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INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 Teoria geral do processo coletivo Helena Campos Refosco DADOS PARA REFERÊNCIA SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Curso a distância: Introdução ao Processo Coletivo Constitucional. Brasília: Coordenadoria de Desenvolvimento de Pessoas, 2020. Disponível em: ead.stf.jus.br. Acesso restrito com login e senha. Visite o Ambiente Virtual de Aprendizagem do STF Contato: educa@stf.jus.br Material didático do curso a distância: Introdução ao Processo Coletivo Constitucional Validação pedagógica e diagramação: Supremo Tribunal Federal Secretaria de Gestão de Pessoas Coordenadoria de Desenvolvimento de Pessoas Conteudistas do STF: Helena Campos Refosco Christine Oliveira Peter da Silva Paula Pessoa Pereira Eduardo Sousa Dantas Camila Almeida Porfiro Roberto Dalledone Machado Filho Revisora de texto: Loide da Silva Chaves (STF) Web designer: Cide Caetano Oliveira (STF) 2020, Supremo Tribunal Federal. Todos os direitos reservados. Este material possui função didática, sem fins comerciais e foi adaptado para a versão autoinstrucional em 2021. Para mais detalhes sobre as condições de uso acesse: Licença STF https://ead.stf.jus.br/ https://ead.stf.jus.br/ mailto:ead%40stf.jus.br?subject= https://docs.google.com/drawings/d/1g6AeWqrfYTkl_pqs5wlknDz6U_r91I6-EVnDavGcI04/edit SUMÁRIO Apresentação do curso ...............................................................................4 Introdução ......................................................................................................6 1. Transformações sociais e econômicas no mundo e no Brasil ....6 2. O litígio de interesse público ...............................................................8 3. O sistema de precedentes vinculantes .......................................... 10 4. Características dos diversos tipos de litigantes ......................... 11 5. Constitucionalismo e democracia ................................................... 14 Considerações finais ................................................................................ 18 Referências ................................................................................................. 19 INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 4 Apresentação do curso Olá! Bem-vinda, bem-vindo à primeira aula do curso Introdução ao Processo Coletivo Constitucional! Meu nome é Helena, Juíza de Direito do Estado de São Paulo, convocada como Juíza Instrutora no Supremo Tribunal Federal – Gabinete do Ministro Ricardo Lewandowski. Sou doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (2017) e pesquisadora visitante na Faculdade de Direito de Harvard (2015/2016). Será um prazer compartilhar com você alguns conhecimentos sobre o tema! Este curso foi pensado para discutirmos aspectos processuais relativos a funções específicas exercidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF): Corte Constitucional, que julga, por meio de ações de controle judicial abstrato, as grandes questões constitucionais do país, bem como os remédios constitucionais; Corte Recursal, que julga, por meio do controle difuso, recursos extraordinários relativos a temas de processo coletivo (notadamente aqueles referentes ao microssistema de processo coletivo – Lei da Ação Civil Pública e Código de Defesa do Consumidor). Importa ressaltar que as relações sociais, no Brasil e no mundo, estão progressivamente mais burocratizadas. Os relatórios das séries “Justiça em Números” e “100 Maiores Litigantes” do Conselho Nacional de Justiça revelam que as instituições bancárias, as pessoas jurídicas de direito público e as empresas de telecomunicações são os maiores litigantes brasileiros. O antigo litígio entre pessoas físicas tornou-se cada vez mais raro e foi substituído pelo litígio que contrapõe pessoas físicas às grandes organizações burocráticas, como as listadas acima. A ação coletiva pode ser uma importante ferramenta para solucionar esse tipo de conflito e contribuir decisivamente para o acesso à justiça, porque decisões coletivas abrangem todos, inclusive as coletividades sistematicamente excluídas de direitos. Assim, o estudo do processo coletivo, incluindo tanto o microssistema de processo coletivo quanto