em um de seus textos. Nele se discute o que é filosofia e o que é política, utilizando-se da linguagem. Distingue-se como a filosofia (defendida por Platão) e como a política retórica (defendida por Górgias) pensam a justiça:
Conforme Martins: “A autocompreensão da filosofia que encontramos nos diálogos, visa, em última análise, justificá-la como o estilo de vida que melhor se ajusta à excelência do homem e permitir, negativamente, identificar todas as formas de pseudo-filosofia.” “Tema de debate vivo era saber qual o género de vida que poderia proporcionar aos homens a almejada felicidade.” “Trata-se, efectivamente, de escolher entre dois estilos de vida: o de agir como um homem, falando ao povo, praticando a retórica, exercendo a política da maneira que vós hoje a exerceis, ou o outro que eu recomendo, o cultivo da filosofia.” 
Assim, Platão critica a retórica dos sofistas como forma de fazer política.
“Depois de estabelecido o nexo entre a retórica e a problemática da justiça quando Górgias concede que a retórica é a arte da persuasão que gera a crença, não o saber, sobre o justo e o injusto é possível avançar para um nível que ultrapasse os meros artifícios formais.” Assim, nega-se a justiça como crença, pois com isto se afasta do que é justo de fato.
“Porém, o seu interlocutor Górgias aceita a validade da conclusão no sentido que mais interessa a Sócrates: quem aprendeu a justiça é justo não apenas no sentido de ter o poder de fazer o que é justo mas também no sentido em que não pode querer fazer outra coisa que não seja aquilo que é justo.” Quando se tem o conhecimento da justiça, sempre se irá desejar que ela seja realizada, independentemente do momento. Sócrates, por exemplo, apesar de ter feito sua defesa e saber que estava sendo injustiçado, preferiu ser morto a praticar uma injustiça ao fugir, por isso não o fez.
Justiça e política
Conforme Martins: “Polo, representante da geração mais nova dos sofistas, entra na conversa radicalizando a posição de Górgias. Não pode aceitar que Sócrates inclua a retórica protagonizada por Górgias no género da adulação [bajulação] ao lado da sofística. Mas, pior do que isto, seria aceitar que a retórica se reduz a um simulacro de uma parte da política”, como entende Platão. “Segundo o modelo de compreensão teleológica da ação humana seguido por Sócrates, os tiranos e os oradores [a retórica], por mais paradoxal que isto possa parecer a Polo, não fazem realmente aquilo que querem. Sócrates concede que eles pensam fazer sempre aquilo que lhes parecer ser o melhor” buscando o bem. Nessa busca, porém, acabam corrompendo o conceito de justiça. Assim, para Platão, seria necessário pensar a justiça através de uma ciência que busque a verdade, não que busque meias verdades ou verdades relativas, como a retórica ou e a sofística.
“Aquilo que é visado no agir humano é sempre o bem no sentido daquilo que nos é verdadeiramente útil. Mesmo quando alguém mata, exila ou priva alguém dos seus bens age assim por estar convencido de que está a fazer o melhor para si. O maior dos males é cometer uma injustiça. Esta afirmação de Sócrates só adquire o seu verdadeiro sentido no contexto mais amplo da análise da problemática da eudaimonia e da justiça. É precisamente esta articulação entre a felicidade e a justiça, pressuposto de todo o texto platónico, que está também em discussão no Górgias.” Assim, é preciso lembrar que a felicidade é a busca do bem comum, dentro da pólis, que também perpassam o texto de Platão.
“A semente filosófica depende da justiça como base”. 
Verdadeira e falsa política
Conforme Martins: “O contraste entre a verdadeira e a falsa política vive da definição da política como a arte que trata da alma. Estamos sempre num horizonte em que o modelo da techne [técnica] e as analogias que nele se inscrevem são determinantes de todo o discurso produzido no interior do diálogo. Assim, a analogia que assenta na polaridade alma-corpo vai permitir distinguir, ao nível da política, duas dimensões básicas, a justiça e a legislação.” 
“Se tivermos em conta a caracterização da política antes apresentada por Sócrates, a finalidade última da ação política só pode ser o que é melhor para a alma humana [e para a vida das pessoas na pólis]. É, portanto, a natureza da alma que vai determinar os traços principais da atividade política. Sócrates procura contrariar a separação radical entre nomos (lei, convenção) e physis [natureza] introduzindo na discussão os conceitos de ordem e de equilíbrio.” Assim, a relação entre a natureza e a lei deve ser orientada a partir de um equilíbrio dado pelas ideia de justiça e pela ideia de filosofia no sentido amplo, enquanto práxis.
