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S U M Á R I O Apresentação Seção I – Textos das conferências Produção contemporânea do conhecimento Francesco GOSTOLI A produção acadêmica na área de Exatas: um panorama recente e relações com a Educação C. A. M. de MELO Lugar das Humanidades na ideia de universidade crítica Paulo Denisar FRAGA Reflexo da ausência de uma formação crítica na escrita de alunos da graduação em Letras Sulemi FABIANO Seção II – Trabalhos completos 1. Ciências Humanas Onde está a criança e a infância? Estudos sobre o brincar, o brinquedo e a brinquedoteca: a presença/ausência da cultura lúdica infantil na produção acadêmica Tatiani Rabelo LAPA; Claudia PANIZZOLO A escrita da criança Mariana da Costa de SOUZA; Silmara de Fátima HIPÓLITO A Folia de Reis: cultura popular e educação Maria José Marcos de OLIVEIRA; Daniela Aparecida EUFRÁSIO; Geovânia Lúcia dos SANTOS Breve análise da formação de professores no século XX sob o olhar de Anísio Teixeira Regina Aparecida CORREA Sociologia do conhecimento na historiografia do Ensino Profissional Marcelo Rodrigues CONCEIÇÃO Literatura infantil clássica e formação do leitor Juliane Maria da COSTA; Daniela Aparecida EUFRÁSIO; Fernanda Vilhena Mafra BAZON O Serviço Social e a manutenção da sociedade de classes: uma análise dos Projetos Sociais de qualificação profissional para jovens Amanda EUFRÁSIO; Maria Beatriz Costa ABRAMIDES Revistas infantis do inicio do século XX: uma representação de Infância Marissa Rezende ANDRADE et al. Um estudo sobre a creche: caracterização das profissionais do município de Alfenas/MG Vanusa Correa LOURENÇO Agricultura familiar e pluriatividade nos bairros rurais Canta Galo e Barro Branco do Município de Areado/MG: análises preliminares Vanderléia Correa LOURENÇO; Ana Rute do VALE Material didático adaptado para alunos com deficiência visual: estratégias de aprendizagem José Murilo Calixto VAZ et al. A utilização de jogos didáticos como estratégia para a aprendizagem de Química Orgânica e sua adaptação para alunos com deficiência visual Bruna da SILVA et al. Edição e reedição de textos infantis Carla DAMAS; Simone Pereira NOGUEIRA 2. Ciências Exatas, Biológicas e da Saúde Estabelecimento do diagnóstico clínico-citogenético de Síndrome Down e determinação da prevalência de anemia em crianças e adolescentes da APAE-Alfenas Juliana Cristina GOMES et al. Produção de biodiesel a partir da gordura presente no soro de leite: ensaios preliminares Bruno Eduardo S. MACENA et al. Extrato aquoso das folhas de Plinia edulis apresenta alta citotoxicidade em células de adenocarcinoma mamário humano MCF-7 Ailton José da Silveira de CARVALHO et al. Engenharia ambiental: perspectivas atuais e futuras Gabriela CONSOLINI; Patrícia Neves MENDES; Sylma Carvalho MAESTRELLI Estudo da obesidade e hipovitaminose A em crianças e adolescentes assistidos pela APAE de Alfenas-MG Isabela de Siqueira CARVALHO et al. Análise espacial baseada em modelo do risco familiar no município de Alfenas-MG Cintia Fonseca de SOUZA et al. Germinação de sementes de palmeira triângulo submetidas a duas condições ambientais Stéphanie de Fátima PEREIRA; Marcelo POLO Atividade antagônica in vitro de fungos endofíticos de manguezais a fungos fitopatogênicos Priscilla Oliveira AMARAL et al. Estudo da ação citotóxica de complexos de paládio (II) para células de adenocarcinoma mamário humano Nathália Cristina CAMPANELLA et al. Seção III – Resumos de comunicações A construção do texto por crianças do 5º ano do Ensino Fundamental Ana Paula; Maicon Fabio GARCIA A resistência à leitura: o papel do professor na formação do leitor literário Geane Cristine LEITE; Giovana Carine LEITE; Marcela Martins de OLIVEIRA A vivência dos pais em uma Brinquedoteca Hospitalar Samantha Rosa de PAULA et al. Articulação entre formação universitária e prática de ensino em concursos públicos Adriana Santos BATISTA Avaliação em saúde: O processo de trabalho na atenção primária de Alfenas sob a ótica do usuário Lidiege Terra Souza GOMES; Miriam Monteiro de Castro GRACIANO Como o trabalho de consciência fonológica pode favorecer o processo de aquisição da escrita? Ana Caroline de Brito EVANGELISTA; Carolina de Araújo Maia LOPES De uma escrita responsável: efeitos das intervenções de um orientador Suelen Gregatti da IGREJA Educação léxico-gramatical e práticas de linguagem nos anos iniciais do Ensino Fundamenta Ana Carolina Oliveira GOMES Estudo da aplicação de argilas não plásticas da região de Poços de Caldas Ana Gabriele Pereira NUNES et al. Iniciação à docência de futuros pedagogos: a constituição do saber docente Geane Cristine LEITE; Tatiana Vilela Alvarenga THIERS O ensino e a Formação de Professores de Tétum no Timor Leste Francisca Maria Soares dos REIS O ensino de língua portuguesa constitui uma disciplina? Daniela A. EUFRÁSIO; Fabiana de OLIVEIRA; Pricila Oliveira SILVÉRIO O que é o ato de ler para os mediadores de leitura? Adriana FERNANDES; Dulciene Silva OLIVEIRA O trabalho com reconto de textos infantis Patrícia Abreu Cassette PAIVA; Patrik Raquel PEREIRA Produção de etanol a partir da lactose presente no soro de leite: ensaios preliminares Caroline da Costa GONÇALVES et al. Professores alfabetizadores e o uso dos subsídios didáticos Maria Eliete Cassiano MOREIRA; Ana Cristina Gonçalves de Abreu SOUZA Projeto “Rio Machado”: a interdisciplinaridade como campo de leitura e produção Geane Cristine LEITE et al. Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Apresentação Estes Anais compilam os debates e as pesquisas apresentados no decorrer do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior, realizado na Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL-MG – entre os dias 15 e 17 de setembro de 2010. Esta sétima edição foi inovadora e desafiante. Inovadora porque, pela primeira vez, o evento ocorreu fora do âmbito do Congresso de Leitura do Brasil – COLE, o qual o Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior integra desde 1999. Quanto ao desafio que representou a realização deste evento para a Comissão Organizadora, destaca-se a necessidade de agregar áreas de produção do conhecimento muito distintas, sem ter focalizado, como nas edições anteriores, áreas como Letras e Educação, que vêm assumindo, num processo crescente, o objetivo de refletir sobre o que a universidade tem atualmente produzido enquanto conhecimento. O resultado desta empreitada encontra-se delineada nestes Anais. Neles estão algumas das conferências proferidas no decorrer do Seminário, nas quais se poderá perceber o intuito de pensar a produção acadêmica, tanto em âmbito nacional quanto internacional, e também os pontos divergentes que tal proposta de reflexão propulsiona. Os resumos das comunicações e os trabalhos completos que compõem o presente CD dão mostras dos temas, métodos e resultados que têm orientado os trabalhos de pesquisadores e alunos de graduação e pós- graduação. Este conjunto de textos parece interessante de ser analisado, se compreendido como um breve panorama de quais são as investigações científicas que têm sido privilegiadas na produção acadêmica e que relações de continuidade, ruptura e/ou transformação estão em voga quando acompanhamos as produções científicas que estão ocorrendo da graduação à pesquisa de professores universitários. Cabe ressaltar que o Seminário contou também com a apresentação de trabalhos de docentes do Ensino Básico e de licenciandos que estão em período de estágio, que divulgaram os seus projetos e resultados de pesquisa na modalidade “comunicação oral”, os quais podem ser lidos nestes Anais no formato de resumo e/ou texto completo. Sendo assim, quando citamos a importância de que as produções científicas sejam analisadas nos seus diversos níveis, fica subentendido que estas pesquisas não ocorrem, como se podepensar num primeiro momento, somente no espaço legitimado da universidade, pois, conforme se fortifica o movimento de que a pesquisa ocorra em todos os níveis de ensino, as produções de caráter investigativo ampliam-se e ultrapassam os limites dos muros universitários. 4 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 A organização das várias edições do Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior centra-se exatamente na ideia de que a pesquisa deve estar presente em todos os níveis de ensino e é em torno dela que o ideal de formação dos diversos profissionais pode dar-se com excelência. Disso advém a importância da temática proposta pelo Seminário, haja vista que, se a pesquisa é entendida como central para a formação em seus diversos níveis de escolaridade, é importante que ela seja interrogada sobre a qualidade do que tem produzido e oferecido. Esta não é uma tarefa fácil e a realização do VII Seminário, entremeada por dificuldades e superações, procurou contribuir para os avanços nas discussões em torno desta temática. No ano de 2011, o Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior acontecerá na UNICAMP, durante o COLE, e em 2012, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, o que nos proporciona a certeza de que as discussões propostas pelo evento já têm um caminho longo e profícuo a ser percorrido. Por fim, agradecemos a todos aqueles que participaram do Seminário, como palestrantes, comunicadores e ouvintes, e que o tornaram cenário de variados e importantes debates. Desejamos compartilhar o sucesso da sétima edição do Seminário com todos aqueles que colaboraram para a organização do evento: professores, alunos, técnicos e funcionários da UNIFAL-MG. Nosso agradecimento especial a toda equipe de mídia e edição e ao Prof. Dr. Fábio de Barros Silva, responsáveis pela organização destes Anais, que vêm fechar com chave de ouro os trabalhos do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior. Profª. Mª. Daniela Eufrásio Profª. Drª. Fabiana de Oliveira Retornar ao sumário 5 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Produção contemporânea do conhecimento* Francesco Gostoli Universidade de Veneza Há alguns meses recebi um e-mail convidando-me para esse seminário e nele estava escrito que o assunto a ser tratado era a produção contemporânea do conhecimento na Universidade. Como arquiteto, tratei do tema do ponto de vista da arquitetura. No e-mail, o tema vinha acompanhado de algumas perguntas, dentre as quais: o que se entende por produção contemporânea do conhecimento? Esta pergunta é o motivo pelo qual estou aqui. Considero-a estratégica para os tempos que estamos vivendo. O tema do vosso seminário propõe a relação entre o conhecimento adquirido e legitimado na Universidade e a produção de um conhecimento contemporâneo. Ou seja, propõe três questões cruciais: quais mudanças estão ocorrendo na comunidade dos homens que habitam o planeta? Qual instrumento é necessário elaborar para compreender tais mudanças e para estar incluído nesse meio? Que lugar é ocupado pelas Universidades nas mudanças que estão ocorrendo? Essencialmente, vós estais dizendo que é necessário produzir instrumentos de conhecimento diferentes daqueles que utilizamos outrora, porque a sociedade mudou e está mudando continuamente. Estou de acordo com vós. Gostaria de acrescentar que a nossa mente deve ser capaz de capturar as novidades que estão acontecendo e não podem permanecer entrincheiradas em rotinas cotidianas. Em alguns campos, como no meu, estão acontecendo mudanças radicais. A partir de 2007, a maioria da população da terra tem habitado nas cidades e as migrações do campo para os centros urbanos continuam. Isso nunca havia acontecido na história da humanidade. Existem regiões urbanas com 120 milhões de habitantes (Hong Kong-Shenhzen-Guangzhou na China). O Fórum Urbano Mundial ocorrido em março passado no Rio de Janeiro terminou com uma frase de advertência para os governantes: o direito à cidade. Derrubando as cercas que dividem as zonas urbanas, é dado a todos a chance de viver na cidade dignamente. A cidade que não tem mais fim, com determinadas regiões urbanas no Japão nas quais se prevê que se alcancem os 60 milhões de habitantes, ou aqui no Brasil, os 43 milhões de habitantes previstos nas regiões do Rio de Janeiro e São Paulo. As expansões das cidades em curso não são controladas. É necessário inventar instrumentos adequados para salvaguardar o nosso habitat natural, para projetar novas cidades que tenham forma-limite para as expansões que não acabam mais, para construir novos edifícios, para compreender as novas características úteis às pessoas, para produção de novas utopias. Atenção, porém, não se parte do nada, deve-se considerar a história e a sua herança. A estrutura do homem é ainda aquela de quando subia sobre árvores, mesmo que a sua dimensão mental seja mais complexa em termos de eficácia. Sou um arquiteto que desenvolve a sua atividade no meio da multidão e que considera a Universidade um laboratório de confronto cultural para o próprio trabalho. Irei lhes falar, portanto, como arquiteto e tentarei responder às vossas questões do meu ponto de vista, esperando trazer uma contribuição útil. Começamos por perguntar o que entendemos por produção do conhecimento. O adjetivo contemporâneo será usado sucessivamente. Em que sentido podemos falar de produção do conhecimento? * Texto traduzido do italiano pelos professores Dr. Marcos Roberto de Faria (ICHL/UNIFAL-MG) e Dr. Paulo César de Oliveira (DFIME/UFSJ). 6 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Um lápis é produzido, um automóvel é produzido, o vinho é produzido. O primeiro é um objeto sólido, pensado e construído para desenhar ou escrever. O segundo é um carro: um conjunto de peças montadas que formam um objeto mecânico feito para nos movermos mais rápido ou para transportar produtos. O terceiro é um líquido fornecido pela natureza e que me dá felicidade todas as vezes que o bebo. O conhecimento é um objeto: tem o seu estado físico, ou seja, é um sólido, ou um líquido, ou um gás? Podemos considerá-lo um bem de consumo como um lápis, ou um carro, ou uma coca-cola? Eu creio que em termos simples podemos dizer que cada um de nós pensa ou age de acordo com um conjunto de experiências que pertencem a nós ou que herdamos de outros. Experiências mais ou menos recentes, ou tão antigas que fazem parte do nosso DNA de seres humanos. Tais experiências constituem a base do nosso existir individual ou coletivo. Elas formam o ponto de partida para a compreensão de qualquer fenômeno que e são úteis. O conhecimento é, portanto, um processo mental e, ao mesmo tempo, um conjunto de ações coerentes que conduzem a resultados úteis que nos fazem viver melhor, como pessoas e como coletividade. Ele não é um objeto. Não possui um tempo como os objetos, uma duração ligada à utilidade, nem possui um espaço como os objetos, na verdade não é mensurável com um metro. Não tem lugares específicos onde é produzido, nem se quebra, ou pode ser ajustado. Talvez é uma onda, ou um conjunto de ondas que cada indivíduo possui no cérebro e transmite aos outros indivíduos. Um trabalho contínuo do nosso existir no mundo físico ao qual pertencemos, onde presente e passado são co-presentes nas ações que fazemos, nas respostas que queremos obter, nos objetivos que queremos alcançar, nas coisas que queremos construir. Um trabalho contínuo baseado na relação constante entre aquilo que aconteceu eaquilo que está acontecendo, ou que prevemos possa acontecer num futuro imediato. Gostaria agora de focar sobre duas características que considero específicas do ato de conhecer: Exatidão e Casualidade. Os significados que nós hoje damos a estes dois termos são diferentes daqueles que os mesmos termos tiveram no século passado. O sentido de Exatidão e Casualidade, deduzidos das descobertas do início do século XX, hoje se torna perturbador em relação ao contexto mundial determinado pela internet. Essa última se tornou acessível para as massas populares a um custo mais político do que real, através do computador. Uma “tabuleta” ligeira que qualquer um pode carregar consigo, em toda parte, e que possui um custo de material e de montagem irrisório, mas que possui um alto valor político-social. De fato, ele é a chave de acesso às informações que são produção de conhecimento e bens de consumo ao mesmo tempo, uma parcela importante das economias dos estados contemporâneos. As pessoas que possuem um computador têm a