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ANTROPOLOGIA SOCIAL Gabriela Felten da Maia O relativismo cultural Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Analisar a emergência do relativismo cultural no tensionamento dessa corrente com o etnocentrismo. � Listar as ferramentas metodológicas que permitiram praticar o rela- tivismo cultural. � Descrever a noção de cultura proposta por Franz Boas, expoente do relativismo cultural. Introdução O relativismo é uma corrente que se contrapõe ao etnocentrismo a partir da compreensão dos comportamentos, pensamentos e sentimentos do outro conforme sua cultura. Trata-se de um procedimento antropológico por excelência, porque tenta demonstrar que toda cultura opera como uma lente que condiciona a visão de mundo dos indivíduos no contexto da cultura em que estão inseridos. Esse processo possibilita que se entenda que cada cultura é singular e diferente. Neste capítulo, você estudará o relativismo cultural, uma perspec- tiva fundamental para compreender as diferenças e a diversidade; as ferramentas metodológicas para praticá-la, a partir da antropologia; bem como a noção de cultura por Franz Boas, um importante expoente dessa discussão. Descentramento do olhar A curiosidade do ser humano sobre si mesmo sempre acompanhou a história, mas recentemente se tem uma consciência da alteridade que marca o surgi- mento de um campo do saber sobre a diferença. A compreensão da diferença como diversidade, não hierarquia, somente será possível diante do processo de estranhamento e reflexividade que a acompanha (LAPLANTINE, 2003). Uma atitude reflexiva proporciona um descentramento do olhar para que se entenda a cultura do outro a partir da lógica interna da cultura a ser analisada, porém, no olhar do outro, encontra-se o ponto de partida. De acordo com Laplantine (2003), o estudo de sociedades inicialmente distantes instaura um projeto antropológico em que: [...] a perplexidade provocada pelo encontro das culturas que são para nós as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma modificação do olhar que se tinha sobre si mesmo. De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos à dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. A experiên cia da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa aten- ção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos “evidente”. [...] O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhe- cer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única (LAPLANTINE, 2003, p. 21). Nesse contexto, a diferença torna-se diversidade, havendo a possibilidade de se ver o mundo com espanto e curiosidade, quando se estende o olhar como um binóculo para observar para além das próprias lentes. Margaret Mead foi uma importante antropóloga e pesquisadora da escola estaduni- dense Cultura e Personalidade, bem como está inserida na discussão sobre cultura e relativismo, propondo que se pense em uma etapa do curso da vida a partir da perspectiva transcultural. Entre suas obras, está A adolescência em Samoa, publicada em 1928. Em homenagem à sua contribuição para a antropologia, foi realizada a série televisiva Strangers Abroad, exibida na década de 1990. No link a seguir, você pode assistir ao episódio Maioridade (Coming of ages) e conhecer um pouco de sua trajetória, sua pesquisa e a forma como praticou o relativismo como uma ferramenta para a análise cultural. https://qrgo.page.link/3TwrX As correntes teóricas constituídas na antropologia pós-evolucionismo tentaram descrever os modos de pensar e agir que consideravam a variação O relativismo cultural2 cultural dentro dos próprios termos, bem como marcam a ruptura com a centralidade da cultura do eu no pensamento europeu sobre a diferença. Já o efeito epistemológico é a separação dos olhares de dois sujeitos: o de etnógrafo (o eu) e o do nativo (o outro). O outro torna-se um porta-voz de sua cultura, e o etnógrafo aquele que olha a partir de uma perspectiva de olhar distanciado, analisando as diferenças culturais. Portanto, os estudos realizados começam a observar o contexto em que vivem as sociedades analisadas como um importante fator para a explicação da cultura. Assim, segundo Rocha (1988, p. 62): [...] o “outro” começa a deixar de ser um simples