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1 Unidade 2 Aula 2 – Os componentes atitudinal, cognitivo e comportamental do capacitismo Joelma Cristina Santos Belo Horizonte, setembro de 2021 2 Na aula anterior, discutimos os conceitos de capacitismo individual e estrutural, além de algumas de suas implicações na vida das pessoas com deficiência. Nesta aula, vão ser apresentados alguns dos aspectos psicossociais que tornam o capacitismo tão presente no cotidiano e também os motivos pelos quais o processo de desconstrução do capacitismo necessita de mudanças não apenas nas práticas, mas nas concepções pessoais e coletivas de deficiência. A formação de atitudes e crenças capacitistas O capacitismo individual é uma atitude, o que quer dizer que ele é uma combinação de crenças, sentimentos e de inclinações para a ação, que pode produzir um comportamento de discriminação. O preconceito é um fenômeno psicológico e, apesar de se caracterizar como uma atitude pessoal, não se refere apenas ao indivíduo, pois tem raízes sociais (CROCHÍK, 2011). Experiências apoiadas em referenciais socioculturais contribuem para a constituição subjetiva das pessoas, e é no decorrer do nosso processo de socialização que atitudes de preconceito são desenvolvidas. Isso porque, ao longo da vida, pais, professores, colegas, meios de comunicação, etc., nos apresentam informações sobre o que devemos valorizar e como devemos nos comportar, contribuindo para a formação da nossa visão de mundo. O preconceito se apoia em avaliações negativas, as quais são baseadas em crenças negativas, como alguns estereótipos. Os estereótipos são crenças (positivas ou negativas), nem sempre estão associadas a preconceitos, e que visam simplificar, categorizar e generalizar aspectos do mundo, reduzindo o esforço cognitivo necessário para se avaliar situações. Um estereótipo é um conjunto de traços característicos identificados num grupo e é algo que pensamos com rapidez, quando nos lembramos ou temos um primeiro contato com os membros desse grupo. Os estereótipos contribuem para a diferenciação de grupos e, nesse sentido, já estudamos que as pessoas com deficiência foram categorizadas, ao longo da História, como um grupo de pessoas anormais, que foram estereotipadas de forma negativa pela atribuição de características relacionadas à incapacidade. Os estereótipos baseados em informações ou ideias desse tipo configuram o componente cognitivo do capacitismo. conta Highlight conta Highlight conta Highlight conta Highlight 3 Numa perspectiva ampla, o preconceito pode ser motivado por medo do que é novo ou diferente, o que pode levar as pessoas a recorrerem a estereótipos para lidar de maneira rápida e simplificada com o que não é totalmente conhecido. Num entendimento acerca da evolução do ser humano como espécie, considera-se que o preconceito teria auxiliado os primeiros hominídeos a evitar perigos potenciais, o que incluía pessoas diferentes ou que apresentavam doenças, feridas, espasmos, posturas cansadas ou outros sinais que indicavam infecções contagiosas. Essa predisposição à precaução pode ter contribuído para que nossos ancestrais aprendessem a evitar muitas pessoas que pareciam ou agiam de maneira pouco comum, numa estratégia de preservação da vida. Dessa forma, o ser humano desenvolveu o medo do contágio de tudo que pudesse se assemelhar a doenças, até mesmo de pessoas com condições que não eram infecciosas, gerando um alarme falso (por excesso de cautela) em relação à deficiência. Nesse sentido, ainda existe, na atualidade, uma tendência a tratar pessoas com deficiência com medo ou nojo, como se elas pudessem contaminar outras pessoas. Assim, muitos evitam, por exemplo, sentar perto de pessoas com deficiências severas, usar os mesmos objetos que elas, apertar a mão ou tocar em pessoas com membros amputados. Culturalmente, a pessoa com deficiência, por ter uma constituição corporal diferente do que é visto como sendo o corpo padrão e normal, traz uma imagem social associada à incompletude, a limitações e à deterioração da vida, lembrando a todos de que nenhuma pessoa é perfeita ou imortal. Conviver com uma pessoa com deficiência pode remeter à percepção de que as pessoas são vulneráveis e podem vir a adquirir uma deficiência, ainda