as demais ações coletivas constitucionais, é, portanto, da maior relevância para a boa prestação jurisdicional pelo STF. Tendo isso em mente, nosso curso foi desenhado para que você: Compreenda a fundamentação teórica do processo coletivo, inclusive quanto à legitimidade da atuação do Poder Judiciário na jurisdição constitucional ou diante dos demais atores estatais, sobretudo à luz do dogma da separação de poderes, bem como https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/ https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/100_maiores_litigantes.pdf INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 5 identifique as leis que compõem o microssistema de processo coletivo e as principais controvérsias ainda candentes relativas a esse sistema (aulas 1 e 2); Reconheça as principais ferramentas processuais coletivas constitucionais, notadamente a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade (aula 3); a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão e o Mandado de Injunção Coletivo (aula 4); a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (aula 5); e o Habeas Corpus e o Mandado de Segurança coletivos (aula 6); e Adquira mais familiaridade com os institutos jurídicos afetos ao tema e sinta-se equipado para resolver as principais questões relativas aos ritos e ao processamento dos variados tipos de ações coletivas constitucionais. Dessa maneira, nosso intuito geral é que você, após os estudos das aulas, consiga operar os conceitos fundamentais relativos à teoria geral do processo coletivo. Certo? Temos muitos assuntos pela frente! Porém, antes de iniciar os trabalhos, gostaria de convidar você a assistir a um vídeo que nos ajudará a compreender o desenvolvimento da jurisdição constitucional a partir do século XX, elaborado pelo grupo “Para além dos direitos” e inspirado no texto de Bruce Ackerman, “The Rise of World Constitutionalism” (1997). Então, o que achou do vídeo? VÍDEO Fonte: Constitucionalismo Global Com isso, estamos preparados para começar! https://www.youtube.com/watch?v=GSWbDRJGvo4 https://www.youtube.com/watch?v=GSWbDRJGvo4 https://www.youtube.com/watch?v=GSWbDRJGvo4 INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 6 Introdução Para iniciarmos nossa reflexão, nesta aula veremos o contexto em que a ação coletiva passou a ser vista como solução para o problema das violações maciças de direitos e da litigiosidade repetitiva. Assim, conheceremos os fundamentos da teoria que embasa o processo coletivo e identificaremos autores que são referência no tema, bem como examinaremos o contexto social em que surgiram as diversas vertentes de processo coletivo. Além disso, vamos comparar características dessa opção processual diante do instrumental relativo aos precedentes judiciais proferidos em ações individuais, para, valendo-nos de substratos teóricos, refletirmos sobre como cada um desses dois caminhos pode auxiliar na solução justa da litigiosidade repetitiva. Antes de prosseguirmos, um esclarecimento: o termo “ação coletiva” deverá ser compreendido de forma ampla, correspondendo a toda ação judicial que permita a conjugação de esforços e saberes de litigantes eventuais, de forma a concentrar em um único processo o julgamento de direitos que interessam a uma dada coletividade. A definição abarca, portanto, tanto as ações coletivas comuns, regulamentadas pela Lei nº 7.347/1985 e pela Lei nº 8.078/1990, e que serão analisadas com mais profundidade na Aula 2, quanto as ações coletivas especiais, como as ações de controle concentradode constitucionalidade e os remédios constitucionais coletivos, que são, em única ou última instância, julgados pelo STF no exercício da jurisdição constitucional, e que serão estudadas nas Aulas 3 a 6. Tudo pronto? Vamos começar? 1. Transformações sociais e econômicas no mundo e no Brasil Iremos agora, rapidamente, perpassar algumas das importantes transformações econômicas e sociais que, no século XX, levaram à massificação das relações e à demanda por instrumentos processuais que dessem conta dessa nova realidade. Você conseguiria pensar em algumas delas? Bem, podemos apontar as seguintes: a modernização da sociedade; a urbanização; http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7347orig.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7347orig.