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Dengue teorias e práticas Denise Valle Denise Nacif Pimenta Rivaldo Venâncio da Cunha (orgs.) SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros VALLE, D., PIMENTA, DN., and CUNHA, RV. orgs. Dengue: teorias e práticas [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2015. ISBN: 978-85-7541-552-8. Available from: doi: 10.7476/9788575415528. https://doi.org/10.7476/9788575415528 Dengue: teorias e práticas FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ Presidente Paulo Ernani Gadelha Vieira Vice-Presidente de Ensino, Informação e Comunicação Nísia Trindade Lima EDITORA FIOCRUZ Diretora Nísia Trindade Lima Editor Executivo João Carlos Canossa Mendes Editores Científicos Carlos Machado de Freitas Gilberto Hochman Conselho Editorial Claudia Nunes Duarte dos Santos Jane Russo Ligia Maria Vieira da Silva Maria Cecília de Souza Minayo Marilia Santini de Oliveira Moisés Goldbaum Pedro Paulo Chieffi Ricardo Lourenço de Oliveira Ricardo Ventura Santos Soraya Vargas Côrtes DENGUE TEORIAS E PRÁTICAS Denise Valle Denise Nacif Pimenta Rivaldo Venâncio da Cunha organizadores Copyright © 2015 dos autores FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ / EDITORA REVISÃO Augusta Avalle Jorge Moutinho M. Cecilia G. B. Moreira Marcionílio Cavalcanti de Paiva Myllena Paiva NORMALIZAÇÃO DE REFERÊNCIAS Clarissa Bravo CAPA, PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Carlota Rios PRODUÇÃO GRÁFICO-EDITORIAL Phelipe Gasiglia ILUSTRAÇÕES Heloisa M. Nogueira Diniz Catalogação na fonte Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde/Fiocruz Biblioteca de Saúde Pública V181d Valle, Denise (Org.) Dengue [livro eletrônico]: teorias e práticas. / organizado por Denise Valle, Denise Nacif Pimenta e Rivaldo Venâncio da Cunha. – Rio de Janeiro : Editora FIOCRUZ, 2015. il. ; tab. ; graf. 12.813 Kb; ePUB ISBN: 978-85-7541-552-8 1. Dengue – prevenção & controle. 2. Dengue – transmissão. 3. Dengue – epidemiologia. 4. Dengue – diagnóstico. 5. Aedes. 6. Determinantes Sociais da Saúde. 7. Gestão em Saúde. I. Pimenta, Denise Nacif (Org.). II. Cunha, Rivaldo Venâncio da (Org.). III. Título. 2015 EDITORA FIOCRUZ Av. Brasil, 4036 – Térreo – sala 112 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ Tels.: (21) 3882-9039 / 3882-9041 editora@fiocruz.br fiocruz.br/editora mailto:editora@fiocruz.br http://www.fiocruz.br/editora Autores Ada Maria de Barcelos Alves Bióloga, doutora em ciências biológicas/biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e chefe do Laboratório de Biotecnologia e Fisiologia de Infecções Virais do Instituto Oswaldo Cruz da Fiocruz. Ademir de Jesus Martins Biólogo, doutor em biologia parasitária pelo Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz); pesquisador do IOC/Fiocruz. Arthur Weiss da Silva Lima Biólogo, mestre em modelagem computacional pelo Laboratório Nacional de Computação Científica, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Biologia Evolutiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Christiane Ribeiro Médica-pediatra e sanitarista, doutora em patologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF); professora adjunta do Departamento Materno-Infantil da UFF e membro do Comitê Estadual de Prevenção e Controle de Morte Materna do Rio de Janeiro e do Comitê de Prevenção de Óbito Materno do município de Niterói. Cláudia Torres Codeço Bióloga, doutora em biologia quantitativa pela Universidade do Texas de Arlington (Estados Unidos); pesquisadora titular do Programa de Computação Científica da Fundação Oswaldo Cruz. Claudio José Struchiner Médico, doutor em dinâmica populacional de doenças infecciosas pela Universidade de Harvard (Estados Unidos); professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz. Denise Nacif Pimenta (organizadora) Graduada em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais, doutora em ciências da saúde pelo Centro de Pesquisas René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz (CPqRR-Fiocruz), pós-doutorado pelo Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fiocruz e pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz); pesquisadora do Laboratório de Educação em Saúde e Ambiente do CPqRR da Fiocruz. Denise Valle (organizadora) Bióloga, doutora em biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-doutorado em biologia do desenvolvimento pelo Centre National de la Recherche Scientifique de Toulouse (França); pesquisadora titular do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz, líder da Rede Nacional de Monitoramento da Resistência de Aedes aegypti a Inseticidas (Rede MoReNAa) e coordenadora de Laboratório de Referência Nacional (2003- 2012). Eric Martínez Médico, doutor em ciências médicas pela Universidade de Havana, Cuba; professor titular de pediatria na Universidade de Havana, membro da Associação Pan-Americana de Infectologia, da Sociedade Latino-Americana de Infectologia Pediátrica e da Sociedade Internacional de Doenças Infecciosas, pesquisador titular e de mérito do Instituto de Medicina Tropical Pedro Kourí, Havana (Cuba); colaborador da Organização Mundial da Saúde e da Organização Pan-Americana da Saúde. Eugenio Damaceno Hottz Biólogo, doutor em biologia celular e molecular pelo Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz); bolsista de pós-doutorado no Laboratório de Imunofarmacologia do IOC/Fiocruz. Fabiano Geraldo Pimenta Júnior Engenheiro-sanitarista, mestre em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz; secretário municipal de Saúde de Belo Horizonte e membro do Comitê Técnico Assessor do Programa Nacional de Controle da Dengue. Flavia Barreto dos Santos Bióloga, doutora em biologia celular e molecular pelo Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), pós- doutorado pela Universidade da Califórnia, Berkeley (Estados Unidos); tecnologista sênior em saúde pública do IOC/Fiocruz e membro do Laboratório de Referência Regional para o Diagnóstico de Dengue e Febre Amarela do Ministério da Saúde. Florisneide Rodrigues Barreto Bióloga, doutora em saúde pública pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/Ufba); professora adjunta de epidemiologia do ISC/Ufba. Hermann Gonçalves Schatzmayr (in memoriam) Médico-veterinário, doutor pelas universidades de Giessen e Freiburg (Alemanha); livre-docente da Universidade Federal Fluminense, pesquisador titular do Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), ex-presidente da Fiocruz, sócio-fundador e primeiro presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, editor do periódico Virus Reviews and Research, membro titular da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Medicina Veterinária, assessor da Organização Mundial de Saúde/Genebra. Ima Aparecida Braga Bióloga, doutora em biologia parasitária pelo Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz; assessora técnica do Programa Nacional de Controle da Dengue da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, membro do Grupo de Trabalho de Implementação da Estratégia de Gestão Integrada em Prevenção e Controle da Dengue nos países latino- americanos da Organização Pan-Americana da Saúde. João Bosco Jardim Psicólogo, mestre em psicologia experimental pela Universidade de São Paulo; pesquisador do Laboratório de Educação em Saúde e Ambiente do Centro de Pesquisa René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz, Minas Gerais. José Luis San Martin Médico, especialista em higiene e epidemiologia pelo Instituto Superior de Ciências Médicas de Camaguey/Cuba; funcionário da Organização Pan-Americana da Saúde, onde atua na direção e orientação das estratégias de gestão integrada para a prevenção e controle da dengue nos países do continente americano. Josélio Maria Galvão de Araújo Biólogo, doutor em biologia celular e molecular pelo Instituto OswaldoCruz da Fundação Oswaldo Cruz; professor adjunto do Departamento de Microbiologia e Parasitologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Kleber Giovanni Luz Médico-infectologista, doutor em moléstias infecciosas pela Universidade de São Paulo; professor associado do Instituto de Medicina Tropical da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Lúcia Alves da Rocha Médica-pediatra, doutora em medicina tropical pela Universidade de Brasília; professora adjunta de pediatria da Universidade Federal do Amazonas, médica responsável pelo Ambulatório de Síndrome Febril Pediátrica da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado, Amazonas, integrante do grupo de pesquisa do Núcleo de Investigação em Arboviroses, Roboviroses e Viroses Emergentes do Amazonas. Maria da Conceição Nascimento Costa Médica, doutora em saúde pública pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/Ufba); professora associada de epidemiologia do ISC/Ufba. Maria Glória Teixeira Médica, doutora em saúde pública pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/Ufba) e professora associada de epidemiologia do ISC/Ufba. Maurício Lima Barreto Médico, doutor em epidemiologia pela London School of Hygiene and Tropical Medicine (Inglaterra); pesquisador sênior em saúde pública do Centro de Pesquisas Gonçalo Muniz da Fundação Oswaldo Cruz. Myrna Cristina Bonaldo Bióloga, doutora em genética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; pesquisadora em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e chefe do Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz da Fiocruz. Patrícia Brasil Médica-infectologista, doutora em ciências pelo Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz); pesquisadora adjunta do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI) da Fiocruz, onde é coordenadora do Laboratório de Doenças Febris Agudas. Paula Mendes Luz Médica, doutora em epidemiologia das doenças infecciosas pela Universidade de Yale (Estados Unidos); pesquisadora do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz. Raquel Aguiar