retrato dos momentos pri- mitivos do “eu” e passa a ocupar um lugar mais destacado como algo que transforma a teoria antropológica e pode, de muitas maneiras, servir para dimensionar a própria sociedade do “eu”. No início do século XX, na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, a antropologia desenvolveu importantes discussões que trouxeram a relativização e a ruptura com o modelo evolucionista de cultura. As escolas que emergiram nesse contexto criticam a antropologia de gabinete, um termo utilizado para designar a tradição clássica do evolucionismo, pois ela não consegue mais pensar os dados empíricos. A ida ao campo começa a se tornar cada vez mais necessária, sendo uma experiência fundamental para o conhecimento etnográfico. Portanto, as escolas antropológicas posteriores criticaram os métodos de investigação e as conclusões de teses evolucionistas, reagindo à ideia de sociedades escalonadas em termos hierárquicos como superiores e inferiores. Elas denunciavam o etnocentrismo do pensamento antropológico ao utiliza- rem as características da sociedade europeia como critérios comparativos para análise do desenvolvimento cultural de sociedades. Assim, as críticas revisavam a ideia de um evolucionismo cultural linear e questionavam a im- possibilidade de encontrar as leis universais do desenvolvimento cultural ou que seus fenômenos tenham se desenvolvido do mesmo ponto de partida. Já a extensão dessas comparações era considerada muito vasta, tanto geográfica como temporalmente, resultando em hipóteses dedutivas bastante frágeis. Essa metodologia era vista como arbitrária, porque escolhia os elementos culturais a serem isolados para análise. Os críticos entendiam que era necessário encontrar uma compreensão particular e minuciosa das culturas observadas, em vez do isolamento de elementos. Assim, a cultura seria uma totalidade que não poderia ser desmem- 3O relativismo cultural brada, tornando-se possível olhar a sociedade do outro como ela se manifesta e a partir do ponto de vista de quem participa dela. Por isso, a ideia de contexto é importante para as escolas ulteriores. Especificidade da prática antropológica As críticas à abordagem comparativa dos evolucionistas culturais levaram à crítica da etnologia posterior, entre os anos de 1880 e 1920, por Franz Boas e Bronislaw Malinowski, a partir de uma outra compreensão do estudo das culturas como totalidades. A etnografia torna-se um importante método para desenvolver tal empreendimento, um estudo sistemático das culturas, para realizar a compreensão da lógica própria de cada sociedade em seus contextos. A abordagem antropológica para o estudo dos seres humanos ocorre por meio dos significados, pelos quais os indivíduos produzem, percebem e in- terpretam fatos e ações, sem os quais estes não teriam sentido para a ação humana. Portanto, somente é possível compreender ao se comunicar com as pessoas a partir da convivência por algum tempo, realizando uma experiência de imersão que possibilite entender as estruturas de significação que mostrem como e porque, em uma situação específica, determinados significados e ações são produzidos. O que interessa não é a interpretação e explicação dos fatos independen- temente do contexto de expressão, mas, sim, o modo como os fatos e ações estão sendo interpretados pelos sujeitos, pois nunca são analisados em sua forma real, senão aquilo que os indivíduos transmitem, os sentidos produzidos durante a enunciação. Segundo Geertz(1989), a cultura como um sistema de signos passíveis de interpretação não é: [...] um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os aconteci- mentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles (os símbolos) podem ser descritos de forma inteligível — isto é, descritos com densidade (GEERTZ, 1989, p. 20). Isso significa que a compreensão ocorre a partir de dentro, tal como é percebida pelos atores sociais, e consiste em uma abordagem microssocioló- gica que se atenta ao cotidiano, às práticas dos atores, aos gestos, aos hábitos alimentares, à higiene, às expressões corporais, etc. Trata-se de uma abordagem que possui um modo particular de olhar, apresentando o que não é familiar com curiosidade (LAPLANTINE, 2003). Esse movimento do encontro com O relativismo