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 7 a industrialização; o incremento dos vínculos bancários, da demanda por serviços e por consumo de modo geral; a ampliação do consumo e do crédito; o crescimento da população; a elevação das taxas de escolaridade; a maior conscientização de direitos; o surgimento de novos direitos; o aumento do número de advogados; e a democratização política. São muitas as mudanças no cenário socioeconômico do século XX, não é mesmo? Charlie Chaplin soube encenar com grande beleza as transformações decorrentes dos primórdios da Revolução Industrial. Convidamos você a relembrar o clássico “Tempos Modernos”. VÍDEO Fonte: Charlie Chaplin: tempos modernos https://www.youtube.com/watch?v=XFXg7nEa7vQ https://www.youtube.com/watch?v=XFXg7nEa7vQ https://www.youtube.com/watch?v=XFXg7nEa7vQ INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 8 2. O litígio de interesse público Nesse cenário de mudanças tão diversas, o perfil do litígio, inexoravelmente, teria de mudar. Abram Chayes (1976) foi um dos primeiros pensadores a notar o influxo de um novo tipo de litígio que emergiu devido aos processos de industrialização, urbanização e burocratização do século XX. Trata-se do litígio de interesse público, o qual, por envolver a discussão de políticas públicas ou regulatórias referentes às grandes organizações burocráticas da vida contemporânea, identifica-se com o litígio repetitivo de que falamos no Brasil. Chayes explicou que os resultados do litígio de interesse público não são restritos às partes, porque, ao pautar o comportamento da burocracia estatal ou regulatória, a decisão proferida nos casos particulares produz reflexos para toda a sociedade. Além disso, o litígio de interesse público retrata descontentamentos coletivos, graças à massificação das relações de adesão às grandes organizações burocráticas. Para ele, essa nova configuração é melhor atendida pela ação coletiva, a qual é fruto da conscientização de que muitas das interações sociais importantes para as oportunidades de vida das pessoas “[...] são conduzidas de forma burocratizada e não podem mais ser consideradas transações bilaterais entre particulares” (CHAYES, 1976, p. 1291). Você sabia que há correlação entre a litigiosidade crescente e a maior industrialização? É isso que indicam as pesquisas de Wollschläger (1998) e o relatório “Justiça em Números 2014: Ano-Base 2013”, que apontou a estreita relação entre, de um lado, Produto Interno Bruto – PIB dos Estados, seus níveis educacionais, indicadores socioeconômicos e demográficos agregados e, de outro, seus respectivos índices de demanda judicial. CURIOSIDADE https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2014/01/relatorio_jn2014.pdf https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2014/01/relatorio_jn2014.pdf INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 9 Muitos casos de ações coletivas foram parar nas telas do cinema. Alguns bons exemplos são “Erin Brockovich: uma mulher de talento” e “Marshall: igualdade e justiça”. Entre vários outros ótimos filmes, compartilhamos com você o trailer de “A Civil Action”, que trata da desigualdade de forças entre os litigantes, bem como do funcionamento do sistema da class action estadunidense. Vale a pena conferir! VÍDEO Fonte: A civil action - trailer Esses filmes, baseados em histórias reais, nos fazem perceber as inúmeras diferenças de desenho institucional que existem entre as class actions e as ações coletivas brasileiras, principalmente na defesa dos interesses individuais homogêneos. Abram Chayes foi professor de Direito Emérito, lecionou em Harvard por mais de 40 anos. Ele atuou como consultor jurídico do Departamento de Estado durante o governo Kennedy e exerceu profunda influência sobre muitas questões importantes de políticas públicas no auge da Guerra Fria. Fonte: Harvard Law School https://youtu.be/fHRXGQhpib8 https://youtu.be/fHRXGQhpib8 https://www.youtube.com/watch?v=fHRXGQhpib8&feature=youtu.be https://www.youtube.com/watch?v=fHRXGQhpib8&feature=youtu.be https://www.youtube.com/watch?v=fHRXGQhpib8&feature=youtu.be https://hls.harvard.edu/dept/ils/summer-work-abroad/professor-abram-chayes-1922-2000/ INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 10 Aliás, embora o tema da categorização de direitos (difusos, coletivos e individuais homogêneos) seja objeto da Aula 2, é interessante, desde já, que você reflita comigo: faz sentido – ou seja, é funcional – tal categorização? Para auxiliar na reflexão, destaco que essa categorização não existe nos EUA (GIDI, 2007). Uma crítica à categorização pode ser vista em artigo de nossa autoria elaborado em parceria com Carlos Portugal Gouvêa: “Ação coletiva no Brasil: visão geral, tendências atuais e estudos de caso”. 