possibilidade de se enriquecerem e do seu lugar podem produzir conhecimento. As pessoas que não o possuem são pobres, não têm possibilidade de escolha e o seu lugar está sujeito à decadência. Retornemos à Exatidão e Casualidade. Considero que o novo significado destes dois termos seja determinado, sobretudo, pelos resultados do trabalho de três homens: Albert Eistein, Kurt Godel e Werner Heisemberg. Trabalhos tornados públicos na primeira metade do século XX: a teoria da relatividade restrita e alargada (Einstein) – 1905 e 1915 –, os teoremas de incompletude (Godel) – 1931 – e o princípio de indeterminação (Heisemberg) – 1927. Resultados de difícil compreensão, que colocam sob dura prova não somente a capacidade de seguir-lhe as formulações e as demonstrações, mas a própria intuição das suas afirmações a respeito das convicções consolidadas na nossa cultura. Resultados que se movem em medidas não apreciáveis pelo homem na sua vida cotidiana, mas que na realidade representam as linhas de fronteira do raciocínio contemporâneo, os instrumentos necessários para a compreensão dos fenômenos dos quais fazemos parte. Resultados que nos representam 7 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 e que causam importantes impactos sobre nosso imaginário e sobre as coisas que estão à nossa frente. Eles vão além das disciplinas nas quais foram formuladas, a física e a matemática, possuem conteúdos gerais que incidem sobre a atitude desejável para a produção do conhecimento contemporâneo. Por exemplo, a nível intuitivo, o espaço euclideano – juntamente com as relações geométricas que desde séculos foram a referência para o nosso conhecimento e construção dos espaços nos quais vivemos – possui rapidamente uma potente aceleração inovadora com a afirmação que na realidade nós vivemos em um espaço-tempo retorcido. Inevitavelmente, a atitude no confrontos do significado do espaço tornou-se mais complexa. Não por acaso falo de espaço-tempo como unidade de referência do lugar onde ocorrem os fenômenos. Com relação a isso, gostaria de fazer uma observação. Geralmente, quando se fala de arquitetura, referimo-nos aos elementos que constróem um edifício: as pilastras ou as colunas, os muros ou as escadas, os pisos, as janelas, etc. Na realidade, a característica fundamental de uma arquitetura é o seu espaço; é o próprio espaço a primeira coisa que pensa um arquiteto quando projeta; o vazio do ar e da luz onde as pessoas vivem e desenvolvem as suas funções. Vazio que é dimensionado, isto é, controlado construtivamente, pelos elementos da construção que um arquiteto usa para edificá-lo, os quais, segundo suas medidas, dão dimensões aos espaços de um edificio. Medidas que constituem as referências necessárias para as pessoas usarem aqueles espaços e para vivermos no melhor modo possível. Quando, de consequência, falo de um espaço complexo, não me refiro a formas artificiais que podem assumir os particulares elementos construção, mas à complexidade das medidas e das relações que as medem. O sentido do espaço-tempo retorcido que devemos a Einstein, como a relação entre energia e matéria, levam-nos a encontrar instrumentos mais adequados também em outros campos além da física, por exemplo, na arquitetura, solicitando-nos à pesquisa de espaços não redutíveis a geometrias bidimensionais, ou mesmo à investigação de sistemas estruturais contínuos que indagam o espaço e não mais somente distintos rigidamente em estruturas de fundação, telas centrais e teto, como acontece na grande parte de edifícios que se continua a construir. Pensem nas grandes diferenças que existem entre os projetos de dois aquitetos que consideram a pedra ou o cimento armado, o primerio como matéria inerte, o segundo como energia viva a plasmar. Não é somente uma questão estética, nem estou falando de descobertas que atendem a uma disciplina apenas; são aspectos científicios que nos fazem compreender melhor as questões que a sociedade contemporânea apresenta. Os teoremas de Godel demonstram que a coerência da aritmética não pode ser demonstrada a partir de raciocínio matemático representado no âmbito da própria aritimética. Douglas Hofstadter no seu livro Godel, Escher, Bach: an Golden Braid, para explicar o sentido da descoberta de Godel, usa o diálogo entre Aquiles e a sua amiga tartaruga que, falando de gramofones e discos, chega à conclusão que existirá sempre, todavia, um disco cuja música não poderá ser tocada daquele gramofone: não existe fonógrafo perfeito. Em Godel, a complexidade rompe o raciocínio consequencial que parte de axiomas definitivos e atinge resultados absolutos para buscar outras verdades que estão em âmbitos diferentes em relação àqueles dos quais se partiu. Verdades nunca exaustivas mesmo se todas logicamente exatas. Pensem qual instrumento potente para nos fazer compreender as outras culturas, as outras realidades que a internet e os fenômenos migradores que se fizeram presentes na nossa socidade e, portanto, necessários ao nosso viver cotidiano. Estou falando de sinergia das disciplinas, de interdisciplinariedade: uma caracterísitica da produção cultural contemporânea em oposição à especialização levantada que foi, ao contrário, a marca da cultura novecentesca. 8 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 O princípio de indeterminação de Wernwe Heisemberg refere-se ao comportamento da matéria em escala atômica. Uma escala muito pequena. Imaginem se crescer como uma maçã. Dimensões que não nos pertencem intuitivamente. Mesmo neste caso, leva a inovação da afirmação que deve nos interessar. Heisemberg sustentou e demonstrou que as leis da natureza, os nossos instrumentos para conhecer os fenômemos, conseguem ter coerência, ser eficazes, somente se aceitam a limitação que é impossível projetar um aparato instrumental que nos mostre como se movem os elétrons sem interferir nos seus movimentos. É impossível um aparato que compreenda e torne cada coisa visível. Como escreveu Richard Feyman, a teoria da mecânica quântica que usamos para descrever o comportamento da matéria depende “da exatidão do princípio de indeterminação”!!! Podemos afirmar, portanto, que a exatidão contemporânea possui referências diferentes daquelas euclidianas, é incompleta e indeterminada. Em outras palavras, usa espaços curvos, as suas verdades encontram fundamento fora dele e isso que é determinado pode fazer-lhe parte. Pensem na desconfiança das civilizações do passado, mas também recente sobre o zero e o infinito. Isto não significa que a exatidão contemporânea é genérica,mas complexa. Não indemonstrável, mas demonstrável; com o pacto de aceitar a pluralidade dos fatores que entram em jogo, que podem estar fora dela. É precisa se a considero mentalmente, no momento em que a examino, sem que a análise esgote o fenômeno que estou considerando. Se vejo um caminhão que entra em um túnel em alta velocidade, presuponho que ele continua a mover-se na mesma condição dentro do túnel mesmo se eu não vejo o seu movimento. “O infinito” de Giacomo Leopardi, uma escrita lírica do poeta italino em 1819, interpreta bem a condição do homem contemporâneo em relação ao processo do conhecimento que lhe é próprio. “E esta margem, que de muitas partes/Do último horizonte o olhar exclui./Mas sentando e olhando/indeterminados espaços além daquela, e sobre humanos/Silêncios, e profundos silêncios/Eu no pensar finjo; onde por pouco/o coração não se encoraja.” Não obstante a margem limitar a minha vista, eu imagino o mundo que está além, isto é, supero o obstáculo com a minha imaginação, com a minha fantasia. No que se refere à causalidade, faço referências também ao princípio do axioma da desordem formulado por Richard Mises, segundo o qual, assim como nos jogos de azar, o requisito essencial para que uma sequência (por exemplo de números ou de objetos) possa definir-se casual, consiste na completa ausência de regras aplicadas com sucesso para melhorar as previsões acerca do próximo número. É verdade que “Deus não joga dados”, mas é também verdade que conhecemos muito pouco o universo no qual vivemos. Considero que processo de conhecimento às vezes seja gerado por eventos completamente casuais sem por isso tornar menos brilhante o resultado. Penso que o processo de conhecimento de cada um de nós seja um work in progress no qual a causalidade pode ser um fator importante. Como arquiteto, penso que o encontro físico casual entre as pessoas seja essencial para a troca de informações e à imprevisibilidade de seu desenvolvimento. Em consequência, considero que os espaços físicos usados para os encontros entre pessoas sejam de igual importância àqueles onde as pessoas desenvolvem as funções para a qual um edifício foi construído. Eles representam os verdadeiros espaços contemporâneos ( as funções são álibes, mudam rapidamente, algumas são inventadas pelas pessoas no instante em que usam um edifício). Os espaços contemporâneos mudam de forma em relação ao tempo no qual as simples funções, precisas e divididas umas das outras, determinavam a forma dos edifícios e das cidades. A tomada de consciência coletiva, refletida ou intuitiva, dos significados de 9 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 exatidão e casualidade e as redes onde se movem os fluxos das noções definem os instrumentos e o contexto da produção contemporânea da cultura. Agora consideremos as Universidades. Elas foram, por sua história e vocação, lugares físicos de confronto das melhores inteligências, onde se desenvolveram teorias que têm modificado o nosso modo de viver. As Universidades não só foram os lugares de produção de grande parte da nossa cultura moderna, mas também os locais onde esta cultura foi transmitida. Locais de privilégio, onde ocorreu a formação de pessoas que tinham condições de frequentá-los, por terem tempo e dinheiro. Creio que nestes anos está em jogo uma partida crucial sobre os processos de conhecimento e sobre os locais onde estes processos amadurecem e se difundem; isto é, sobre seu controle. Uma questão tão antiga quanto o homem: o controle da formação e difusão do saber. Prometeu roubou o fogo dos Deuses e os homens, que o possuíram, tinham em mãos o poder de decidir também pelos outros. Uma partida que sempre esteve em jogo, mas hoje possui números tais que a configuram sem precedentes, porque com a internet é o planeta que está em jogo: não uma cidade, uma região, um estado, ou um continente. Não uma única sociedade, mas a inteira comunidade humana: o conjunto de raças e culturas, até mesmo aquelas que não conhecemos. E ainda há mais: os instrumentos que organizam as informações não têm limities físicos, confins ou territórios delimitados. Nações e territórios historicamente em forte conflito podem construir um mesmo sistema de informações e tentar superar ali mesmo suas diferenças. É o que eu espero que esteja por acontecer entre Israelitas e Palestinos. Pensemos no recente confronto entre Google e o Estado Chinês, ou a Wikipedia, a enciclopédia livre, como se autodenomina. Enquanto eu estou escrevendo este texto, as mídias reportam sobre o acordo Google-Verizon que será levado ao conhecimento do Congresso dos Estados Unidos. De fato, na América é o Congresso que decide em matéria de informações. A neutralidade da rede sobre a qual se baseia a internet via cabo é colocada em discussão pelo acordo firmado pela internet wireless que, ao contrário, passará os custos para o usuário. Isto significa que o procedimento-internet se configura como uma infra-estrutura produtiva não mais a custo zero. Disso deverão se ocupar Governos e Universidades. A democracia hoje significa que qualquer pessoa deve estar potencialmente em situação autônoma de ascender às noções básicas da cultura contemporânea, isto é, a uma cultura altamente sofisticada. Para fazer isto é necessário um meio, um computador com acesso à internet e um suporte suficiente. Computador e suporte representam a diferenciação entre o que está dentro ou o que está fora na sociedade moderna: entre aquele que pode ser rico e se tornará cada vez mais rico e o que é pobre e se tornará cada vez mais pobre. As regiões degradadas serão aquelas nas quais a população não possuirá computadores, isto é, tecnologia e suporte e, consequentemente, informações necessárias às normas planetárias. Aqui se encontra uma das formas de discriminação contemporânea. O conhecimento e a capacidade de elaboração e de colocar em circulação as informações úteis são a riqueza da sociedade contemporânea. Não o petróleo, nem os motores, mas conhecimento e rede, unida ao ambiente, estão determinando os novos modelos de desenvolvimento da Humanidade. No modelo de desenvolvimento consumista do qual viemos, era democrático um país que consumia o mais rapidamente possível. Neste que estamos construindo, é democrático o país no qual será alto o nível de produção de informações úteis. Isto significa que qualquer pessoa pode ser um recurso para o seu país. Isto nunca havia acontecido na história dos povos. Enquanto que no trajeto de uma pessoa curiosa em uma favela de São Paulo, por exemplo Heliópolis, poderei encontrar uma pessoa que me pergunta: “Quem é Michelângelo?”, por que não?! Um amigo de um bairro rico lhe deu um velho computador que funciona mal e ele começou a procurar e encontrou um nome estranho: Michelângelo. Eu não posso responder-lhe que Michelângelo foi um escultor, pintor e arquiteto do 10 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Renascimento italiano, porque aquela pessoa poderá não conhecer o renascimento italiano e eu não posso sustentar por isso que aquela é uma pessoa ignorante. Nem posso responder apelando para o uso da Arte perspectiva, o instrumento de representação espacial que os artistas renascentistas inventaram. Devo primeiro compreender os instrumentos da sua cultura, depois fazê-lo ver e narrar as obras feitas por Michelângelo. Pode ser que ele fará o mesmo comigo mostrando-me um mural que está à nossa frente. Ao fazer isso, eu e esta pessoa inventamosnovos instrumentos de crítica figurativa que colocaremos em rede e que podem ser usados para o desenvolvimento de outros. Pode ser que consigamos o sucesso e também um pouco de dinheiro. Pois bem, eu e aquela pessoa produzimos um instrumento da cultura contemporânea. A classe média que tem determinado a sociedade industrial revolucionando os meios de produção e a própria produção com bens de consumo de curta duração para poderem ser produzidos em intervalos sempre mais breves, tem considerado a produção cultural como um acaso em relação à essência produtiva da fábrica. Ela tem desenvolvido a pesquisa cultural somente em sintonia com a sua lógica produtiva. Nos séculos XIX e XX, é central a questão da energia como combustível para a produção e para o consumo social dos bens produzidos. Hoje a questão é diferente. O desenvolvimento é baseado sobre um equilíbrio sinérgico entre Energia, Ambiente, Informação. Isto está mudando a produção e a sociedade na qual vivemos. A produção cultural, em todos os setores tradicionais ou de novas invenções, casuais ou programadas, configuram-se como produção econômica estratégica. Uma produção interdisciplinar. Uma produção que, tendo como lugar necessário a rede, tende a desvincular-se de qualquer tentativa de condicionamento que limite seus resultados. Eis a primeira novidade. A partida, neste momento, é jogada entre aqueles que defendem os privilégios adquiridos, fornecidos por um sistema inadequado – Energia – Máquina – Consumo rápido, e aqueles que possuem grande potencial em matéria de energia, ambiente e recursos para investir em tecnologia e informação. Esses, certamente, pretendem ser os interlocutores para delinear as estratégias futuras da sociedade que habitam o planeta. Neste contexto, as Universidades, lugares históricos da produção e difusão do conhecimento, transformam-se em lugares de trocas culturais, de encontro casual entre informações e ideias que possam gerar resultados úteis à comunidade dos homens, lugares de elaborações e experimentações. Não mais lugares de hegemonia cultural localizados em uma área física sob sua proteção, como frequentemente ainda acontece. Esta, é a segunda novidade. O computador não tem lugar, eu o coloco na bolsa, eu posso carregá-lo por toda parte, a ligação concreta com o lugar específico é representado por mim. O computador pode conectar-me com qualquer ponto ou pessoa do planeta no instante que eu quiser. Ele nos permite uma nova dimensão espaço-temporal. O esforço social, econômico, político destes tempos é colocar em rede as informações que são aquelas de fronteira do conhecimento. É um esforço que encontra resistência. Aqui está, eu creio, a linha que divide progressistas e conservadores. A Universidade pode ser a minha casa, a árvore de um campo, o barco no mar, o topo de uma montanha. Sou livre, com os meus teclados, dos condicionamentos do lugar. Livre para falar com qualquer um que aceita o diálogo, desde que ambos estejam equipados com tecnologia e suporte. É esta liberdade que é adquirida pelas pessoas que produzem conhecimento, é esta liberdade que assusta aqueles que usam o conhecimento como ferramenta para a supremacia de uma cidade, de uma região, de um estado sobre outras cidades, regiões, estados. As Universidades tornam-se lugares de trocas elevadas, onde a produção cultural pode ter múltiplas oportunidades. 