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TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS AULA 5 Profª Ludmila Culpi 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, apresentaremos os elementos centrais da teoria neoliberal das RI, que nasceu em um debate com a teoria neorrealista, nos anos 1980. A teoria neoliberal institucional defende a relevância das instituições internacionais e a emergência de novos atores além do Estado. Em um primeiro momento, será investigada a evolução histórica da teoria neoliberal e o contexto do seu surgimento. Depois serão apresentados os conceitos centrais de poder e interdependência complexa nessa teoria. São expostos também os três elementos do tipo ideal da política para a teoria da interdependência complexa, que são os canais múltiplos, a ausência de hierarquia nos temas e a limitação da questão militar. No quarto ponto é apresentado o processo político da interdependência e suas nuances. Para finalizar, será investigada a teoria neoinstitucionalista liberal de Keohane e sua concessão ao realismo. TEMA 1 – EVOLUÇÃO HISTÓRIA DA TEORIA NEOLIBERAL Na década de 1970, inicia-se uma nova versão do Primeiro Debate das Teorias de Relações Internacionais, que ocorreu entre o realismo e o liberalismo. Esse novo debate ocorre em um cenário de redução dos enfrentamentos entre EUA e URSS, devido ao esfriamento da Guerra Fria, porém de fortes crises econômicas, nos períodos da crise do dólar (1971) e as crise do petróleo (1973 e 1979). A noção de interdependência surge quando os EUA são afetados pela primeira vez em várias décadas, quando os Estados produtores de petróleo aumentam o preço do barril como reação à quebra unilateral da paridade dólar ouro em 1971. Além disso, as teorias de RI passavam por uma reforma, com o aprimoramento das ferramentas de pesquisa na área. Esse debate foi conhecido como debate entre neoliberalismo e neorrealismo (Pereira, 2016). O neoliberalismo foi reeditado a partir de uma obra importante e fundamental na área de Relações Internacionais, Poder e interdependência, de Robert Keohane e Joseph Nye, elaborada em 1977. Como resposta, os autores vinculados ao realismo escreveram obras criticando o neoliberalismo, sendo a mais fundamental delas Theory of International Politics, de Kenneth Waltz (Pereira, 2016). 3 Keohane e Nye (1977) inauguram o pensamento neoliberal nas Relações Internacionais ao criticar a visão realista acerca do Estado como o ator principal das RIs. Ademais, propõe uma redução importante da força na política internacional e a expansão da relevância de outros temas como direitos humanos, meio ambiente e comércio. Os autores da interdependência complexa argumentam que as relações entre os Estados são marcadas pela dependência mútua assimétrica entre as partes. O conceito central para compreensão das relações de poder, segundo Keohane e Nye (1977), é o de interdependência complexa, que será melhor explicado na sequência. O uso correto da interdependência revela-se para essa perspectiva um dos principais recursos de poder dos atores estatais e não estatais, como as organizações não governamentais e as empresas transnacionais. Keohane e Nye (1977) defendem que o papel do Estado seria gerir as relações entre os seres humanos para assegurar uma maior quantidade de trocas e cooperação, a partir do estabelecimento de regras. Os autores assinalam que a anarquia está presente no cenário internacional, porém, argumentam sobre a possibilidade do progresso e da paz por meio do comércio livre e da democracia. Para eles, a guerra não ocorreria em um contexto de comércio justo que permitisse contatos entre as culturas (Keohane; Nye, 2001). A globalização e o aprofundamento das relações entre os Estados são o cenário que o neoliberalismo analisa. Essa teoria surge em um contexto de aparecimento de novas temáticas e novos atores na política internacional devido à intensificação das comunicações e ao progresso tecnológico (Silva; Culpi, 2017). Os autores buscam compreender o papel exercido pelas instituições internacionais como facilitadoras da cooperação entre os Estados. A análise da interdependência complexa seria, para os autores, uma alternativa ao pensamento determinístico das teorias realistas, que não incorpora elementos do sistema internacional vigente como a expansão da agenda internacional e a emergência de novos atores, como Igreja, grupos extremistas e corporações multinacionais (Keohane; Nye, 2001). 