3. O sistema de precedentes vinculantes No Brasil, para lidar com a litigiosidade repetitiva – que, como nós já vimos, identifica-se com o litígio de interesse público –, o legislador brasileiro tem investido bastante no fortalecimento do sistema de precedentes vinculantes. Isso se tornou bastante visível a partir, sobretudo, da entrada em vigor do atual Código de Processo Civil. Podemos apontar como vantagens decorrentes da utilização do sistema de precedentes, especialmente, a previsibilidade e a isonomia na aplicação do direito. PARA REFLETIR Você acha que o sistema de precedentes pode, sozinho, solucionar os dilemas que a litigiosidade repetitiva engendra? Para compreendermos bem o problema, considere um país em que: prevalecem os litígios individuais; não existe prioridade na tramitação das ações coletivas, cuja regulamentação legal e jurisprudencial é falha; e vigora uma desigualdade socioeconômica extrema, com elevada deficiência no acesso à Justiça. https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3539478 https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3539478 INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 11 Pois bem. Pensamos que o sistema de precedentes, apesar de suas qualidades, não resolve dilemas fundamentais do acesso à Justiça visto como direito de segunda geração, ou seja, como direito social, que visa reduzir desigualdades e propiciar, mesmo àqueles que, por dificuldades das mais diversas ordens, não têm condições de contratar um advogado – nem mesmo um defensor público, seja pela distância, seja pelo dia de trabalho perdido – para litigar individualmente em juízo. As pessoas que sofrem violações a seus direitos e não têm condições ou estímulo para litigar são os desalentados (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça, 2011), que, em sua maioria, compõem os grupos de pessoas sistematicamente excluídas de direitos. Apenas uma ação coletiva realmente funcional poderia assegurar a todos, indistintamente, acesso de qualidade à Justiça. Sustentamos ser imprescindível reinterpretar-se esse acesso à luz dos interesses das grandes coletividades, de forma a garantir,eficazmente, a representação e a consideração de todos os interesses envolvidos em ações coletivas, inclusive daqueles mais vulneráveis (REFOSCO, 2018). 4. Características dos diversos tipos de litigantes Vimos que grupos de pessoas sistematicamente excluídos de direitos enfrentam dificuldades para litigar individualmente, de forma que a ação coletiva poderia assegurar que mesmo aqueles que não têm condições de usufruir de seu dia na Corte possam ser representados e ter seus direitos defendidos condignamente. Para Marc Galanter (1974), a prevalência da litigância individualizada tende a perpetuar injustiças, na medida em que os litigantes habituais gozam de vantagens a que os litigantes eventuais não têm acesso. Exemplos destas vantagens seriam: expertise, dada a expressiva quantidade de ações judiciais semelhantes; economias de escala; influência no desenvolvimento normativo por meio de grupos de pressão; a possibilidade de arcar com perdas momentâneas em prol de sucessos futuros, o que poderá levar os litigantes habituais a fazer acordos em casos nos quais tenham menor chance de ganhar e levar às instâncias superiores as ações cujo prognóstico de resultado lhes seja mais favorável; a possibilidade de contratação dos melhores advogados, devido à comum sobreposição dos poderes econômico e jurídico; e INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 12 CURIOSIDADE o privilégio de que gozam esses advogados, por enfrentarem uma multiplicidade de ações repetidas, de aprender com seus erros, podendo corrigi-los na redação de futuros contratos e evitá-los nas ações judiciais seguintes. Nesse sistema jurídico, os litigantes