Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 1 Direito Internacional Privado O Direito internacional privado, enquanto ramo de Direito, é o complexo normativo que regula situações transnacionais mediante um processo conflitual. A cada Estado soberano corresponde um sistema jurídico e nos sistemas internacionais temos áreas de correspondência e de divergência; assim, por exemplo, pode e acontece que exista um sistema que atribua um direito que outro proíbe, ou um sistema que tenha requisitos de validade mais rígidos do que outros. Estas diferenças entre sistemas devem-se a opções diferentes quanto aos valores ou finalidades a alcançar. Outras vezes, usam-se técnicas diferentes. As situações jurídicas podem ocorrer apenas na esfera de um Estado soberano – nesses casos, dizemos que as situações jurídicas são internas. A sociabilidade humana não para nas fronteiras; há muito que os seres humanos estabelecem contactos além-fronteiras. As relações internacionais acentuaram-se a partir do séc. XX, o que se deve a diversos fatores: A internacionalização da economia; Os movimentos migratórios; O surgimento de novos Estados; Os processos de integração regional; O desenvolvimento de novas tecnologias de informação e comunicação. Verificação de mais movimentos de pessoas, capitais e bens incorpóreos, de direitos, designadamente dos direitos representados por realidades como os valores mobiliários. Pensemos nos movimentos migratórios. Dois portugueses residem em França, onde se casam? Qual será a lei reguladora? Pensemos no tráfico internacional de bens e serviços. Uma sociedade sedeada em Portugal vende um lote de cortiça a uma da Suíça, qual será a lei reguladora? Enfim, a regulação jurídica das situações transnacionais coloca três problemas: 1. Em primeiro lugar, o órgão de aplicação tem de escolher a lei aplicável ao caso, sendo que a lei escolhida vai ter fortes impactos na decisão da questão; 2. Quando surge um litígio transnacional, torna-se também necessário, na falta de convenção de arbitragem, determinar os tribunais internacionalmente competentes para a questão – coloca-se assim a questão da determinação da jurisdição competente/competência internacional; 3. Há ainda o problema dos efeitos que as decisões proferidas por tribunais estrangeiros podem produzir na OJ portuguesa – surge assim o problema do reconhecimento de decisões estrangeiras. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 2 O DIP depara-se assim com três problemas: a determinação do direito aplicável, a determinação da jurisdição aplicável, e o reconhecimento das decisões. Vamos estudar apenas os problemas da determinação do direito aplicável e o reconhecimento das decisões. ♢ Regulação de situações transnacionais Relativamente à regulação das situações transnacionais, é importante ter em conta o aspeto da internacionalidade e ainda um outro que se prende com o carácter privado das situações. Será que o DIPrivado não regula questões de DIPúblico? Para o Regente, o DIPrivado regula todas as situações em que se coloque um problema de determinação do Direito aplicável que deva ser resolvido pelo DIPrivado. A ideia de que apenas se prende com questões de Direito privado prendia-se por uma antiga lógica de territorialidade do Direito público: o Direito público seria territorial pelo que toca aos seus órgãos de aplicação, que só aplicariam o Direito público interno. Por outro lado, começou a desenvolver-se uma lógica de imunidade absoluta de jurisdição dos Estados, segundo a qual um Estado não poderia ser acionado nos tribunais de outro Estado, salvo em casos verdadeiramente excecionais – o que significava que os litígios emergentes de uma relação estabelecida por um Estado ao abrigo do seu Direito público só podiam ser apreciados pelos tribunais desse Estado. Quando muito, dizia-se que o Estado podia estabelecer relações como se de um privado se tratasse. Isto não é exato atualmente, tendo este dogma sido ultrapassado, pois a ideia de territorialidade foi abandonada, e hoje admite-se que quando se aplica uma norma estrangeira podemos aplicar não só normas de Direito privado, mas também normas de Direito público com incidência sobre essas questões. Por outro lado, evoluiu-se de uma conceção ampla de imunidade para uma estrita, considerando-se que o Estado só tem imunidade no exercício de iure imperii, e não no âmbito da gestão privada, sendo que nestes últimos os conflitos podem ser regulados. Relativamente à admissibilidade de pretensões formuladas por Estados estrangeiros, com fundamento no seu Direito público, nos tribunais locais, regista-se uma vincada diferença de opiniões: Na opinião do Regente, a OJ de um Estado é inteiramente livre de decidir se tutela ou não juridicamente a pretensão de um Estado estrangeiro fundada no seu Direito público. É de esperar que um Estado, na falta de motivos especiais, designadamente de solidariedade ou cooperação judiciária entre os Estados, não admita nos seus tribunais pretensões de Estados estrangeiros que digam respeito a situações ou aspetos de situações que, em princípio, só podem ser objeto de regulação na OJ destes Estados. o O Direito Internacional coloca alguns limites à regulação das situações em que estão implicados entes públicos no âmbito de outras OJ; para a determinação desses limites deve estabelecer-se um paralelo com o regime da imunidade de jurisdição. Em resultado, não será admitida a pretensão de um Estado estrangeiro nos tribunais portugueses quando esse Estado estrangeiro goze de imunidade de jurisdição relativamente a litígios emergentes da mesma situação. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 3 A distinção entre os atos praticados iure imperii e atos praticados iure gestionis não corresponde sempre ao caráter jurídico-público ou jurídico-privado do ato. Isto por três ordens de razões: 1) Muitos litígios emergentes das relações entre os Estados são arbitrários: se temos um contrato internacional em que uma das partes é um sujeito público, e em que foi convencionada a arbitragem, os árbitros têm de determinar o direito aplicável. 2) A imunidade de jurisdição relativamente aos atos praticados iure imperii é renunciável: o Estado renuncia, por exemplo, quando celebra um pacto atributivo de jurisdição aos tribunais de outro Estado. 3) A distinção entre atos iure imperii e iure gestionis releva do DIPúblico e não corresponde necessariamente ao critério de classificação dos atos como sendo de DPúblico ou DPrivado adotado por uma OJ nacional e, em particular, não corresponde aos critérios seguidos na OJ portuguesa. Distinção entre iure imperium e iure gestionis O critério de distinção iure imperiu/iure gestionis não corresponde à distinção entre DIPúblico e DIPrivado: neste ponto há muita controvérsia. Importa salientar que a imunidade resulta do costume internacional, e por isso o critério de distinção é um critério de DIPúblico. A ideia base é a de que há determinado tipo de relações que podem ser estabelecidas por particulares, e que a maioria dos sistemas são regulados por DIPrivado. o Se um Estado estabelece uma relação deste tipo, essa relação considera-se como sendo estabelecida no quadro de iure gestiones; o Mas se a atuação na maioria dos sistemas é regulada por Direito público, não se tratará de uma questão de Direito privado. Nesta matéria há uma convenção das Nações Unidas (2005) sobre imunidades, que ainda não está em vigor, mas que codifica o costume internacional, e vai além dele. O que daqui decorre é que pode facilmente sucederque um Estado estabeleça um regime especial de Direito público para um tipo de relação, mas que essa relação para o Direito internacional beneficie da imunidade de jurisdição. Esta convenção das Nações Unidas é uma convenção perante a qual o regime jurídico que o Estado estabeleça para o contrato não é relevante para a qualificação da transação como comercial ou não comercial. O que daqui decorre é que uma relação que é conformada por Direito público pode ser para o Direito internacional ser considerada como iure gestiones, para que o Estado não beneficie de jurisdição, pelo que pode ser julgada pelos tribunais de outro Estado. Concluindo, A participação de um sujeito público só obsta ao caráter transnacional da relação quando: (a) A relação fique diretamente submetida ao Direito público interno; (b) A relação, por força do DIPúblico, se insira exclusivamente na OJ de um Estado estrangeiro, por se tratar de uma atuação iure imperii, não ter sido celebrada convenção de arbitragem válida nem ter ocorrido renúncia à imunidade de jurisdição. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 4 Em suma, o DIPrivado português é aplicável a todas as relações que, embora implicando Estados ou entes públicos autónomos estrangeiros, organizações internacionais ou agentes diplomáticos ou consulares de Estados estrangeiros, sejam suscetíveis de regulação na esfera interna. Caráter transnacional das situações reguladas Se uma situação se insere na esfera de um Estado soberano de forma exclusiva, o Direito que a regula diretamente é o direito em vigor nesse Estado soberano. Muitas vezes diz-se que a situação é internacional. O Prof. fala antes de situação transnacional, que permite evitar a ambiguidade da palavra “internacional”. A situação transnacional é uma situação que transcende a esfera social de um Estado soberano, entrando em contacto com outras sociedades estaduais. Na maior parte das vezes, as situações transnacionais são apreciadas através da aplicação do DIPrivado de uma OJ estadual. Daí que a internacionalidade da situação seja vista, na perspetiva desta OJ, como uma estraneidade, i.e., numa formulação muito divulgada, como produto de certos elementos de estraneidade. Os elementos de estraneidade são os laços que ligam a situação a outros Estados. Contudo, o critério de transnacionalidade relevante depende das normas de DIPrivado em causa. A relevância dos contactos com mais de um Estado soberano pode variar conforme o setor do DIPrivado em jogo e consoante a matéria em causa. o No que toca ao Direito de Conflitos geral, a determinação da transnacionalidade está facilitada quando os laços que se verificam com mais de um Estado soberano constituem elementos de conexão utilizados pelas normas de conflitos aplicáveis. Processo conflitual O DIPrivado regula as situações transnacionais através de um processo conflitual. Tradicionalmente, entende-se que o núcleo essencial do DIPrivado é constituído por normas de conflitos, que são proposições que, perante uma situação em contacto com mais de um Estado soberano, determinam o Direito aplicável. O que estas normas fazem é indicar a lei que vai fornecer a regulação material da situação. Assim, o DIPrivado é um Direito de conflitos. Este conceito não deve confundir-se com três outros, que são: - Conflitos de soberania; - Conflitos de normas; - Conflitos de sistemas de DIP. O Direito de conflitos opera a regulação de situações transnacionais por meio de um processo de regulação indireta: regula as situações transnacionais mediante a remissão para o Direito aplicável. Na regulação das situações transnacionais, o DIPrivado não opera apenas através do Direito de conflitos, mas também mediante o reconhecimento das situações jurídicas fixadas por decisão Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 5 estrangeira, sob certas condições – assim, o DIPrivado engloba o Direito de conflitos e o Direito de Reconhecimento. ♢ Caracterização das normas de conflitos de leis no espaço São tradicionalmente atribuídas às normas de conflitos de leis no espaço três características: 1. Normas remissivas ou de regulação indireta; 2. Normas de proteção; 3. Normas fundamentalmente formais. A grande maioria das normas apresentam estas 3 características, mas a característica verdadeiramente essencial é a de que sejam normas remissivas ou de regulação indireta. Normas materiais vs normas de regulação indireta As normas materiais/de regulação direta desencadeiam efeitos jurídicos que modelam as situações jurídicas das pessoas. Estas normas materiais estabelecem o regime para as situações descritas na sua previsão e como tal definem situações jurídicas. É o caso dos arts. 483º, 875º e 1672º CC. As normas de regulação indireta mandam aplicar à situação descrita na sua previsão outras normas ou complexos normativos. No que toca às normas no DIPrivado, o que fazem é remeter para um determinado Direito a disciplina da situação. Assim, a função destas normas é designar a OJ que fornecerá a disciplina material. É o caso dos arts. 25º e 31º/1 e 2 CC. Há quem entenda que só as normas materiais são normas de conduta, enquanto as normas de conflito, em princípio, só têm por destinatários os órgãos de aplicação do Direito, sendo meras normas de decisão. O Prof. não concorda, pois entende que os sujeitos das situações transnacionais necessitam de determinar o Direito aplicável para poderem orientar por ele as suas condutas; ou seja, antes de surgir um litígio. Assim, as normas de conflitos são normas de conduta, embora de regulação indireta (o Regente segue a orientação de ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO): cumprem a sua função reguladora, mas não diretamente e sim através da remissão para o Direito que vai regular diretamente a situação. As normas de conflito devem ser entendidas, na sua maioria, enquanto normas de conexão, que estabelecem uma ligação entre uma situação da vida e um Direito, através de um determinado laço – o elemento ou fator de conexão. No dizer de RAAPE, o legislador lança a ponte entre uma situação da vida e uma norma jurídica. Normas de conexão As normas de conflitos que integram o sistema de Direito de conflitos são, de forma geral, normas de conexão, porque conectam uma situação da vida ou um seu aspeto com o Direito aplicável, mediante um elemento ou fator de conexão. Esta conexão estabelece-se mediante a seleção de determinados laços que o DIPrivado considera juridicamente relevantes e decisivos para a determinação do Direito aplicável. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 6 Os elementos de conexão apresentam fações bastante diversas em relação ao carácter jurídico do seu conteúdo. Podem consistir em: (a) Vínculos jurídicos – por exemplo, a nacionalidade; (b) Laços fácticos – por exemplo, o lugar de residência habitual; (c) Consequências jurídicas que se projetam num determinado território – por exemplo, o lugar do efeito lesivo; (d) Factos jurídicos – por exemplo, a designação da lei aplicável pelos interessados. A designação dos elementos de conexão em função das matérias implica uma valoração, em que se avalia qual o elemento de conexão mais adequado à matéria. Como tal, há aqui uma justiça da conexão, que se exprime na escolha do elemento de conexão mais adequado (às vezes também se fala de justiça formal). Todas as normas de DIPrivado são deste tipo. Pode não ser utilizado um laço objetivo, mas sim um laço subjetivo, como é o laço que resulta da designação pelas partes. Por outro lado, há normas de conflitos que não utilizam um elemento de conexão determinado.Mas há outras normas de conflitos que não são decididamente normas de conexão (como é o caso do art. 33º/2 LAV, em que falta por absoluto o elemento de conexão). Aquilo que se pode questionar é: devemos manter a característica norma de conexão como característica essencial? Ou devemos adotar um conceito mais amplo? O Prof. considera que se temos normas que não são de conexão, mas que desempenham a mesma função, devemos considerar também normas de conflito, pelo que a única característica deve ser a de se tratar de uma norma de remissiva ou de regulação indireta. Norma formal As normas de conflito são fundamentalmente formais. No dizer de CAVERS, no método conflitual, o juiz atua de olhos vendados, porque vai determinar a lei aplicável sem olhar para o conteúdo das leis em presença, ou seja, não vai atender ao resultado material a que conduz a aplicação de cada uma das leis em presença. Este formalismo tem limitações: o Desde logo, pode questionar-se se só é norma de conflito a fundamentalmente privada – houve autores que disseram que a escolha se devia fazer em função do conteúdo da norma em presença; o Reserva de ordem pública internacional (art. 22º CC) – esta afasta o resultado que conduz à aplicação da lei estrangeira quando esse for manifestamente incompatível com normas e princípios fundamentais da OJ nacional. Há aqui um limite de carácter geral. o Há normas de conflito materialmente orientadas, que atendem ao resultado material – por exemplo, temos normas em matéria de forma de negócios jurídicos e temos também as normas em matéria de responsabilidade parental e proteção de crianças da Convenção de Haia. Verificamos que as normas de conflito apontam para várias leis, sendo suficiente a verificação de forma escrita por uma dessas leis. Estas normas utilizam elementos de conexão. o As normas de conflito, mesmo quando são normas formais, são normas que exercem uma certa função modeladora na disciplina das situações jurídicas – verificamos que Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 7 relativamente a diversos problemas de concretização do elemento de conexão e conjugação de várias leis, vamos ser orientados pelas normas de conflito. Vamos buscar resposta à interpretação das normas de conflito. O direito de conflitos não se desinteressa completamente da resolução do caso e das suas especificidades. Outros Direitos de conflitos O DIPrivado não é o único Direito de conflitos – existem outros, como o Direito de conflitos interlocal e o Direito de conflitos interpessoal. Estes existem nas OJ que são complexas (em que coexistem diferentes sistemas de Direito privado): a) A OJ complexa será de base territorial quando comportam diversos sistemas aplicáveis em diversas circunscrições territoriais – art. 20º/1 e 2 CC; b) Será de base pessoal quando comportam diferentes sistemas aplicáveis a diversas categorias de pessoas, a que se refere o art. 20º/3 CC. Por exemplo: 1. Nos EUA, cada Estado federal tem o seu sistema. 2. No Reino Unido, temos vários sistemas. 3. Em Espanha, o art. 149º/1 CRP permite, dentro de certos limites, que as comunidades autónomas preservem os direitos locais, e esta permissão foi aproveitada pelas comunidades gerais para o desenvolvimento de regimes locais. 