Jornalista, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde do Instituto de Informação e Comunicação Científica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz); coordenadora de Jornalismo e Comunicação do Instituto Oswaldo Cruz da Fiocruz. Ricardo Galler Biólogo, doutor em ciências da natureza pela Universidade de Heidelberg, Ruprecht-Karls (Alemanha), pós-doutorado pelo California Institute of Technology, pela Washington University e pelo Southwest Foundation for Biomedical Research; pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz. Ricardo Lourenço de Oliveira Médico-veterinário, doutor em parasitologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, pós-doutorado pelo Instituto Pasteur; membro do comitê assessor dos Programas Nacionais de Controle da Dengue (PNCD) e da Malária (PNCM), editor das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz e chefe do Laboratório de Transmissores de Hematozoários do Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz. Rita Maria Ribeiro Nogueira Médica, doutora em biologia parasitária pelo Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz); pesquisadora titular e chefe do Laboratório de Flavivírus do IOC/Fiocruz, que também é Laboratório de Referência Regional para o Diagnóstico de Dengue e Febre Amarela do Ministério da Saúde. Rivaldo Venâncio da Cunha (organizador) Médico, doutor em medicina tropical pelo Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), pós-doutorado em medicina tropical com ênfase no estudo das enfermidades causadas por vírus; pesquisador especialista da Fiocruz em Mato Grosso do Sul, professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, colaborador da Organização Mundial da Saúde e da Organização Pan-Americana da Saúde e presidente da Regional de Mato Grosso do Sul da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical entre 2011 e 2014. Roger Dennis Rohloff Médico-clínico, especialista em terapia intensiva pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib); professor da Pós- Graduação em Terapia Intensiva da Amib, membro do Comitê Estadual de Prevenção e Controle de Mortalidade Materna do Rio de Janeiro e chefe das Unidades de Terapia Intensiva Materno-Fetal da Perinatal Laranjeiras e Barra da Tijuca no Rio de Janeiro. Rogerio Valls de Souza Médico-infectologista, doutor em pesquisa clínica pelo Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz); pesquisador do Laboratório de Doenças Febris Agudas do INI/Fiocruz. Sheila Soares de Assis Bióloga, mestre em ciências pelo Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde do IOC/Fiocruz. Thiago Affonso Belinato Biólogo, doutor em biologia parasitária pelo Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz, onde faz pós-doutorado. Virgínia Torres Schall Psicóloga, doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), chefe do Laboratório de Educação em Saúde e Ambiente do Centro de Pesquisa René Rachou da Fiocruz, Minas Gerais. Sumário Sumário Capa Rosto Créditos Autores Prefácio Apresentação 1. A (des)construção da dengue: de tropical a negligenciada 2. Histórico do controle de Aedes aegypti 3. Biologia e comportamento do vetor 4. Controle químico de Aedes aegypti, resistência a inseticidas e alternativas 5. Transmissão vetorial 6. Modelagem matemática em dengue: histórico e questões atuais 7. Aspectos virais da dengue 8. Desenvolvimento de vacinas contra dengue 9. Diagnóstico laboratorial da dengue 10. Manejo clínico do paciente com dengue 11. Aspectos Clínicos da Dengue: patogenia 12. Monitoramento da criança com dengue 13. Dengue e gravidez 14. Epidemiologia da dengue 15. Participação social no controle da dengue: a importância de uma mudança conceitual 16. Prevenção da dengue: práticas de comunicação e saúde 17. Educação em saúde como estratégia no controle integrado da dengue: reflexões e perspectivas 18. Gestão e planejamento na prevenção e no controle da dengue 19. Determinação social, determinantes sociais da saúde e a dengue: caminhos possíveis? Glossário Notas clbr://internal.invalid/book/OEBPS/Text/cover.xhtml Prefácio A dengue é atualmente considerada a mais importante arbovirose no mundo. Cerca de 2,5 bilhões de pessoas estão expostas ao risco de se infectarem, particularmente em países tropicais e subtropicais, onde condições climáticas, sociais e econômicas favorecem a proliferação dos mosquitos vetores. Conhecida desde o século XVIII como entidade nosológica, somente apresentou-se como um grande problema de saúde pública após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando ocorreu a expansão do número de casos e do percentual de casos graves. As razões para esses fatos não são ainda totalmente conhecidas, porém, sem dúvida, o aumento da distribuição e da densidade de infestação do seu principal mosquito vetor, Aedes aegypti, é fator fundamental. E por que o aumento da infestação por esse mosquito? Tanto no Sudeste Asiático, como posteriormente nas Américas, o grande e rápido fluxo populacional rural-urbano gerou um inchaço das cidades e ausência de condições satisfatórias de habitação e saneamento básico para boa parcela da população. No caso brasileiro, mais de 85%, em média, da população, vive atualmente em áreas urbanas e cerca de 20% vive em favelas, mocambos, invasões e cortiços, locais onde são precárias as habitações, a oferta de abastecimento de água e a coleta regular do lixo. Em 18 países das Américas, incluindo o Brasil, o Ae. aegypti foi eliminado de seus territórios, nas décadas de 1950 e 1960, após uma grande campanha para prevenção da febre amarela, doença da qual ele é também vetor. Entretanto, a partirde países que não lograram sucesso na sua eliminação, esse mosquito voltou a reinfestar os países que o haviam eliminado, resultando que, nas Américas, nos dias atuais, apenas o Canadá e a região continental do Chile ainda não registraram sua presença. Após a certificação da eliminação do Ae. aegypti, na década de 1950, pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o Brasil foi alvo de uma persistente reinfestação, tendo vários focos sido eliminados rapidamente. Porém, em 1976, houve nova reinfestação no porto de Salvador, Bahia, iniciada em um navio procedente de Houston, Texas, Estados Unidos. Dessa vez não se conseguiu eliminá-la nem contê-la, o que possibilitou sua rápida disseminação para o norte, até Natal e para o sul, até o Rio de Janeiro. Posteriormente, atingiu todas as unidades federadas. O Brasil já tinha tido registro de dengue desde o século XIX. Epidemias no Rio de Janeiro em 1846, em São Paulo em 1852 e 1916, e em Niterói em 1923 são relatadas na literatura. Era conhecida por vários nomes, como polca, patuleia, urucubaca, febre eruptiforme, febre quebra-ossos. No entanto, entre 1923 e 1981 houve um silêncio epidemiológico, possivelmente em consequência do êxito da campanha de eliminação do Ae. aegypti. E como se deu a reintrodução do vírus? No fim de 1981 e início de 1982, em Boa Vista, Roraima, houve epidemia de uma doença febril, aguda, inicialmente pensada como rubéola, confirmada depois como dengue. Ali foram isolados, pela primeira vez no país, seus agentes etiológicos, por pesquisadores do Instituto Evandro Chagas de Belém, Pará, como vírus dengue 1 e vírus dengue 4. Outra epidemia, esta na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, foi registrada em 1986. A partir de então, a doença passou a ter caráter endêmico-epidêmico, espalhando-se por todas as unidades federadas do Brasil. Pelo elevado número de casos, havendo anos com notificação de mais de um milhão de doentes, e por sua grande letalidade, com cerca de 4% a 5% dos casos graves, a doença é um dos principais problemas de saúde pública no Brasil. Não existe ainda uma vacina preventiva eficaz disponível, nem um tratamento etiológico do dengue. O único elo vulnerável da sua cadeia de transmissão é o mosquito vetor, que pica durante o dia, é extremamente antropofílico, vive nas habitações humanas ou próximo a elas, deposita seus ovos e produz larvas preferencialmente em recipientes artificiais, com água limpa, e esses ovos são resistentes à dessecação. Atualmente, o combate ao Ae. aegypti é bastante complexo, considerando-se vários fatores: seu comportamento, as grandes dimensões das populações urbanas, a precariedade de boa proporção de residências em relação ao suprimento regular de água e à destinação adequada de dejetos, o aumento do número de recipientes não biodegradáveis e de descarte inadequado de resíduos sólidos no meio ambiente. Além disso, há que se considerar ainda o aumento da produção de veículos automotores, que traz como consequência o descarte inadequado de pneus usados e a dificuldade de inspeção dos domicílios, pelos agentes públicos de controle de endemias, em busca de criadouros de mosquito e sua eliminação, por razões de segurança. A globalização também proporcionou o aumento no número e na frequência de viagens marítimas e aéreas, favorecendo o eventual transporte, entre um país e outro, de larvas do vetor e de doentes no período de viremia. Portanto, a complexidade de controle dessa doença é muito grande. Ultrapassa os limites do setor Saúde, abrangendo as áreas de educação, comunicação social, saneamento básico, limpeza urbana, políticas habitacionais, entre outras. Na verdade, as atuais medidas de controle disponíveis não têm sido suficientemente efetivas para prevenção da doença ou mesmo para redução da magnitude de sua incidência. Este livro reuniu os principais pesquisadores brasileiros, e alguns estrangeiros, envolvidos nos vários aspectos ligados à transmissão da dengue e ao seu controle. Sua publicação é muito oportuna e relevante, tanto para os profissionais da saúde como para os de outras áreas do conhecimento que se relacionam com a incidência e perpetuação dessa doença em nosso país. Trata ainda das inovações necessárias na área científico-tecnológica que estão em desenvolvimento aqui e no mundo, como as vacinas preventivas e o controle vetorial por meio