cultural4 o exótico, estranho ou diferente perpassa a ideia de uma distância que pode ser geográfica ou no limite da própria pele (GEERTZ, 2001). Em um movimento, o encontro foi com sociedades ou grupos que estavam em outros lugares, longes do mundo social do antropólogo, e envolvia um processo de saída de sua sociedade, a ida a uma região distante geograficamente (outros países, em geral, colonizados pelo país de origem do antropólogo) e seu retorno. O olhar distanciado A seguir, veja o exemplo que Malinowski (1978, p. 19) trouxe em sua obra Argonautas do Pacífico Ocidental. Imagine o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamento, numa praia tropical próximo a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer de vista. Tendo encontrado um lugar para morar no alojamento de algum homem branco — negociante ou missionário — você nada tem para fazer a não ser iniciar imediata- mente seu trabalho etnográfico. Suponhamos, além disso, que você seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que o possa auxiliar — pois o homem branco está tempora- riamente ausente, ou, então, não se dispõe a perder tempo com você. Isso descreve exatamente minha iniciação na pesquisa de campo, no litoral Sul da Nova Guiné. Lembro-me bem das longas visitas que fiz às aldeias durante as primeiras semanas; do sentimento de desespero e desalento após inúmeras tentativas obstinadas mas inúteis para tentar estabelecer contato real com os nativos e deles conseguir material para a minha pesquisa. Passei por fases de grande desânimo, quando então me entregava à leitura de um romance qualquer, exatamente como um homem que, numa crise de depressão e tédio tropical, se entrega à bebida. O relato do exemplo anterior está presente no livro Os Argonautas do Pa- cífico Ocidental e demonstra o trabalho do etnógrafo em localidades distantes do contexto da pessoa branca. Tratava-se de um momento de institucionali- zação da disciplina e afastamento dos modelos explicativos do evolucionismo cultural. Por isso, a distinção entre eu-outro resulta também de uma distância que possibilitará a criação de um contexto, uma totalidade que faz pensar em uma cultura e suas especificidades. Esse processo permite que o exótico se torne inteligível às sociedades ocidentais. 5O relativismo cultural O descentramento radical dessa perspectiva implicava uma ruptura com o etnocentrismo, e esse processo tornou-se basilar para o desenvolvimento de um olhar para o outro que possibilita olhar para o mundo com mais curiosidade. Segundo Laplantine (2003, p. 160), “essa experiência de arrancamento de si próprio age, na realidade, como um verdadeiro revelador de si”, portanto, ao olhar para outra cultura, também é possível olhar para a própria cultura com outra perspectiva. As transformações na forma de fazer antropologia começam com Franz Boas, e sua concepção de cultura consolidou o trabalho de campo como central para a antropologia cultural estadunidense. A aproximação empírica, a obser- vação direta de uma realidade, o domínio da língua nativa, a disposição para a escuta e a descrição detalhada dos aspectos culturais foram privilegiados a tal ponto que se considerava difícil realizar uma síntese abrangente, como os evolucionistas faziam. Por isso, seu enfoque recaía sobre a compreensão particular e minuciosa das culturas observadas. Já Malinowski fez trabalho de campo anos depois de Boas, mas apresentou as bases para a antropologia moderna, porque sistematizou a realização da etnografia, em que havia uma convivência intensa e de longa duração com a sociedade estudada. Os elementos culturais não poderiam ser desmembrados do contexto, e sim tomados a partir do todo. Os costumes e as crenças come- çam a ser considerados no contexto integrado, e a pesquisa empírica surge como uma forma de mostrar que as sociedades possuem uma organização que lhes é própria. A fim de se afastarem do etnocentrismo presente no campo antropológico, essas perspectivas trabalharam com a ideia de incomensurabilidade existencial entre eu (etnógrafo) e outro (nativo). Nessa relação, a diferença é produzida a partir da existência de culturas dissociadas, estando ancorada na divisão entre Ocidente e não Ocidente, dado que eram os outros não ocidentais os objetos de