4. Portugal também é uma OJ complexa porque as ALR têm autonomia legislativa, que diz respeito às matérias previstas nos respetivos estatutos e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania. Sistemas de base pessoal: A pluralidade de sistemas de base pessoal pode ser estabelecida em função da religião. Foi o que aconteceu em Portugal até ao séc. XV. Pode depender também de uma opção do interessado. O art. 20º CC refere-se a “ordenamentos plurilegislativos”, mas é mais correta a expressão “ordenamento complexo”. Desde logo, porque o ordenamento pode ser complexo em resultado de outras fontes do Direito que não sejam a lei. Podemos também distinguir entre os ordenamentos complexos aqueles em que existe uma pluralidade de sistemas materiais (ex: Espanha) e os em que existe uma pluralidade de sistemas conflituais (ex: EUA e Reino Unido). ATENÇÃO: não se deve confundir ordens jurídicas complexas com os Estados compostos. Há Estados federados sem ordens jurídicas complexas e há Estados comunitários com ordens complexas. Perante as atuais características da OJ portuguesa, não se coloca ainda o problema do estudo das ordens interlocais. O direito interlocal e interpessoal irá interessar-nos quando uma norma remeter para uma ordem complexa, em que o problema será qual dos sistemas internos aplicar. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 8 Temos ainda o Direito intertemporal, que resolve os problemas de aplicação da lei no tempo, e o Direito de conflitos público. As normas de Direito público também suscitam a questão da aplicação da lei no espaço. PLANOS, PROCESSOS E TÉCNICAS DE REGULAÇÃO DAS SITUAÇÕES TRANSNACIONAIS ⭐ Processos de regulação das situações transnacionais: Relativamente aos processos de regulação, existe: 1) Um método conflitual; 2) Métodos materiais, como: o Aplicação direta do Direito material comum; o Criação de um Direito especial de fonte interna; o Unificação material de Direito material aplicável. Muitos autores consideram que o DIPrivado se caracteriza pelo pluralismo metodológico. Também para estes autores, o “método conflitual”, reportado ao sistema de Direito de conflitos, se contrapõe a uma série de “métodos de regulação material”. Para o Regente, isto não é assim: a distinção entre regulação indireta e direta deve fazer-se em função da necessidade ou desnecessidade de uma valoração conflitual. A valoração conflitual consiste tradicionalmente na avaliação do elemento de conexão mais adequado para a determinação do Direito aplicável a uma categoria de situações ou a uma questão jurídica com vista a formular uma norma de conflitos; mas pode consistir também numa apreciação casuística dos laços que uma situação concreta apresenta com os Estados envolvidos ou num juízo sobre a adequação material de determinado Direito para reger uma determinada categoria de situações. Só temos uma verdade regulação direta material – sem mediação de uma valoração conflitual – em três casos: (1) Quando aplicamos o Direito material comum do foro a quaisquer situações independentemente de comportarem elementos de estraneidade; (2) Quando se criam soluções ad hoc ou Direito material especial de fonte interna para situações que comportem determinados elementos de estraneidade, independentemente dos laços que apresentem com o Estado local – suponha-se que os órgãos legislativos do Estado Y criam um Direito material especial para regular todos os contratos internacionais ou os tribunais do Estado Y desenvolvem caso a caso soluções para os problemas jurídicos suscitados por quaisquer contratos internacionais; (3) Quando Direito material especial de fonte supraestadual for aplicado a situações transnacionais, independentemente de uma conexão entre estas situações e um dos Estados em que vigora esse Direito – é o caso das Convenções internacionais que estabelecem um Direito material unificado aplicável a certo tipo de contrato internacional na OJ dos Estados contratantes mesmo que o contrato não tenha uma ligação significativa com nenhum Estado contratante. A regulação das situações transnacionais na OJ estadual é, em regra, indireta. A grande maioria dos ditos “métodos de regulação material” são técnicas de regulação indireta. Por conseguinte, a Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 9 assinalada“pluralidade de métodos” tem mais que ver com uma pluralidade de fontes de regulação e de técnicas de regulação conflitual do que com um verdadeiro pluralismo metodológico. Uma OJ tem, entre outras, uma dimensão normativa e uma dimensão institucional: Do ponto de vista normativo, as situações transnacionais são reguladas numa OJ estadual quando as normas e princípios em primeira linha aplicáveis são os que vigoram na OJ desse mesmo Estado. Do ponto de vista institucional, as situações transnacionais são reguladas numa OJ estadual quando os órgãos competentes para a aplicação do Direito a estas situações pertencem ao respetivo Estado. Ex: Uma sociedade sedeada em Portugal celebra com uma sociedade sedeada no Brasil um contrato para ser executado em Angola. Durante a execução do contrato surge uma controvérsia entre as partes em que se suscita um problema de interpretação do contrato. Se esta controvérsia não for resolvida amigavelmente, e na falta de convenção de arbitragem, a questão terá de ser dirimida pelos tribunais estaduais que forem internacionalmente competentes: como sabemos qual é a lei que regula a interpretação do contrato? a) Em primeiro lugar, temos de determinar os tribunais internacionalmente competentes. b) A questão complica-se quando há vários tribunais competentes (competências concorrentes). Neste caso, deverá ter-se em conta os sistemas conflituais das diferentes jurisdições estaduais competentes que podem divergir entre si e atribuir competência a leis diferentes. Esta avaliação pode ser relevante para decidir qual a jurisdição estadual que é mais conveniente para a propositura da ação. (1) Regulação no plano do Direito estadual Entende-se por regulação pelo Direito estadual aquela que opera na esfera da OJ estadual. Isto significa que a situação é em primeira linha regulada pelo Direito vigente na OJ estadual em causa e que este Direito é aplicado pelos tribunais estaduais ou por outros órgãos estaduais de aplicação do Direito. ATENÇÃO: planos de regulação ≠ fontes de regulação! Na medida em que numa OJ estadual vigorem, a par das normas de fonte interna, normas de fontes supraestaduais, esta regulação pode ser feita tanto por normas internas como por normas internacionais ou europeias – é o que se verifica com a OJ portuguesa. Tradicionalmente, todas as situações transnacionais eram reguladas na OJ estadual pelo sistema de Direito de conflitos. Em OJ como a portuguesa, o sistema de Direito de conflitos é formado essencialmente por um conjunto de normas de conflitos bilaterais (i.e., que remetem tanto para o Direito do foro como para o Direito estrangeiro) e de normas sobre a interpretação e aplicação destas normas bilaterais. Atualmente: o Em matéria de Direito pessoal – designadamente, estado, capacidade, direitos de personalidade, família e sucessões –, as situações transnacionais continuam a ser na sua generalidade reguladas na esfera de uma OJ estadual; Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 10 o O mesmo não se pode dizer com respeito às relações comerciais internacionais e, em especial, no que toca aos contratos comerciais internacionais. Por outro lado, no seio da OJ estadual, surgiram alternativas à regulação pelo sistema do Direito de conflitos: Aplicação direta do Direito material interno comum: Neste caso, as situações internacionais seriam reguladas como se de situações puramente internas se tratasse. Por exemplo, em Portugal, a validade do casamento celebrado na Holanda por um holandês e uma belga, residentes na Holanda à data do casamento, mas que posteriormente estabeleceram residência em Portugal, seria apreciada segundo o Direito material português. Trata-se de uma técnica de regulação direta que prescinde de normas de conflitos. Vantagem: é a via mais fácil para os órgãos de aplicação do Direito que, além de não terem de aplicar o Direito de conflitos, estão mais familiarizados com o Direito material interno do que com Direito estrangeiro. Desvantagem: esta é uma solução que colide com a segurança jurídica e com a harmonia internacional de soluções, e é incompatível com o DIPúblico: (a) O Direito aplicável não seria previsível, porque variaria consoante o Estado em que a questão se colocasse. A aplicação de um Direito diferente em cada Estado fomentaria a desarmonia internacional de soluções; (b) Isto conduziria à incerteza sobre as situações jurídicas existentes, o que poderia levar à frustração de expectativas objetivamente fundadas dos interessados, em contradição com o princípio da confiança; (c) Por acréscimo, esta técnica de regulação fomentaria o forum shopping, i.e., a escolha do foro mais conveniente à pretensão. Pode questionar-se: não seria possível elaborar as normas sobre competência internacional por forma a que os tribunais de cada Estado tivessem competência internacional só em relação às situações que apresentam uma conexão com esse Estado suficientemente forte para justificar a aplicação do seu Direito material? Alguns autores apontam nesse sentido. Um Estado pode ter “interesse” em que certas situações sejam apreciadas pelos seus tribunais mesmo que não exista uma conexão suficientemente forte para determinar a aplicação do sei Direito material. Isto verifica-se designadamente em dois grupos de casos: i. Casos em que a ligação ao Estado do foro, embora insuficiente para determinar a aplicação do Direito material do foro, chega para justificar a intervenção da ordem pública internacional; ii. Casos em que a incompetência dos tribunais do foro conduziria, apesar de não ser competente o Direito material do foro, a uma denegação de justiça. É, pois, frequente que as finalidades prosseguidas pelo Direito da competência internacional justifiquem competências concorrentes de várias jurisdições estaduais. Ao passo que, à luz das finalidades prosseguidas pelo Direito de conflitos, uma situação deve ser submetida à mesma lei, qualquer que seja o Estado em que venha a ser apreciada. Por conseguinte, não é possível assegurar em todos os casos uma coincidência entre a competência internacional dos tribunais de um Estado e a aplicabilidade do seu Direito material. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 11 Criação de um Direito material especial de fonte interna: Em lugar de aplicar o seu Direito material comum, os Estados podem criar um Direito material especial aplicável exclusivamente às relações transnacionais. Nos sistemas em que a lei é a principal fonte do Direito, este Direito material especial terá de ser fonte legal. Algumas conceções favoráveis à “regulação” das relações do comércio internacional por meio de soluções materiais especiais de origem jurisprudencial só parecem ser defensáveis perante aquelas OJ em que vigora um sistema de precedente vinculativo. Vantagem: oferece uma maior adequação à especificidade das relações internacionais. Mas até que ponto teremos aqui uma alternativa ao sistema de Direito de conflitos? Só constituirá uma técnica de regulação direta se for aplicável a quaisquer situações que comportem elementos de estraneidade independentemente de uma ligação com o Estado do foro. Desvantagem: todas as que foram apontadas supra relativamente à aplicação direta do Direito material comum. Na opinião do Regente, se esta técnica de regulação direta é de rejeitar como alternativa global ao processo conflitual, já nada obsta a que relativamente a certas questões bem delimitadas se possa justificar a formulação de normas de Direito material especial diretamente aplicável – poderemos designa-las por normas de Direito Internacional Privado material. Como exemplo temos o art. 54º/2 CC. Assim, em regra,o Direito material especial vê a sua aplicação depender de uma ligação com o Estado do foro – trata-se de uma das técnicas de regulação indireta, que não prescinde de normas de conexão. No quadro da regulação indireta, a aplicabilidade do Direito material especial pode depender: (a) Do sistema de normas de conflitos – neste caso, diz-se que o Direito material especial é dependente. Este não constitui qualquer alternativa à regulação pelo sistema de Direito de conflitos. A única especialidade está em que o objeto da remissão operada pelo Direito de conflitos, quando este remete para o Direito do foro, não é Direito material comum mas sim Direito material especial. (b) De normas de conexão especiais – neste caso, o Direito material especial é independente. É a regra. Este Direito material especial delimita o seu âmbito de aplicação no espaço através de dois pressupostos: i. Uma conexão com um Estado estrangeiro (ou elemento de estraneidade); ii. Uma conexão com o Estado do foro – definida por normas de conexão ad hoc (normas de conflitos unilaterais que se reportam a normas ou conjuntos de normas materiais individualizadas). A evolução mais recente não se mostra favorável à criação de corpos de Direito material especial de fonte interna, que constituam uma alternativa à aplicação do Direito material comum por via do sistema de Direito de conflitos. Os esforços têm sido principalmente dirigidos à criação de Direito material unificado ou de modelos de regulação. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 12 Isto não exclui que se criem normas de Direito material especial para resolver determinados conflitos específicos, que sejam aplicadas a todas as situações transnacionais. Podemos agrupar estas em dois grupos: (i) Normas de aplicação dependente do sistema de Direito de conflitos – é o caso do art. 2223º CC: uma vez que esta norma é aplicável no quadro do título de vigência conferido à lei portuguesa pelo art. 65º/2 CC, não há qualquer especialidade relativamente ao sistema de Direito de conflitos. Parece que esta norma deixará de ser aplicável às sucessões reguladas pelo Regulamento sobre sucessões (art. 27º). (ii) Normas cuja aplicação resulta de normas de conexão especiais – é o caso das normas que estabelecem um tratamento específico para os estrangeiros. Geralmente estas normas são aplicáveis com base num elemento de conexão com o território português, por exemplo, a localização em Portugal do lugar da execução do contrato de trabalho. Unificação internacional do Direito material aplicável Falamos normalmente de Convenções Internacionais – têm sido as principais fontes de Direito uniforme. Mas não são as únicas, há também fontes europeias, como dois Regulamentos de transporte aéreo. Para averiguar do significado desta unificação internacional para a regulação das situações transnacionais é fundamental distinguir entre diferentes métodos de unificação internacional. São estes: i. Uniformização – consiste na criação, por uma fonte supraestadual, de Direito uniforme, i.e., Direito aplicável tanto nas relações internas como nas internacionais. Nas matérias reguladas por este Direito uniforme, cessa-se ou suspende-se a vigência do Direito comum interno. É o que se verifica com as Convenções de Genebra contendo: - A Lei Uniforme em Matéria de Letras e Livranças; - A Lei Uniforme em Matéria de Cheques. Estas convenções uniformizam o Direito material aplicável. Não devem ser confundidas com as Convenções de Genebra sobre: - Os Conflitos de Leis em Matéria de Letras e Livranças; - Os Conflitos de Leis em Matéria de Cheques. Estas últimas convenções unificam o Direito de conflitos, são fonte de DIPrivado e não de Direito material aplicável. ii. Unificação stricto sensu – consiste na criação, por uma fonte supraestadual, de Direito material unificado, i.e., Direito material especial de fonte supraestadual. Ao lado do Direito comum de fonte interna passa a vigorar na ordem interna um Direito especial aplicável às situações internacionais. As principais áreas de unificação do Direito material são a venda internacional de mercadorias, os transportes internacionais, os direitos sobre embarcações e aeronaves, outras áreas do Direito Marítimo, o Direito da Propriedade Intelectual e o testamento. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 13 iii. Harmonização – traduz-se no estabelecimento de regras e princípios fundamentais comuns. Os regimes continuam a ser diferentes de um Estado para outro, visando-se apenas aproximar os diversos sistemas nacionais. A harmonização tem instrumentos específicos tais como: - Diretivas europeias – atos normativos de DUE que vinculam os EM quanto ao resultado a atingir, mas deixam aos mesmos EM a escolha da forma e dos meios para o realizar no âmbito da OJ interna. - Leis-modelo – corpos de regras uniformes propostos ou recomendados para a adoção no Direito interno ou para que a legislação interna neles se inspire. Além destes instrumentos específicos, há instrumentos que desempenham outras funções, mas também constituem um instrumento de harmonização, como os princípios (conjunto sistematizados de regras emanados por uma base predominantemente comparativa), que servem para influenciar a OJ de cada Estado. iv. Criação de Direito material especial optativo de fonte supraestadual (recente) – trata-se de regimes privativos de situações transnacionais, cuja aplicação depende de uma opção dos interessados. O Direito comum continua a ser aplicável não só às situações internas mas também às situações transnacionais em que os interessados não optem pela aplicação do Direito especial. Exemplos disso são matérias relativas ao Direito das pessoas coletivas e ao Direito da propriedade intelectual. Vantagens do Direito material unificado especial supraestadual: 1) Oferece soluções adequadas à especificidade das situações transnacionais e o processo da sua elaboração tende a conduzir à adoção das soluções mais adequadas; 2) A partir do momento em que uma situação transnacional caia diretamente dentro da esfera espacial e do domínio material de aplicação do regime convencional, elimina-se o problema da escolha do sistema local aplicável, com todas as dificuldades que acarreta; 3) Os Estados contratantes assumem uma posição uniforme sobre a regulação jurídica da situação transnacional, o que contribui para uma harmonia e previsibilidade de soluções; 4) Com o mesmo regime material aplicável nos diferentes Estados contratantes, facilita-se o conhecimento desse regime pelos interessados, diminuindo os custos de transação. Esta parece assim uma solução que garante a justiça, adequação à especificidade das situações transnacionais e a segurança jurídica e facilidade do regime. Porém, esta solução tem um alcance limitado: a) Por razões práticas – o processo de unificação é difícil: é moroso, complicado, com custos elevados. b) A unificação só permitiria afastar o sistema de Direito dos conflitos se a unificação fosse geral (se abrangesse todas as matérias) e universal (se as convenções estivessem em vigor para todos os Estados): o Ora, a unificação não é geral, dizendo respeito principalmente ao comércio internacional, progredindo muito pouco noutras áreas, como no Direito da família, pessoas ou sucessões, o que se entende, visto que nestas situações estão em causa valores ético-jurídicos. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 14 Por outro lado, nem todas as áreas do comércio internacional se prestam a uma unificação internacional. Para haver unificação tem de estar em causa determinadamatéria que possa ser delimitada com clareza com base em várias notas. Tal não se verifica em áreas que assumem grande variação de conformações como alguns contratos (ex: contrato de consórcio). o A unificação também não é universal. O número dos Estados que aceita cada convenção é muito variável. Por outro lado, as convenções são modificadas por protocolos, que unificam a convenção originária e nem todos os Estados partes na convenção se tornam partes nos protocolos. Saber qual o regime aplicável torna-se muito difícil em certos casos. c) A unificação gera uma certa petrificação do regime aplicável – é muito mais difícil alterar um regime internacional do que um regime interno/nacional, daí não ser muito recomendável unificar certas matérias que estejam em expansão ou evolução. d) Mesmo quando temos uma unificação de determinada matéria, muitas vezes essa unificação tem um caráter fragmentário ou parcial. Uma das áreas em que tem havido mais unificação é a do transporte marítimo de mercadorias. Houve a Convenção de Bruxelas de 1924 para unificação de certas regras de conhecimento; contudo, não temos um regime geral do contrato de transporte de mercadorias. e) Há casos de sobreposição de domínio aplicável a certas convenções – se duas convenções regulam a mesma matéria mas vigoram em Estados diferentes do ponto de vista de aplicação entre esses Estados, não há problema; mas há casos em que no mesmo Estado vigoram duas ou mais convenções cujo domínio de aplicação se sobrepõe pelo menos parcialmente. Tal leva a um conflito de convenções que tem de ser resolvido. f) Divergências na interpretação e integração – quem aplica o Direito material unificado são os órgãos estaduais ou os tribunais arbitrais; tal levanta problemas. Na interpretação e integração do Direito aplicado deve ser preservada a especialidade e autonomia do Direito material unificado, de forma a tanto quanto possível estabelecer uma uniformidade de interpretação e integração, independentemente do Estado contratante no qual a questão se coloca. Neste sentido, é importante o art. 7º da Convenção de Viena sobre venda de mercadorias. O que daqui decorre é que quando interpretamos uma proposição de uma convenção deve fazer-se uma interpretação autónoma, e não uma interpretação à luz do direito do Estado material do foro. Essa interpretação deve fazer-se através de critérios próprios, abstraindo-se do conteúdo do Direito interno do Estado do foro. Contudo, é inevitável que existam e surjam divergências nos vários Estados: Quando surjam diferentes correntes interpretativas nos vários Estados, o problema que se coloca é: quando o órgão de aplicação tem de apreciar um problema dessa natureza, deve seguir a orientação dos tribunais do foro ou a orientação jurisprudencial da OJ competente segundo o sistema de Direito de conflitos? 1. Quando o órgão de aplicação for um tribunal estadual, há razões para seguir a orientação interpretativa da OJ competente segundo o sistema de Direito de conflitos. Se procedermos dessa forma, seguiremos uma orientação com que as partes geralmente poderão contar e onde há a ligação mais significativa com a situação. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 15 2. Situação diferente é se o órgão de aplicação for um tribunal arbitral, na medida em que este tem mais liberdade. Estes poderão ter em conta os princípios comuns aos sistemas em presença, podendo também atender à própria jurisprudência arbitral. Só será pertinente atender à orientação de uma particular jurisprudência nacional quando as partes tenham escolhido o respetivo sistema jurídico para reger a situação. Relação do Direito material especial optativo com o sistema de Direito de conflitos: Em princípio, a aplicabilidade destes regimes especiais não depende do sistema de Direito de conflitos, mas da verificação de pressupostos autónomos que incluem necessariamente um domínio material de aplicação e uma opção dos interessados. Entre estes pressupostos podem também contar-se laços relevantes com mais de um Estado, que exprimem um determinado critério de internacionalidade. Regulação por normas de Direito comum do foro autolimitadas Como referido anteriormente, existem normas de Direito material especial de fonte interna cuja aplicação, por resultar de normas de conexão especiais, não depende do sistema de Direito dos conflitos. A partir de meados do séc. XX, a doutrina chamou a atenção para que a aplicação de certas normas de Direito material comum também não depende do sistema de Direito de conflitos. Fala-se de normas autolimitadas e de normas de aplicação imediata ou necessária. Quando é que se diz ser autolimitada? Quando é uma norma material que, apesar de incidir sobre situações reguladas pelo DIPrivado, tem um âmbito de aplicação no espaço que não corresponde ao que seria atribuído pelo sistema de Direito de conflitos. Isto pode resultar: (i) Em primeiro lugar, de esta norma material ser acompanhada de uma norma de conflitos especial (explícita ou implícita) – por exemplo, com respeito ao contrato de agência, o art. 38º do DL 178/86 determina que aos contratos regulados por este diploma que se desenvolvam exclusiva ou preponderantemente em território nacional só será aplicável legislação diversa da portuguesa, no que respeita ao regime da cessação, se a mesma se revelar mais vantajosa para o agente; encontramos aqui uma norma de conflitos unilateral que alarga a competência atribuída à lei portuguesa pelas normas de conflitos gerais. (ii) Em certos sistemas nacionais admite-se que a “autolimitação” também possa ser o produto de uma valoração casuística, feita pelo intérprete face ao conjunto das circunstâncias do caso. O Prof. LIMA PINHEIRO entende que isso só é aceitável no nosso sistema em situações excecionais, em que seja necessário integrar uma lacuna através da criação de uma solução conflitual ad hoc. A regulação por normas autolimitadas configura uma técnica de regulação das situações transnacionais em que o sistema de Direito de conflitos é substituído por normas de conflitos ad hoc ou por uma valoração conflitual casuística. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 16 A norma é de aplicação necessária quando o sistema de conflitos, por exemplo, designa uma norma estrangeira, mas uma norma portuguesa se sobrepõe a essa norma internacional estrangeira optada. Na opinião do Regente, o processo é conflitual. Não é um processo material de regulação, mas uma diferente técnica conflitual que em vez de passar pelo sistema de norma de conflitos passa por uma norma de conflitos ad hoc ou por uma valoração conflitual casuística. Este problema não é específico das normas autolimitadas, mas coloca-se também em normas imperativas em Estados que reclamam a aplicação, de acordo com o Regente. Em todo o caso, na opinião do Prof., estas técnicas de regulação são excecionais e não estão ao lado do sistema de Direito de conflitos. Reconhecimento de situações definidas perante uma OJ estrangeira: Como verificámos, o DIPrivado também regula as situações transnacionais mediante o reconhecimento autónomo das situações jurídicas fixadas por decisão estrangeira. Alguns autores estendem esta técnica de regulação a situações constituídas ou consolidadas numa OJ estrangeira – ou pelo menos na OJ de um Estado da EU –, independentemente de uma decisão estrangeira. O problema é o seguinte: temos uma situação, independentemente de qualquer decisão estrangeira, que se constitui ou consolida numa OJ estrangeira – será que se deve sempre verificar essas decisões quando tal ocorre? Ou só reconhecemos as decisões dessas que estejam de acordo com a nossaCRP? A ideia geral é a de que a situação, a partir do momento em que se constituiu ou consolidou numa OJ estrangeira, o Estado do foro deve reconhecer essa situação, sem fazer depender esse reconhecimento da lei competente segundo o Direito de conflitos geral. Fala-se num método de reconhecimento. Tal já inspirou a legislação holandesa, por exemplo, em que um casamento que seja celebrado fora da Holanda e que seja válido segundo a lei do Estado em que teve lugar ou que se tenha tornado válido posteriormente de acordo com a lei desse Estado, é reconhecido na Holanda como um casamento válido. Esta técnica de regulação apresenta diferenças em relação ao sistema de Direito de conflitos: a) Só opera quando uma situação “privada” foi previamente definida perante uma OJ estrangeira. Por conseguinte, esta técnica nunca pode constituir uma alternativa global ao sistema de Direito de conflitos, visto que é inaplicável quando é apreciada uma situação que não foi previamente definida por uma decisão estrangeira nem constituída ou consolidada perante uma OJ estrangeira; b) Em lugar das normas de conflitos gerais, são atuadas normas de reconhecimento, que integram uma categoria especial de regras remissivas. As normas de reconhecimento só remetem para o Direito estrangeiro e condicionam a sua aplicação à produção de um efeito ou de uma determinada categoria de efeitos. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 17 Deverá esta técnica ser amplamente admitida? De acordo com o Regente, não: 1) Só se devem reconhecer decisões da OJ de um Estado estrangeiro quando haja uma ligação especialmente significativa entre esse Estado e a situação. Caso contrário, aceitar-se-ia que a situação fosse definida pela OJ de qualquer Estado, ainda que com base numa conexão fortuita ou arbitrária, e mesmo que esta situação não fosse reconhecida por nenhuma das OJ mais bem colocadas para a regular. 