de mosquitos biológica ou geneticamente modificados. Congratulo-me com os organizadores e autores deste livro, bem como com a Editora Fiocruz por oferecerem à sociedade brasileira uma abordagem extremamente ampla e profunda de um tema que tem desafiado pesquisadores e profissionais da saúde pública do mundo inteiro. Pedro Luiz Tauil Doutor em medicina tropical, professor colaborador da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília Apresentação A ideia deste livro surgiu de uma demanda da própria Editora Fiocruz, com base no CD-ROM Dengue – produzido em 2009 por um dos organizadores. O CD-ROM, por sua vez, consistiu de material interativo contendo imagens, vídeos e animações, adaptado para a realidade nacional inspirado no equivalente produzido pela Welcome Trust em 2005.1 Na ocasião, percebeu- se a escassez de material organizado formalmente sobre o tema, em língua portuguesa, que procurasse representar, pelo menos em parte, sua complexidade. Mais ainda, é evidente a falta de material destinado a público mais abrangente que aquele da academia. A elaboração do CD contou com a participação de uma série de especialistas, muitos dos quais também são autores deste livro. Ocorre que, ingenuamente, a princípio houve a expectativa de que o conteúdo do CD pudesse se tornar adequado ao livro, de forma relativamente rápida e fácil. Entretanto, esse intento logo se mostrou inviável: são linguagens muito diferentes, havia necessidade de atualização, e o público do CD não teria necessariamente o mesmo perfil do leitor do livro. Foi assim que iniciamos o projeto do livro: definindo os aspectos que deveriam ser abordados e contatando especialistas. É bem verdade que alguns capítulos foram agregados no meio do caminho, pois o trabalho de organização nos foi revelando a necessidade de novos olhares e de novas abordagens, na difícil tarefa de discorrer sobre a teoria e prática de um tema tão complexo, tanto dentro como fora da academia. Um trabalho para quem se interessa em compreender a dengue Definir o público leitor foi a primeira preocupação dos organizadores e, na prática, o maior desafio. Queríamos alcançar profissionais de nível superior que trabalham com dengue, ou que de alguma forma se interessam pelo tema. Inicialmente imaginamos que o público principal estaria na área da saúde. Contudo, no decorrer do trabalho, percebemos que, uma vez que o tema dengue extrapola a saúde, este livro também o faz. Tentativas de identificar o leitor potencial desta publicação somaram muitas horas de discussão, por vezes acalorada, entre os organizadores (e por vezes, com os autores). E não considerar que esta seja uma questão trivial, entre outras, seria necessário para definir o tipo de abordagem e de linguagem (mais técnica? totalmente coloquial?) que permeasse todos os capítulos. Transpor o conhecimento acadêmico em figuras e textos que fizessem sentido para um público mais amplo. O resultado, esperamos, foi um meio do caminho. Assim como a dengue, este livro é transversal a várias disciplinas. Dirige-se a brasileiros, escrito em sua maior parte por brasileiros, analisando a dengue sob a ótica dos desafios impostos ao Brasil. Não foi possível homogeneizar textos das áreas de humanas, exatas e biomédicas. Médicos, jornalistas, educadores, entomologistas, epidemiologistas, matemáticos, gestores, estão acostumados a escrever de maneira bem peculiar, para públicos distintos. Ao final do projeto, entendemos que isso é a cara da dengue e, portanto, está estampado ao longo de todos os capítulos. Procuramos amenizar algumas especificidades com notas de rodapé e com um glossário, disposto ao fim da publicação. Dependendo da experiência prévia e dosinteresses particulares de cada leitor, alguns grupos de capítulos serão mais atraentes, ou de fácil leitura. No entanto, fica aqui o convite para uma leitura prazerosa de seu conteúdo, com o qual se pretendeu, como um caleidoscópio, apresentar diversas facetas do tema dengue. Até onde avançar, quando parar? Trata-se de outro ponto que nos trouxe bastante inquietação. Se, de um lado, pretendíamos apresentar informação atual sobre vários pontos de vista e campos de experimentação, de outro, não foi trivial conduzir tantos assuntos simultaneamente. Entretanto, o que mais contribuiu para que interrompêssemos o processo de adição de conteúdo ao livro foi a própria dinâmica, extremamente célere, da dengue. A todo tempo fomos atropelados com uma novidade. Para citar algumas das mais recentes: as questões que envolveram o teste de uma vacina para dengue, cuja disponibilização estava prevista para 2014; e a avaliação da pertinência de controle do mosquito com bactéria intracelular que se espalha de forma sustentável, inoculada em Aedes aegypti na Austrália. Nos dois casos o Brasil é palco das iniciativas de campo. Houve ainda a definição de uma nova classificação de casos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde do Brasil, e o anúncio da identificação de um quinto sorotipo viral, na Malásia. De uma maneira ou outra, todos esses temas estão aqui contemplados. Mas, rapidamente percebemos que trazer para o livro cada última novidade em dengue poderia ser uma garantia de inviabilizar sua publicação. Por isso paramos, e podemos dizer que o livro não foi finalizado, mas sim interrompido. Sobre os organizadores Não foi intencional. E só nos demos conta no final... Os organizadores são três: uma bióloga, uma antropóloga e um médico. De formação complementar e com atuação em algumas das principais áreas que o tema dengue percorre. Denise Valle está envolvida com o controle do mosquito vetor, Denise Pimenta tem experiência com educação em saúde, doenças negligenciadas e disseminação de informação em saúde. Já Rivaldo Venâncio tem na dengue uma de suas principais frentes de prática clínica e de pesquisa. Denise Valle e Rivaldo atuam, ou atuaram, no Ministério da Saúde do Brasil e na Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) em comitês relacionados à dengue. Denise Pimenta trabalhou no Tropical Disease Research (TDR/OMS), com o mesmo tema. Quem são os autores? Somam 36, entre os quais se encontram reunidos alguns dos profissionais de referência em suas áreas de atuação, principalmente do Brasil, que há anos se dedicam a compreender, monitorar, controlar, ou minimizar os efeitos da dengue. Estão ausentes muitos outros especialistas; teria sido ainda mais complexa a tarefa. Mas a elaboração deste livro nos fez perceber que o país tem, de fato, uma enorme competência estabelecida na pesquisa e na prestação de serviços em dengue, tanto na área da saúde, quanto das ciências humanas – e mesmo em outras, transversais, como a matemática. Tivemos uma perda importantíssima desde a concepção deste volume: dr. Hermann Schatzmayr, o primeiro a nos entregar uma versão preliminar de seu capítulo – talvez uma de suas últimas, se não a última, contribuição para a área. Muitos autores deste livro tiveram a oportunidade de ter tido contato com ele, vários tiveram o privilégio de por ele terem sido orientados. Esperamos, de verdade, que esta publicação possa representar uma pequena fração de seu legado. A estrutura do livro Está organizado em 19 capítulos, de autores ou grupos de autores diferentes, especialistas em suas áreas de atuação. Todos estão ordenados, na medida do possível, por assunto: os dois primeiros procuram contextualizar o tema, de forma crítica, e delinear o histórico da dengue. Depois, são apresentados capítulos que se referem ao vetor e a temas correlatos, seguidos de capítulos que tratam do vírus, da vacina e de vários aspectos clínicos. Sucedem-se os capítulos que trabalham o tema dengue com o enfoque nas ciências humanas, incluindo textos sobre epidemiologia, comunicação, comportamento e educação, finalizando com a gestão e o planejamento que envolve a dengue no Brasil. Por último, encontra-se o glossário. Apresentação dos capítulos, passo a passo 1 – a (des)construção da dengue – reflete sobre a nomeação deste agravo desde sua descoberta como problema de saúde no arcabouço da medicina tropical, posteriormente como doença reemergente na saúde internacional, e hoje como doença negligenciada na saúde global. Contextualiza o hiato 10-90 e faz uma análise crítica sobre todo o processo de construção do tema dengue. 2 – histórico do controle do vetor – apresenta o histórico do controle de Aedes aegypti, vetor da dengue e da febre amarela urbana. Descreve as estratégias oficiais implementadas no Brasil, e na região das Américas, incluindo a Estratégia de Gestão Integrada para Prevenção e Controle da Dengue (EGI-Dengue), modelo de gestão delineado pela Opas. 3 – biologia do vetor – identifica os principais vetores de dengue, Aedes aegypti e Aedes albopictus, e detalha aspectos de sua história natural, como a localização geográfica, o ciclo de vida e hábitos durante o desenvolvimento, além de seu comportamento alimentar e reprodutivo. Traz ainda informações sobre os principais índices atuais de avaliação da densidade das populações do vetor. 4 – inseticidas, resistência e alternativas – apresenta o histórico do uso de inseticidas contra Aedes aegypti no Brasil, a consequente disseminação de resistência bem como seu impacto no controle das populações do vetor. Discute a pertinência e a efetividade de atribuir ênfase ao uso de inseticidas. Apresenta alternativas atuais, em desenvolvimento, e trata da relevância da conduta para o controle. 5 – transmissão vetorial – a transmissão do vírus dengue e sua dinâmica no tempo e no espaço dependem de fatores ambientais, do mosquito e do próprio vírus. São descritos os principais aspectos que modelam essa dinâmica e como a interação de tais fatores determina a capacidade vetorial do mosquito. O ciclo do vírus no mosquito e sua influência no sucesso da transmissão também são abordados. 