11 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Em resumo, o meu esforço foi o de comunicar-lhes aquilo que vocês já sabiam: docentes, pesquisadores e estudantes continuam a desenvolver o seu trabalho de artesãos da cultura e do progresso científico dos povos, mas o fazem em um ambiente que muda radicalmente a natureza dos seus trabalhos. Os números de multiplicidade, a complexidade dos interesses, a autonomia da individualidade, o valor do próprio ambiente, a diversificação energética que deriva daí, a possibilidade de saber com facilidade o que está acontecendo no mundo sobre um tópico específico, aperfeiçoa o trabalho de produção cultural em relação aos resultados úteis. Considero a arquitetura a arte de construir edifícios e espaços para a cidade das mulheres e dos homens. Ela nos faz compreender o grau de conhecimento científico aplicado às pessoas que habitaram ou habitam um cidade. Construir um edifício é vencer a força da gravidade. Usar com elegância o material mínimo necessário para uma construção significa vencer a força da gravidade com inteligência. As formas que admiramos e recordamos são formas inteligentes. Recordamos um lugar natural por uma árvore, por uma curva de um curso d’água, pela forma de uma colina ou por uma montanha. Recordamos uma cidade pelos seus edifícios, suas praças, suas ruas, sua forma. Os edifícios representam a ordem e a verificação de qualquer projeto arquitetônico. Um projeto é apenas uma intenção espacial, a sua realização é a sua realidade. A produção do conhecimento arquitetônico é baseada nos edifícios: o espaço e as cidades dos homens para os homens. As cidades são os laboratórios reais da arquitetura. Toda cidade, por mais modesta, é um fenômeno complexo que é necessário compreender o melhor possível quando se deve construir sobre seu território, ainda que seja uma simples casa. No início de Shadow cities Robert Neuwirth, descrevendo a Rocinha no Rio de Janeiro, escreve: “(...) atravessei a rua princinpal, em São Conrado, o ritmo é sereno e lento. Chegar aqui, (...) no luxuoso shopping Fashion Mall, é como entrar em uma cidade-modelo de autônomos onde todos mostram uma idêntica ausência de paixões. Por outro lado... na Rocinha, a vida é exatamente o oposto. Centenas de pessoas se movem em todas as direções (...). Isto, para mim, foi a primeira revelação: que a comunidade extravagante era mais desorganizada que a comunidade localizada ao seu lado. Que ali existia mais vida”. Uma vida que está faltando em algumas partes da cidade que não tem fim. Regiões onde se faz somente turismo (os centros históricos europeus são mortos), ou se frequenta somente para consumir cultura, ou somente para fazer compras, ou nos bairros residenciais luxuosos e tranquilos, onde à noite se apaga a luz antes de ir para a cama. A cidade contemporânea é cidade de relações e seus habitantes dão forma e organização aos seus lugares. Nisto, Rocinha me lembra as cidades medievais da Europa, a sua forma dependia do lugar e dos habitantes que as construiam, organizavam-nas e habitavam-nas. Devemos recuperar o sentido da Rocinha – pedaço de cidade que possui as sementes da cidade contemporânea, mesmo sendo uma favela marginalizada – para subverter a lógica de partes urbanas esquematizadas como confinamentos, não integradas, utilizadas pela cidade sem limite dos nossos continentes. Hoje as coisas são complicadas, na verdade pode acontecer a obrigação de construir casas para europeus e africanos no mesmo bairro. Sistematizar um bairro onde possam viver felizes europeus e africanos significa inventar novas formas urbanas, novos tipos de casas. Para fazer isso não é suficiente conhecer somente engenharia, ou somente design, ou somente composições das capacidades de um recipiente, ou somente urbanística. Hoje também a guerra condiciona a cidade contemporânea. Eyal Weizman em Hollow land escreve: “A despeito de alguns milhares de soldados israelitas e centenas de guerrilheiros palestinos contemporaneamente levando avante manobras militares na cidade, eles se encontram imersos nas suas bases a tal ponto que da perspectiva aérea eram constantemente invisíveis. (...). Movendo-se entre os muros de suas casas, esta manobra transformou o espaço12 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 interno em espaço externo e os espaços privados em vias de trânsito. (...) Não foi tanto a geometria do espaço a governar o movimento, quanto o movimento mesmo a produzir o espaço ao seu redor. Este movimento tridimensional, atravessando o corpo da cidade – paredes, sótãos e pisos – reinterpretou, colocou em curto-circuito e recompôs a sintaxe e a arquitetura urbana”. As disciplinas que no âmbito das Universidades ocidentais se tornam sempre mais especializadas com a finalidade de assumir interesses específicos e autônomos mostram a sua impotência. Eu acredito que quando se projeta um edifício, as disciplinas que elenco devem saber trabalhar sinergicamente. Como acontece em qualquer outro campo de pesquisa, as disciplinas singulares estão mudando as suas especificidades tradicionais, ou algumas desaparecem completamente, no processo de contaminação com outras. As pessoas vivem bem na cidade onde os edifícios possuem espaços racionalizados com as medidas dos homens. Edificar uma casa que proporcione felicidade a um europeu ou a um africano significa pensar em uma casa e em uma cidade que até hoje não existe. A pior coisa que podemos fazer contra nós mesmos é continuar a desperdiçar os recursos da natureza. Aqueles relacionados com o nosso Habitat. Nós estamos compreendendo, ainda que muito lentamente. Conhecer é alargar os confins da nossa ignorância sem preconceitos. Um processo de aproximação com relação às certezas que mudam. A Natureza está sempre muito a frente de nós, mas estamos compreendendo alguma coisa a mais. Eis porque está em decadência a era do consumismo e do egoísmo. Veneza, 25 de agosto de 2010. Francesco Gostoli é doutor pela Università La Sapienza di Roma na cátedra de Ponti e Grandi Strutture. Foi professor de Progettazione Urbana no Instituto de Arquitetura de Veneza. Ensinou Caratteristiche Meccaniche dei Materiali no Centro Europeu de Formação para Artesãos; Architettura degli Interni e Esegesi degli Spazi Culturali na Universidade Cà Foscari de Veneza. Frequentou a Academia de Belas Artes de Roma e a Faculdade de Engenharia de Roma. Escreveu Le due Città (Arsenale Editrice); Spazi guida per la progettazione di un museo contemporaneo (Libreria Editrice Cafoscarina) e vários artigos em revistas especializadas. Dentre suas obras mais importantes estão: Casa Comune - Edifício residencial para anciãos com sala de leitura e cinema (Veneza); Nuova Urbanistica - Edifício residencial (Padova); La Nuova Biblioteca Bertoliana (Vicenza). Recentemente projetou para a Bienal de Veneza o Nuovo Ingresso del Padiglione Italiano e o interior da Biblioteca da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade Cà Foscari em Veneza. Retornar ao sumário 13 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 A produção acadêmica na área de Exatas: um panorama recente e relações com a Educação* C. A. M. de Melo UNIFAL-MG/Campus de Poços de Caldas RESUMO: Apresentamos um panorama da situação da educação no Brasil e correlacionamos esse panorama com a produtividade acadêmica brasileira na área de exatas. Por fim, apresentamos um quadro em que novas metodologias aplicadas ao ensino superior e a integração entre as atividades de ensino, pesquisa e extensão podem contribuir significativamente para a melhoria da produtividade acadêmica brasileira. Introdução A produção acadêmica na área de exatas no Brasil sempre foi uma das maiores dentre todas as áreas do conhecimento. Há várias razões para isto, mas as principais são históricas. A área das ciências exatas se desenvolveu, no Brasil e no mundo, com forte apoio militar, dadas as suas implicações tecnológicas que implicam não apenas em supremacia bélica mas também em soberania nacional. No Brasil, o próprio desenvolvimento das agências nacionais de apoio à pesquisa, como CAPES e CNPq tiveram forte influência dos cientistas das áreas de exatas em sua época. Em termos contemporâneos, o governo tem estimulado fortemente o desenvolvimento das áreas tecnológicas, dado que somente a sua ampliação poderá tornar o desenvolvimento do país sustentável alongo prazo, tanto do ponto de vista ambiental quanto econômico. Atrelada à questão do crescimento da produtividade acadêmica na área de exatas está a questão da educação básica, em geral, e da educação científica em particular. Nosso intuito aqui é discutir como melhorias no ensino médio e fundamental poderiam contribuir, ainda que de maneira indireta, sobre a produtividade acadêmica no ensino superior. Para tanto, comecemos por discutir o que é “educação científica”. Educação em ciências e educação científica O termo "educação em ciências" pode significar muitas coisas, desde a difusão de conhecimentos gerais sobre a ciência e a tecnologia como fenômenos sociais e econômicos até a formação nos conteúdos específicos de determinadas disciplinas, passando pelo que se costuma denominar de "atitude" ou "método científico" de uma maneira geral; e desde a educação inicial até a educação superior de alto nível. Alguns autores buscam diferenciar, em inglês, science education de scientific education, reservando o primeiro termo para a formação geral sobre ciências e o segundo para a formação nas ciências específicas.** Assim como o objetivo principal da educação física nas escolas não é formar atletas campeões, e sim difundir os valores da atividade em equipe e de mens sana in corpore sano para todas as pessoas, o objetivo principal da educação em ciências nas escolas não é a * Este texto foi apresentado em mesa redonda intitulada “A produção científica nas áreas de Exatas e de Saúde”, realizada no dia 16 de setembro de 2010, dentro da programação do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior. ** Um outro uso do termo scientific education é o da educação cujos métodos e procedimentos são fundamentados em pesquisas científicas que testam a validade e eficácias das diferentes abordagens pedagógicas (evidence-based education), seja no ensino de ciências, seja no ensino de língua, matemática e outras disciplinas. 14 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 formação de cientistas e pesquisadores, mas a difusão das atitudes e valores associados à postura indagativa e crítica própria das ciências. No entanto, é importante também identificar e formar talentos, tanto em uma atividade quando na outra, e neste sentido a experiência brasileira de formação de pesquisadores e cientistas de alto nível não é das melhores, embora tenha aparentemente progredido bastante. A necessidade de introduzir ou melhorar a educação em ciências desde os primeiros anos da escola é hoje reconhecida inclusive nos países mais desenvolvidos, que vêem com preocupação o número reduzido de jovens que se orientam para as carreiras de natureza científica e tecnológica, assim como o pouco entendimento sobre a natureza e a importância do conhecimento científico mesmo entre pessoas formalmente mais educadas. Uma sucessão de documentos e iniciativas neste sentido tem sido produzida e empreendida pelas Academias de Ciência e instituições de pesquisa e educação desde o fim da década de 1950 em várias partes do mundo, desde o relatório do Comitê Consultivo de Ciências da Presidência dos Estados Unidos [1], elaborado a pedido do presidente Eisenhower após o advento do satélite Sputnik e o início da corrida espacial, até o recente documento da Comissão Rocard da União Européia [2], passando por Beforeit is Too Late, o relatório da Comissão Nacional sobre o Ensino de Matemática e de Ciências do ano 2000 [3], que foi redigido pelo senador e ex- astronauta John Glenn. A idéia de que a educação em ciências deveria ter como foco inicial o desenvolvimento de atitudes mais gerais de curiosidade, observação dos fatos e busca de relações causais, e não o ensino formal das disciplinas específicas, é mais recente, e seu início tem sido atribuído à iniciativa de Leon Lederman, Prêmio Nobel de Física de 1988, que depois se espalhou para outros países e levou ao envolvimento crescente das academias de ciência e sociedades científicas de vários países com o tema. Esta abordagem, conhecida nos Estados como hands on, foi levada posteriormente para a França através do projeto La Main à la Pâte, de onde veio para o Brasil com o nome de “Mão na Massa”. A metodologia do La Main à la Pâte baseia-se em dez princípios, que começam com o estímulo à curiosidade infantil, a partir de uma indagação extraída do cotidiano das crianças, conduzindo ao questionamento científico, através da observação, pesquisa, formulação de hipóteses, testes e experiências, verificação, notação individual e coletiva, síntese e conclusões. Esta metodologia pretende articular a aprendizagem científica ao domínio da linguagem e à educação para a cidadania. O trabalho é desenvolvido por tema-desafio. Espera-se que com este percurso os alunos se apropriem dos conceitos científicos e das técnicas de investigação, consolidando sua expressão oral e escrita. O projeto está bem documentado, com livros, artigos e informações disponíveis no site http://lamap.inrp.fr. Ao longo dos anos, uma equipe multidisciplinar, com professores, pedagogos, engenheiros, cientistas, estudantes de ciências entre outros, desenvolveu uma variedade de materiais, como instrumentos de acompanhamento e avaliação, módulos para uso em sala de aula, relatórios e artigos analíticos para fundamentação e continuidade da proposta. Independentemente do método adotado, a educação em ciências deve ser parte fundamental da educação geral por pelo menos três razões principais. A primeira é a necessidade de começar a formar, desde cedo, aqueles que serão os futuros pesquisadores e cientistas, cujas vocações geralmente se estabelecem desde muito cedo. A segunda é fazer com que todos os cidadãos de uma sociedade moderna, independentemente de suas ocupações e interesses, entendam as implicações mais gerais, positivas e problemáticas, daquilo que hoje se denomina "sociedade do conhecimento", e que impacta a vida de todas as pessoas e países. Terceiro, fazer com que todas as pessoas adquiram os métodos e atitudes típicas das ciências modernas, caracterizadas pela curiosidade intelectual, dúvida metódica, observação dos fatos e busca de relações causais, que, desde Descartes, são reconhecidas como fazendo parte do desenvolvimento do espírito crítico e autonomia intelectual dos cidadãos. 