habituais eventualmente arcam com derrotas esporádicas, porém, tendencialmente, serão os grandes vencedores de longo prazo, já que os precedentes tendem a ser-lhes favoráveis. Para Galanter (1974), a ação coletiva elevaria os riscos do litigante habitual, reduzindo suas vantagens estratégicas. Além disso, a ação coletiva seria instrumento de coesão de grupos de litigantes eventuais, que teriam, unidos, habilidade para atuar de modo coordenado e para jogar com estratégias de longo prazo, bem como capacidade de beneficiar-se de serviços jurídicos de primeira qualidade. Você sabia que o artigo em Marc Galanter formula a distinção entre litigantes habituais e eventuais – “Why the ‘Haves’ Come out Ahead: Speculations on the Limits of Legal Change” (GALANTER, 1974) – é um dos textos de direito mais citados do mundo? Confira a lista completa dos artigos mais citados do mundo. Carlos Portugal Gouvêa (2013) acrescenta outra complexidade à litigiosidade repetitiva brasileira: para além da desigualdade inerente à posição dos litigantes habituais ante a dos eventuais, há, aqui, a concorrência entre diferentes grupos sociais de litigantes eventuais por direitos sociais providos pelo Estado. Para ele, devido às dificuldades estruturais de acesso à Justiça, o discurso de defesa de direitos econômicos e sociais foi capturado pelas classes privilegiadas, subsidiando decisões judiciais que até mesmo agravaram a desigualdade econômica. https://heinonline.org/HOL/Page?handle=hein.journals/calr73&div=53&id=&page=&collection=journals INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 13 Owen Fiss é professor emérito de direito da Universidade de Yale. Ele ensina procedimentos, teoria jurídica e direito constitucional e é autor de muitos artigos e livros sobre esses assuntos, mais recentemente Pilares da Justiça: Advogados e a Tradição Liberal. Ele também é um dos líderes dos programas internacionais de Yale na América Latina e no Oriente Médio. Fonte: Yale Law School Owen Fiss (2004) escreveu um texto clássico sobre esse assunto. Veja se o que você pensou aproxima-se do pensamento do autor: para ele, cabe ao juiz, geralmente agindo de ofício, construir uma ampla estrutura representativa dos interesses em jogo, seja por meio de notificações aos interessados, seja por convites aos órgãos públicos e privados que possam atuar como amicus curiae. PARA REFLETIR Alguns questionamentos para estimular a sua reflexão: No seu ponto de vista, como essas características dos litigantes deveriam afetar a condução do processo pelo juiz? Como preservar a imagem de imparcialidade do juiz em meio a tantas disparidades de poder entre os litigantes? Você concorda com a afirmação de que o juiz deve adotar uma postura estratégica que compense tais disparidades e que garanta um resultado justo, já que há interesses de grandes coletividades envolvidos no processo? https://law.yale.edu/owen-m-fiss INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 14 5. Constitucionalismo e democracia Uma última questão relevante merece ser abordada nesta aula introdutória do Processo Coletivo Constitucional: o fortalecimento do discurso dos direitos, levado a efeito tanto em âmbito global quanto no Brasil pela Constituição de 1988, o qual garante a proteção a extenso rol de direitos, com primazia para a proteção à dignidade da pessoa humana, provoca tensões entre constitucionalismo e democracia. Isso porque cabe ao primeiro resguardar os direitos fundamentais de todos, e sobretudo das minorias, contra movimentos autoritários ou impensados das maiorias, cuja vontade o sistema democrático tende a fazer prevalecer. Portanto, ao adotar o discurso dos direitos humanos, o constitucionalismo – e, por conseguinte, as cortes constitucionais, como o STF –, tornam-se essencialmente contramajoritários. Essas tensões, em geral, desaguam em disputas sobre qual o exato significado do dogma da separação de poderes. Bruce Ackerman (2000) entende que o princípio da separação de poderes é cláusula pétrea constitucional e é importante para a tutela da democracia, do profissionalismo no trato da coisa pública e dos direitos humanos , mas que não se deve exagerar seu alcance, nem se deve importar acriticamente o modelo estadunidense. Bruce Ackerman é professor Sterling de Direito e Ciência Política