6 – modelagem matemática – faz um breve histórico da modelagem em epidemiologia, desde os trabalhos com o controle do vetor da malária. Apresenta a estrutura básica de uma série de modelos utilizados e exibe ainda a modelagem de estratégias atuais, que incorporam novas tecnologias, como a manipulação genética de vetores e a vacinação contra o vírus dengue. 7 – o vírus dengue – descreve os aspectos gerais dos vírus dengue, incluindo sua classificação, morfologia e a organização do genoma. São apresentadas também a diversidade genética dos vírus, sua estratégia de replicação viral e uma breve descrição das funções de suas proteínas, tanto as estruturais quanto as não estruturais. 8 – desenvolvimento de vacinas – várias abordagens experimentais, atualmente em desenvolvimento, são mostradas, com suas vantagens e desvantagens. A necessidade de uma vacina contra todos os sorotipos é justificada, levando em conta o risco de exacerbação dos sintomas em razão de fenômenos como os anticorpos subneutralizantes ou ainda a teoria do pecado antigênico original. 9 – diagnóstico laboratorial – fundamental na assistência ao paciente, mas também em ações de vigilância e estudos epidemiológicos, hoje o diagnóstico dispõe de uma série de metodologias adequadas a momentos e situações distintas aqui apresentadas. Os espécimes clínicos mais apropriados, bem como os procedimentos de coleta e envio de amostras também são aqui tratados. 10 – manejo clínico do paciente – no Brasil, as epidemias de dengue causam forte impacto na rede de atenção à saúde. O curso clínico da dengue, com suas principais fases, é apresentado, assim como a nova classificação da OMS, que permite acompanhar melhor a evolução dos casos. O detalhamento do manejo clínico inclui as principais complicações e diretrizes para o diagnóstico diferencial. 11 – patogenia – anticorpos subneutralizantes de infecção préviade dengue são o principal fator de risco para formas graves. São descritos aspectos, do vírus e do hospedeiro, que podem influenciar as manifestações clínicas e marcadores para diagnóstico de evolução dos casos. A patogenia das infecções, alterações de coagulação do sangue e o impacto no decurso do quadro clínico são abordados. 12 – crianças – uma evidência de endemização da dengue foi o aumento no Brasil, desde 2001, da proporção de formas graves em crianças, grupo no qual as manifestações clínicas são de identificação mais difícil. São abordadas características clínicas e hematológicas de crianças com dengue, úteis para o diagnóstico precoce, tratamento adequado e consequente redução da mortalidade. 13 – gravidez – em gestantes, a dengue grave pode resultar em complicações obstétricas, por vezes concomitantes com outras situações patológicas típicas da gravidez, causando confusão diagnóstica. Infecção próxima ao parto pode ocasionar síndrome infecciosa no recém-nascido. São abordados aspectos epidemiológicos e clínicos, além de recomendações assistenciais. 14 – epidemiologia – a situação da dengue no Brasil é analisada em contraponto com a do cenário mundial. São descritos fatores que modulam sua transmissão, bem como as dificuldades de utilização, pelos serviços de saúde, de modelos preditivos para a ocorrência das epidemias. As apresentações clínicas da dengue e os complexos fatores de risco, coletivos e individuais, também são aqui expostos. 15 – comportamento – qual a relação entre o que as pessoas fazem para controlar a dengue e o que dizem conhecer sobre a transmissão? A participação social no controle vetorial depende de mudança de comportamento; porém, as práticas atuais não têm concorrido para conter a dengue. Programas educativos falham ao buscar relação entre aquisição de conhecimento e mudança de comportamento. 16 – ações de comunicação – quatro eixos teóricos (biológico, histórico, social e comunicacional) deram suporte a várias experiências exitosas em comunicação e saúde em dengue, desenvolvidas de forma integrada por pesquisadores e jornalistas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), com foco na prevenção. Discute-se sobre as oportunidades atuais de atuação de organizações científicas no campo da comunicação e saúde. 17 – educação em saúde – descreve e analisa criticamente algumas das diretrizes e propostas dos documentos internacionais e nacionais que orientam ações de educação em saúde, seus pressupostos, políticas públicas geradas e aplicações no controle. Inclui também breve descrição dos principais desafios nos contextos do ensino formal e não formal, no Sistema Único de Saúde (SUS). 18 – gestão – as epidemias de dengue desafiam o SUS. O aumento significativo de demanda nas unidades de saúde exige capacidade de organização dos gestores. Abordam-se aqui aspectos relevantes para a gestão de programas de prevenção e controle da dengue, em contexto de descentralização, no qual os municípios são os principais executores das atividades. 19 – determinação social e determinantes sociais da saúde – que fatores sociais estão por trás da produção/reprodução, distribuição e ocorrência (ou não) da doença? Apresenta-se um breve histórico dos modelos e das concepções de determinação e determinantes sociais da saúde, bem como das principais questões sociais implicadas no processo saúde- doença. Realiza-se levantamento da literatura sobre os principais fatores e condições sociais que influenciam a problemática da dengue. Sobre a identificação dos termos do glossário O glossário não pretende ser completo nem exaustivo. Foram incluídos termos, relacionados ao tema dengue, que estão presentes em um ou mais capítulos, e que podem não ser do conhecimento geral de todos os potenciais leitores desta publicação. Procurou-se sempre usar definições compatíveis com o que está exposto em todos os textos, ainda que existam definições mais gerais ou amplas. Os termos que estão no glossário aparecem, na primeira vez em que são citados em cada capítulo, grafados em versalete e em cor. As definições, por vezes, estão parcialmente redundantes com aquelas do texto. Por vezes, não foram incluídas as variações de termos específicos (exemplo: se não for achado no glossário o termo ezoótico identificado no texto, deve-se procurar enzootia.). Suporte, inclusive financeiro Os três organizadores pertencem ao quadro da Fiocruz, assim como Heloisa Maria Nogueira Diniz, a designer gráfica que trabalhou nas figuras. O trabalho de verificação do texto foi parcialmente financiado com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), no âmbito do projeto do Pronex-Dengue: desenvolvimento e avaliação de novas tecnologias e estratégias de vigilância e controle de Aedes aegypti no Brasil. No percurso, algumas pessoas foram fundamentais para a concretização deste projeto e aqui gostaríamos de deixar registrada nossa mais profunda gratidão: Heloisa, pela formatação de todas as imagens e figuras do livro e pela amizade de sempre na correria das últimas figuras que nunca tinham fim. Jorge Moutinho, pela revisão gramatical inicial do texto e paciência com as idas e vindas. Toda a equipe da Editora Fiocruz que se debruçou sobre o livro (Augusta, Carlota, Cecilia, Marcionilio, Myllena e Phelipe) pela eficiência, objetividade e precisão. João Canossa, que lançou a ideia inicial do livro enquanto o CD Dengue estava sendo finalizado: nossos agradecimentos pela parceria e aconselhamentos sobre todos os complexos procedimentos e prazos editoriais. Simone Valle, pelo desenho dos mosquitos nas figuras do capítulo 4. Não menos importante, aos pareceristas, que foram fundamentais para o aprimoramento de todo o texto. Não podemos deixar de agradecer também, ao apoio institucional da Fundação Oswaldo Cruz, incluindo a Editora Fiocruz, parceira em todo este processo, e mais especificamente ao Serviço de Produção e Tratamento de Imagem do IOC e aos nossos laboratórios de origem: Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict), Laboratório de Biologia Molecular de Flavivírus e Fiocruz Mato Grosso do Sul. Agradecemos ainda ao Pronex-Rede Dengue, institutos nacionais de ciência e tecnologia (INCTs) em doenças negligenciadas e em entomologia molecular. Por fim, gostaríamos de registrar nossa imensa gratidão a todos que colaboraram para que este livro saísse do campo das ideias e se tornasse realidade: aos nossos familiares, cônjuges e filhos, e também aos vários amigos, pelo apoio e compreensão pelos muitos dias e horas em que tivemos que nos isolar e nos concentrar para conseguir concluir o trabalho das páginas e páginas que se seguirão. Foi tudo feito com muito carinho, e sem eles não teria sido possível. Os organizadores 1 - A (des)construção da dengue: de tropical a negligenciada Denise Nacif Pimenta Doença tropical, doença infecciosa, doença endêmica, ENDEMIA, doença reemergente, doença negligenciada, doença da pobreza, doença negligenciada da pobreza, doença transmitida por vetor, doença transmissível, dunga, febre quebra-ossos, veneno d’água, dentre outros. São muitas as designações e categorizações para a dengue que, desde o seu surgimento, vem-se inserindo em campos específicos de conhecimento. A nomeação do mundo e das coisas é indicativa de realidades criadas. As palavras que representam o mundo e as coisas que nos rodeiam não são aleatórias e dizem mais de nós do que se imagina. Carregam a marca do nosso tempo – e com as doenças não seria diferente. Assim, o ato de nomear, aqui no nosso caso, a (ou o) dengue (ver boxe ao fim deste capítulo), também é uma forma de criar a realidade. Esse ato não se dá num vácuo; tem um contexto histórico, social, cultural e essencialmente político em que há, explícita ou implicitamente, a correlação com fatores como: clima e trópicos; vetores e as formas de transmissão da doença; ondas epidêmicas e reemergência das doenças; negligência e seusdeterminantes sociais; desenvolvimento social e econômico; e a pobreza (causa e consequência). E a lista continua... Não se pretende, aqui, fazer uma genealogia do conhecimento em dengue, nem aprofundar as questões etimológicas dos termos e nomeações da doença, mas sim uma breve apresentação dos contextos