15 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Educação: retrato do Brasil Muito já foi escrito sobre o cenário da Educação no Brasil. Em lugar de repetir várias dessas análises e discussões, optaremos aqui por fazer um mero quadro comparativo, deixando ao leitor a incumbência de uma reflexão sobre o que estes dados refletem. No entanto, para se fazer qualquer tipo de comparação, é necessários que os objetos da medição sejam comparáveis. Embora possível, é de pouca valia comparar o tamanho de uma formiga com o de um elefante. Assim, precisamos nos ater a países que sejam similares ao Brasil em ao menos alguns aspectos sócio-econômicos. Usualmente, compara-se o Brasil com os demais países do grupo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) tomados como similares, e à Coréia, geralmente tomada como modelo. Faremos aqui a opção de usar somente países de configuração sócio-econômica semelhante à nossa, trocando apenas a Índia pelo México, de modo a permitir também comparações com base na realidade geopolítica local. Usando dados do INEP, podemos montar os seguintes quadros comparativos: Taxa de analfabetismo Brasil China México Rússia 12% 9% 8% 0,5% Melhor do mundo: Canadá com 0% de analfabetos. Média de anos de escolaridade da população Brasil China México Rússia 5 anos 6 anos 7 anos 10 anos Melhor do mundo: Estados Unidos, com 12 anos de escolaridade Participação de mão-de-obra especializada na força de trabalho Brasil China México Rússia 9% Não declara 14% 31% Melhor do mundo: Suécia, com 38% da força de trabalho especializada Repetência no ensino fundamental Brasil China México Rússia 21% 0,3% 5% 0,8% Melhor do mundo: Coréia, com 0,2% de repetência Se nos focarmos apenas nas áreas de ensino diretamente relacionadas à área de exatas e utilizarmos dados do PISA [4], podemos formular ainda o seguinte quadro comparativo: Qualidade do ensino de ciências e de matemática Brasil China México Rússia 2,9 4,2 3,0 5,1 Melhor do mundo: Cingapura, com 6,5 pontos Podemos agora nos perguntar se tais quadros desfavoráveis não seriam fruto do déficit de professores qualificados nas escolas brasileiras. Para analisar essa possibilidade, coletamos novamente dados do INEP sobre os cursos de licenciatura no Brasil e construímos a tabela a seguir: 16 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 • Formação de professor de matérias específicas 3.418 • Desenho 1 • Estatística 2 • Psicologia 2 • Sociologia 5 • Matérias pedagógicas 6 • Educação religiosa 10 • Estudos sociais 15 • Ciências sociais 28 • Língua/literatura estrangeira moderna 32 • Língua/literatura vernácula e língua estrangeira moderna 39 • Língua/literatura vernácula (português) 58 • Filosofia 80 • Física 139 • Química 161 • Ciências 193 • Geografia 316 • Biologia 384 • História 468 • Matemática 567 • Letras 912 Se fizermos um comparativo por área do conhecimento, o resultado é o seguinte gráfico: Podemos ver claramente que a quantidade relativa de cursos de licenciatura nas áreas de exatas é muito menor que nas áreas de humanas, porém o leitor deve levar em séria conta que é muito mais preocupante que o número total de cursos de licenciatura seja tão baixo. Mesmo a área com o maior número de cursos de formação de professores (Letras), possui apenas 912 cursos em todo o país. Apenas a título de comparação, há 3.207 cursos de Administração em todo o Brasil, o que é quase to total de cursos de formação de professores considerando-se todas as áreas do conhecimento juntas. Portanto, vemos que o principal fator determinante da falta de professores qualificados no mercado de trabalho é, de fato, o reduzido número de cursos de licenciatura oferecidos no Cursos de G raduação p/ Professores História 14% Matemática 17% Língua/literatura vernácula e língua estrangeira moderna 1% Língua/literatura vernácula (português) 2% Língua/literatura estrangeira moderna 1% Matérias pedagógicas 0% Ciências sociais 1% Estudos sociais 0% Educação religiosa 0% Sociologia 0% Psicologia 0% Estatística 0% Filosofia 2% Física 4% Química 5% Biologia 11% Geografia 9% Ciências 6% Letras 27% Desenho 0% 17 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Brasil. Entretanto, é preciso levar-se em conta que mesmo dobrando o número de vagas nos cursos isso não dobraria o número de professores disponíveis no mercado. A razão para tanto é simples: a valorização do profissional. O professor é hoje uma das categorias profissionais com o menor salário-base do país. Assim, é natural que egressos de bons cursos de licenciatura e treinadosem diferentes competências e habilidades além daquelas imediatamente relacionadas à sala de aula, acabem procurando colocação profissional distinta daquela que planejaram originalmente ao ingressar na universidade. Caso o leitor não se sinta convencido, com estes simples argumentos, da desvalorização sofrida pelo profissional professor, podemos fazer uso novamente do artifício de fazer quadros comparativos. Desta vez, no entanto, optaremos por fazer comparações primordialmente com países modelo, de modo a destacar a distância que nos separa do quadro ideal, incluindo apenas um país semelhante ao Brasil para efeito de comparação local. Os gráficos acima mostram que, mesmo quando comparados com um país de situação social similar (mas de situação econômica bem inferior), os gastos brasileiros com educação são bastante modestos. Mudar o ensino superior para mudar a produção acadêmica Falamos até aqui dos conceitos de educação em ciências e educação científica e dos problemas que acometem, principalmente, o ensino básico no Brasil. Agora, nos focamos em como essas informações podem ser usadas para melhorar o ensino superior e qual o impacto disto sobre a produção acadêmica na área de exatas. Apesar de produtividade acadêmica iniciar-se, tipicamente, a partir do nível da pós-graduação, acreditamos que a educação preliminar (fundamental, média e superior) tem um impacto profundo na formação dos futuros pesquisadores, sobretudo no que diz respeito à sua cultura científica. Mudanças profundas estão acontecendo, fruto dos avanços tecnológicos e de empresas que enfrentam mercados globalizados e competitivos. Surgem também novas exigências em ENSINO INFANTIL e m dólare s por aluno(1) 930 2000 2600 7700 Brasil México Coréia EUA (1) Gasto anual por alunos na rede pública, de acordo com a paridade do poder de compra em dólar Fonte: OCDE ENSINO FUNDAMENTAL e m d ólar e s po r alun o(1) 870 1600 4000 8300 Brasil México Coréia EUA ENSINO MÉDIO e m dólare s por aluno(1) 1100 1900 6400 9600 Brasil México Coréia EUA (1) Gasto anual por alunos na rede pública, de acordo com a paridade do poder de compra em dólar Fonte: OCDE ENSINO SUPERIOR e m dó lare s p or alu no(1) 10000 5700 7000 24000 Brasil México Coréia EUA (1) Gasto anual por alunos na rede pública, de acordo com a paridade do poder de compra em dólar Fonte: OCDE 18 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 relação ao desempenho dos profissionais: ter uma sólida formação geral e uma boa educação profissional. Um dos maiores desafios da educação têm sido encontrar formas de aliar o ensino à tecnologia presente na sociedade e possibilitar vivências contextualizadas aos alunos para que o ensino seja significativo. Na era da informação e do conhecimento, com as tecnologias cada vez mais presentes nas atividades humanas, fazem-se necessárias pessoas capazes de utilizá- las de forma crítica e de criar novas soluções. Acreditamos que a extensão universitária pode ter um papel importante na formação de indivíduos com competências e habilidades para viver na sociedade atual, e que a educação é um campo fértil para o uso da tecnologia, tendo em vista a gama de possibilidades que apresenta, tornando a aprendizagem mais dinâmica e motivadora. O sistema de ensino atual, como se verifica nos Parâmetros Curriculares Nacionais, inclui a tecnologia como aplicação imediata da ciência, não só para despertar o interesse do aluno como também para integrá-lo mais facilmente ao mundo real que o cerca, bem como lhe dar elementos para escolher sua profissão. A educação deve acompanhar o desenvolvimento das tecnologias, criticando e adaptando os conhecimentos às necessidades da produção, porém a educação técnico-profissional não deve permanecer a reboque do desenvolvimento tecnológico, mas procurar situar-se em posições de vanguarda, face às mudanças e transformações que acontecem no mundo. Essa é uma premissa básica dos novos cursos universitários propostos pela Universidade Nova e implementados pelo projeto REUNI. Assim, vivemos hoje um momento histórico em que urge tirar de cena a idéia de um ensino meramente propedêutico, exigindo novas orientações teóricas e metodológicas, tanto no que tange os conteúdos específicos, quanto aos procedimentos didático-pedagógicos. Particularmente naqueles aspectos referentes ao ensino das Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias, novas competências e habilidades deverão ser desenvolvidas visando um desvelamento das implicações da Ciência e da Tecnologia nos modos de produção social, com conseqüências diretas nas modificações ambientais. Com um currículo diversificado e rico em possibilidades, utilizando recursos que tornam a aprendizagem mais significativa e motivadora, os alunos estarão preparados para serem cidadãos do mundo, com domínio das tecnologias modernas, capazes de tomar decisões cada vez mais complexas e aprendendo a trabalhar em equipe. Assim, estarão preparados para os desafios de sua vida pessoal e profissional. Acreditamos que essas mudanças, junto com uma atuação integrada entre ensino, pesquisa e extensão por parte dos docentes universitários, serão de importância primordial para uma mudança significativa no quadro atual da produtividade acadêmica brasileira, sobretudo no contexto das ciências exatas. Em primeiro lugar, porque com uma cultura científica mais bem consolidada será mais fácil para o estudante de pós-graduação encarar a produtividade acadêmica como conseqüência natural do seu trabalho na universidade. Em segundo lugar porque o amadurecimento dessa cultura científica lhe permitirá perceber mais facilmente que a produção acadêmica não se restringe aos artigos científicos, mas abrange às três áreas fundamentais que compõem o tripé fundamental da universidade: o ensino, a pesquisa, e a extensão. Tradicionalmente, a produtividade acadêmica é sempre associada à produção de conhecimento científico novo. Embora reconhecida como tal, a produtividade na área de ensino ainda é pouco valorizada. Tome-se como exemplo a dificuldade em se produzir um livro didático e a baixa pontuação atribuída a esta produção em todas as formas de avaliação aplicada ao docente universitário. Por fim, raramente reconhecida como tal, a produtividade acadêmica em extensão universitária é uma das que tem maior potencial para disseminar mudanças sociais significativas. Projetos de extensão em interface com a pesquisa têm o potencial de levar rapidamente à sociedade os benefícios das novas pesquisas 19 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 desenvolvidas dentro da universidade; projetos de extensão em interface com o ensino têm o potencial de mudar a forma de se ensinar e de propagar boas práticas e novas metodologias de ensino, com forte impacto imediato sobre a qualidade de ensino nas escolas de nível fundamental e médio. Acreditamos que o caminho para o aumento da produtividade acadêmica de qualidade passa, necessariamente, pela melhoria do ensino de ciências e da educação científica em todos os níveis e pela integração entre ensino, pesquisa e extensão no nível superior. Esperamos ter convencido o leitor da importância dessas inter-relações e que ele se julgue disposto a colocar essas novas idéias em prática. Referências [1] President's Science Advisory Committee. Education for the age of science. Washington, DC: The White House (1959). [2] M. Rocard, P. Csermely, D. Jorde,D. Lenzen, H. Walwerg-Henriksson, e V. Hemmo. Science education now: A renewed pedagogy for the future of Europe. Report of the European Commission (2007). [3] J. Glenn, Before It's Too Late: A Report to the Nation from the National Commission on Mathematics and Science Teaching for the 21st Century. Education Publications Center (2000). [4] OECD. PISA 2006 Science Competencies for Tomorrow's World. Paris: Organisation for Economic Co-operation and Development (2007). Cassius Anderson Miquele de Melo é bacharel em Física pela Universidade de São Paulo (USP), mestre, doutor e pós-doutor em Física pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, professor adjunto da Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL-MG/Campus de Poços de Caldas e professor voluntário/colaborador da Unesp. Retornar ao sumário 20 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Lugar das Humanidades na ideia de Universidade crítica* Paulo Denisar Fraga ICHL/UNIFAL-MG I. Hipótese norteadora e modo de exposição Iniciemos por esclarecer sobre como pensamos poder tratar do tema desta mesa, “A responsabilidade da Universidade na formação do sujeito crítico”. Parece óbvio que se deva responder com um sim à ideia de que a Universidade tem uma responsabilidade, inclusive especial, na formação do sujeito crítico. Embora seja necessário dizer que tal propriedade não é uma exclusividade da Universidade. Afinal, no mundo todo, foram os movimentos sociais progressistas que cumpriram grandemente essa função. Afinal, depois de Weber, Adorno e Foucault, não podemos mais ignorar o entrelaçamento entre o conhecimento e a dominação. E ao dizermos isso deixamos implícito que não devemos nos bastar a um conceito meramente técnico de senso crítico. Isto posto, perguntemo-nos: seria a tarefa da formação do sujeito crítico na Universidade apenas uma obra de novos métodos e didáticas de ensino, ou um fazer meramente individual, ou mesmo de um certo coletivo de professores dados como metodológica e/ou conteudisticamente excelentes? Pensamos que não! Reservado o respeito aos que se dedicam, com honesto interesse, ao estudo dos meios de viabilidade dessa questão nas disciplinas internas às várias áreas, nossa hipótese percorre perspectiva distinta, qual seja, a de que a efetivação de tal responsabilidade depende primeiramente da própria concepção de Universidade que tivermos. E mais, do papel que no interior dela possam cumprir as Humanidades, retomando essa questão mais ou menos sob a influência do que Wilhelm von Humboldt levantou no seu tempo, no projeto de criação da Universidade de Berlim. Justificamos esse corte analítico pelo intuito de uma visão dialética e mais universal, bem representada numa passagem do livro de Marilena Chauí, Escritos sobre a universidade: devemos “tomar a questão do ensino não como técnica de transmissão de conhecimentos e de consumo passivo dos saberes, mas como parte constitutiva da aparição de sujeitos do conhecimento, de tal modo que o ensino e a instituição universitários sejam simultaneamente agentes e produtos da ação de conhecimento que engendra esse sujeito” (2001, p. 171). Mas que lugar teriam ainda as Humanidades depois que Marcuse afirmou, já há mais de 40 anos, que a Ciência e a Técnica foram alçadas à condição de uma ideologia mascaradora da dominação? Ou, mais presentemente, estaríamos numa era pós-industrial, em que também o papel interdisciplinar das Humanidades estaria perdido, como uma iguaria ingênua e inútil frente à fragmentação do mundo do trabalho e da cultura, ou frente àquilo que Fredric Jameson chamou de Pós-modernismo, lógica cultural do capitalismo tardio? Vamos iniciar a resposta a essas questões de um modo não-sistemático, talvez meio benjaminiano, recorrendo a algumas imagens ou passagens tópicas que possam ilustrar com certa potência tanto a necessidade como a viabilidade da mediação reflexiva entre as Ciências Empíricas e as Humanidades, escovando, assim, a contrapelo das tendências acima, tal como Walter Benjamin recomendou ao materialismo crítico. * Este texto foi apresentado em mesa redonda intitulada “A responsabilidade da universidade na formação do sujeito crítico”, realizada no dia 16 de setembro de 2010, dentro da programação do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior. 21 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 II. Passagens sobre Ciência e reflexão humanística 1. Considerando a observação de Sérgio Paulo Rouanet, em As razões do iluminismo, de que o setor industrial pode ter diminuído, mas que o complexo do sistema industrial se ampliou enormemente, podemos dar como legítima a lembrança de um texto de Franklin Leopoldo e Silva, intitulado “O papel das Humanidades no contexto tecnológico”. Nesse texto, o autor se pergunta por que a crise da Universidade e do seu ensino pode ser vista, em grande medida, como perda da centralidade das Humanidades no processo da produção do conhecimento acadêmico? Ao discuti-lo, observa que geralmente as Humanidades aparecem ao senso mais geral como algo de “arcaico”, ao passo que a Ciência insinua-se como algo “moderno”. Mas antes de criticar tal classificação, o autor procura compreendê-la como expressão razoavelmente natural decorrente dos modos de proceder na produção do conhecimento entre as Ciências mais técnicas e as Humanidades. Por exemplo, para desenvolver um novo software, o pesquisador não precisa recorrer a toda a história da informação eletrônica. Basta-lhe o conhecimento do software mais avançado que existe, para dali seguir adiante. Já para o tratamento fundamentado de temas como a liberdade ou a política, o pesquisador precisa recorrer aos clássicos, muitas vezes até aos gregos, que estão no começo do pensamento ocidental. Leopoldo e Silva atribui a supremacia paradigmática da Ciência e da técnica nos parâmetros da produção do saber, ao papel civilizatório desempenhado historicamente pelo desenvolvimento científico desde a Renascença. Por outro lado, argumenta que a progressiva centralidade da tecnologia científica promoveu a perda da unidade reflexiva e interdisciplinar do saber e, portanto, o comprometimento da própria ideia da Universidade enquanto unidade da multiplicidade. Frente a isso, afirma que, se não é mais possível uma universalidade do saber como a que havia antes do Renascimento – ou nos tempos em que Pitágoras respondia que era um amigo da sabedoria (philos-sophos), para com isso representar a unidade de todo o conhecimento, o que a Filosofia expressou por séculos –, é preciso, em contrapartida, que as Humanidades retomem o seu lugar articulador do saber fragmentado para que a Universidade possa sustentar a sua própria razão de ser. E conclui que as Humanidades precisam se livrar de sua má-consciência do “arcaico” e assumir o que de autêntico existe nessa característica, pois o contato com a origem, com a totalidade perdida, é a condição para haver consciência histórica nas próprias Ciências, e representa a única possibilidade atual de uma universalidade crítico-reflexiva do conhecimento na Universidade. 