Política: a busca da justiça
“A lei de que aqui fala Sócrates não tem o mesmo significado que Caricies atribuiu à palavra lei. Para Sócrates não se trata de mera convenção, mais ou menos arbitrária, modificável segundo os interesses de quem, em cada caso, detém o poder político.” Para a sofística, para os políticos da época, a lei poderia ser modificada conforme o interesse dos que a utilizam. Já para Platão, “todos devem orientar a sua ação pela justiça. Só aí poderão encontrar a sua plena realização como homens uma vez que a areté [virtude] humana e a arete política coincidem [...]”
Alma e política
As 5 partes da alma correspondem as 5 formas de governo:
· Monarquia: forma pura, ideal e perfeita. É o governos dos melhores, regido pela prudência. Alguns autores a chamam também de aristocracia, como sinônimo, apesar de Platão coloca-la como governo de alguns, enquanto a monarquia é o governo de um só;
· Timocracia: mescla das raças de ouro, prata e bronze. Nela a classe militar toma as riquezas e o poder. É o regime espartano;
· Oligarguia: domínio de pequena minoria magnatas ricos, pelo terror, havendo a ambição das riquezas;
· Democracia: o povo se apodera do governo, podendo gerar uma anarquia, havendo uma liberdade exagerada. É o regime de Atenas;
· Tirania: reino mais completo da injustiça, desordem, grau mais baixo de degeneração social, no qual o demagogo toma o poder.
Para Platão, existem três tipos de caráter que moldam as almas das pessoas. Cada tipo, em sua teoria política, deveria ocupar o seu respectivo cargo na sociedade, a fim de formar uma organização perfeita da pólis:
· Caráter concupiscível: mais ligado à liberdade e aos desejos, é o caráter de pessoas mais afeitas ao trabalho manual e artesanal;
· Caráter irascível: por serem dominadas por impulsos de raiva, essas pessoas estariam aptas ao serviço militar;
· Caráter racional: esse tipo de caráter estaria, para Platão, mais próximo da racionalidade e, concomitantemente, da justiça, o que conferiria às pessoas que o têm a capacidade de governar, ou seja, de atuar na política.
Arqueologia da política – Paulo Butti de Lima
Nesta obra ele estudar a natureza da política em “A República” e a “A política”. No texto da República, a ciência de governo se relaciona com uma ciência protetora, enquanto no texto do político fala-se em uma ciência condutora.
Platão reflete sobre as formas especificas de organização política e divisão da sociedade. Na república 3 personagens se distinguem: observador da cidade, o legislador, e o governante. As cidades justas precedem as cidades corruptas não tanto no tempo, mas na ordem das razões. Arqueologia da política para Butti significa tanto a análise das formas do discurso político, quanto a origem da nossa tradição, da tradição política.
- Capítulo 5 – O Retrato do Filósofo como Governante
O projeto político de Platão conclui com a atribuição do poder ao filósofo. Essa é a conclusão encontrada com as reflexões dePlatão sobre a divisão da sociedade, das almas e das classes sociais, bem como das educações diferenciadas. O filósofo é o guardião perfeito para governar a cidade justa. 
Butti destaca a dificuldade dessa atribuição . Que o filósofo não possa se adequar ao guardião. Como fica claro, o conhecimento filosófico não se identifica com a ciência protetora que caracteriza o saber dos governantes. Diferencia-se o guardião militar do rei-filósofo.
Ao mesmo tempo que atribui poder ao filósofo revela críticas à capacidade politica dessa personagem. A atividade filosófica é alheia a ação, o filósofo carece de experiência. Assim, ele estaria mais no aspecto contemplativo que na prática da politica, como então poderia ele governar? Para Platão, porém, o próprio retorno à caverna seria a colocar a filosofia em prática. O fazer político, pelo filósofo, é a própria prática da filosofia.
Considerações paradoxais: natureza filosófica x qualidades de governo. Seria necessário pensar a natureza filosófica, da atividade do filósofo e como essas qualidades de governo podem ser relacionadas.
No caráter do guardião está presente uma veia filosófica; mas que se traduz pela disposição de aprendizado musical, sabedoria de um governo da comunidade.
Os guardiões perfeitos, os governantes da cidade justa, terão um saber, que consiste na ciência de governo. 
A ciência protetora [política], ou ciência dos guardiões, corresponde ao bom conselho ou bom juízo. Mas ela não se caracteriza pela noção de verdade. Para Platão não é possível pensar uma ciência política fora da verdade.