históricos, culturais e políticos da polissemia1 da doença. Dessa forma, o objetivo é refletir sobre a nomeação da dengue desde sua descoberta como problema de saúde e doença tropical no arcabouço da medicina tropical, depois, mais tarde, como doença reemergente na saúde internacional, até hoje, como doença negligenciada na saúde global. Levantam-se algumas questões: quais são os possíveis modelos teóricos subjacentes às formas explicativas da doença e suas nomeações? Quais são as implicações epistemológicas2 para o conhecimento sobre a dengue? Como essas indagações são extremamente amplas, e neste capítulo se desenvolve uma análise exploratória, não se pretende aqui dar respostas, mas sim iniciar uma reflexão crítica sobre a temática. Finalmente, advoga-se em prol da revalorização das ciências humanas e sociais, para além do conhecimento puramente biomédico, no auxílio à superação das principais barreiras do conhecimento sobre a dengue no cenário atual. O ato de nomeação como construção do mundo Desde tempos remotos, o ato de nomear o mundo, e suas implicações, tem sido pensado por grandes filósofos e linguistas. Michel Foucault (1996), pensador do século XX, mostra como, na história da humanidade, a linguagem deixa de ser a escrita material das coisas e passa a ter seu espaço no “regime geral dos signos representativos” (Foucault, 2002: 59). Nesse movimento, nasce o discurso. Este contém procedimentos que tendem ao controle e, sobretudo, a princípios de classificação, de distribuição, e de ordenação das coisas e do mundo. Por nomeação entende-se aquilo que Taylor (1997) define como atribuição de um nome. Para o autor, todos nós somos inseridos numa comunidade linguística que preexiste a nós mesmos. Aprendemos as palavras, a estruturação das frases e a linguagem como um todo em contato com não apenas o que nossos familiares falam entre si, como também o que falam quando se dirigem a nós, dando-nos o estatuto de interlocutores. Desse modo, ao recebermos um nome, somos introduzidos dentro da comunidade, cujo discurso recria continuamente a linguagem. Ao se ampliar, então, esse exercício da nomeação, de nomes próprios de indivíduos para nomes de doenças ou de campos de pesquisa, ela pode se tornar uma chave para pensar os processos implicados na formação de categorias de inscrição social das doenças e seus arcabouços teóricos. A nomeação da dengue, portanto, torna-se relevante para se pensar a construção desta enfermidade ao longo da história, nos seus diversos campos de conhecimento, e rastrear, assim, as suas verdades edificadas. Dessa forma, o discurso e a verdade sobre o mundo se misturam, formando um amálgama que se denomina realidade. Foucault (1982) faz cinco assertivas sobre verdade na sociedade moderna: 1) é fruto do discurso científico e anunciada pelas instituições que o produzem; 2) há uma verdade política e outra econômica; 3) apresenta-se de várias formas e é de grande consumo e propagação; 4) é transmitida e controlada por aparelhos políticos e econômicos; e, finalmente 5) é objeto de conflitos ideológicos. Assim, para iniciar uma reflexão, colocam-se algumas questões. As diversas maneiras de se pensar a doença e os contextos nos quais ela se apresenta influenciam a forma como a dengue tem sido nomeada e classificada? Quais são as verdades e relações de poder implícitas nesse processo? Qual seria a episteme3 da dengue e que relação teria com os principais desafios de conhecimento sobre a doença hoje? A nomeação da dengue e seus múltiplos significados Há também menção à nomeação de dengue nos capítulos 2 e 14. A etimologia4 da dengue é bastante controversa. O termo dengue, no sentido de agravo ou doença, nem sempre foi assim empregado. Sua oficialização tem somente trinta anos, pois foi apenas em 1983, séculos após a sua descoberta, que passou a ser utilizado nos documentos oficiais de nomenclatura médica (CIOMS, 1983). Diversos autores têm-se esforçado em traçar não só a origem do termo, como também a origem geográfica do surgimento do vírus como patógeno humano (Vasilakis & Weaver, 2008). A localidade, a época e a cultura nas quais o vírus surge como problema de saúde para os seres humanos são cruciais para a forma como será nomeado. Dessa maneira, há forte relação entre as primeiras EPIDEMIAS da doença com a denominação que se cria para o patógeno e a enfermidade que ele provoca. No entanto, o local e a data de origem do termo dengue ainda não são consensuais, e as suposições em torno da etimologia e da epidemiologia da enfermidade se cruzam na história. A origem geográfica do vírus dengue tem sido objeto de intensa especulação. Alguns defendem que veio da África, onde também teria se originado seu principal transmissor, o mosquito vetor Aedes aegypti. No entanto, estudos ecológicos e sorológicos, bem como análises filogenéticas sugerem a origem asiática (Vasilakis & Weaver, 2008). Independente de sua procedência, o vírus provavelmente saiu da floresta para o ambiente peridomiciliar simultaneamente ao desmatamento e ao desenvolvimento de assentamentos humanos (Gubler, 1997). Para maior aprofundamento sobre a biologia dos vetores da dengue, conferir o capítulo 3. Os registros mais antigos advêm de documentos de uma doença clinicamente compatível5 com dengue que ocorreu na China durante a dinastia Chin (265-420 d.C.) no século III. Mais tarde, informações semelhantes foram relatadas durante as dinastias Tang (610 d.C.), no século VII, e Sung do Norte (992 d.C.), no século X (Gubler, 1997). Nesses documentos estava descrita uma doença denominada veneno d’água, assim chamada em virtude da sua relação com insetos voadores associados à água e de sua descrição clínica, que incluía febre, erupção cutânea, ARTRALGIA, mialgia (dor muscular) e manifestações hemorrágicas. Depois de quase sete séculos sem registros históricos, surgiram relatos de doença semelhante à dengue nas Antilhas Francesas, em 1635, e no Panamá, em 1699 (Gubler, 1997; Anonymous, 2006; Vasilakis & Weaver, 2008). Um século mais tarde (1779-1788), a doença começa a ter ampla distribuição nos trópicos e há registros na Batavia (atual Jacarta), Cairo, Filadélfia, Cádiz e em Sevilha, Espanha, sugerindo a ocorrência de uma das primeiras epidemias de dengue (ou enfermidade similar) no mundo, que pode ter atingido proporções pandêmicas em 1788. Essa distribuição generalizada coincidiu com o aumento do comércio global, em especial com as grandes colonizações e o tráfico de escravos. Assim, deflagraram-se importantes epidemias de dengue nos três continentes (Ásia, África e América do Norte), em terras recém- colonizadas. Registros históricos indicam também que entre 1823 e 1916 uma segunda onda de epidemias cruzou o mundo, da África para a Índia e da Oceania para as Américas (Weaver & Vasilakis, 2009). Considerando o contexto do surgimento dessas primeiras epidemias, Gubler (1997) levanta algumas hipóteses em torno da nomeação da doença. Segundo ele, há autores que consideram que o primeiro uso do termo dengue tenha ocorrido no Novo Mundo, durante a epidemia de Cuba em 1828. No entanto, esse achado tem sido amplamente questionado. Afirma também que outros autores relatam que, em 1801, a rainha da Espanha, María Luisa, já havia se referido à doença como dengue em cartas arquivadas no Palácio Real de Madrid, na Espanha. Também se supõe que o termo dengue seja originário do swahili, um dos idiomas falados em Zanzibar, na África (Gubler, 1997). Há ainda registros de epidemias em 1823 e em 1870 na costa leste africana, onde a doença era chamada de ki-dinga pepo que, segundo Christie, significava “uma doença caracterizada por sintomas repentinos, como cãibras causadas por espíritos malignos” (apud Gubler, 1997: 6-7).Essa denominação teria originado os termos ding ou denga, também utilizados para se referir à enfermidade naquelas epidemias. Gubler (1997) levanta hipóteses sobre o termo denga, que teria entrado no Caribe e se originado do comércio de escravos para o Novo Mundo, onde, durante a epidemia de St. Thomas em 1827, a doença foi denominada febre dandy ou o dandy. Esses nomes estão associados à rigidez no movimento das pessoas afetadas pelas graves dores articulares e musculares provocadas pela enfermidade. Quando a doença chegou à Cuba durante a epidemia de 1828, passou a ser chamada de dunga, que, mais tarde, transformou-se em dengue. O termo dengue, desde então, foi universalmente adotado e assim permaneceu (Gubler, 1997; Vasilakis & Weaver, 2008). Já Halstead (2008) afirma que a doença tem sido historicamente relacionada ao cambaleio (staggers), à tontura e até ao embebedamento. No idioma espanhol do século XVIII, o vocábulo se relaciona com melindre e trejeitos afetados – sentido que possivelmente esteve, por metonímia, na raiz do nome da doença, em referência à prostração das vítimas. Especula-se ainda que a palavra dengue seria de origem ameríndia, na medida em que a enfermidade foi identificada no Peru em 1827, derivado do quíchua, ou quéchua. Existem também outras hipóteses, menos prováveis, de que o termo dengue tenha origem na língua árabe (Machado, 1977; Rezende, 1997). Assim, a doença tem sido conhecida por diversos outros nomes ao longo da história (Quadro 1), refletindo distintas etimologias, geografias e culturas. Quadro 1 – Termos utilizados para descrever doenças compatíveis com dengue durante epidemias ocorridas no mundo Termo Local/Período Veneno d’água China, 992 Coup de barre Antilhas Francesas, 1635 Mal de genoux Cairo (Egito), 17791 Bengasi, Trípoli (Líbia), 18562 Knockelkoorts Batavia (Jacarta), Indonésia, 1779 Escarlatina reumática Filadélfia (EUA), 1780 Bilious remitting fever Breakbone fever Filadélfia (EUA), 1780 Abu rocab Cairo, c. 1780 La piadosa Cádiz/Sevilha (Espanha), 1784-1786 Dengue Espanha, 1801 Ki dinga pepo, denga1 Zanzibar (África Oriental), 18231 ou c. 18802 Ephemeral fever Calcutá (Índia), 1824 Febre dandy/ dandy, bouquet St. Thomas (Ilhas Virgens), 1827 Dunga/Dengue Cuba, 