4 TEMA 2 – PODER E INTERDEPENDÊNCIA Em um contexto diferenciado, com novos atores, a cooperação promove uma relação de interdependência, em que as duas partes dependem da interação, mesmo que de modo assimétrico. Essa dependência mútua é resultado do poder que ambas exercem umas sobre as outras (Silva; Culpi, 2017). A interdependência complexa engloba episódios com efeitos recíprocos entre Estados e demais atores não estatais, que são produtos das trocas internacionais, de pessoas, serviços, bens e capital. Os autores afirmam que existe interdependência quando houver custos e restrições significativos que são resultados das trocas entre países, mesmo que sejam assimétricos. Essa interdependência promove uma redução do poder do Estado, que não significa que ele desaparecerá, mas que seu poder e autonomia foram limitados pelo surgimento de novos atores poderosos. Para a teoria da interdependência complexa, a concepção de poder é diferenciada em relação às teorias tradicionais, que o relacionavam à força militar. Contudo, para Keohane e Nye (2001), os meios que geram as capacidades de poder estão mais complexos, o que exige uma revisão no conceito de poder. Para tanto, promovem uma diferenciação entre duas formas de poder: i) o poder dos meios, que é a capacidade de um ator levar os demais a realizar algo que eles não fariam; e ii) o poder dos resultados, que representa o controle do ator sobre os resultados. Portanto, apesar da dificuldade de calcular e medir o poder, este é entendido para a teoria da interpendência complexa como o controle dos meios e o potencial para influenciar os resultados. Para buscar a mensuração do poder, é fundamental diferenciar duas dimensões: a sensibilidade e a vulnerabilidade. Para compreender a sensibilidade, é necessário que ocorra uma crise vivenciada por atores interdependentes. A sensibilidade determina que o quadro não se altera para um dos atores, ou seja, esse ator é sensível à crise porque algumas políticas permanecem constantes. A sensibilidade mede quando um choque afeta um Estado, sem alterar políticas (Silva; Culpi, 2017). A vulnerabilidade, por sua vez, associa-se à ideia de um ator que, após uma crise, sofre custos elevados e tem pouca capacidade de se recuperar da crise. Esse ator é vulnerável por ter políticas nacionais débeis, o que implica altos 5 custos para se adaptar à uma alteração externa. Assim, a vulnerabilidade refere- se à capacidade de um ator buscar alternativas próprias para diminuir sua dependência em uma questão. Em uma situação, como o aumento do preço do petróleo em 1973, se um de dois Estados, cada um importando 35% do total de petróleo consumido internamente, conseguir acesso ao petróleo internamente, a um custo baixo, e o outro não, o primeiro é menos vulnerável que o segundo. O conceito de vulnerabilidade é importante porque pode determinar quais atores são mais poderosos. A vulnerabilidade refere-se à desvantagem que um agente tem em um cenário posterior à alteração da política, quando ainda enfrenta custos elevados. A possibilidade do ator de reduzir sua vulnerabilidade pode indicaro poder que possui em relação a outros atores. Assim, os autores verificam que a utilização de interdependência pode ser uma ferramenta de poder (Pereira, 2016). Por fim, podem-se aplicar os conceitos de sensibilidade e vulnerabilidade nas relações entre os Estados e também outros atores transnacionais. TEMA 3 – TIPO IDEAL DE POLÍTICA Keohane e Nye (2001) desenvolvem um modelo para a construção de um tipo ideal de política, baseado na concepção de interdependência complexa. Para os autores, o cenário que melhor explicaria a realidade internacional apresenta as seguintes características: o Estado não é o único ator das RI, não existe uma hierarquia entre os temas e a força não é um instrumento eficaz para atingir objetivos. Esse modelo possui três condições, as quais são a base da interdependência. A primeira condição é a existência de canais múltiplos que vinculam as sociedades, podendo ser interestaduais, transgovernamentais e transnacionais. A segunda relaciona-se à agenda das relações