estudo da antropologia. Se as fronteiras físicas constituíram esse lugar da diferença, deve-se en- tender que não é preciso realizar essa transposição para considerar o olhar sobre o outro como uma diferença e diversidade. Estranhar o que é familiar, parece banal e constitui seu cotidiano tem sido um importante ensinamento da antropologia, bem como possibilita observar esse familiar e o transformar em exótico. Assim, a viagem pode ser simplesmente lançar um olhar curioso ao redor para conhecer a própria cultura. O relativismo cultural6 Na relação entre exótico e familiar, o estranhamento emerge não apenas para os modos de vida considerados bizarros ou esquisitos, como também para práticas relativamente conhecidas, com as quais se convive na mesma cidade, região ou país. Pensando nessa dimensão dos estudos antropológicos, a análise da sociedade do antropólogo Gilberto Velho (no capítulo “Observando o familiar”, do livro A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social, de Edson de Oliveira Nunes) apresenta algumas de suas experiências de pesquisas em contexto urbano para refletir sobre como relativizar a familiaridade. É uma leitura importante para compreender que estar familiarizado não significa conhecer todos os pontos de vista, as regras e as práticas dos atores sociais. Cultura como particularidade — a contribuição de Franz Boas Franz Boas foi expoente da antropologia norte-americana e inaugurou uma escola de antropologia cultural que influenciou gerações posteriores em cada uma das áreas estudadas por ele: psicologia, linguagem, raça e história. Pre- cursor do relativismo cultural como princípio teórico-metodológico, ele ainda contribuiu para a ênfase da antropologia na complexidade de cada cultura. A série televisiva Strangers Abroad foi exibida na década de 1990 e objetivava apresentar alguns antropólogos importantes que influenciaram tradições e escolas. Por meio da reconstituição da trajetória acadêmica deles, é possível saber mais sobre suas pesquisas, influências e ideias. No link a seguir, você pode assistir ao episódio “As correntes da tra- dição” (The shackles of tradition) para acompanhar a trajetória acadêmica de Franz Boas. https://qrgo.page.link/EFPjc 7O relativismo cultural Na definição do objetivo da pesquisa antropológica, Boas introduz a noção de cultura no plural, indicando que o estudo das culturas deve considerá-las em sua totalidade e evitando a busca por uma causa explicativa para as for- mas culturais, uma vez que suas diversas expressões estão integradas a uma complexidade. Por isso, o foco precisa ser sobre o indivíduo em sua cultura e o entendimento da influência desta sobre ele. Segundo Boas, o indivíduo é influenciado pelo seu ambiente social, e sua atividadeinfluencia a sociedade em que vive, modificando-a, o que indica que os fenômenos culturais estão em fluxo constante. A dinâmica do fenômeno cultural começou a chamar a atenção dos pesquisadores que, cada vez mais, se interessavam pela forma como o sujeito reage à totalidade de seu ambiente cultural. A elaboração do conceito de cultura por Boas está inserida nos debates rea- lizados em diferentes contextos regionais, políticos, sociais e epistemológicos. Portanto, a acepção de cultura possui influências de Kultur, relacionada ao contexto do romantismo alemão, e de Civilization, ligada ao contexto inglês e francês, bem como aos debates do Iluminismo. Kultur trata-se de uma noção particularista e privilegia o que é específico de uma localidade, em que há a valorização das tradições locais e a lingua- gem de cada povo. A história é marcada pelo h minúsculo, pois se refere à história local e às particularidades desse povo. Já a cultura consiste em um todo complexo, um contexto limitado, considerando a história local, a língua, os mitos, as crenças e a tradição (CUCHE, 1999). Essa compreensão contrapõe-se a noção de Civilization, elaborada no contexto francês e inglês, ligada a uma visão universalista e progressista da História, sempre com H maiúsculo, pois está associada à ideia de evolução. Já a noção de cultura nesse contexto influenciou as discussões do evolucionismo cultural, porque é entendida como universal, na medida em que a humanidade, em sua totalidade, caminha para a mesma direção evolutiva