1828 Febre de polca3 Brasil, 1845-1849 Fièvre des dates Jedá (Arábia Saudita), 1847-1856 Bonon Havaí 1847-1856 Trancazo África Oriental, 1870 Baridiyabis África Oriental, c. 1870 Homa mguu África Oriental, c. 1870 Abou-ndefu África Oriental, c. 1870 Fièvre rouge, giraffe Síria, 1870-1873 Three-day or seven-day fever Índia, 1909 ‘Ban-’sha (ou ‘ban-’sa) Taiwan, 1916 Five-day fever Indonésia, 1960 Dengue Council for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS/OMS), 1983 1 Cf. Gubler (1997); 2 cf. Vasilakis & Weaver (2008); 3 há autores que afirmam que o termo não descreve a dengue (Vasilakis & Weaver, 2008). Fontes: Adaptado de Gubler, 1997; Vasilakis & Weaver, 2008. No século XVIII, a denominação febre quebra-ossos (do inglês breakbone fever), foi cunhada por David Bylon, médico que primeiro observou e descreveu a epidemia de 1779 em Jacarta, na Indonésia. Logo depois, durante a epidemia de 1780 na Filadélfia, o médico americano Benjamin Rush, um dos fundadores da antiga colônia americana, ficou famoso por divulgar o termo. Outras expressões para designar a enfermidade incluem la dengue ou o termo médico mais formal febre remitente biliosa (do inglês bilious remitting fever) (Vasilakis & Weaver, 2008). Termos para a forma grave da doença incluem infectious thrombocytopenic purpura ou febre hemorrágica de Cingapura ou febre filipina, ou tailandesa (Halstead, 2008). Na literatura médica, a nomenclatura foi acrescida de novos termos para a doença, tais como febre epidêmica, febre reumatismal, febre epidêmica eruptiva, febre articular exantemática, febre reumática eruptiva, escarlatina reumatismal, artrodinia, entre outras. O termo dengue se sobrepôs aos demais, passou para o inglês e para o francês, e se universalizou. Já em 1839, foi o nome escolhido por Dickson para o seu livro sobre a história, a patologia e o tratamento da doença. Em 1869 foi adotado na Inglaterra pelo London Royal College of Medicine (Rezende, 1997). A dengue chegou ao Brasil na metade do século XIX. Os primeiros relatos da doença ocorreram em 1846, no Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Na época, era conhecida por outros nomes, como polca, febre de polca (em alusão à dança em moda na época), patuleia e febre eruptiva reumatiforme. Outras epidemias de dengue teriam atingido São Paulo em 1851, 1853 e em 1916, com a designação de urucubaca (Silva, Mariano & Scopel, 2008). No contexto brasileiro, a palavra dengue passou do espanhol para o português inicialmente com a acepção de melindre, manha, faceirice, afetação e, depois designou a doença. Chernoviz no seu Dicionário de Medicina Popular refere-se à epidemia “febre de polca” que ocorreu no Rio de Janeiro por volta de 1846. Identificou-a corretamente, citando sua sinonímia, incluindo-se dengue, nome pelo qual já era conhecida nas Antilhas. No entanto, autores como Christie acreditavam que o termo ainda não se referia à dengue. A incorporação da palavra dengue na língua portuguesa (na acepção de doença) se encontra consignada na primeira edição do dicionário de Cândido de Figueiredo, de 1899. Desde então, o termo passou a integrar o vocabulário médico português, a exemplo do que ocorrera em inglês, francês e alemão (Rezende, 1997; Vasilakis & Weaver, 2008). Assim, nesse contexto histórico, uma nova relação entre os seres humanos e a dengue foi-se delineando, principalmente com o advento da Segunda Guerra Mundial, que trouxe imensas mudanças sociais, ecológicas, demográficas, epidemiológicas e políticas. Tais mudanças propiciaram a criação de especialidades científicas que estudaram em maior profundidade a doença, seu AGENTE ETIOLÓGICO e as diversas formas de transmissão, pois sua ETIOLOGIA viral e a transmissão por mosquitos só foram determinados no século XX. O capítulo 6 trata da modelagem matemática relativa à transmissão da dengue. Após o fim da Segunda Guerra, a urbanização descontrolada associada à intensa mobilidade humana assim como a inadequação de habitações, de sistemas de distribuição de água, esgoto e gestão de resíduos contribuíram para que o vetor Ae. aegypti6 alcançasse altas densidades. Com isso, a dispersão dos sorotipos do vírus entre diversas regiões geográficas foi facilitada, promovendo, a partir do século XX, situação de endemicidade em diversos países do mundo, como é o caso atual do Brasil. Descrição mais detalhada sobre os sorotipos virais pode ser encontrada no capítulo 7. Assim, após muitas idas e vindas com relação à nomeação da doença, finalmente em 1983, a denominação de dengue (no sentido de agravo) é oficializada e se consagra ao se incorporar à Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde,7 da Organização Mundial da Saúde (OMS) (CIOMS, 1983). Por uma construção social e política da problemática Instituições que financiam pesquisa em doenças tropicais e negligenciadas no mundo têm suscitado cada vez mais a importância das ciências humanas e sociais para compreensão de seus processos de disseminação, prevenção e controle. Ao longo dos anos tem-se valorizado as contribuições da pesquisa em ciências humanas para o campo da saúde relativo à ampliação da discussão dos determinantes sociais, da medicina tropical, dos serviços e práticas em saúde, economia, ética, entre outras temáticas (Sommerfeld, 2003). Alguns autores, inclusive, substituem o termo “pesquisa em doenças” (paradigma patogênico) por “pesquisa em saúde” (paradigma de saúde) para expressar essa mudança (Porter, Ogden & Pronyk, 1999). Como será detalhado na próxima seção, a medicina tropical, desde sua origem e em sua essência, já nasceu interdisciplinar. Patrick Manson, fundador da disciplina, considerava que, mais do que qualquer outro ramo da medicina, a medicina tropical édependente de diversas “ciências colaterais” (Warren, 1990). No entanto, as ciências humanas e sociais podem ser compreendidas para muito além de somente uma contribuição “colateral”. Apesar de sua importância e impacto na saúde, pesquisas sobre a dengue recebem menos de 15% do financiamento global em comparação à malária (Moran et al., 2011). Em resposta à falta de atenção à dengue na saúde global, várias organizações, entre as quais a OMS, incluíram-na em suas listas de doenças tropicais negligenciadas (WHO, 2010). Desde 2003, a OMS tem optado por uma abordagem integrada da saúde, em que “atenção e ação são dedicadas às necessidades de saúde das populações afetadas por doenças tropicais negligenciadas, em vez de focar em doenças individuais” (WHO, 2010: 7). Para detalhamento dos vários aspectos relacionados à educação e suas práticas nas ações de prevenção e controle da dengue, consulte os capítulos 15 e 17. No Brasil, o Programa Nacional de Controle da Dengue (PNCD), vinculado ao SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS), reconhece que a prevenção da dengue não se deve restringir à área da saúde; ao contrário, espera-se que seja abordada também por outras áreas do conhecimento como a educação, a informação e a comunicação, entre outras. Contudo, o trabalho com o vetor mostra que as estratégias dessas áreas, junto com os diferentes atores sociais envolvidos no processo, são fundamentais para a implementação de ações coordenadas e compartilhadas de prevenção e controle (Chiaravalloti-Neto, Moraes & Fernandes, 1998; Dias, 2000; Augusto, Carneiro & Martins, 2005; Pimenta, 2007, 2008). De controle de vetores, passando pelo diagnóstico e manejo de casos, até o desenvolvimento de vacinas, um conjunto de pesquisas se encontra atualmente em curso em diversos países (WHO, 2009). Alguns exemplos concretos de ações de comunicação estão no capítulo 16. Diagnóstico laboratorial e clínico da dengue são tratados, respectivamente, nos capítulos 9 e 11. O manejo e o tratamento dos casos de dengue são temas aprofundados nos capítulos 10 a 13. O desenvolvimento de vacinas contra dengue é detalhado no capítulo 8. De acordo com Sommerfeld (2003), a pesquisa social, econômica e comportamental pode ser valiosa em vários níveis para uma melhor compreensão das dinâmicas necessárias para a prevenção e controle das doenças negligenciadas. Explicitam as contingências sociais, econômicas e políticas que fazem que certos grupos sociais estejam mais vulneráveis que outros, apontando as diferentes formas de vulnerabilidade e como esta condição afeta a disseminação de doenças em contextos específicos. Nos últimos anos, foi gerada uma vasta produção teórica na área de educação em saúde sobre as possibilidades e contradições do sistema vigente de disseminação da informação em saúde. Apesar disso, ainda se continua a dar maior ênfase, como salientam Meyer e colaboradores (2006), à simples transmissão do conhecimento especializado. Esse aspecto permeia não apenas as campanhas de educação em saúde no Brasil, mas o modelo de transferência do conhecimento entre países do Norte e do Sul. O desenvolvimento dos países tem-se pautado no crescente papel que o conhecimento e a informação ocupam nas organizações de poder, resultando em divisão internacional do saber: aqueles que detêm os processos de ciência, tecnologia e informação versus os que dependem dos primeiros. Os detentores dos meios de informação são tidos, no campo internacional hegemônico, como países desenvolvidos, doadores (donor countries) ou do Norte; o restante é considerado como formado por países subdesenvolvidos, países recipientes (recipient countries), ou do Sul. Repete-se, assim, o mesmo processo colonizador de mercadorias, só que atualmente transfere-se a “mercadoria de informação” (Pimenta, 2007). As práticas sanitárias que ganharam hegemonia no século XX se inscrevem nos modelos clássicos de explicação do processo saúde-doença, pressupostos que sustentam a prescrição de comportamentos tecnicamente justificados como únicas escolhas possíveis para o alcance do bem-estar de todos. Assim, essas prescrições ou receitas educativas, em conjunto com uma lógica da racionalidade biomédica, muito comum nos programas de controle de