interestaduais, que é formada por inúmeros temas e não apenas a questão militar como prioridade, sem uma hierarquia entre as temáticas. A terceira condição é que a força militar não é adotada pelos governos quando a interdependência predomina. A primeira delas, dos canais múltiplos, representa a ideia da participação de outros atores além dos Estados, no âmbito externo e doméstico. É importante levar esses atores em consideração porque funcionam como correntes de 6 transmissão, afetando a sensibilidade dos Estados, na medida em que podem impactar sobre as políticas governamentais nacionalmente. A concepção de agenda múltipla baseia-se na visão de que os temas não têm hierarquia entre si na agenda internacional, ou seja, a questão da segurança não é sempre prioritária sobre os demais. Como existem grupos internos com interesses variados, torna-se difícil definir uma política externa unificada e coerente. O tema militar não é mais dominante, porque as agendas são mais diversificadas, emergindo temas como o meio ambiente e os direitos humanos. Sobre o terceiro aspecto, de a força militar ter reduzido sua importância, isso se refere à ideia de que se a interdependência complexa se sobrepõe, os Estados não usarão a força uns contra os outros. Isso não significa que ela não será adotada nunca, pois pode ser relevante para solucionar desavenças econômicas. Em última instância, a força não é o meio apropriado para atingir objetivos econômicos, ambientais e sociais (Keohane; Nye, 2001, p. 27). Segundo Keohane e Nye (2011), a alteração no uso da força deixou as questões mais complexas, pois deve-se levar em conta os interesses e a interdependência. TEMA 4 – O PROCESSO POLÍTICO DA INTERDEPENDÊNCIA As três características da interdependência promovem processos políticos bastante distintos da perspectiva realista, especialmente pela participação de novos atores e pela não submissão dos demais temas à temática militar (Keohane; Nye, 2001, p. 30). Como houve uma redução do papel da força, a distribuição de poder em cada tema é mais central. A distribuição de poder, assim como os processos políticos e objetivos variam de questão para questão. Esse aspecto diminui a hierarquia internacional entre os Estados, bem como leva os Estados a adotarem outras ferramentas para exercer influência (Silva; Culpi, 2017). A política de formação da agenda se tornou mais central, devido à inexistência da hierarquia entre os temas. Estados mais poderosos em algum tema terão maior capacidade de impor seus temas na agenda. A agenda internacional passa a ser afetada pelos interesses nacionais, assim como por mudanças na distribuição de recursos de poder (Silva; Culpi, 2017). De acordo com Keohane e Nye (2001), os canais múltiplos de conexão limitam as diferenças entre a política nacional e a política doméstica. Nesse 7 cenário, as relações transnacionais, isto é, a atuação das empresas multinacionais, impactam os resultados da barganha política. A atuação de novos atores limita a capacidade dos governantes de analisar as estratégias, levando-os a considerar outros resultados dessas estratégias. Ademais, os governantes manipulam esses novos atores transnacionais a seu favor. Keohane e Nye (2001) destacam o papel exercido pelas organizações internacionais na política internacional devido às coalisões transnacionais, o que resulta no impacto daquelas nas negociações internacionais. Elas se tornam atores importantes na definição da agenda e facilitadoras para a constituição de alianças entre os Estados. Dentro desses espaços, Estados menos poderosos buscam estratégias para melhorar sua barganha política. Assim, a interdependência cria padrões de políticas e explica alterações nos regimes. TEMA 5 – O NEOINSTITUCIONALISMO LIBERAL DE KEOHANE Keohane respondeu às críticas neorrealistas de Waltz, passando a reconhecer a centralidade do Estado como ator das RI em sua teoria neoliberal institucionalista, nos anos 1980. Porém, Keohane manteve seu entendimento sobre a relevância das instituições internacionais nas RI (Pereira, 2016). As instituições são os regimes internacionais, definidos por Krasner (1983, p. 2) como um conjunto de princípios, implícitos ou explícitos, regras, normas e procedimentos de tomada de decisão em uma área específica da política