2. Corrobora, neste sentido, a ilustração de Gaston Bachelard, em A poética do espaço, que se refere à metáfora da casa, do porão e do sótão, que o filósofo, matemático e físico teórico Gérard Fourez, em seu livro A construção das ciências, compara com o apartamento, segundo uma entrevista de Bachelard. A leitura que Fourez faz dessa imagem é excelente. Contudo, vamos nos apropriar dela num sentido bastante livre aqui, relacionando-a a outras expressões igualmente muito significativas.A grosso modo, resumindo poderíamos considerar que o apartamento significa viver em um único plano, com uma única visada das coisas do mundo. Já a casa, o porão e o sótão permitem olhares múltiplos, a partir de planos diversos. O sótão permite olhar as coisas de um outro ângulo, mais filosófico, poético, ou projetivo, para fora. De certo modo, aqui, poderíamos lembrar de uma cena altamente representativa do filme Sociedade dos poetas mortos, quando o professor, disposto a incentivar o senso crítico dos alunos numa escola de disciplina extremamente conservadora e autoritária, solicita a eles que subam em sua classe e olhem para o fundo da aula. Os alunos inicialmente receiam, temendo alguma punição. Já o porão permite o olhar em profundidade, 22 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 mais introspectivo, dos fundamentos psicológicos ou sociais que condicionam as coisas, o que também é importante para o pensamento reflexivo. De certa forma, a figura do porão faz lembrar a fórmula de Humboldt, “solidão e liberdade”, que, como explica Volker Gerhardt, não significava necessariamente isolamento, mas autonomia do indivíduo para se retirar à sua interioridade como condição para a observação precisa e o juízo sóbrio. Contudo, Bachelard observa que o problema reside em que muitas pessoas nunca vão ao sótão ou ao porão, vivendo num único plano, como num apartamento, sem a chance de ver as coisas de um ponto de vista novo e diferente. Fourez, por sua vez, lê o significado da metáfora bachelardiana associando-a às noções de “código restrito” e “código elaborado”, que retoma do sociólogo inglês Basil Bernstein. Na aplicação conceitual de Fourez, o código restrito é o código técnico da Ciência, assim como para Bernstein era o da linguagem ordinária, com fins práticos e partindo das mesmas pressuposições de base. Já o código elaborado é, para Fourez, o código reflexivo das Humanidades, partindo de pressuposições de base diferentes. O primeiro se preocupa em descrever o “como” das coisas; o segundo visa o seu “sentido” ou o seu “porquê”. Por isso, diz Fourez, num universo de aproximação dialógica entre os dois códigos, “a noção que se tem da Ciência será ligada, graças a uma linguagem elaborada, a outros conceitos, tais como a felicidade dos humanos, o progresso, a verdade, etc. Essa linguagem elaborada – essa Filosofia da Ciência – permitirá uma interpretação daquilo que a linguagem restrita diz a respeito da Ciência”. Com isso o autor visa superar a ideia de que, “uma vez que se falou de cientificidade, não há nada mais a fazer senão se submeter a ela, sem dizer ou pensar mais nada a respeito” (1995, p. 21). Fica claro, portanto, o papel das Humanidades na autoreflexão científica, fazendo lembrar da afirmação de Merleau-Ponty de que a propriedade essencial da “verdadeira Filosofia é reaprender a ver o mundo”. 3. De fato, Aristóteles, na primeira frase de um dos livros mais importantes da história da humanidade, a Metafísica, escreveu que “todos os homens desejam naturalmente saber”. Mas a questão está em se a busca do conhecimento é algo preso a cadeias que impõem uma limitação objetivista na Ciência, ou se é algo aberto à condição crítica e autocrítica. Isso nos faz lembrar que após a época determinista dos mitos, na qual a subjetividade humana não desempenhava papel algum por não haver espaço para o livre arbítrio, os primeiros filósofos, conhecidos como pensadores cosmológicos, ainda completamente impressionados pelo imenso poder da natureza frente à debilidade da ação humana, buscaram explicar as coisas gerais do mundo pelo ordenamento da natureza. Foi o período no qual teve lugar a famosa afirmação de Tales de Mileto de que “tudo é água”, e a teoria dos quatro elementos de Empédocles, para a qual o universo é formado por água, fogo, terra e ar. Nessa tentativa de decifrar a arché ou o princípio ordenador do cosmos, destacaram- se, ainda, os filósofos atomistas, especialmente Demócrito, que defendeu a muito significativa e duradoura tese de que o átomo é o elemento último da matéria, indivisível e incorruptível. Em sua tese de doutorado defendida na Universidade de Iena em 1841, intitulada Diferença das filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, Karl Marx tratou do atomismo grego. E é muito interessante compreendermos por que ele preferiu defender a Epicuro frente a Demócrito, que era reconhecido como um dos fundadores do atomismo grego. Simplificando bastante o assunto da tese, que é muito mais complexo do que o ponto que destacaremos aqui, a questão residiu em que Marx notou que em Demócrito os átomos caem em linha reta no vazio, repelindo-se por entrechoques, segundo uma lei sempre necessária, numa lógica restritiva que termina por afirmar o determinismo natural, ao passo que em Epicuro, seguindo Lucrécio, Marx destacou a teoria do clinamen, ou seja, de que os átomos caem também em diagonal, desviando-se espontaneamente da linha reta, abrindo espaço para o acaso e novas formas. E Marx entendeu que essa ideia, no plano da Física, abria o caminho para a liberdade, uma vez que ela favorecia, de modo equivalente, no plano moral, 23 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 a autodeterminação da consciência frente aos ditames e apetites da natureza. Ademais, Epicuro excluía qualquer interferência divina sobre o movimento dos átomos, porque ele prezava o ideal da ataraxia, que significava que os deuses não devem perturbar a tranquilidade da autoconsciência humana. Independente da origem da teoria da declinação dos átomos, importa notar que as objeções do jovem Marx à Física de Demócrito em favor da de Epicuro revelavam, já sobre a Ciência ou Filosofia da Natureza dos antigos, que não pode haver sujeito crítico se o processo do conhecimento não permitir abertura para que a ação reflexiva da subjetividade humana possa desabrochar. 4. Um exemplo emblemático da necessidade de uma Ciência com consciência não mais na palavra de um filósofo, mas na figura de um físico, é o que integra a biografia de Albert Einstein, o nome contemporâneo mais popular da história da Ciência. Para entendermos do que se trata, convém fazermos um questionamento: se a Ciência se basta por si própria, por que Einstein, o maior cientista do século XX, se dedicou cada vez mais a assuntos polêmicos, situados mais no universo das Ciências Humanas do que no estrito da produção científica pura? Dentre outros, podemos lembrar, por exemplo, do seu livro Como vejo o mundo, dos seus textos em defesa da paz e mesmo do seu artigo em favor do socialismo. Já antes da II Guerra, convidado para uma conferência em 1932, e para tentar compreender tal irracionalidade humana, Einstein escreveu a Freud, o fundador da Psicanálise, para saber dele, que era versado nos assuntos da “alma”, ou da psique humana, por que os homens fazem a guerra e de como poderiam se ver livres dela. A resposta de Freud é extensa, numa parte pessimista e noutra otimista frente às possibilidades dos instintos ou pulsões humanos. Contudo, o sentido mais de fundo de sua carta deixa também uma questão a Einstein que, como observou Jurandir Freire Costa no seu livro Violência e psicanálise, sugere que talvez seria mais fácil, para se encontrar uma resposta promissora, que ao invés de se perguntar por que os homens fazem a guerra, se perguntasse por que eles deveriam desejar a paz. Nisto, talvez possamos nos referir a algo que descreveremos como a “tragédia de Einstein”. Como visto, há mais de dois mil anos os gregos haviam determinado que o átomo era uno,indivisível e incorruptível. Contudo, com a descoberta da fissão nuclear (método de liberação de energia atômica) na Alemanha durante a II Guerra, confirmando a famosa fórmula de Einstein (E=mc²), que contradizia a indivisibilidade do átomo por afirmar que a energia de um corpo não é fixa isoladamente, mas variável e expansiva conforme o produto de sua massa vezes a velocidade da luz no vácuo, ele temeu severamente pela fabricação de armas atômicas pelos nazistas e concordou com colegas seus em assinar uma carta ao presidente norte-americano, Franklin Roosevelt, apoiando a aceleração de pesquisas nucleares com fins armamentistas, o que incentivou o desenvolvimento do Projeto Manhattan, no qual os EUA produziram a bomba atômica. Com o horror da destruição vista em Hiroshima e Nagasaki, Einstein arrependeu-se profundamente e passou a considerar esta a decisão mais equivocada de toda a sua vida. Isso o fez intensificar a sua atividade pacifista, muito embora suas outras iniciativas nesse sentido não tenham tido o mesmo efeito, pois se tornou impossível frear a corrida nuclear bélica. Ainda uma semana antes de sua morte, Einstein lutava contra isso, autorizando o filósofo Bertrand Russel a incluir o seu nome num Manifesto pela paz. Essa questão um tanto dramática encerra uma lição muito importante para o aprendizado e a pesquisa em matéria de Ciência, qual seja, a de que o cientista pode ser, sim, o dono da sua descoberta, patenteá-la, receber fama e royalties por ela (e, na linguagem dominante de hoje, até colocar no Lattes...). Porém, a questão decisiva está naquilo que Einstein percebeu em sua própria experiência: que por mais notável, bem intencionado e 24 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 influente que seja o cientista, ele não é dono nem controla o uso que se faz de suas pesquisas e descobertas. Sequer pode prevê-lo completamente. Afinal, isso não é decidido de forma “pura” nos laboratórios, mas sob a pesada influência do universo das relações políticas e econômicas. E é por isso que a Ciência precisa ser pensada também socialmente, e por pessoas que excedam o universo restrito dos técnicos e cientistas stricto sensu. Porque só assim a sociedade – e os próprios cientistas – poderão ter algum controle sobre o uso que se faz dela. 5. Um outro exemplo, ainda mais próximo de nós, em torno de uma subárea do conhecimento surgida na década de 1970, e também não propriamente do mundo filosófico, mas interna às Ciências Naturais, mais especificamente à Biologia, é o da Bioética. Ou seja, a Biologia que, após os impressionantes avanços da Genética, se candidata seriamente como a Ciência mais promissora do século XXI, chega à conclusão de que a análise empírica da vida, a dimensão do bios, precisa ser cotejada pela reflexão sobre os seus limites e finalidades morais, ou pela dimensão filosófica do ethos. O fazer científico mais lúcido e autocrítico reabre-se para pensar a relação da Ciência com o Outro, seja esse Outro a natureza, seja o Outro a humanidade. Justamente esse Outro, que muitas vezes foi politicamente ignorado ou mesmo psicologicamente negado, mas ao qual a Psicanálise se refere como aquele suposto “estrangeiro” que, como o Absoluto de Hegel, está sempre junto a nos desafiar constantemente de um modo ou de outro. Com efeito, Marx e Adorno advertiram a Modernidade de que a natureza é o corpo inorgânico do homem, o corpo não-contínuo, mas a outra metade do complexo do ser social- natural, que não pode ser eliminada sem que ela reaja sob a figura freudiana do retorno do recalcado, isto é, sob a forma de catástrofe ou violência. Embora por outros caminhos, é para o que Hans Jonas chamou a atenção em seu livro O princípio responsabilidade, deixando claro que a crise ambiental da civilização tecno-científica é também uma crise ética, na qual o homem deve se cuidar dos descaminhos do seu poder, para preservar não só o futuro do mundo, como também o seu próprio ser enquanto humano. Muito embora, devamos ressaltar a advertência que vem da teoria de Marx, segundo a qual a desconsideração do homem pela natureza não nasce de um problema primeira e exclusivamente moral, mas da alienação ou estranhamento na esfera do trabalho, onde o homem não se reconhece no que produz. À medida que o trabalho se torna sofrimento, e não realização humana, é evidente que a relação do homem com a natureza, que se dá primordialmente pelo trabalho, se torna também uma relação instrumental e não de reconhecimento e completude integradora. No que respeita mais imediatamente ao Outro da humanidade, inclui-se também a crise ética da Universidade. Sobre isso, Marilena Chauí adverte que não se deve compactuar nem com o elitismo teoricista indiferente aos temas ditos menores e mais candentes da vida real, nem com a acriticidade de um praticismo irrefletido que transforma a Universidade em mera prestadora de serviços à comunidade, ou ao mercado, consagrando o que Francisco de Oliveira chamou de “universidade de resultados”. Ou seja, aquilo de que falou Jonas, o “princípio responsabilidade”, se aplica inteiramente à Universidade, que não pode fugir da sua sem comprometer o seu próprio conceito e sua justificativa histórica no mundo do saber. O conjunto dessas passagens é o bastante para ilustrar que existem várias iniciativas que demonstram que não só é necessária, como é desejável e possível uma relação reflexiva entre as Humanidades e as Ciências Empíricas, de modo que possam representar uma mediação crítica produtiva no processo universal do conhecimento, numa dialética relação de respeito entre si, e de si com a cultura, com a natureza e com a sociedade que as constitui e sustenta. São caminhos de acionamento e abertura para a formação de uma subjetividade crítica no interior da produção do conhecimento acadêmico e científico. 