que num futuro distante, no envelhecimento, o que vai na contramão, por exemplo, da ideia, muito veiculada nas mídias sociais, de que qualquer pessoa pode ser e fazer o que quiser. Nessa perspectiva, considerar pessoas com deficiência como sendo iguais a pessoas sem deficiência evidenciaria a fragilidade humana que tanto se quer negar, pois aceitar que pessoas com deficiência podem ser como “nós” equivale ao entendimento de que “nós” também podemos ser como elas, nos igualando (SILVA, 2006). Essa percepção do que há de comum entre todas pessoas com e sem deficiência perturba nossa estabilidade e segurança psicológicas. Nesse sentido, pessoas com deficiência podem não só ter o seu direito à acessibilidade restringido, mas também podem ser alvos de negligência, 4 tortura, abuso financeiro/econômico, violências física, psicológica e sexual, entre muitas outras violações de direitos humanos. A deficiência de uma pessoa se apresenta como um lembrete existencial de que a vida não é previsível e de que muitos vivem fora dos limites vistos como definidores de uma vida de qualidade e com propósito. Além disso, a deficiência desafia certos valores culturais considerados nobres pela nossa sociedade, como a independência, a liberdade, a produtividade e a superioridade da vida humana sobre a dos animais, recordando que as habilidades do corpo, do intelecto ou da linguagem não são garantidas nem permanentes e desafiando crenças sobre quem pensamos que somos e o que merecemos. A ameaça a certos valores pessoais dificulta a percepção de que existe humanidade nas pessoas com deficiência e, por isso, certas práticas em relação a elas são explicadas pelo argumento de que a qualidade de vida delas é ruim ou de que não vale a pena viver com uma deficiência. Assim, a suposição de que uma pessoa com deficiência estaria sofrendo muito e de que uma morte por misericórdia seria mais digna tende a ser uma justificativa para se retirar a vida de pessoas com deficiência (como no desligamento dos aparelhos que as mantêm vivas, nos casos de pessoas com doenças terminais ou degenerativas). A desvalorização da vida com deficiência também pode ser percebida nos processos de fertilização in vitro, em que é possível escolher embriões que não possuem, por exemplo, cromossomos ou genes indicativos de síndrome de Down ou de surdez congênita. A manifestação da discriminação As avaliações negativas, apoiadas em estereótipos negativos, conduzem, comumente, a comportamentos de discriminação. Quando se recorre a estereótipos, pode-se produzir o reconhecimento da pessoa com deficiência pelo rótulo, e não pelo que ela é, gerando relações sociais estereotipadas. Por exemplo: uma pessoa sem deficiência pode interagir com uma pessoa com deficiência pautando suas ações a partir de uma idealização do que seria uma “vida característica” das pessoas cegas ou surdas. Essa idealização justificaria todos os comportamentos da outra pessoa, de modo inflexível: ela age assim conta Highlight 5 porque é cega ou porque é surda (SILVA, 2006), restringindo o potencial das relações humanas. A discriminação pode ser explícita, como na recusa em conviver com uma pessoa com deficiência mesmo antes de conhecê-la, ou pode ser implícita, como nas explicações – que buscam ocultar os verdadeiros motivos – da escolha de pessoas sem deficiência para a formação de grupos de estudos ou de trabalho, por exemplo. Nesse sentido, é importante destacar que, em contextos em que a discriminação talvez não fosse bem-aceita, o preconceito que se manifestaria de forma declaradapode se apresentar mais sutilmente, tornando-se também mais difícil de ser eliminado. A discriminação pode, até mesmo, se disfarçar de uma forma “positiva”, como nos elogios exagerados às conquistas de uma pessoa com deficiência, ocultando a crença de que ela não teria capacidade de alcançar aquela realização em sua vida. Comportamentos de superproteção, que podem expressar preocupação e cuidado, também podem se referir a uma percepção de incapacidade da pessoa com deficiência. A discriminação, explícita e implícita, pode ser modificada pela transformação de atitudes, o que pode ser motivado pela educação formal e informal. Atitudes implícitas, no entanto, podem necessitar de mais tempo para