em Yale e autor de 19 livros em filosofia política, direito constitucional e políticas públicas. Seus principais trabalhos incluem Justiça Social no Estado Liberal e sua história constitucional de múltiplos volumes We the People. Fonte: Yale Law School Como alerta Jean-Paul Veiga da Rocha (2015), um entendimento estanque da separação de poderes não é útil ao bom exercício das funções governamentais: na verdade, ele fecha os olhos à realidade do capitalismo regulado bem como às exigências sociais do constitucionalismo democrático. Note que, além disso, é muito difícil classificar a atividade governamental em três, e apenas três, categorias exclusivas (CHAYES, 1976). https://law.yale.edu/bruce-ackerman INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 15 Nesse debate, não há respostas fáceis. O Poder Judiciário deve, em princípio, atuar em prol dos grandes objetivos da República quando seu isolamento político gerar vantagens institucionais de que os outros Poderes não usufruem. Assim, segundo Oscar Vilhena Vieira (2005), cabe-lhe atuar para efetivar direitos fundamentais e regras de proteção do regime democrático. Oscar Vilhena Vieira é diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP), onde leciona nas áreas de Direito Constitucional, Direitos Humanos e Direito e Desenvolvimento. Possui Mestrado em Direito pela Universidade de Columbia- Nova York, Mestrado e Doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e Pós-doutorado pelo Centre for Brazilian Studies - St. Antonies College, da Universidade de Oxford. Atuante na área de Direitos Humanos. Fonte: FGV Um exemplo dessa atuação protetora do regime democrático ocorreu no julgamento da ADI nº 5617/DF. Acompanhe comigo o que o STF decidiu:Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. ART. 9º DA LEI 13.165/2015. FIXAÇÃO DE PISO (5%) E DE TETO (15%) DO MONTANTE DO FUNDO PARTIDÁRIO DESTINADO AO FINANCIMENTO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS PARA A APLICAÇÃO NAS CAMPANHAS DE CANDIDATAS. PRELIMINAR DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. REJEIÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA À IGUALDADE E À NÃO-DISCRIMINAÇÃO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao examinar as alegações de inconstitucionalidade de norma, deve fixar a interpretação que constitucionalmente a densifique, a fim de fazer incidir o conteúdo normativo cuja efetividade independe de ato do Poder Legislativo. Precedentes. 2. O princípio da igualdade material é prestigiados por ações afirmativas. No entanto, utilizar, para qualquer outro fim, a diferença estabelecida com o objetivo de superar a discriminação ofende o mesmo princípio da igualdade, que veda tratamento discriminatório fundado em circunstâncias que estão fora do controle das pessoas, como a raça, o sexo, a cor da pele ou qualquer outra diferenciação arbitrariamente considerada. Precedente do CEDAW. https://direitosp.fgv.br/professor/oscar-vilhena-vieira INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 16 3. A autonomia partidária não consagra regra que exima o partido do respeito incondicional aos direitos fundamentais, pois é precisamente na artificiosa segmentação entre o público e o privado que reside a principal forma de discriminação das mulheres. 4. Ação direta julgada procedente para: (i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “três ” contida no art. 9º da Lei 13.165/2015; (ii) dar interpretação conforme à Constituição ao art. 9º da Lei 13.165/2015 de modo a (a) equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do fundo alocado a cada partido, para eleições majoritárias e proporcionais, e (b) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhes seja alocado na mesma proporção; (iii) declarar a inconstitucionalidade, por arrastamento, do § 5º-A e do § 7º do art. 44 da Lei 9.096/95. O Poder Judiciário deve agir, principalmente, diante de omissões dos poderes públicos na implementação de direitos, pois elas são obstáculos relevantes para a efetividade das normas constitucionais (PIOVESAN, 2003). Além disso, os eleitos são mais facilmente responsabilizados pelos seus eleitores por atos comissivos do que omissivos (REFOSCO, 2018), o que contribui para que sejam comuns as omissões inconstitucionais. A litigiosidade pode contribuir