25 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 III. A relação entre Ciências e Humanidades no conceito histórico de Universidade moderna Nesta parte, que trataremos mais brevemente, intencionamos sublinhar dois elementos do modelo humboldtiano de Universidade moderna: a unidade entre pesquisa e ensino e a articulação entre ensino, Ciência e Filosofia. Wilhelm von Humboldt (1767-1835) era filósofo, linguista e diplomata, Ministro da Educação da então Prússia em 1809, quando escreveu o Memorando “Sobre a organização interna e externa dos Estabelecimentos Científicos Superiores em Berlim”, documento que norteou a origem da Universidade de Berlim, que no futuro receberia, em homenagem ao seu criador, o nome de Humboldt-Universität zu Berlim. A concepção de Humboldt resultava fundamentalmente da influência histórica e cultural do Iluminismo, da política do liberalismo e da filosófica do idealismo alemão, sendo que suas ideias se nutriam da convivência com os grandes filósofos Hegel, Fichte, Schelling e Schleiermacher, além do linguista Christian Wolf e do jurista Karl von Savigny, e também do seu irmão mais novo, Alexander von Humboldt, que se dedicou às Ciências Naturais. 1. Para entender o valor e a originalidade da visão de Humboldt, e por que ela é reconhecida como o modelo por excelência de Universidade moderna, é necessário ter em mente, ainda que sumariamente, que naquele momento a Universidade vivia a maior crise de toda a sua história, pois a Igreja Católica, reagindo às novas teses nominalistas no terreno filosófico, às ideias protestantes no terreno religioso e à revolução galilaico-copernicana na Astronomia, acirrou o controle sobre as universidades, confinando-as ao ensino da doutrina escolástica católica, e excluindo de suaestrutura a investigação mais propriamente científica, que foi marginalizada para ser feita externamente, nas Academias. Consequência disso, por ver a Universidade como um resquício medieval antimoderno, na França revolucionária Napoleão decretou o fechamento das universidades. E essa mesma discussão ocorria também na Alemanha, previamente à criação da Universidade de Berlim. Dialeticamente, do ponto de vista do espírito crítico, importa ver o aspecto positivo de que nessa crise já estava posta a ideia de que o ensino puro e simples, sem o concurso enriquecedor de condições para a liberdade de pesquisa, tornara-se coisa enfadonha aos olhos dos intelectuais e irrelevante para uma sociedade que emergia dos novos avanços industriais e do universo cultural emancipatório do Iluminismo. 2. O primeiro elemento a destacar, mais original e produtivo, que vai render um verdadeiro renascimento e revalorização à Universidade, instituição à época inteiramente desacreditada, foi, como observou Lorenz Puntel, da Universidade de Munique, o de “um profundo reposicionamento do conceito e da realidade da Ciência: na perspectiva humboldtiana a Ciência foi libertada das tradições científicas enciclopédicas e, ao invés, foi concebida e planejada na perspectiva da pesquisa (Forschung)” (2002, p. 210). Nisto, diz Humboldt em seu Memorando: “na organização interna dos Estabelecimentos de Ensino Superior tudo repousa sobre a manutenção do princípio de que a Ciência há de ser considerada como algo ainda não de todo encontrado, e que nunca pode sê- lo, devendo ser buscada ininterruptamente como tal” (2008, p. 183). Conceitualmente, Humboldt propõe a unidade indissociável entre ensino e pesquisa, a superação da concepção de ensino baseada na relação de transmissão de saberes entre mestre e discípulo, para tornar, assim, os alunos sujeitos ativos no processo do seu próprio aprendizado, vicejando, com isso, na dimensão da estrutura organizacional, a rearticulação entre a instituição Universidade e as Academias de ciências. A Modernidade superava, assim, a cisão entre a Universidade reduzida a um ensino doutrinal puramente escolástico, de um lado, e, de outro, as Academias, promotoras da pesquisa em Ciências à margem da Universidade. 26 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 A aproximação entre Universidade e Academia passa, então, a encerrar princípios sobre a cooperação entre a Universidade e instituições externas a ela. Isso sinalizava, como frisou Volker Gerhardt, professor da Universidade de Berlim, a importantíssimo entendimento de que, “aos olhos de Humboldt, é um fato histórico que as universidades que se retraem em si mesmas podem, por um lado, esbaldar-se em tradições, mas perdem toda e qualquer significância para o presente e o futuro” (2002, p. 22). Com a Universidade pensada em torno da pesquisa científica, a concepção de Humboldt ficou conhecida como indissociabilidade entre pesquisa e ensino. E, de fato, sua visão constituía uma concepção realmente original. Tanto que mesmo o livro The idea of a university, do cardeal inglês John Henry Newman, que muitos consideram a maior obra escrita sobre a Universidade, permanece ainda dentro dos limites da oposição entre ensino universitário e pesquisa acadêmica. De fato, só uma concepção predominantemente laica, iluminista, poderia refundar a ideia de Universidade liberando-a de sua visão e estrutura anacrônicas para os desenvolvimentos modernos. 3. O segundo elemento a observar foi a articulação que, em meio à concepção descrita, brotou entre ensino, Ciência e reflexão filosófica, onde a unidade da Ciência era concebida como devendo ser assegurada pela Filosofia. Neste sentido, é interessante notar que um ano antes do Memorando de Humboldt, Hegel publicava o seu famoso livro intitulado Fenomenologia do espírito. Nele desenvolvia a tese de que a Ciência deveria ser concebida como sistema, criticando a fragmentação dos saberes do particular como um “conglomerado de conhecimentos que levam o nome de Ciência sem o merecer” (1992, p. 21). Hegel considerava que por ser capaz de tratar as coisas de modo universal e relacionante, a Filosofia inscrevia-se como o único saber digno do nome de Ciência. Era um ponto de vista rico, que antecipava uma crítica à fragmentação positivista do saber antes dela ser formulada, mas hoje uma ideia de difícil assimilação, dadas as acomodações estereotipadas do saber. Conforme assinalam Rüdiger vom Bruch e Lorenz Puntel, na sistemática de Humboldt, a Universidade articula a conexão entre a perspectiva do conceito de formação (Bildung), enquanto educação geral humanística, com a orientação presente na noção de Ausbildung, que descreve a educação mais técnica e especializada. Ao comentar as ideias que confluíram para a tecitura do projeto berlinense, Jürgen Habermas observa que tais “reformadores atribuíam à Filosofia uma força unificadora com referência a três aspectos a que hoje chamaríamos tradição cultural, socialização e integração social. A ciência filosófica fundamental era, em primeiro lugar, de base enciclopédica e estava por isso em condições de assegurar a unidade na diversidade das disciplinas científicas, bem como a unidade da Ciência com a arte e a crítica, por um lado, e o Direito e a moral, por outro lado. A Filosofia apresentava-se como a forma de reflexão da cultura no seu todo” (1993, p. 116). Ou, mais sinteticamente, como Habermas resumiu, a Universidade de Berlim fundava- se na interrelação dinâmica do seguinte complexo de “unidades”: “unidade de investigação e ensino, unidade de ciência e cultura geral, unidade de ciência e esclarecimento crítico (Aufklärung) e unidade das ciências” entre si (Ibid., p. 127). Assim, a concepção humboldtiana, que se tornou paradigma da ideia de Universidade moderna, visa o desenvolvimento do espírito crítico individual através da Ciência. Ela prioriza a pesquisa e defende a Ciência. Mas ela alça a fundamentação da Ciência como fim em si mesmo ao nível de um viés crítico neohumanístico no qual o afazer científico aparece como requalificação do espírito humano como um todo. E não apenas como um saber especializado positivo. Por fim, é importante ressaltar o quanto a concepção predominantemente filosófica, que norteou a criação da Universidade de Berlim, defendeu os direitos da Ciência e a incluiu no interior da estrutura universitária moderna. E a defendeu desde antes, no Renascimento, 27 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 quando filósofos como Giordano Bruno foram perseguidos e até mortos por advogarem a liberdade de investigação e de pensamento, na época do nascente conhecimento experimental. Como disse Heidegger, a Ciência talvez nunca tivesse chegado onde chegou se não fosse historicamente precedida e defendida pela Filosofia. É muito importante dizer isso para que esta exposição seja bem entendida, pois não se trata de oposição ou pressuposição de superioridade entre Humanidades e Ciências Empíricas. Pelo contrário, trata-se de preconizar sua relação interdisciplinar, de sublinhar a sua riqueza no convívio dinâmico e integrado. Trata-se, por fim, de afirmar uma direção que distingue com força, como Humboldt distinguia, a natureza universalizadora do conhecimento na Universidade frente a natureza específica do ensino escolar técnico. Humanidades e Ciências Empíricas só aparecem como duas estruturas estranhas entre si quando se ignora, por um lado, a sua relação histórica e, por outro, a importância fundamentalque tem essa relação reflexiva para uma produção do conhecimento que não favoreça apenas os interesses privados da razão instrumental de mercado, mas que ofereça uma chance para a formação do sujeito crítico e autocrítico na universidade. IV. Das contradições na cultura e da exigência do sujeito crítico Retomando um ponto do início desta exposição, é verdade que as Humanidades também estão sob o fogo cruzado da contradição, sendo elas mesmas atingidas pelos ventos da corrente positivista, que de há muito vem sendo criticada, no terreno da epistemologia, pelas contribuições científicas e teóricas de autores como Einstein, Habermas, Pierre Duhem, Bachelard e mesmo Karl Popper. Na própria Filosofia, por exemplo, o neopositivismo analítico aferra-a a uma perspectiva conservadora, desprezando como desimportantes e até como não-filosóficas as instâncias da Filosofia que se interessam pelos temas sociais e políticos. Temas estes, diga-se de passagem, que marcam a História da Filosofia desde Sócrates. À medida que a dialética entende a realidade como um processo histórico permeado por oposições e contradições, pode-se compreender, absolutamente sem nenhum sobressalto, a afirmação de Walter Benjamin segundo a qual a cultura e a barbárie convivem constantemente numa relação tensa e em algum grau interconexa, que não desabona, mas justamente aprofunda a indispensável necessidade da reiterada intervenção do pensamento crítico e emancipatório, que se desenvolve no ambiente tipicamente reflexivo das Humanidades, na produção cultural e nas lutas sociais externas, dos quais o olhar da Universidade nunca deve se alienar. Acreditamos que podemos sintetizar o argumento sob o qual tentamos organizar as várias imagens que permearam esta exposição, numa paráfrase de Sérgio Paulo Rouanet, quando ele indica com clareza não só o lugar das Humanidades na formação do sujeito crítico na universidade, como deixa entrever o que significa a sua exclusão: o fato é que o não-lugar da Filosofia na Universidade é o não-lugar de um pensamento questionador e relacionante dos saberes entre si; o não-lugar da História é o não-lugar de um pensamento que vê o presente como fluxo e, portanto, como algo de transformável; o não-lugar da Literatura é o empobrecimento do imaginário, que não pode mais fantasiar um futuro diferente do presente (1987, p. 307). Referências BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988. 28 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 CHAUÍ, Marilena de Sousa. 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Acesso em: set. 2010. ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Paulo Denisar Fraga é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, mestre em Filosofia pela Universidade de Campinas – UNICAMP e professor assistente da Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL-MG, na qual, atualmente, é diretor do Instituto de Ciências Humanas e Letras. Autor de diversos ensaios e organizador de obras relevantes da área de Ciências Humanas, principalmente no campo da Filosofia Contemporânea. Retornar ao sumário 30 http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/issue/view/361 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Reflexo da ausência de uma formação crítica na escrita de alunos da graduação em Letras Sulemi Fabiano ESSI/UFRN 1. Introdução Este trabalho inscreve-se num movimento de reflexão sobre a produção de textos na universidade. Tal movimento, que tem no FALE (Fórum Acadêmico de Letras) e no Seminário de Leitura e Produção no Ensino Superior seu espaço de congregação de profissionais interessados no assunto, tem origem no ensino de graduação praticado por alguns professores universitários que entendem haver uma escrita específica a ser desenvolvida nesse nível de formação, resultante de pesquisa, e da construção de um perfil específico. O movimento pela pesquisa na graduação construído no FALE criado pelos professores Valdir Barzotto e Claudia Riolfi defende outra concepção de graduação, na qual o aluno é inserido no processo de pesquisa, e, portanto, de escrita dessa pesquisa desde o primeiro ano. Em si, o movimento já nos leva a pensar sobre as escritas feitas hoje no curso de Letras e no que se poderia fazer para se obter uma escrita que atenda melhor ao papel da universidade como produtora de conhecimento e ao perfil específico deste profissional. Esse olhar tem um longo percurso que nos acompanha desde a formação como aluna de graduação, depois de mestrado e tambémcomo professora de instituição de ensino superior, participando em programas de formação de professores, projetos de pesquisa, orientação de trabalhos monográficos, em eventos, discussões com pesquisadores da área. Ou seja, esta reflexão é resultado de nossa atuação de vários anos de pesquisa e de observação. Ao olharmos para a universidade nos moldes como seu ensino é hoje estruturado, há certa inquietação frente ao tipo de alunos que estamos formando. A universidade oferece uma formação que se caracteriza por fatores que condizem com a modernidade, que conduz a construção da hegemonia, tendo por base a idéia de competitividade do mercado de trabalho. Neste trabalho, temos como objetivos observar problemas de escrita que suscitam discussões acerca da ausência da pesquisa na formação do aluno de graduação em Letras e analisar o que Pêcheux (1975) define como concepções de discurso científico que não deveriam ser consideradas ao estabelecer a questão da produção do conhecimento em relação aos processos discursivos. Ou seja, procurar entender o que não deveria ser considerado como uma escrita resultante de um processo de formação crítica. Tomamos como objeto de estudo relatórios produzidos por alunos concluintes da disciplina Estágio Supervisionado de Formação de Professores IV do curso de Letras, no período de 2009/2 a 2010/1 de uma instituição pública. Do corpus, apresentamos apenas recorte de um aluno em que consideramos ser relevante para a amostra da análise que propomos. No entanto, acreditamos que seja possível ampliar o alcance da reflexão que aqui empreendemos para outras áreas de conhecimento. O texto está dividido em 03 partes. Na primeira, apresentamos algumas considerações sobre a constituição da universidade na Idade Média. Na segunda, uma abordagem sobre o modelo de universidade da modernidade – o Tratado de Bologna – e, na terceira, analisamos um excerto retirado de um relatório escrito por um aluno no final de graduação em Letras que 31 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 serve como amostra de uma escrita, cuja base comprova a ausência de uma formação crítica e uma simplificação do que Pêcheux considera discurso científico. 