para alcançar o estágio de civilização (CUCHE, 1999). Considerando a cultura como uma totalidade e no plural, holista, integrada, com ênfase ao particularismo histórico e associada aos aspectos particulares de cada localidade, aos modos de fazer, falar e pensar, Boas aproxima-se da noção de Kultur. Cada grupo cultural é específico, singular e coerente, porque possui uma história própria e única que torna impossível compreender o que ocorreu a um grupo a partir de um esquema cultural evolutivo. Portanto, ele propôs um método diverso à tendência geral do pensamento etnológico para compreender a dinâmica da mudança cultural observada no presente, tornando-se um ferrenho crítico do evolucionismo cultural e difu- O relativismo cultural8 sional. Se, para alguns antropólogos, a existência de fenômenos semelhantes em povos de regiões diferentes era a prova da existência de leis gerais que governam o desenvolvimento da sociedade, ou de um caminho evolutivo — pressuposto do evolucionismo cultural, Boas afirmará que as investigações realizadas não a haviam confirmado. Ele critica a abrangência da difusão ao afirmar que o mesmo fenômeno etnológico pode ter sido alcançado por linhas diferentes de desenvolvimento e por um número infinito de pontos de partida. De acordo com Franz Boas, as hipóteses de que o desenvolvimento cul- tural ocorreria de modo uniforme, em um esquema evolutivo, em todas as partes ou a partir do contato realizado pelas migrações e difusão de elementos culturais, não poderiam ser sustentadas. Portanto, a existência de fenômenos similares não é uma prova incontestável da conexão histórica, nem de que a mente humana obedece às mesmas leis em todos os lugares. Havia também investigações suficientes para afirmar que fenômenos culturais semelhantes têm condições de produção diferenciadas. Contudo, isso não significa que não se considerava a possibilidade de que a mente humana possui essas condições, muitas vezes, fenômenos simi- lares, como o totemismo, seriam justificados porque as condições psíquicas da mente favorecem a existência de determinadas formas de organização. Nesse sentido, os seres humanos têm uma unidade psíquica da mente. Com o entendimento de que todos pertencem à espécie Homo sapiens, compreende- -se que, se os fatos culturais são diversos, a mente capaz de inventá-los é a mesma, nem mais avançada ou lógica. É possível realizar combinações espontaneamente ou aceitá-los em qualquer ocasião em que são oferecidos em processos de difusão ou justaposição, portanto, o ser humano tem uma mente complexa e variada que desenvolve fenômenos semelhantes por uma multiplicidade de caminhos. Portanto, deve-se esclarecer os processos que ocorrem diante de si, abs- tendo-se de solucionar o problema da história do desenvolvimento cultural geral. Isso acontece devido ao seu pressuposto do particularismo histórico, em que cada cultura seria produzida a partir de uma combinação dos meios geográfico, histórico, linguístico e psicológico. Nessa linha de discussão, apresenta-se os objetivos como “uma tentativa de compreender os passos pelos quais o homem tornou-se aquilo que é biológica, psicológica e culturalmente” (BOAS; CASTRO, 2004, p. 88). Para Franz Boas, as tentativas de explicar a cultura a partir de bases biológicas, como a relação entre raça e cultura, sempre fracassam. Do mesmo modo, ao tecer críticas ao determinismo geográfico e econômico, ele aponta 9O relativismo cultural que o ambiente geográfico pode estimular as condições culturais existen- tes, mas não as moldar, assim como as condições econômicas têm pouca força criativa para inventar a cultura. Qualquer uma dessas tentativas de desenvolver generalizações sobre a integração cultural produzem resultados infrutíferos. Boas sustentou que as ciências sociais devem analisar os fenômenos e ser limitadas às formas definidas, em que há como centro de investigação o indivíduo que vive em determinada cultura. Essa associação ocorre devido à necessidade de se compreender as condições ambientais que criaram e modificaram os elementos culturais e fatores psicológicos que atuaram na sua configuração e a história de seu desenvolvimento. Por isso, passou-se de uma compreensão de história da humanidade para a ênfase na história