para a formação da agenda política e, dessa forma, para a superação da omissão do poder público. Nesse sentido, a advocacia de interesse público pode aumentar custos políticos decorrentes de violações a direitos, de forma que o sistema jurídico dê “[...] visibilidade pública, na forma de reconhecimento de direitos àqueles que são desconsiderados pelo sistema político e pela própria sociedade” (VIEIRA, 2007, p. 49). Vale lembrar que, em quase todo o mundo, o acesso ao Judiciário é mais simples e menos custoso do que o acesso ao Legislativo e ao Executivo (GALANTER, 1974). INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 17 Já David Kennedy (2002) suscita dúvidas sobre a efetividade da utilização da linguagem dos direitos subjetivos para o alcance de reais efeitos distributivos e para a redução da desigualdade socioeconômica. PARA REFLETIR Mesmo diante da ascensão do conceito de supremacia constitucional, Ran Hirschl (2013) defende ser recomendável que o Poder Judiciário aja sempre com cautela, já que os atores políticos são coniventes com a “juristocracia”, porque podem, assim, transferir suas responsabilidades para instituições imunes aos controles democráticos tradicionais e, com isso, evitar sua responsabilização política por decisões difíceis e impopulares. David W. Kennedy é professor de Direito e Diretor do Instituto de Direito e Política Global da Harvard Law School, onde ensina direito internacional, política econômica internacional, teoria jurídica, direito e desenvolvimento e direito europeu. Fonte: Havard Law School Cabe ponderar, por outro lado, como faz Enrique Ricardo Lewandowski (2009), que o protagonismo do Poder Judiciário na efetivação dos direitos fundamentais deriva da própria Constituição, que lhe confere meios legítimos para extrair consequências jurídicas dos princípios constitucionais. Diante dessas visões, você considera possível estabelecer uma linha fixa intransponível nessa constante tensão entre a democracia e o constitucionalismo? Se sim, qual seria ela? https://hls.harvard.edu/faculty/directory/10468/Kennedy https://www.law.utoronto.ca/faculty-staff/full-time-faculty/ran-hirschl https://www.law.utoronto.ca/faculty-staff/full-time-faculty/ran-hirschl https://hls.harvard.edu/faculty/directory/10468/Kennedy INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 18 Caminhando para o término de nossa aula, gostaria que o “discurso dos direitos” ficasse bem cristalino em seu entendimento. Assim, peço que assista ao vídeo “Constitucionalismo Global - Aula 2: O Discurso dos Direitos”, elaborado pelo grupo “Para além dos direitos”. VÍDEO Qual a sua opinião sobre o vídeo? Considerações finais Fico feliz que tenha permanecido firme até aqui! Nesta aula, falamos sobre as transformações sociais e econômicas no Brasil e no mundo que levaram ao litígio de interesse público, que nada mais é do que aquilo que conhecemos como litígio repetitivo. Em especial, pudemos refletir sobre as características dos diversos tipos de litigantes e o papel do julgador nesse contexto. Vimos, por fim, como se estabelece a tensão entre constitucionalismo e democracia, e qual o papel do Judiciário à luz do desenho institucional de tripartição de Poderes. Solidificados esses assuntos, na Aula 2, você estudará o microssistema de processo coletivo brasileiro. Foi um prazer dialogar com você. Ótimos estudos! Fonte: Constitucionalismo Global - Aula 2: O Discurso dos Direitos https://www.youtube.com/watch?v=zludM8UBHNk https://www.youtube.com/watch?v=zludM8UBHNk https://www.youtube.com/watch?v=zludM8UBHNk INTRODUÇÃO AO PROCESSO COLETIVO CONSTITUCIONAL Aula 1 - Teoria geral do processo coletivo 19 Referências ACKERMAN, Bruce. The New Separation of Powers. Harvard Law Review, v. 113, n. 3, p. 633–729, jan. 2000. BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Panorama de acesso à Justiça no Brasil, 2004 a 2009. Brasília: CNJ, jul. 2011. 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Apresentação do curso Introdução 1. Transformações sociais e econômicas no mundo e no Brasil 2. O litígio de interesse público 3. O sistema de precedentes vinculantes 4. Características dos diversos tipos de litigantes 5. Constitucionalismo e democracia Considerações Finais Referências
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