Somente aos governantes, em sua sabedoria, é concedida a faculdade de mentir. A mentira é permitida ao governante como um phármakon: o tema reaparece, em formas diferentes. Os guardiões não possuíram somente a medida da verdade: eles saberão da ocasião da verdade e da mentira. A noção de verdade não parece essencial na determinação da ciência de governo no quarto livro da República. Isto se dá pois o governante tem o conhecimento do que é o verdadeiro e do que é o falso.
Há um paradoxo quando se pensa em guardiões filósofos, pois isto constitui a união de duas naturezas: a filosófica – de caráter contemplativo – e a política – de caráter prático.
Afirmando que a cidade justa será possível com a combinação de filosofia e poder, Sócrates atribui ao filósofo o papel de guardião perfeito. Como visto, esta relação de poder ultrapassa a pretensão do rei-filósofo, que não pretende alcançar o poder pelo poder, mas para o bem comum.
O filósofo e a justiça
O filósofos como governante não é passa pela nova educação, mas é antes o filósofo antigo, aquele que já existia na pólis. O filósofo é resultado da criação da cidade justa, alguém não contaminado pela vida nas cidades degeneradas. 
O filósofo é a condição da justiça: ele recebe o poder inicial, institui um governo, estabelece leis e permite que outras exerçam o poder. E o resultado da justiça, no qual ele comanda, neste caso a figura do filósofo coincide com a do guardião/militar.
Sócrates precisa defender essa ideia: de colocar o filósofo no lugar dos guardiões, sendo preciso diferenciá-los.
A ideia de busca do bem comum trazida por Platão, atualmente, pode remeter a um comunismo.
O filósofo e o conhecimento prático
Diferem-se:
· Conhecimento/ciência/episteme: filosofia
· Opinião: povo e não-filósofos – inclusive os sofistas e retóricos
Somente aos que conhecem o que é deve-se atribuir o poder político
Entre os excluídos do campo filosófico estão os homens de ação/práticos.
A figura do filósofo não deve ser confundida com a: “dos amantes de espetáculos e de técnicas (artes)”, que estão distantes do conhecimento, do bem e da justiça. Assim, é necessário conciliar a filosofia, enquanto conhecimento teórico, e o conhecimento prático levado à ação. Diz Oliveira que “a filosofia é uma atividade, e uma pratica libertadora, cujo dinamismo se fundamenta numa lenta e paciente pedagogia do olhar humano, numa educação da visão para o exercício do questionamento, transcendendo as crenças, os preconceitos, os dogmas produzidos pela cidade, em busca de um ponto de vista racional e independente.” Assim, ela precisaria lutar contra todas estas questões, motivo pelo qual se coloca como uma saída da retórica, da opinião.
Qualidades do filósofo político
Segundo Xenofonte Sócrates diz que o filósofo deve ser moderado (pela justiça) e respeitoso aos deuses. Deve ter o domínio, o governo de si mesmo, e respeito às leis. Platão recorre poucas vezes ao termo prático em sua obra, fala disso no Político. Prático é associado às atividades manuais, mas no final do diálogo ele fala do caráter corajoso do governante. Na república o desejo de agir é excluído. O filósofo na cidade atual sabe que a ação não traria benefício para si e seus amigos.
Ação política e cidade corrompida
A ação na cidade, desejada pelo filósofo corrompido, e astutamente esquivada pelo filósofo verdadeiro, não corresponde, na verdade, a uma atividade prazerosa [o ato de o filósofo voltar para a caverna depois de conhecer o bem não acontece por um desejo do filósofo por este ato, mas pela necessidade de ordem e manutenção da unidade do povo]. Também na cidade justa, a ação política é causa de incômodo e exige a constrição de homens preparados para o governo. A ação do filósofo consiste em conferir ordem à cidade e aos indivíduos, assim como a si mesmo.
Resumo da ação política para o filósofo
A atividade prática não desperta o desejo e interesse, mas causa repúdio à natureza verdadeiramente filosófica em seu habitat natural. Se ela é sentida como necessária, é somente porque também pertence à natureza do filósofo o sentimento de justiça e gratidão. O filósofo não tem esse desejo pelo poder, por ter uma vida política, mas ao mesmo tempo possui o sentimento da justiça e do bem, que guiam a sua vida e sua condição de si mesmo e quando ele volta para a caverna, para a cidade, e vê a cidade corrompida, ele irá querer melhorar esta situação, de forma que pretende trabalhar melhor o conceito de justiça que está deteriorado a partir da corrupção dos indivíduos e da política em sua atualidade. Por isso o filósofo tem esta empreitada, não por uma vontade cega ou desejo, mas é quase que forçado a conduzir as pessoas pois precisa conviver com elas, tendo não um desejo de poder, mas um desejo do bem comum, motivo pelo qual quando volta para a cidade ele tem essa capacidade, essa prática pedagógica, de ao mesmo tempo conduzir e orientar as pessoas, no sentido de instrução e no sentido político.