doenças infecciosas e parasitárias e em campanhas de saúde pública em geral, “assume[m] que, para ‘aprender o que nós sabemos’, deve-se desaprender grande parte do aprendido no cotidiano da vida” (Meyer et al., 2006: 1.336). Paulo Freire, na década de 1970, já evidenciava os perigos dessa educação bancária e preconceituosa (Freire, 1987). A OMS denomina esse abismo de know-do gap, ou seja, reconhece que a aquisição de um conhecimento específico não é condição suficiente para provocar mudança de comportamento (WHO, 2004). Por exemplo, o médico que fuma, apesar de conhecer os efeitos nocivos do cigarro. Dessa forma, tem-se realizado estudos para melhor compreender o que influencia o comportamento com relação a seus hábitos de saúde. Porém, as pesquisas na área ainda tendem a se firmar na noção de transferência do conhecimento. Transferência essa que se dá dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento, entre os detentores de conhecimento para a população leiga, e tende a se fixar em mudanças individuais de comportamento nas quais a saúde é focada apenas de forma isolada, relegando para segundo plano os aspectos macrossociais, econômicos e culturais (Pimenta, 2007). Essa ética individualista e esse tipo de transferência do conhecimento podem ter efeitos perversos na disseminação de informação e na educação em saúde. O conceito de efeitos perversos na sociologia não se relaciona com a conotação moral do termo perverso, mas com a autonomia dos resultados que as ações de diferentes integrantes podem ter – independentemente de suas intenções. Trata-se de efeitos não desejados, que criam condições adversas para saúde humana, produzidos por comportamento humano bem-intencionado. Tais efeitos podem resultar da agregação de várias ações individuais; cada qual apropriada em si, mas, quando vista em seu conjunto, com potencial para produzir resultados diferentes das intenções e vontades de seus atores isoladamente (Briceño-León, 2007). Um exemplo desse efeito perverso no controle da dengue é o uso indiscriminado de inseticidas e a consequente disseminação de resistência. Esse uso de cunho assistencialista que atribui ao inseticida a principal ferramenta para combate à infestação por Ae. aegypti pode gerar uma falsa sensação de segurança nas pessoas, dificultando ainda mais a prevenção da doença. Para detalhamento sobre a resistência a inseticidas, consulte o capítulo 4. No nível macro, tais efeitos perversos têm-se configurado na saúde pública e na disseminação da informação entre países e dentro deles, quando o Norte distribui informação atualizada e verdadeira para o Sul, que parece sempre carecer de tecnologia e conhecimento científico suficientes para estabelecer suas próprias prioridades e objetivos. A recusa de evidenciar as influências sociais em saúde tem produzido uma série de efeitos perversos; é crescente o total de países que se veem reféns e dependentes do consumo indiscriminado de mercadorias (de informação ou não) advindas dos ditos países desenvolvidos. Esquece-se dos diferentes contextos sociais e culturais de cada país, suas especificidades e vontades políticas em sua autonomia social. No nível micro, no caso da dengue, outro exemplo desse efeito perverso é a já bastante criticada postura de “culpabilizar a vítima” (Valla, 1993; Oliveira, 1998) por suposta falta de limpeza de casas, quintais e jardins. Comumente presente, às vezes de forma subliminar, nas grandes campanhas de controle da doença, alegam-se falta de consciência da população e consequente ausência de ajuda no combate aos focos de mosquito. Os efeitos são apatia e não apropriação das responsabilidades, direitos e deveres, tanto da esfera privada quanto da pública, num jogo de empurra-empurra em que ninguém quer pegar ou assumir a problemática. Como se sabe, questõesestruturais de condições de vida e dos determinantes sociais estão por trás dessa discussão, evidenciando problemáticas atreladas a diversas outras esferas, como saneamento básico, abastecimento de água e limpeza pública, muitas vezes diretamente relacionadas à distribuição desigual da verba pública. No capítulo 19 discute-se em mais detalhe a influência de tais fatores na distribuição e agravamento da doença. Farmer e colaboradores (2006) entendem essa ausência de fatores biossociais relacionados à área da saúde como uma questão de violência estrutural. Os autores expõem o fenômeno da dessocialização das perguntas na ciência, ou seja, a tendência de se levantar somente problemas técnicos ou biomédicos sobre o que são, de fato, questões biossociais. Eis o alerta: “Podemos falar de uma história natural de qualquer uma destas doenças [doenças negligenciadas], sem abordar as forças sociais, incluindo, racismo, poluição, falta de moradia e pobreza, que afetam o curso de ambos, indivíduos e populações?” (Farmer et al., 2006: 1.686, tradução minha). Assim, fatores sociais e políticos inerentes às estruturas organizacionais são violentos, na medida em que podem desfavorecer as populações vulneráveis, e partem de um sistema que impede indivíduos, grupos ou sociedades de alcançarem seu mais pleno potencial. Portanto, enquanto os serviços em saúde forem vendidos como mercadorias, irão permanecer disponíveis somente para aqueles que podem adquiri-los, desrespeitando o direito universal à saúde e perpetuando a violência estrutural (Farmer et al., 2006). Esse processo também já foi descrito por Marx (1978) como alienação, reificação ou coisificação, e tem como uma de suas consequências acreditar que é possível tomar posse, pela via do consumo de mercadorias e serviços, de valores muito desejados (saúde, felicidade, amor, satisfação etc.). Assim, por exemplo, a educação vira uma coisa, ou seja, um fim em si, confundindo-se com a posse de diplomas passíveis de compra em um mercado de ensino, do mesmo modo que a saúde se compra com remédios ou equivalentes (Lefèvre, Lefèvre & Madeira, 2007). A concepção de homem como cidadão de direitos foi gradativamente estabelecida no período da modernidade, em decorrência dos ideais emanados do Iluminismo, e passou a ser adotada pelo mundo ocidental especialmente após a Revolução Francesa. No Brasil, como em toda a América Latina, esse estabelecimento aconteceu de forma tardia. Na verdade, o homem nunca alcançou, de fato, o exercício pleno dos direitos na sociedade civil, o que talvez esteja associado à longa duração do escravismo no país. Aqui, por ocasião do Estado de Bem-Estar (se é que essa denominação se aplica à realidade brasileira), foram consagrados alguns direitos com a Constituição de 1988. O SUS e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) são alguns exemplos, definidos pela constituição brasileira com base no direito à cidadania. Contudo, na prática, tais direitos nunca foram completamente efetivados (Lefèvre, Lefèvre & Madeira, 2007). Assim, a saúde hoje é também uma questão de direitos humanos. Do direito universal à saúde. Com relação às doenças negligenciadas, Hunt (2007) afirma que são tanto causa como consequência de violações de direitos humanos. A falha ao respeito a certos direitos, como água, educação, cidadania etc. aumenta a vulnerabilidade de indivíduos e comunidades às doenças negligenciadas, situação que tem importantes implicações em sua prevenção e em seu controle. O próprio Estado pode violar esses direitos humanos por omissão. Portanto, é importante distinguir entre falta de habilidade e falta de vontade política para garantir tais direitos. O Estado sem vontade política para utilizar o máximo de seus esforços em prol do desenvolvimento econômico e social pode estar em violação dos direitos de seus cidadãos (Hunt, 2007). Seja nos trópicos “tristes”, como apontado pelo antropólogo Lévi-Strauss (2001), ou como campo de possibilidades e de cura à “vergonha de si dos brasileiros”, conforme Gilberto Freyre (2005), as artes e literatura podem dar-nos inspiração para criar algo original, transcendendo a noção de trópicos, Terceiro Mundo e de nação doente e subdesenvolvida que tanto persegue as populações do Sul. A antropofagia8 e o movimento antropofágico (Andrade, 1928) podem fornecer pistas sobre a importância da valorização do conhecimento local, bem como a ingestão do outro para criação de um conhecimento próprio e original. Spivak (2010), em seu livro Pode o Subalterno Falar?, alerta para o cuidado de não falar pelo outro. A autora explicita as formas pelas quais os sujeitos do Terceiro Mundo têm sido representados por discursos homogêneos. Spivak discute as implicações da representação desses sujeitos na conjuntura do discurso ocidental e chama a responsabilidade para o combate à subalternidade que, no seu entender, efetiva-se não se falando pelo outro, mas criando mecanismos para que o subalterno se articule e seja ouvido. Portanto, deve-se deixar claro que ideologias e relações de poder estão implícitas nas categorias da doença e na forma de representação do outro doente. Doente tropical, doente do Terceiro Mundo e subalterno, mas acima de tudo, doente. Spivak afirma ainda que, por trás do discurso libertário, podem-se esconder formas de representação do outro oprimido que contribuem para a manutenção de práticas essencialistas e imperialistas que resultam em violência epistêmica cotidiana. Podemos assim também nos questionar: de que forma as doenças tropicais, hoje classificadas como negligenciadas, têm sido utilizadas para representar o país e a nação? É comum falar em prol da população e advogar a favor das doenças negligenciadas para defender estratégias a favor dos pobres (pro-poor), mas de quem se está realmente a favor? Pois, a exemplo do que já se falou para a doença de Chagas, será que haveria mais pessoas vivendo do que morrendo, ou sofrendo, de dengue? O que aconteceria com todo o complexo industrial e científico se essas doenças realmente fossem eliminadas (quiçá erradicadas)? Briceño-León (2005) situa a questão do controle das doenças negligenciadas de uma forma