internacional, como direitos humanos, comércio ou meio ambiente. Os regimes têm como propósito principal buscar a cooperação dos Estados em temas globais. Apesar de os Estados serem egoístas e cooperarem para alcançar seus interesses nacionais, a cooperação pode ser um meio para atingir esses interesses. Keohane apontou os benefícios da cooperação por meio dos regimes, que são: i) redução dos custos de transação dos Estados; ii) diminuição da assimetria de informações e iii) restrição do grau de incerteza nas relações firmadas. Esses elementos foram inspirados na teoria da Nova Economia Institucional (NEI) e da teoria dos custos de transação, que foram formuladas por economistas (Pereira, 2016). Houve adaptações dessas teorias por Keohane, que entende o Estado como ator racional que analisa estrategicamente suas ações e as instituições internacionais como centrais para que os Estados atinjam seus objetivos. Tendo 8 em conta que os Estados têm racionalidade limitada, os regimes são úteis para diminuir os custos de transação, que seriam o oportunismo e a incerteza (Pereira, 2016). Keohane discute, em sua obra After Hegemony, como um regime pode se tornar efetivo e argumenta que não é necessária a existência de uma potência para assegurar a efetividade dos regimes. As instituições e os regimes são relevantes por oferecem informação aos Estados, sendo uma fonte importante para que os Estados definam suas ações (Pereira, 2016). Embora Keohane assuma pressupostos do realismo, este critica a teoria, ao defender que ela não elaborou uma premissa centrada no estudo das instituições internacionais. Os realistas argumentam a respeito da incapacidade das instituições em assegurar a cooperação e a ordem internacional (Pereira, 2016). NA PRÁTICA Leia o artigo “A Interdependência complexa e a questão dos direitos humanos” e assinale como os conceitos da interdependência complexa explicam a proteção aos direitos humanos nas RI. Leitura complementar Leia o artigo “A interdependência complexa e a questão dos direitos humanos no contexto das Relações Internacionais”. Disponível em: <https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/1584/1052>. FINALIZANDO Nesta aula, conhecemos a fundo os elementos centraisda teoria neoliberal das RI. Em um primeiro momento, pudemos verificar o avanço histórico do neoliberalismo e o seu surgimento em 1980. Entendemos que o neoliberalismo critica a falta de confiança do realismo em relação à possibilidade de cooperação entre os Estados. Ademais, reconhece a existência de outros atores além do Estado. Foi esmiuçada a teoria da interdependência e os conceitos de poder e interdependência, baseado na ideia de ganhos e prejuízos mútuos entre os Estados em suas interações, de forma assimétrica. Pudemos entender os 9 conceitos de sensibilidade e vulnerabilidade e sua importância para as ações estratégicas dos Estados entre si e com os atores não estatais. Depois, conhecemos o tipo ideal de política, que visualiza a política internacional baseada em três condições: os canais múltiplos, que concebem a ideia de outros atores, os temas múltiplos da agenda, que mostram que a agenda é mais diversificada e a não existência de hierarquia entre os temas, reduzindo a centralidade do poder militar nas RI. Posteriormente, pudemos aprofundar o processo político da interdependência, baseado nas três características. Por fim, foi esboçado o pensamento neoliberal institucionalista de Keohane, que reconheceu que os Estados são egoístas como Keohane, mas que a cooperação é possível e facilitada por instituições internacionais, que reduzem os custos de transação e as incertezas. 10 REFERÊNCIAS KEOHANE, R. O. After Hegemony: Cooperation and Discord in the World Political Economy. 2. ed. Princeton: Princeton University Press, 2005. KEOHANE, R. O.; NYE, J. S. Power and Interdependence. New York: Longman, 2001. KRASNER, S. (Ed.). Structural causes and regimes consequences: regimes as intervening variables. In: International Regimes. Ithaca: Cornell University Press, 1983. PEREIRA, A. E. Teoria das Relações Internacionais. Curitiba: InterSaberes, 2016. SILVA, C. C. V.; CULPI, L. A. Teoria de Relações Internacionais: origens e desenvolvimento. Curitiba: InterSaberes, 2017.
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