local, particular, em curto prazo e mais próxima da história oral, a qual valoriza costumes, crenças, mitos, tradições e língua, associada à geografia e psicologia. Nesse sentido, o material dos estudos antropológicos precisa ser baseado em dados históricos. Para tal, ele propõe o método histórico, porque entende que o objetivo último da antropologia é descobrir as razões pelas quais deter- minados costumes e crenças existem, considerando a cultura total do grupo. Isso deve ser aliado à geografia e psicologia, às condições ambientais que criaram e modificaram os elementos culturais, aos fatores psicológicos que atuaram na sua configuração e à história de seu desenvolvimento. Para ele: O estudo detalhado de costume em sua relação com a cultura total da tribo que os pratica, em conexão com a investigação de sua distribuição geográfica entre tribos vizinhas, propicia-nos quase sempre um meio de determinar com considerável precisão as causas históricas que levaram à formação dos costumes em questão e os processos psicológicos que atuaram em seu desen- volvimento (BOAS; CASTRO, 2004, p. 33–34). Já o resultado dessa investigação pode revelar as condições ambientais que criaram e/ou modificaram os elementos culturais; esclarecer os fatores psicológicos que atuaram na configuração da cultura; ou mostrar os efeitos que as conexões históricas tiveram sobre o desenvolvimento dessa cultura (BOAS; CASTRO, 2004). A partir dessa perspectiva antropológica, Franz Boas levantou questões sobre o determinismo biológico, que envolvia as discussões acerca de carac- O relativismo cultural10 terísticas mentais associadas às raças. Ele destacou que as formas corporais sofrem variações conforme uma série de influências externas, como ambiente, tipo de ocupação e dieta, indicando que as diferenças ocorrem devido aos fatores sociais e ambientais, e não biológicos. Diante dos diferentes estudos que indicavam as influências dos contextos social e cultural nas funções mentais, Franz Boas teceu críticas aos testes de inteligência e à sua limitada capacidade de afirmar sobre a capacidade mental como determinada biologicamente. O conhecimento antropológicodemonstrava que os indivíduos não diferem por razões biológicas, mas, sim, culturais. Portanto, ele defendeu que o antagonismo racial é um fenômeno social que tem como objetivo a aparência, e a segregação em grupos de cará- ter racial não tinha nenhuma base científica, tratando-se de uma construção histórica e cultural. Publicado na obra Antropologia Cultural (organizada por Celso Castro), “Raça e Pro- gresso” é uma conferência de Franz Boas no encontro da American Association for the Advancement of Science, sendo uma importante leitura para compreender as críticas ao determinismo biológico e ao racismo presente naquela época, nos Estados Unidos. Nessa palestra, mostra-se como os aspectos considerados científicos sobre as raças eram falhos, iniciando com uma desconstrução da ideia de raça e a questão da mistura racial, a partir de estudos etnológicos e históricos de que essa mistura em outras regiões do planeta não apontou evidências para uma degeneração, como as teorias racialistas do período defendiam. Estas importantes reflexões metodológicas introduziram na pesquisa an- tropológica uma crítica relativista e um combate às argumentações racistas, sendo ainda uma importante ruptura com a centralidade da cultura do eu na relação com a diferença. Isso consolidou a antropologia norte-americana e a antropologia cultural, o que influenciou diversos alunos em uma série de linhas de investigação. 11O relativismo cultural BOAS, F.; CASTRO, C. (org.). Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 112 p. CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. 258 p. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. 213 p. GEERTZ, C. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 248 p. LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003. 205 p. MALINOWSKI, B. K. Argonautas do Pacífico ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 424 p. (Os Pensadores, 55). ROCHA, E. P. G. O que é etnocentrismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. 95 p. (Coleção Primeiros Passos, 124). O relativismo cultural12
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