interessante que se deve sempre ter em vista. O autor lembra que governos e outras autoridades são eficientes em aplicar larvicidas, mas não conseguem (ou não querem) prover melhores condições de vida para as populações afetadas. As condições materiais e sociais que originam as chamadas doenças da pobreza não são modificadas. As medidas adotadas para o seu controle não alteram a realidade dessas populações. Não se investiga o porquê da pobreza – considerada uma realidade imutável –, uma vez que se investigam suas consequências e não suas causas e, portanto, a preocupação é somente em gerar intervenções técnicas relacionadas às consequências – e não às causas. Assim, o autor convida a imaginar que, mesmo com o controle eficaz de uma doença, ou com o desenvolvimento de uma vacina; mesmo que a vacina tenha aplicação ampla, gratuita e fácil para toda a população; mesmo produzida industrialmente a baixo custo e disponível nos serviços de saúde para pessoas de países endêmicos que não têm dinheiro para pagar por ela; mesmo superando todos esses fatores complexos, o que teríamos no fim? Teríamos uma população que continua vivendo nas mesmas condições de vida, em casas mal estruturadas, sem abastecimento constante de água e coleta de lixo, coabitando com milhares de mosquitos que se alimentam de seu sangue, mas que não transmitem a doença porque eles estão protegidos com uma vacina de alta tecnologia. É essa a saúde que estamos realmente almejando? (Briceño-León, 2005). Fica a importante pergunta... Boaventura de Sousa Santos (2007) também traz pistas fundamentais para esse olhar para o Sul. O autor argumenta que as linhas cartográficas “abissais” que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem estruturalmente no pensamento moderno ocidental e permanecem constitutivas das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema mundial contemporâneo.A injustiça social global estaria, portanto, estritamente associada à injustiça cognitiva global, de modo que a luta por justiça social global requer a construção de um pensamento “pós-abissal”. Foi nessa linha de pensamento que o autor cunhou o termo “epistemologias do Sul” (Santos & Meneses, 2010), que se fundamenta em três principais eixos: 1) aprender que existe o Sul; 2) aprender a ir para o Sul e; 3) aprender a partir do Sul e com o Sul. Para o autor, o mundo é um complexo mosaico multicultural. Todavia, ao longo da modernidade, a produção do conhecimento científico foi configurada por um único modelo epistemológico – como se o mundo fosse monocultural – que descontextualizou o conhecimento e impediu a emergência de outras formas de saber não redutíveis a esse paradigma. Assistiu-se, assim, a uma espécie de epistemicídio, ou seja, a destruição de algumas formas de saber locais, a inferiorização de outras, desperdiçando-se, em nome dos desígnios do colonialismo, a riqueza de perspectivas presente na diversidade cultural e nas multifacetadas visões do mundo. Trata-se, pois, de propor, considerando a diversidade do mundo, um pluralismo epistemológico que reconheça a existência de múltiplas visões que contribuem para o alargamento dos horizontes da mundaneidade, de experiências e práticas sociais e políticas alternativas. Essa discussão é de extrema relevância dentro e fora do campo da saúde, em especial para as doenças negligenciadas, pois o pensamento colonial e abissal marcou – e marca até os dias atuais – toda a história de produção do conhecimento na área. Um diálogo com as ciências humanas e sociais pode auxiliar, portanto, a libertação desse epistemicídio e promover um alargamento de horizontes de visão e de nomeação das práticas e pesquisa em saúde, numa construção realmente social e política da problemática da dengue e da saúde. Medicina tropical, saúde internacional e saúde global: a transição para o negligenciamento Desde o início do século XIX, a dengue é classificada como doença tropical9 e isso tem profundas consequências na forma de se pensar a sua etiologia, transmissão, bem como suas possibilidades de prevenção e de controle. Mais tarde, no século XX, com um panorama epidemiológico, econômico e social totalmente distinto, áreas como saúde pública,10 saúde internacional e saúde global11 passam a nomear as doenças infecciosas de diversas formas, reconfigurando as problemáticas expostas por essas áreas do conhecimento (Quadro 2). Quadro 2 – Comparação entre áreas do conhecimento e a classificação de doenças infecciosas Área do conhecimento Foco Classificação Período Medicina tropical Clima, posicionamento geográfico (linha do Equador) das doenças. • Doença tropical Século XIX até dias atuais Saúde pública Saúde da população, justiça social e equidade, dados e evidências para apoiar a ação; prevenção x cura. • Doenças infecciosas • Doenças transmissíveis Meados do século XIX até dias atuais Saúde internacional Doenças e condições (guerra, catástrofes naturais) dos países de renda média e baixa; controle de epidemias que transcendem as fronteiras entre nações (intergovernamental). • Doença emergente e reemergente • Doença transmitida por vetor (vector-borne disease) Fim do século XIX Saúde global Globalização e desenvolvimento; pobreza; ações de cunho global, acima dos interesses dos Estados-nações; inserção de novos atores (mídia, organizações não governamentais, empresas privadas). Requer essencialmente abordagens interdisciplinares. • Doença negligenciada • Doença negligenciada da pobreza • Doença promotora da pobreza • Doença infecciosa da pobreza* Década de 1990 até a atualidade * Recentemente, esse termo tem sido designado para se referir às doenças negligenciadas. Alguns autores, inclusive, denominam essas doenças no contexto de um novo movimento da saúde global, o Uma Saúde (do inglês, One Health). O movimento é definido como “o esforço de colaboração de várias disciplinas – trabalhando localmente, nacionalmente e globalmente – para alcançar a saúde ideal das pessoas, dos animais e do meio ambiente” (The American Veterinary Medical Association, 2008; Zhou, 2012). Fontes: Adaptado de Koplan et al., 2009; Brown, Cueto & Fee, 2006. O Quadro 2 apresenta uma comparação e recorte didático artificial das áreas do conhecimento e suas formas de nomeação das doenças infecciosas. As classificações das doenças devem ser compreendidas em seu continuum histórico, pois as áreas do conhecimento são interdependentes e relacionadas entre si. Almeja-se apenas resumir e apontar tendências de se nomear e classificar as doenças infecciosas nas respectivas áreas de conhecimento. A medicina tropical e as doenças tropicais O conceito de doenças tropicais, que surgiu no campo da medicina tropical, fundada pelo médico inglês Patrick Manson (1844-1922), deu início a uma geração de conhecimento ao redor de tais moléstias, das pessoas e países afetados, das nações de origem e das instituições que se dedicavam a estudá-las – numa construção coletiva que pode ser denominada de mentalidade tropical (Le Goff, 1988). Essas doenças mais tarde também nomeadas doenças negligenciadas têm uma longa história e podem ser remontadas a relatos da Bíblia e de outros textos sagrados, como o Talmude e o Bhagavad-Gita. Encontram-se também descrições detalhadas dessas enfermidades, por exemplo, em obras de Hipócrates e papiros egípcios, estes últimos datando por volta de 1.500 a.C. (Hotez, Fenwick & Savioli, 2009). Segundo Löwy (2006), a medicina tropical e as doenças tropicais servem de elemento de interpretação de região e território. As doenças tropicais mobilizam diferentes áreas do conhecimento, como a engenharia sanitária, entomologia, parasitologia, química, biotecnologia, além da medicina. As doenças permitem pensar questões como a divulgação e circulação das ideias científicas e sua aplicabilidade. Do mesmo modo, impulsionam a adoção de medidas e a elaboração de políticas de controle, o que movimenta a vida das pessoas e interfere na cultura local (Löwy, 2006; Schweickardt, 2011). O conceito doenças tropicais foi problemático desde seu nascimento no século XIX, pois incorporava doenças que não se restringiam somente aos trópicos. A malária, por exemplo, considerada a doença tropical por excelência, estava presente também no sul da Europa e dos Estados Unidos. O próprio Manson percebia essa contradição, afirmando que o conceito era “mais conveniente do que exato”, definindo-as, então, como “conjunto de doenças que ocorriam nos trópicos” (Worboys, 1996: 195). Assim, segundo Worboys (1996), a medicina tropical seria uma categoria residual associada à prática médica colonial que justificaria a criação do termo doença tropical (Schweickardt, 2011). O próprio termo trópico também sugere generalização e homogeneização de sua realidade geográfica e cultural, pois esconde os diferentes trópicos que se diferenciam no tempo e no espaço. O conceito de medicina tropical, cunhado no século XIX (Quadro 2), tinha como objetivo tornar os trópicos, além de habitáveis, rentáveis, criando um verdadeiro espaço de experimentação e regulamentação. Foi um modo de os países colonizadores se apropriarem dos trópicos para “conhecer as pessoas e seu meio ambiente, e depois controlá-las” (Löwy, 2006: 39). No entanto, num país como o Brasil essa não foi tarefa simples, pois, no início do século XX, já havia aqui instituições de pesquisa consolidadas e cientistas que participavam de comunidades acadêmicas internacionais (Löwy, 2006; Schweickardt, 2011). A pesquisa sobre doenças tropicais no país tem grande tradição no âmbito da saúde pública e hoje representa parcela relevante da produção científica brasileira, com impacto internacional (Souza, 2010; Adams, Gurney & Pendlebury, 2012). Destaca-se o Instituto de Manguinhos, atual Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), espaço importante de pesquisa que congrega a escola de medicina tropical e microbiologia pasteuriana. Uma das áreas em que mais se investiu desde
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