O filósofo e a experiência de governo
No final do Livro V da República é eliminada a ação da natureza do filósofo.
Definição do filósofo: “quem é capaz de colher sempre o que permanece o mesmo”. 
Essa definição não é suficiente: virtude e verdade se acrescentam à experiência.
O filósofo tem a experiência da verdade, da ciência e da arte dialética [do discurso que responde perguntas].
Então, ao mesmo tempo em que Platão elimina a ação da natureza do filósofo, depois ele fala que o filósofo, procurado, ele mesmo se coloca como aquele que vai conduzir pois possui essa experiência da verdade, da ciência e da arte dialética.
O filósofo e a virtude
A virtude é algo inerente a natureza do filósofo, que precisa ter:
· Boa memória;
· Fácil aprendizado;
· Magnânimo ou bondoso;
· Dotado de graça;
· Amigo e parente da verdade, justiça, coragem e temperança
O filósofo se aproxima da figura do guardião perfeito e precisa da estabilidade dada pela sabedoria, colocando-se a prudência como sabedoria prática.
Hanna Arendt
Diz, no texto “Entre o Passado e o Futuro”, que “a razão por que Platão queria que os filósofos se tornassem os governantes cidade se assentava provavelmente no conflito existente entre o filósofo e a polis, ou na hostilidade da polis para com a filosofia, que provavelmente estivera dormitante algum tempo antes de mostrar sua ameaça imediata à vida do filósofo no julgamento e na morte de Sócrates. Politicamente, a filosofia de Platão mostra a rebelião do filósofo contra a pólis. O filósofo anunciasua pretensão ao governo mas não por amor à pólis e a política [...] como por amor à filosofia e à segurança do filósofo”.
“O castigo dos bons que não fazem política é ser governados pelos maus” – Platão entende que o político bom é aquele dotado deste conhecimento, da ciência política, que conhece o que é o bem. A frase remete à necessidade de que o filósofo que saiu da caverna e alcançou o conhecimento do bem e da verdade, retorne à caverna e convida com os demais. Para isto, é preciso que ele assuma uma postura critica perante a cidade e posicione-se politicamente (uma questão política, pois assume a condição de político) bem como ensine, guie aqueles que lá se encontram a buscar o conhecimento (uma questão pedagógica, pois assume a condição de professor), mostrando-lhes o bem e a verdade. Muitos, porém, após alcançar o conhecimento, o bem, e a verdade, não o querem, não querem retornar à vida cotidiana e ao senso comum e ao convívio dos demais ao alcançar o conhecimento. Trata-se de uma crítica ao sistema político no qual Platão vivia, como se verá mais a frente.
Vegetti: A realeza proposta por Platão encontraria sua legitimação na virtude e no saber – os novos filósofos dispõem tanto de capacidades intelectuais como morais;
Sobre o texto do Vegetti, para o debate:
Se a realeza filosófica é a única condição de possibilidade da realização da nova cidade, quais seriam as condições que tornariam possível seu advento? Este questionamento se desdobra:
· Como é possível que autênticos filósofos se formem naquele meio hostil?
· Como é possível que se arrisquem para assumir o governo das cidades?
· Como poderão converter à filosofia os reis de modo que governem como o fariam os filósofos ou aceitem submeter-se a eles?
A solução proposta por Platão é um milagre divino que leve os filósofos a se ocuparem das cidades ou toque os poderosos e os leve à filosofia. De qualquer forma é algo que não pertence ao curso normal da historia. O caminho mais normal, sugere Vegetti, é que a cidade aceite o poder do filósofo, convencida de sua necessidade e legitimidade, o que se mostra difícil diante da resistência que a cidade opõe à transformação de seu sistema de poder. Ele destaca que é da desconfiança e do temor do povo para com o soberano que nascem os regimes degenerados. Assim, seria mais plausível que os filósofos espontâneos se unissem a um tirano reeducado filosóficamente que dispusesse da força necessária para um golpe de estado e o fizesse. O projeto da realeza filosófica se aproxima, assim, da tirania.

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