2. A universidade medieval Um estudo sobre a universidade na Idade Média nos faz entender que desde aquela época era prioridade a formação de homem do saber: aquele que fosse capaz de pensar racionalmente por meio da filosofia. Jaques Verger (1973) em sua obra As universidades na Idade Média aponta que o homem do saber tinha de ter posse de um tipo de cultura devido à certa idéia acerca da noção de cultura. Assim, ele era alguém que dominava o conhecimento e tinha um longo período de estudo. Havia uma exigência para que alguém fosse considerado um homem do saber, tinha de dominar a língua latina e as bases filosóficas de Aristóteles. Naquela época, os poucos escritos eram publicados em latim e as traduções em língua vernácula não tinham reconhecimento no mundo dos intelectuais. Portanto, saber o latim era sinal de poder, prestígio e respeito. Os homens das letras, assim como eram conhecidos os eruditos na Idade Média, pertenciam ao grupo de pessoas do saber. Le Goff (1957), em sua obra Os intelectuais na Idade Média, publica um estudo sobre o intelectual na Idade Média e critica que o intelectual tinha suas funções escolares quase que estritamente voltadas à Igreja, inclusive eram denominados como clérigos, sobretudo monges. Feito esse breve percurso, ponderamos que, após os 40 anos da publicação da obra de Le Goff (1957), a concepção do mundo universitário medieval que nele se apresenta não se desgastou. Depreendemos ainda o modelo de universidade que se tinha nos séculos XII e XIII, há um resquício daquilo que foi definido como universidade e intelectual, atrelado à idéia de se prender a alguma normatização que impede a formação do sujeito crítico. Por um lado, temos hoje uma universidade não presa à Igreja, mas presa às questões políticas neoliberais, uma universidade que está mais a serviço da profissionalização do que do produzir conhecimento, uma universidade que perdeu sua autonomia frente à criação da figura do intelectual. Esse intelectual se define mais como um profissional com habilidades para preencher vagas no mercado de trabalho do que um profissional que tem seu tempo dedicado à docência e à pesquisa. 3. O modelo da universidade na modernidade Outro modelo de universidade importante a ser considerado é o que surgiu no final da década de 90, o chamado Tratado de Bologna, o qual propõe um enxugamento nos prazos dos cursos e uma intensificação da profissionalização. Em termos práticos, tal acordo possui como metas a serem atingidas a homogeneização das titulações universitárias para que funcionem como engrenagens facilitadoras do reconhecimento mútuo entre os países integrantes da União Européia e a flexibilização de suas estruturas como mecanismo que viabilize sua adaptação às necessidades da sociedade e favoreça o intercâmbio entre os países que compõem este bloco. De uma maneira bastante sintética, podemos dizer que a relevância do Tratado de Bologna se localiza no estabelecimento dos pilares para a construção de um Espaço de Ensino Superior ao qual se outorga o cumprimento de duas funções primordiais, a saber: o incremento das oportunidades de emprego e a transformação do sistema de formação superior em um chamariz que venha atrair tanto estudantes quanto professores, acelerando assim o processo de globalização, ao mesmo tempo em que eleva o próprio conceito do sistema universitário. 32 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Diante dessa explanação, podem-se extrair pelo menos dois reflexos presentes nas instituições de ensino superior. O primeiro reflexo é a mercantilização do ensino, a comparação da universidade com o supermercado, onde se vendem produtos prontos e não se “fabrica” o conhecimento. Chauí (2001) descreve essa comparação entre a universidade com o supermercado. Segundo a autora, no supermercado não há fabricação, criação, transformação, lá os produtos são colados em prateleiras para serem escolhidos e vendidos, muitos nem imaginam quais são os processos pelos quais passaram o produto para chegar até às prateleiras do supermercado. Os consumidores compram e os consomem sem se preocuparem com a fabricação. Analogamente, isso, na universidade, é equivalente aos alunos que só querem ser aprovados no final do curso e adquirir um diploma, uma autorização de uma instituição que lhe certifique uma formação universitária, embora essa formação seja altamente questionável. O segundo reflexo do Tratado de Bologna é a perpetuação de aulas na universidade em que a pesquisa se apresenta distante do contexto de sala de aula, sendo que ela é uma prática que deveria ser intrinsecamente imbricada ao ensino de graduação. 4. Discurso científico sob a ótica de Pêcheux Pêcheux (1975) em sua obra Semântica e discurso faz uma crítica à filosofia idealista da linguagem ao conceber o homem, o sujeito, como produtor do conhecimento, isso é, o idealismo cuja base é o “evidente”, a “verdade” e não considera os aspectos ideológicos. As bases que reconstituem a sustentação do discurso têm de desconsiderar a concepção exclusiva de uma neutralidade entre a lógica e a lingüística, pois há uma descontinuidade entre ciências/ideologias ao remeter-se ao desconhecido e caracterizar o discurso científico. O caráter material do sentido é mascarado pela transparência da linguagemcomo se as coisas tivessem de ser ditas daquela forma e não de outra. A primeira impressão é a literalidade do significante. Mas não há transparência pela linguagem, pois há uma determinação ideológica que está em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras foram reproduzidas. Apoiando-nos nessas propostas podemos afirmar que a universidade reproduz um conhecimento, conforme está estruturada. Quando nos referimos à universidade não estamos falando nos sujeitos empíricos que compõem o corpo docente, discente, diretores, e sim da posição que cada um assume frente a uma dada formação ideológica pré-estabelecida. Por exemplo, não há como exigir das produções textuais analisadas uma transformação, se a própria instituição não ocupa um lugar ideológico de formadora. Não se poderia também pensar que a produção de um conhecimento científico estaria vinculada ao pensamento da inovação das mentalidades, da criação de imaginação humana ou do desarranjo dos hábitos do pensamento. O conhecimento científico se dá por meio do efeito e é parte de um processo histórico determinado pela produção econômica. 5. Reflexo da ausência de uma formação crítica na escrita de alunos da graduação em Letras O excerto analisado é parte de um relatório final da disciplina Estágio Supervisionado de Formação de Professores IV do curso de Letras de uma dada instituição pública. O texto foi dividido em 06 (seis itens) e vários subitens, num total de 10 páginas. Desses, selecionamos os itens 04 (a parte da problemática) e 06 (a parte da conclusão) para analisar. Salientamos que os itens foram copiados na mesma extensão que o aluno escreveu, ou seja, 33 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 não há nada escrito antes ou depois dos parágrafos que foram transcritos para fins de análise. Elegemos esses trechos para mostrar a relação do sujeito com o conhecimento no final de um curso de graduação. Temos como objetivo ilustrar como é possível, pela materialidade textual, mostrar como o aluno não assume uma posição frente à sua formação. Apresento, pois, o excerto a ser analisado: Aluno Concluinte (AC) 4. PROBLEMÁTICA 1 Percebi que as metodologias de ensino dos professores da rede pública 2 estão “enraizadas” através de conceitos ultrapassados. 3 Segundo Deleuze: “Não podemos ficar parados com conceitos antigos sem 4 dinamizar...”. Esta seria a proposta para que haja uma progressão na 5 educação: Desterritorializar conceitos arcaicos para depois 6 reterritorializá-los no campo da educação com a finalidade de incentivar 7 a criação, incitar, abrir possibilidades de uma nova forma de 8 conhecimento aos alunos da rede pública. Infelizmente, o curto período 9 de tempo das regências e alguns obstáculos impediram um melhor 10 desempenho desse conceito de Deleuze. Mesmo assim, foi muito 11 gratificante a experiência adquirida durante o estágio. (grifos nossos) 6. CONCLUSÃO 1 O curso de Letras foi extremamente importante para minha vida 2 “profissional” e particular, pois proporcionou uma maneira peculiar de 3 ver o mundo, criticando-o construtivamente, pois os ensinamentos que 4 obtive na vida acadêmica, mais especificamente com o curso de Letras, 5 qualificaram-me para isso. Conceitos, diretrizes, orientações de diversos 6 livros, apostilas e professores desta imponente instituição “X”, 7 possibilitou a transição de uma nova etapa da minha vida que abrirá 8 caminhos para vários sucessos profissionais e familiares. (grifos nossos) 5.1 Leitura dos trechos destacados para mostrar a posição do aluno frente à sua formação Uma análise dos dois excertos destacados, mostra-nos que o aluno apresenta: A) marcas textuais que denunciam o sujeito como controle do saber e da realidade: - percebi (linha 1 problemática) - minha vida (linhas 1, 7, 8 conclusão) - qualificaram-me (linha 5 conclusão) - obtive (linha 4 conclusão) B) uso de diferentes adjetivos para dizer o mesmo: - conceitos ultrapassados, conceitos antigos, conceitos arcaicos (linhas 2, 3, 5 problemática) C) uso de modalizadores para apresentar o nome de autor - segundo Deleuze (linha 1 problemática) 34 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 D) pensar que um único indivíduo transformará a questão do ensino da rede pública por meio da aplicação de um conceito de Deleuze: - Desterritorializar conceitos arcaicos para depois reterritorializá-los no campo da educação com a finalidade de incentivar a criação, incitar, abrir possibilidades de uma nova forma de conhecimento aos alunos da rede pública. (linhas 5, 6, 7, 8 da problemática) E) controle do conhecimento, da evidência: -infelizmente, o curto período de tempo das regências e alguns obstáculos impediram um melhor desempenho desse conceito de Deleuze. (linhas 8, 9, 10 problemática) F) modos abstratos de ver o conhecimento, superficialidade e falta de definição do saber adquirido durante o curso de graduação: - os ensinamentos que obtive na vida acadêmica (linha 4 conclusão) - conceitos, diretrizes, orientações de diversos livros, apostilas e professores desta imponente instituição X (linhas 5, 6) - vários sucessos profissionais e familiares (linha 9 e 10 conclusão) Aqui poderia escrever um parágrafo que fosse resumindo e destacando como esses elementos te fazem dizer qual é a posição do aluno frente à sua formação e qual posição é essa. 5.2 Reflexos da ausência de uma formação crítica na escrita a) concepção de que há um controle da produção do conhecimento e transformação da realidade por parte do indivíduo; b) concepção de que o sujeito como indivíduo que produz o conhecimento científico; c) concepção idealista em pensar que não são os homens em sociedade e na história que produzem os conhecimentos científicos. 6. Possíveis considerações Pensar na apropriação de um conhecimento no âmbito da graduação é pensar numa grande mudança, numa revolução, porque a universidade primeiramente deveria se desvincular da posição empirista a qual seu ensino está pautado. A prática da pesquisa como sustentação da apropriação do conhecimento se aplica numa postura em que o professor não assumiria frente aos alunos um ensino que fosse por métodos fechados, com práticas de leituras engessadas e utilização somente de material apostilado. Compreendemos que o modo como a universidade se organiza forma alunos totalmente submissos a determinadas formações ideológicas. Nisso avaliamos que diante de uma teoria do discurso não há como manter a “evidência” do homem sujeito como produtor do conhecimento. Há a necessidade de a universidade investir numa formação em que o aluno não somente reproduza um conhecimento mecanizado e reproduzido em sala de aula. Os alunos precisam ser afetados pelos discursos que sustentam sua formação e têm de se reconhecerem como sujeitos do discurso e daquilo que eles produzem. Todos esses fatores contribuem para questionarmos que tipo de cientificidade que a universidade hoje oferece aos alunos, ou mesmo, o que pode ser considerado ciência nos cursos de Letras, aqui entendida como produção de conhecimento. 35 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção I: Conferências Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Diante do exposto consideramos que os textos produzidos na graduação mostram-se malsucedidos no ponto de vista da apropriação do conhecimento e isso é conseqüência direta de uma ausência de pesquisa. Defendemos que a inserção de uma efetiva prática da pesquisa na sala de aula sustentaria a apropriaçãode um conhecimento na produção textual e não um ensino cuja prática é sustentada pela repetição. Referências BARZOTTO, V. H. ; RIBEIRO, N. I. A pesquisa como dimensão do processo formativo na graduação. In: Revista ECOS. Literaturas e Linguísticas. Coordenação de Agnaldo Rodrigues da Silva (Revista do Instituto de Linguagem). Cáceres-MT: Editora Unemat, 2008. CHAUÍ, M. S. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Editora UNESP, 2001. FABIANO, S. A prática da pesquisa como sustentação da apropriação do conhecimento na graduação em Letras. Tese (Doutorado). Universidade Estadual Paulista: Araraquara, 2007. LE GOFF, J. (1957). Os intelectuais na Idade Média. Tradução de Margarida Sérvulo Correia. 2. ed. Lisboa: Gradativa, 1985. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Orlandi et al. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997. RIOLFI, C. R. O discurso que sustenta a prática pedagógica. Formação de professor de língua materna. Tese de doutoramento. Campinas: IEL/ UNICAMP, 1999. VERGER, J. (1973). As universidades na Idade Média. Tradução de Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: Editora UNESP, 1990. Sulemi Fabiano é graduada em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso - UNEMAT, mestre e doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP, professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, membro do Grupo de Estudos e Pesquisa “Produção escrita e Psicanálise” – GEPPEP/USP e líder do Grupo de Pesquisa “Escrita e Singularidade” – ESSI/UFRN. Retornar ao sumário 36 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Onde está a criança e a infância? Estudos sobre o brincar, o brinquedo e a brinquedoteca: a presença/ausência da cultura lúdica infantil na produção acadêmica Tatiani Rabelo Lapa Santos Claudia Panizzolo RESUMO: Embora europeus e norte-americanos há muito estejam investigando a história da infância e venham desenvolvendo estudos de Sociologia da infância, no Brasil, estudos equivalentes datam de período bastante recente. Com isso, e apesar do crescimento da produção em Sociologia da infância, há indícios de que ainda predominam entre nós as abordagens biopsicológicas e psicopedagógicas quer sobre a infância quer sobre a criança e a temática afim relativa ao brincar. Esta pesquisa visa verificar o estado do conhecimento sobre a infância no Brasil, no período entre 1991 e 2009. Palavras-chave: Criança; Infância; Brincar. Introdução Historiadores norte-americanos e europeus há muito vêm investigando a história da infância; ao contrário, é recente a manifestação de interesse de historiadores brasileiros por essa modalidade de estudo, cujo foco recai quase que exclusivamente na infância* (ver, dentre outros, WARDE, 2007; PANIZZOLO, 2009; GOUVEA, 2008, 2003; KUHLMANN, 1998). Até aproximadamente 1970, criança e infância foram temas de estudos e pesquisas basicamente da área da Psicologia e da Educação; nesse caso, predominantemente referidos às situações formais de aprendizagem, de desenvolvimento cognitivo ou, em termos mais gerais, às idades de escolarização. Qualquer que fosse o tópico em questão, o recurso à Psicologia sempre se fez presente e de modo explícito. Desde fins da década de 1980, no Brasil, verifica-se tendência crescente de títulos relativos à infância inscritos no âmbito da História e, de modo bastante especial, da História da Educação. Nessa faixa da produção acadêmica é exatamente a infância, e não a criança, o tema de interesse. (ver, entre outros, DEL PRIORE, 1992, 1999; RIZZINI, 1993, 2000). Há pouco mais de uma década verifica-se a crescente expansão de pesquisas em Sociologia da infância, área que se encontra em franco desenvolvimento e expansão. Os debates contemporâneos nesse campo têm tratado a infância como um agrupamento com estatuto social diferenciado em contraposição a uma agregação de seres abstratos, a-históricos e homogêneos. Nesse sentido, a Sociologia da infância se propõe a pesquisar e compreender a infância, retirando-as das perspectivas dominantes, quer biologistas, que a restringem a um estado intermediário de desenvolvimento e maturação humano, quer psicologizantes, que via de regra analisam e interpretam as crianças como indivíduos que se desenvolvem de maneira bastante independente, tanto das condições concretas de existência social quanto das imagens historicamente construídas sobre e para eles. * As informações aqui apresentadas estão pautadas em levantamento efetuado em outubro de 2009 nas bases de dados: CNPq-Lattes; CNPq-Grupos de pesquisa; Bibliografia-história da criança no Brasil. 