serem modificadas, já que precisam ser praticadas para constituírem hábitos. Ressalta-se que, mesmo que uma pessoa seja capacitista, nem sempre ela irá discriminar uma pessoa com deficiência, já que, para que esse comportamento ocorra, o contexto social deve ser favorável à manifestação do preconceito. Se o ambiente social tem regras bem definidas e demonstra que a diversidade é acolhida, a discriminação pode não acontecer. De modo geral, a sociedade exclui ou pune socialmente pessoas que não se encaixam no padrão de normalidade, pois elas revelariam vulnerabilidades individuais e coletivas. Dessa forma, pessoas com deficiência podem ser rotuladas como perigosas para si mesmas ou para os outros, o que seria uma justificativa para que elas fossem medicadas à força, hipermedicadas ou submetidas à institucionalização sob o argumento de proteção. Além disso, a vida afetiva e sexual das pessoas com deficiência é altamente regulada e julgada pela sociedade e, em muitos casos, seus relacionamentos, seus desejos, seus direitos de casar, de ter filhos e de cuidar deles são bastante questionados socialmente, uma vez que o capacitismo sempre parte do pressuposto de que 6 elas não são capazes de fazer algo ou de que certas decisões pessoais delas não são bem fundamentadas. Em certos casos, a expectativa social sobre o sucesso de pessoas com deficiência é tão baixa, que muitas delas são vistas como motivos de inspiração por realizarem atividades comuns, como aparecer em público, frequentar uma faculdade, namorar ou praticar esportes. Existe uma tendência de se produzir admiração e espanto diante de pessoas que são percebidas como tendo superado suas deficiências, visando motivar pessoas sem deficiência ou envergonhar aquelas que têm deficiência, mas que talvez não façam o mesmo. Não se está discutindo aqui que as pessoas com deficiência não merecem admiração ou respeito nunca, mas que o tratamento heroico dado a atividades cotidianas produz uma objetificação das pessoas com deficiência e transmite uma mensagem sutil de que tudo o que é preciso fazer é manter o pensamento positivo, pois qualquer pessoa poderia superar sua deficiência se realmente quisesse e que, se não superou, é porque não se esforçou o suficiente. Nas últimas décadas, as discussões acerca da inclusão de pessoas com deficiência têm aberto inúmeras questões, e os debates sobre o capacitismo, do modo como têm sido levantados hoje, são recentes. A compreensão é de que certas crenças, atitudes e comportamentos sobre a deficiência devem ser questionados, a fim de derrubar os obstáculos impostos pelo preconceito. O contato entre pessoas com e sem deficiência, mesmo que, inicialmente, possa gerar angústia, promove a reflexão crítica sobre as situações produtoras de exclusão (IGLESIAS; CARVALHO-FREITAS; SUZANO, 2013). Entende-se que as atitudes de preconceito e os comportamentos de discriminação articulam fatores pessoais e sociais, por isso, é preciso analisá-los ao se pensar em estratégias de combate ao capacitismo. Referências CROCHÍK, J. L. Preconceito e inclusão. WebMosaica: Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, v. 3, n. 1, p. 32-42, jan./jun. 2011. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/webmosaica/article/view/22359/13016. Acesso em: 14 maio 2021. IGLESIAS, V. D. O.; CARVALHO-FREITAS, M. N.; SUZANO, J. C. C. Estereótipos e preconceito em relação às pessoas com deficiência: a perspectiva https://seer.ufrgs.br/webmosaica/article/view/22359/13016 7 dos gestores. In: ENCONTRO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO, v. 37, 2013. Rio de Janeiro. Anais eletrônicos... Rio de Janeiro: ANPAD, 2013, p. 1-12. Disponível em: http://www.anpad.org.br/abrir_pdf.php?e=MTYzMDE=. Acesso em: 14 maio 2021. SILVA, L. M. O estranhamento causado pela deficiência: preconceito e experiência. Revista Brasileira de Educação, v. 11, n. 33, p. 424-434, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/PHRtMWsRczTyhHHfLfQ3Csj/?lang=pt&format= pdf. Acesso em: 14 maio 2021. http://www.anpad.org.br/abrir_pdf.php?e=MTYzMDE https://www.scielo.br/j/rbedu/a/PHRtMWsRczTyhHHfLfQ3Csj/?lang=pt&format=pdf https://www.scielo.br/j/rbedu/a/PHRtMWsRczTyhHHfLfQ3Csj/?lang=pt&format=pdf
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