2) Por outro lado, não se deve sempre favorecer a OJ que afirma a validade de uma situação relativamente a uma OJ que nega essa validade, nem se deve favorecer sempre determinado sujeito jurídico com posição ativa contra o sujeito jurídico com posição passiva; tal levaria sempre a reconhecer uma decisão quando se constitui ou consolida e tal levaria a um favorecimento injustificado. O Regente entende que parece preferível que se reconheça apenas certas categorias de situações que se constituíram validamente segundo o Direito de conflitos de um Estado que apresenta determinada conexão especialmente significativa com essas situações, apesar de não ser a conexão primariamente relevante para o Direito de conflitos do Estado do foro (ex: o art. 31º/2 CC aponta para este sentido). A técnica de reconhecimento atua a par do Direito de conflitos nesses casos, e atua em dois casos: a) Quando se trate de reconhecimento da decisão estrangeira; b) Quando há tutela da confiança depositada na situação consoante o Direito de conflitos no Estado estrangeiro e quando haja uma relação e ligação significativa com a situação. Concluindo: (1) A regulação das situações transnacionais é, em regra, indireta ou conflitual; (2) Só o Direito material unificado constitui uma alternativa global ao sistema de Direito de conflitos; (3) A atuação do sistema de Direito de conflitos é não só uma solução de recurso, mas também a resposta mais adequada naquelas matérias em que as divergências entre os sistemas jurídicos resultam de diferentes valorações ético-jurídicas e, mais em geral, do respeito da identidade cultural das diferentes sociedades estaduais; (4) O reconhecimento de situações definidas perante um OJ estrangeira constitui uma técnica de regulação conflitual. (2) Regulação pelo Direito Internacional Público Trata-se da regulação que opera na esfera da OJ internacional. A situação é regulada na esfera da OJ internacional quando: o Lhe for imediatamente aplicável normas e princípios do DIPúblico (ponto de vista dogmático); o Os litígios que lhe dizem respeito forem apreciados por instituições internacionais (ponto de vista institucional). Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 18 Relação entre DIPúblico e DIPrivado As situações transnacionais que tradicionalmente recorrem ao DIPrivado são situações que, embora tenham contacto com mais do que um Estado, relevam primariamente nas esferas institucional e de regulação dos Estados: (i) inscrevem-se na esfera institucional dos Estados porque os órgãos de aplicação do Direito que são chamados a apreciá-las são órgãos estaduais; (ii) relevam primariamente da esfera de regulação dos Estados porque não são imediatamente reguladas por normas de Direito Internacional. A par destas situações surgem agora outras que ao mesmo tempo que colocam um problema de determinação do Direito aplicável, são relevantes na OJ internacional. Na atualidade, abstraindo da responsabilidade penal internacional, que não interessa ao DIPrivado, os particulares podem ser partes na arbitragem quási-internacionalpública e em algumas jurisdições de organizações internacionais e têm acesso a certas jurisdições internacionais em matéria de direitos fundamentais, designadamente. O que é a arbitragem quási-internacionalpública? É uma arbitragem organizada pelo Direito Internacional, mas tendo por objeto litígios emergentes de relações estabelecidas com particulares. Nesta, o mérito da causa não tem de ser decidido obrigatoriamente segundo o DIPúblico e, portanto, coloca-se um problema de determinação do Direito aplicável. Perante estas arbitragens quási-internacionalpúblicas parece seguro que o DIPúblico mostra vocação para regular certas situações transnacionais e que aos particulares sujeitos destas relações é conferida uma personalidade jurídica internacional limitada. Em conexão com o acesso dos particulares à arbitragem quási-internacionalpública surge a categoria das situações quási-internacionalpúblicas, que é mais vasta, uma vez que pode incluir situações em que os sujeitos particulares têm acesso a jurisdições sem caráter arbitral. Passe-se agora às relações com organizações internacionais. Em alguns casos as jurisdições internacionais estabelecidas pelos atos constitutivos de organizações internacionais, ou por atos dos seus órgãos fundados nos atos constitutivos, para conhecerem de litígios emergentes de relações internas, também são competentes para os litígios emergentes de relações estabelecidas com particulares. É o que se verifica, por exemplo, com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Não se deve confundir a regulação pelo DIPúblico com a aplicação do DIPúblico à causa. Se tiver uma situação abrangida por uma convenção arbitral, as normas primariamente aplicáveis são as da convenção, mas essa convenção permite que as partes acordem a aplicação da lei de uma determinada ordem estadual. A hipótese mais frequente é, porém, a de os litígios emergentes de relações estabelecidas pelas organizações internacionais com particulares serem submetidos à arbitragem transnacional. Trata- se então de uma arbitragem que não é organizada pelo DIPúblico. Novos casos de regulação imediata de situações transnacionais pelo DIPúblico foram introduzidos pela Convenção das Unidas sobre o Direito do Mar (1982). Também se verifica o acesso de particulares a jurisdições internacionais em caso de violação por Estados contratantes de Convenções em matéria de direitos fundamentais. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 19 É muito controverso se além dos casos em que se institui uma jurisdição internacional para apreciar litígios com particulareshá outras situações transnacionais que sejam reguladas imediatamente pelo DIPúblico. NOTA: não se deve confundir regulação no plano do DIPúblico com aplicação de um regime material de DIPúblico. A OJ internacional pode regular a situação, ou um aspeto da situação, mediante a remissão para um Direito estadual. Inversamente, no plano da OJ estadual, uma situação pode ser submetida a normas internacionais. Os casos de regulação pelo DIPúblico aqui visados são outros: aqueles em que o DIPúblico é imediatamente aplicável, independentemente da mediação de uma OJ estadual. Importa ainda sublinhar que são ainda limitados os casos em que situações transnacionais são reguladas imediatamente pelo DIPúblico; é justamente isso que permite distinguir o DIPrivado do DIPúblico. Estes casos dizem fundamentalmente respeito a certos contratos internacionais celebrados entre Estados ou entes públicos autónomos e nacionais de outros Estados, ou entre organizações internacionais e particulares, ou a certos aspetos de situações s transnacionais que dizem respeito a direitos fundamentais protegidos internacionalmente. (3) Regulação pelo Direito da União Europeia Uma vez que o DUE constitui uma OJ autónoma – a OJ da UE – coloca-se o problema da relevância direta de situações transnacionais perante esta OJ, em termos paralelos ao da relevância direta perante a OJ internacional. A primeira impressão é a de que o DUE tem uma vocação mais ampla para regular imediatamente situações transnacionais, porque de acordo com o entendimento do TJUE e de alguma doutrina, o DUE auto-executório tem eficácia para os particulares independentemente do Direito interno dos EM. A seguir-se este entendimento, o DUE é suscetível de eficácia direta para os particulares e, por conseguinte, certas relações entre particulares podem ser imediatamente conformadas e reguladas pelo DUE. Uma parte da doutrina distingue este “efeito direto” da “aplicabilidade direta” ou “vigência direta” das normas comunitárias na ordem interna: Uma norma tem efeito direto (ou é auto-executória) quando os particulares a podem invocar na ordem interna sem que sejam necessárias medidas internas de execução; A dita aplicabilidade direta das normas europeias significa que tais normas vigoram imediata e automaticamente na ordem interna, sem necessidade de interposição de qualquer ato. Se por “aplicabilidade direta” se entender a desnecessidade de um ato individualizado de receção na ordem interna, esta identifica-se com a receção automática do DUE na ordem interna que resulta dos art. 8º/4 CRP. Por vezes, porém, entende-se a “aplicabilidade direta” no sentido de o DUE vigorar na ordem interna independentemente de qualquer receção, por força do próprio primado do DUE; isto leva alguns autores a considerar que não é necessário distinguir no DUE aplicabilidade direta e efeito direto (ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO QUADROS). A relevância das situações entre particulares na esfera institucional da EU é limitada: as jurisdições competentes para conhecerem dos litígios emergentes das relações entre particulares são Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 20 normalmente estaduais ou arbitrais. Estas jurisdições não estão hierarquicamente subordinadas ao TUE. Pode assim dizer-se que há uma regulação imediata dessas situações pelo DUE? O mecanismo do reenvio prejudicial, embora faculte, e imponha em certos casos, que o tribunal nacional solicite o concurso da jurisdição do TUE com respeito à validade de disposições de Direito derivado e à interpretação do DUE (art. 267º TFUE), representa ainda uma forma de cooperação entre instâncias nacionais e europeias. Na verdade, o TUE não pode anular a decisão do tribunal estadual e o incumprimento pelo Estado das suas obrigações com respeito à conformação do Direito interno ou o incumprimento pelo tribunal estadual das suas obrigações só desencadeia o processo geral previsto nos arts. 258º e ss. TFUE, em que o Estado responde por tais violações do DUE. Há quem diga, assim, que quando os órgãos estaduais aplicam o DUE estão a agir como órgãos da UE. LP não concorda – para isso era preciso que o seu estatuto fosse definido pelo DUE e não pela legislação nacional. O Regente considera que a posição mais correta será a de entender que o DUE é superior à lei ordinária, mas tem valor inferior à CRP (é infraconstitucional). Por conseguinte, as jurisdições estaduais, quando aplicam o DUE, fazem-no por força de normas da OJ estadual. Em suma, a situação atual caracteriza-se por um certo compromisso ou transição entre o quadro que corresponde ao relacionamento do Direito Internacional derivado clássico com o Direito interno dos Estados por ele vinculados e o que resulta da integração das OJ destes Estados numa OJ complexa. Em certos casos, porém, as jurisdições europeias têm competência para dirimir litígios emergentes de relações transnacionais (ex: o TUE tem competência para conhecer dos litígios relativos à responsabilidade extracontratual). Nestes casos, um tribunal da UE tem competência para decidir, a título principal, certas questões transnacionais, sendo facultado o acesso de particulares a esta jurisdição. Acontece, no entanto, que o DUE ainda não tem regimes jurídico-materiais aplicáveis a estas questões. Para a obtenção do critério de decisão do caso, o TFUE aponta em dois sentidos diferentes: (a) No que respeita à responsabilidade extracontratual, o art. 340º/2 TFUE remete para os princípios gerais comuns aos Direitos dos EM; (b) No que se refere aos litígios emergentes de contratos de Direito privado ou de Direito público celebrados pela UE ou por sua conta, o art. 340º/1 TFUE determina que a responsabilidade contratual da UE é regulada pela lei aplicável ao contrato em causa. As normas da UE primariamente aplicáveis a estas situações são normas de conflitos. (4) Regulação pelo Direito Autónomo do Comércio Internacional A formação de regras e princípios, no seio da comunidade dos operadores de comércio internacional, que regulam as relações que entre si se estabelecem, é uma constante na história do Direito comercial e de todo o Direito relativo ao tráfico corrente de bens e serviços. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 21 LIMA PINHEIRO entende por Direito autónomo do comércio internacional aquelas regras e princípios aplicáveis às relações do comércio internacional que se formam independentemente da ação dos órgãos estaduais e supraestaduais, a nova lex mercatoria. Tem em vista, designadamente, os usos e costumes do comércio internacional e as regras criadas no âmbito da autonomia associativa dos operadores do comércio internacional ou por entidades gestoras de mercados regulamentados de instrumentos financeiros. Estas fontes podem ter determinada relevância para OJ estadual. A regulação imediata de situações transnacionais pelo Direito autónomo do comércio internacional (i.e., independentemente da mediação de uma OJ estadual) merece considerável atenção, porque se verifica a aplicação de normas e princípios de Direito autónomo a muitas relações comerciais internacionais. Na verdade, a arbitragem transnacional é o modo normal de resolução jurisdicional de litígios no comércio internacional. Teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional: 1. SCHMITTHOFF Para este, a lex mercatoria é encarada essencialmente como Direito material especial do comércio internacional dotado de um certo grau de uniformidade internacional. Este autor invoca a falta de flexibilidade dos mecanismos legislativos estaduais e interestaduais na regulação das relações do comércio internacional e alega que o Direito de conflitos constituiuma “barreira artificial criada pelo homem à condução dos negócios e à resolução de dificuldades de um modo prático”. Precisaríamos assim de um Direito comercial internacional autónomo, fundado em regras uniformes aceites em todos os países – em suma, de uma nova lex mercatoria. Para SCHMITTHOFF, o Direito autónomo tem de se basear principalmente na autonomia privada no domínio contratual e no recurso privilegiado à arbitragem comercial internacional. Na conjugação das duas coisas, decorre o papel do Direito transnacional. As fontes do Direito transnacional seriam a legislação internacional (Convenções Internacionais de Direito material unificado e leis-modelo elaboradas por instituições internacionais que os Estados poderão unilateralmente adotar) e o costume comercial internacional (costume em sentido estrito, práticas comerciais, usos, cláusulas padronizadas, que foram formulados por agências internacionais). Nesta conceção, o acento é colocado na criação jurídica feita pelo legislador internacional e pelas organizações privadas. A soberania nacional não se oporá a que, no âmbito da liberdade contratual, as partes possam desenvolver um Direito autónomo do comércio internacional, contanto que este Direito respeite, na esfera de cada Estado, os limites impostos pela ordem pública. Para SCHMITTOF, este Direito transnacional assenta no reconhecimento direto ou indireto pelos próprios Direitos estaduais, apesar de ocupar um espaço pelo qual os Direitos estaduais à partida se desinteressam. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 22 Nesta visão das coisas, a lex mercatoria não é concebida como uma OJ autónoma na qual os contratos internacionais se encontrem radicados. A lex mercatoria desempenha essencialmente uma função interpretativa e integrativa do negócio jurídico e, eventualmente, o papel de fonte subsidiária da OJ estadual. 2. GOLDMAN Segundo a conceção apresentada por este autor, a lex mercatoria é uma OJ autónoma do comércio internacional – societas mercatorum – ou, pelo menos, é uma OJ em formação. A lex mercatoria consistirá num conjunto de princípios gerais e regras costumeiras espontaneamente referidas ou elaboradas no quadro do comércio internacional, sem referência a um particular sistema jurídico nacional, que exprime conceções jurídicas partilhadas pela comunidade dos sujeitos do comércio internacional. Esta conceção também encontra pontos de apoio na autonomia dos operadores do comércio internacional e na regulação autónoma por eles operada a nível das relações individuais ou por via de organizações que prosseguem os seus fins coletivos. Esta tese coloca o acento nas fontes espontâneas: (a) Numa primeira fase, GOLDMAN e os seus seguidores colocam em primeiro lugar, no elenco dos elementos da lex mercatoria, as regras de costume internacional, os usos, cláusulas contratuais gerais e modelos contratuais. (b) Numa segunda fase, surgem os “princípios gerais de Direito”, encarados como fonte subsidiária, a que é atribuída uma função integrativa de lacunas deixadas pelas “fontes” anteriormente mencionadas, e as regras desenvolvidas pela jurisprudência arbitral. As contribuições mais recentes, porém, tendem a acentuar a natureza pretoriana da lex mercatoria. Os princípios gerais de Direito e os princípios comuns aos sistemas nacionais envolvidos surgem como elementos primordiais desta OJ autónoma e a jurisprudência arbitral é elevada à categoria das principais fontes da lex mercatoria, se não considerada a fonte mais importante desta OJ autónoma do comércio internacional. A adesão massiva dos operadores do comércio internacional à arbitragem como modo normal de resolução jurisdicional dos litígios do comércio internacional e a observância das suas decisões pelos sujeitos do comércio internacional, aliadas à autonomia que lhe é reconhecida por grande número de sistemas nacionais, constituem a espinha dorsal desta tese. Os tribunais arbitrais desempenhariam duas funções: a de dirimir os litígios emergentes das relações do comércio internacional segundo as regras e princípios transnacionais (órgãos de aplicação da lex mercatoria) e a de desenvolvimento dessa mesma lex. Os partidários desta tese concedem que a lex mercatoria não constitui uma “ordem jurídica completa”, i.e., de uma ordem que regule, no seu conjunto, as relações do comércio internacional: i. Primeiro, a lex mercatoria limita-se às questões de natureza contratual, na aceção ampla retida na arbitragem transnacional. Trata-se, na verdade, de um Direito autónomo dos contratos do comércio internacional. ii. Segundo, as questões relativas aos pressupostos de formação do consentimento, aos requisitos de validade do objeto e do fim do contrato e ao poder de representação não seriam, em geral, reguladas pela lex mercatoria. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 23 As relações entre a lex mercatoria e a OJ estadual são entendidas segundo duas ideias fundamentais: 1) Por um lado, há uma certa primazia de princípio da OJ estadual em relação à lex mercatoria; 2) Por outro lado, existe uma sobrelevância prática da lex mercatoria, em virtude do recurso à arbitragem transnacional e da contenção dos Estados no exercício das suas competências normativas. Quando se verifique um ponto de contacto entre a lex mercatoria e a OJ estadual, é a OJ estadual que prevalece. Para GOLDMAN, a lex mercatoria também é aplicável segundo uma norma de conflitos. Se as partes escolherem a lex mercatoria, o tribunal arbitral deve aplicá-la e essa aplicação afasta a aplicação das normas imperativas estaduais. Só não será assim quando se trate de norma de aplicação necessária que o tribunal estadual deva aplicar ou que o árbitro deva respeitar por se revestir do caráter de ordem pública transnacional. Se as partes não escolherem a lex mercatoria, os tribunais arbitrais podem ainda assim decidir aplicá- la. A lex mercatoria não se apresenta assim como uma mera opção que está a par do Direito nacional, mas deve ser a opção de preferência, pois é a mais apta a regular as relações económicas internacionais. ⭐ Significado real da lex mercatoria na regulação das relações comerciais internacionais Quanto a esta questão existem opiniões díspares: 1) Uma corrente doutrinária entende que os contratos internacionais tendem a ser regulados principalmente por Direito autónomo do comércio internacional – a lex mercatoria assume assim real importância; 2) Para os seus principais oponentes, a lex mercatoria não passa de uma fantasia, e não passa, na melhor das hipóteses, de uma soma de usos setoriais e fragmentários cuja relevância depende inteiramente do Direito estadual designado pela norma de conflitos. Onde está a razão? Existe vasto consenso sobre a existência de ramos da atividade económica marcados por um elevado grau de internacionalização, de padronização do conteúdo negocial dos contratos e de recurso à arbitragem para resolução dos litígios deles emergentes. São exemplos os contratos bancários internacionais, as operações sobre instrumentos financeiros, a venda internacional de mercadorias, os contratos de prospeção e exploração de petróleo, etc. Já a averiguação do grau de desenvolvimento da lex mercatoria à escala mundial tem conduzido a resultados em certa medida contraditórios: a maioria dos estudos assinala que os usos do comércio internacional se formam, em princípio, no âmbito de cada um dos setores do comércio internacional e que, por vezes, se revestem igualmente de caráter regional. Afirma-se que raramente os usos obtêm um reconhecimento à escala mundial. Direito Internacional PrivadoLeonor Branco Jaleco 24 Quanto ao significado da jurisprudência arbitral para o desenvolvimento da lex mercatoria: Numa primeira fase, as soluções autónomas desenvolvidas pela jurisprudência arbitral incidiram principalmente sobre questões de caráter processual ou que se suscitam a título prejudicial, à determinação do Direito aplicável e à relevância dos usos do comércio internacional. Assim, nesta primeira fase, a jurisprudência arbitral contribuiu mais para o desenvolvimento do Direito Transnacional da Arbitragem do que para a formação de um Direito material conformador e regulador dos contratos internacionais. Nos últimos anos, contudo, o acervo de soluções autónomas formuladas pela jurisprudência arbitral em crescido consideravelmente. É preciso sublinhar dois pontos: 1. É limitado o número de casos em que a decisão foi proferida exclusivamente com base em Direito autónomo do comércio internacional; 2. A jurisprudência arbitral não constitui per si uma fonte do Direito autónomo do comércio internacional em sentido técnico-jurídico. As decisões arbitrais não constituem precedente vinculativo, tendo importância imediata apenas para o caso concreto a resolver. As soluções desenvolvidas pela jurisprudência arbitral só se positivam (ganham validade normativa) quando integram um costume jurisprudencial: para tal, é necessário que se forme uma convicção geral, no círculo dos interessados, de que essas soluções são juridicamente vinculantes. Ora, o assinalado progresso da lex mercatoria na regulação dos contratos internacionais traduz-se principalmente no desenvolvimento de soluções arbitrais baseadas na concretização de princípios gerais e de “princípios” comuns aos sistemas nacionais e em modelos de regulação; mas a maior parte destas soluções ainda não integra um costume jurisprudencial. NOTA: a questão da vigência de regras e princípios atribuídos à lex mercatoria não deve ser confundida com a sua “aplicabilidade” na decisão de litígios pelos árbitros transnacionais. Princípios dos contratos comerciais internacionais Dois passos de grande importância para a evolução da lex mercatoria são: a) Publicação dos Princípios Relativos ao Comércio Internacional do UNIDROIT – trata-se de um conjunto sistematizado de soluções, que um vasto grupo de especialistas provenientes de diferentes culturas jurídicas considerou serem comuns aos principais sistemas nacionais e mais adequadas aos contratos nacionais. Para que servem? i. Há quem entenda que estes princípios devem ser aplicados quando as partes estipularam nesse sentido ou quando estipularam que os litígios emergentes de um determinado contrato sejam resolvidos com recurso à lex mercatoria ou forma semelhante. ii. Outros entendem que estes princípios podem servir como elemento de interpretação e integração das convenções internacionais de Direito material unificado e Direito material interno, oferecendo um modelo em que o legislador nacional ou internacional se pode basear. Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 25 b) Publicação dos Princípios de Direito Europeu dos Contratos, a cargo de uma comissão ad hoc que se formou sob o impulso de LANDO – também estes não são princípios jurídicos gerais, mas apresentam uma base comparativa mais marcada que os “princípios” do UNIDROIT. Para que servem? i. Procuram refletir um fundo comum aos sistemas jurídicos dos EM da EU, embora pretendam simultaneamente ser “progressivos”. ii. O principal objetivo dos Princípios de Direito Europeu dos Contratos é o de constituírem um sistema geral de regras de Direito dos Contratos na UE baseado nos Direitos nacionais dos seus EM. Enquanto tal, os princípios poderão servir para a criação de uma “infraestrutura” para a legislação da europeia sobre contratos e inspirar eventualmente um Código Europeu de Direito dos Contratos. iii. Destinam-se ainda a ser aplicados quando as partes o convencionem e podem ser aplicados quando as partes estipulem que o seu contrato será regido pelos “princípios gerais de Direito”, pela lex mercatoria ou utilizem uma expressão similar e quando as partes não escolham o sistema ou as regras jurídicas que devem reger o seu contrato. iv. Podem ainda auxiliar a obtenção da solução em caso de lacuna do sistema ou das regras jurídicas aplicáveis. No entanto, note-se que as indicações relativas à aplicabilidade dos princípios são ambíguas e podem induzir em erro: os “princípios” são meros modelos de regulação que podem ser incorporados no contrato, com o valor de cláusulas contratuais, ou podem ser recebidos no conteúdo de normas materiais de um Direito estadual, de uma Convenção Internacional ou de um instrumento da UE. Contêm uma regulação sistemática para aspetos gerais, mas isso não significa que eles vigorem por não serem uma codificação de usos ou costumes. ⭐ Apreciação crítica das teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional As teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional têm deparado com a oposição da doutrina tradicional, i.e., daqueles autores para quem as situações transnacionais são sempre reguladas ao nível da OJ estadual por meio da remissão para um Direito estadual. Assim, a opinião dominante na Alemanha encara a lex mercatoria como um “fenómeno sociológico” – as cláusulas contratuais gerais, os usos do comércio e a jurisprudência arbitral são realidades sociais, mas estas realidades só relevariam juridicamente mediante a sua “receção” pelo Direito dos conflitos ou pelo Direito material dos sistemas nacionais individualmente considerados. A crítica movida à lex mercatoria assenta em dois postulados: 1. As situações transnacionais só seriam imediatamente relevantes perante as OJ estaduais; 2. A permissão para a criação de Direito por particulares dependeria sempre do legislador estadual. Na opinião do Regente, estes postulados são equivocados: i. Há um determinado círculo de contratos do comércio internacional que são direta e imediatamente regulados na OJ internacional e na OJ da UE; Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco 26 ii. A doutrina tradicional parte do princípio de que não pode haver fontes do Direito autónomas relativamente aos Direitos estaduais e supraestaduais, concluindo que as fontes da lex mercatoria só podem ter relevância se essa lhes for dada pelas OJ estaduais, o que é falacioso, pois contém a conclusão nas premissas; À OJ estadual corresponde a sociedade perfeita que integra, na sua globalidade, a vida social e apresenta um elevado nível de institucionalização e de autossuficiência. Mas a institucionalização de grupos sociais que prosseguem fins limitados a uma certa esfera de vida (sociedades imperfeitas ou de fins específicos) também pressupõe a existência de complexos normativos. Onde se há de encontrar o fundamento dessas regras e princípios autónomos? No processo de estabilização da sociedade paraestadual (formada por pessoas ligadas a diferentes Estados), na referência à consciência dos membros da sociedade paraestadual e na conformidade do ordenamento dessa sociedade perante os princípios gerais do Direito e os princípios geralmente acolhidos na comunidade internacional. Nesta visão das coisas, não é inconcebível que exista uma OJ autónoma do comércio internacional ou uma pluralidade de OJ autónomas. O que ficou exposto é suficiente, na ótica de LP, para concluir que os postulados em que assenta a crítica da doutrina tradicional à tese da OJ autónoma do comércio internacional são infundadas. Ainda assim, da rejeição dos postulados em que assenta a crítica da doutrina tradicional não decorre necessariamente a aceitação das teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio
Compartilhar