37 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 A Sociologia da infância pretende, portanto, tomar as crianças como objeto de investigação sociológica considerando a infância como uma construção social que se transforma ao longo do tempo e nos diferentes espaços, sendo lícito afirmar que existem, portanto, várias e distintas infâncias. Nessa direção, a presente proposta de pesquisa visa investigar como a produção acadêmica tem se pronunciado sobre o brincar, o brinquedo e a brinquedoteca, temáticas essas que atravessam o campo da infância, especialmente da Sociologia da infância, elegendo para objeto de revisão bibliográfica os artigos publicados, entre 1991 e 2009, nas revistas: Cadernos de Pesquisa, Educação & Sociedade e Perspectiva. A definição do período e dos periódicos a serem examinados apóia-se em razões de diversa natureza. Em primeiro lugar, a definição do período está diretamente relacionada ao incremento dos estudos sociológicos da infância, cujo marco foi à publicação do conjunto de relatórios sobre a situação da infância, no âmbito do Projeto Infância como um fenômeno social, coordenado por Jans Qvortrup em 1991, tendo na sua seqüência provocado um significativo interesse acadêmico, expresso na criação de revistas científicas, publicação de artigos, incremento de eventos científicos e projetos de investigação. Em segundo lugar, a seleção dos periódicos deveu-se a presença constante de artigos referentes a esta temática impressa nas suas páginas. Para investigar a produção acadêmica acerca da cultura infantil, sobretudo, à relacionada à cultura lúdica, nos três periódicos acima indicados entre 1991 e 2009, tem-se como objetivos: a) Investigar a produção sobre a brincadeira e o jogo na brinquedoteca a partir do referencial da Sociologia da infância; b) Contribuir para a uma revisão bibliográfica ampla e minuciosa que contemple a pesquisa em Sociologia da infância no que se refere à cultura lúdica; c) Compreender o lugar ocupado pela Psicologia do Desenvolvimento na produção referenciada nos aportes sociológicos da infância; d) Identificar as concepções de brincar presentes nos textos que partam do reconhecimento das manifestações e expressões culturais das crianças; e) Compreender o modo como as pesquisas apresentam o foco de suas análises na produção da cultura infantil pelas crianças enquanto brincam. Considerando esses objetivos a presente pesquisa apresenta as seguintes perguntas de investigação: a) Qual lugar a infância e a criança ocupam nas produções acadêmicas? b) Quem são os sujeitos que provocam, discutem e polemizam questões relativas à cultura infantil e cultura lúdica? c) Como o modelo teórico europeu tem impactado os estudos sobre à cultura lúdica infantil? d) Como a produção acadêmica propõe a produção de uma cultura infantillúdica no espaço da brinquedoteca? e) Como as pesquisas apresentam o foco de suas análises na produção da cultura infantil pelas crianças enquanto brincam. A infância e a criança A Sociologia da infância ao tomar as crianças como objeto de investigação sociológica afirma que existem várias e distintas infâncias. Sarmento (2004) sugere o uso do termo no plural – infâncias – por indicar uma pluralização dos modos de ser criança, além de apontar para a heterogeneidade presente nessa categoria geracional. Por infâncias concebe “uma categoria social do tipo geracional por meio do qual se revelam as possibilidades e os constrangimentos da estrutura social” (SARMENTO, 2005, p.363). O resgate do conceito de geração traz à tona a complexidade dos fatores da estratificação social, e dos efeitos de classe, de gênero e de raça na caracterização das posições sociais, e procura dar conta das interações dinâmicas das relações simbólicas e estruturais dos atores sociais de uma mesma classe etária, ao mesmo tempo em que contempla 38 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 a geração-grupo de um determinado tempo histórico definido, conforme esclarece Sarmento (2005, p. 365-6): A infância é historicamente construída, a partir de um processo de longa duração que lhe atribuiu um estatuto social e que elaborou as bases ideológicas, normativas e referenciais do seu lugar na sociedade (...) Fazem parte do processo as variações demográficas, as relações econômicas e os seus impactos diferenciados nos diferentes grupos etários e as políticas públicas, tanto quanto os dispositivos simbólicos , as práticas sociais e os estilos de vida de crianças e de adultos. A construção simbólica da infância na modernidade desenvolveu-se em torno de processos de disciplinarização, de separação do mundo dos adultos e de institucionalização das crianças. Sarmento (2005, p.370) denuncia que essa forma de administração simbólica acaba por desqualificar a voz das crianças no delineamento de sua vida, causando a “colonização adultocentrada dos modos de expressão e de pensamento das crianças”. De acordo com o referido autor as crianças são seres sociais que se distribuem de diversos modos: classe social, etnia, raça, gênero, região demográfica entre outros, o que impacta “sua capacidade de locomoção, de expressão, de autonomia de movimento e de ação”. (SSRMENTO, 2005, p.370). Sarmento (2004) apresenta a coexistência de duas interpretações e posicionamentos dicotômicos e excludentes a respeito da infância. Assim por um lado uns consideram a criança como um ser em potência, em devir, incompleto, incompetente e imperfeito em suas formas de pensar, por isso, dependente do acompanhamento e promoção das sucessivas etapas de desenvolvimento cognitivo, afetivo, emocional, moral, motor, entre outros; por outro lado, outros consideram as crianças como seres dotado de competência e certo grau de iniciativa e autonomia frente às situações em que vivem. Nesse sentido o autor afirma: Esta última perspectiva, que é, evidentemente, aquela que aqui nos interessa em primeiro lugar (...) as crianças tem algum grau de consciência dos seus sentimentos, idéias, desejos e expectativas, que são capazes de expressá-los e que efetivamente os exprimem, desde que haja quem os queira escutar e ter em conta. O segundo é o de que há realidades sociais que só a partir do ponto de vista das crianças e dos seus universos específicos podem ser descobertos, apreendidas e analisadas. (SARMENTO, 2005, p. 365) Essa última perspectiva é a porta de entrada para os estudos que valorizem a ação das crianças, por meio da investigação das culturas infantis. Por culturas infantis o autor compreende um conjunto de rotinas, artefatos, valores e ideias que as crianças produzem e compartilham com os seus pares: as crianças são competentes e tem capacidade de formularem interpretações da sociedade, dos outros e de si próprios, da natureza, dos pensamentos e dos sentimentos, de o fazerem de modo distinto e de o usarem para lidar com tudo o que as rodeia. (SARMENTO, 2005, p. 373) Soares (2001), nessa mesma direção, afirma ser fundamental pensar as crianças como atores sociais, de tal modo que suas vozes e ações sejam levadas em conta, considerando assim que ao mesmo tempo em que são influenciados, também exercem influência. Quando a criança emerge como protagonista, ou seja, quando ganha voz, ouvido e cena, emerge também um lugar e um tempo de viver a infância, e as possibilidades de se conhecer estas crianças, naquilo que criam, inovam, observam, inventam, imitam, reproduzem. Esclarece Prado (1998, p.07): 39 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Reconhecer esta complexidade e criatividade é, na verdade, reconhecer o direito das crianças à própria infância e à brincadeira livre, espontânea, em que as crianças não se limitam apenas a se apropriarem de uma parcela da vida experimentada ou observada, mas também de alargá-la, condensá-la, intensificá-la, conduzi-la para novos caminhos e possibilidades. O brincar na Brinquedoteca O brincar, as brincadeiras e os jogos se apresentam como uma possibilidade de tirar as crianças do anonimato social e cultural que a Psicologia muitas vezes as colocou. Nesse sentido Centurion e outros (2004) afirmam que as atividades lúdicas possibilitam às crianças estabelecerem e ampliarem as suas relações sociais e a articularem seus interesses e pontos de vista com os dos semelhantes. Nesse sentido, a brinquedoteca proporciona um espaço para a brincadeira e para o jogo serem tratados como expressões das crianças, por meio de atividades livres e voluntárias, em que as crianças expressem seus desejos, suas vontades, valendo-se de sua criatividade, para elaborar suas próprias regras de convivência. Ainda que a brincadeira esteja formalmente incluída nos currículos escolares, a brinquedoteca amplia as possibilidades de concretização das crianças explorarem as contradições e potencialidades do real e do imaginário, conforme esclarece Silva e outros (s/d, p.03): Portanto o espaço deve ter uma configuração visual e espacial que facilite o desenvolvimento da imaginação, espaços livres onde elas possam correr brincar, e construir casinhas, cabanas, lojas, castelos, espaço para roupeiro com espelhos e roupas, espaços para leitura, teatro, espaços para pintura e artes plásticas, espaços para jogos e espaços com móveis com mesas, bancos, cadeiras de fácil manipulação para permitir a reorganização constante do local pelas crianças. É importante valorizar essas crianças, meninos e meninas, que vivem a infância e usufruem deste espaço da brinquedoteca que muito tem a contribuir para a manifestação da cultura infantil. A partir da localização dos artigos que se refiram à temática deste projeto, seguida da sua leitura na íntegra, a análise dos artigos selecionados será realizada com base em instrumentos de análise e classificação já testados em pesquisas equivalentes. Destaca-se, preliminarmente, o instrumento criado por Warde (1993) com vistas à análise da produção discente nos programas de pós-graduação em Educação, re-utilizado com excelentes resultados por Spósito e Haddad, dentre outros, em pesquisas relativas à produção de conhecimento sobre a juventude na área de Educação no Brasil (Cf. SPÓSITO, 1997; HADDAD, 2002). Primeiros Resultados A pesquisa em um primeiro momento procurou realizar uma familiarização com os artigos presentes nos periódicos Cadernosde Pesquisa, Educação e Sociedade e Perspectiva. Antes de tratar a temática criança, infância, brincar e brincadeira, cabe algumas considerações sobre os três periódicos. A Revista Cadernos de Pesquisa é uma publicação da Fundação Carlos Chagas que tem como objetivo divulgar a produção acadêmica sobre educação, gênero e raça, com vistas a propiciar o debate acerca das principias questões e temas emergentes da área, com ênfase em publicações nacionais. 40 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 A Revista Educação & Sociedade é uma publicação do Centro de Estudos em Educação e Sociedade, da Unicamp que se destina ao incentivo à pesquisa acadêmica e ao amplo debate sobre o ensino, nos seus diversos prismas. Perspectiva é uma Revista do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina destinada à publicação de trabalhos inéditos sobre temas atuais e relevantes no âmbito da Educação, resultantes de estudos teóricos, pesquisas, discussões polêmicas etc. Após a familiarização com os periódicos foi realizado um levantamento bibliográfico e atualmente está sendo realizada a leitura na íntegra dos artigos encontrados e publicados entre os anos de 1991 a 2009. O levantamento bibliográfico foi realizado na Biblioteca da Universidade de São Paulo (USP). Foram encontrados 91 artigos que tratam questões cruciais relacionadas à infância, criança, brinquedo e brinquedoteca. Todos os noventa e um artigos presentes nos três periódicos tratam a criança e a infância. Neste sentido, a tabela abaixo procurou mostrar e quantificar àqueles que tratam especificamente questões relacionadas ao brincar, brinquedo e brinquedoteca. Tabela: Levantamento bibliográfico Total artigo: 91 Cadernos de Pesquisa (29) Educação e Sociedade (36) Perspectiva (26) Brincar 2 6 7 Brinquedo 2 6 7 Brinquedoteca 0 1 0 Fonte: Dados da pesquisa. Conforme pode se constatar na tabela acima, a Revista Perspectiva destacou-se entre os três periódicos como aquela que concentra o maior número de publicações nesses 18 anos pesquisados. Nessa revista foram encontrados sete artigos que tratam a temática brincar, sete que tratam a brincadeira e nenhum relacionado à brinquedoteca. No entanto, apenas a Revista Educação e Sociedade apresenta um artigo que trata a temática brinquedoteca. Neste periodico outros seis tratam o brincar e mais seis tratam a temática sobre o brinquedo. A revista Cadernos de Pesquisa é o periódico que menos publicou produções que tratam o brincar, brinquedo e a brinquedoteca. Foram encontrados dois artigos sobre a temática brincar, dois relacionados à brincadeira e nenhum sobre brinquedoteca. Esses resultados apontam na direção de que a partir das conquistas advindas do campo legislativo e das contribuições teóricas de autores que trataram a criança como ser social, que produz cultura, os estudos sobre a criança e infância ganham cada vez mais lugar nas produções acadêmicas. Sendo mais valorizada a criança passa a ser vista como um ser social, cultural, que vive sua cultura infantil. Quanto aos periódicos que tratam o brincar, o brinquedo e a brinquedoteca, os autores que escrevem sobre esta temática trazem um olhar holístico que valorizam e acreditam que a criança é um ser capaz. Os textos em linhas gerais respeitam os direitos das crianças e valoriza o brincar, as brincadeiras e o acesso à brinquedoteca. Referências CENTURION, S et al. Jogos, projetos e oficinas para educação infantil. São Paulo: FTD, 2004. DEL PRIORE, M. et al. 500 anos de Brasil: história e reflexões. São Paulo: Scipione, 1999. 41 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 _______ (org.). História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1992. GOUVEA, M.C.S. de. A escolarização da meninice nas minas oitocentistas: a individualização do aluno. VEIGA, C.G.; FONSECA, T.N. (orgs). História e historiografia da educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. _______. A escrita da história da infância: periodização e fontes. SARMENTO, M; GOUVEA, M.C.S. de (orgs). Estudos da infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008. KUHLMANN, M. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998. PANIZZOLO, Claudia. A educação de meninos e meninas no Brasil da primeira metade do século XX. Projeto de Demanda universal da FAPEMIG. 2009. (mimeo) PRADO, Patricia Dias. 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Cláudia Panizzolo é professora adjunta e pesquisadora da Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG, coordenadora do Projeto de Pesquisa/Extensão Brinquedoteca: um espaço criativo de vivências e convivências. Retornar ao sumário 43 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 A escrita da criança Mariana da Costa de Souza Silmara de Fátima Hipólito RESUMO: Este trabalho tem por finalidade verificar como as crianças se apropriam do processo de aquisição da escrita. Utilizamos como referencial teórico as pesquisas de Emília Ferreiro que se encontram principalmente em seu livro “Reflexões sobre alfabetização” (2001), a partir do qual a autora discute as várias etapas de aquisição da escrita tendo como base a teoria de Jean Piaget. Propomos realizar um estudo de caso com oito alunos de uma escola Municipal de Alfenas, que estão cursando o 3º ano do ensino fundamental, em fase de aprendizagem da escrita. Temos por objetivo geral analisar o nível de escrita que se encontram estes alunos e verificar como os sujeitos se apropriam do processo de aquisição da escrita. Segundo Emília Ferreiro, aprender ler e escrever é mais complexo do que apenas dissociar sons, se a aprendizagem da escrita se reduzisseao ato de dissociar sons apenas com a capacidade auditiva e visual o sujeito não teria dificuldades para aprender. Dada a complexidade da aquisição da escrita indicada pela autora, a pesquisa pretende compreender como as crianças se colocam frente aos desafios. Partindo dessa premissa, conforme a autora, as crianças passam por quatro períodos durante a alfabetização: período pré-silábico, silábico, silábico-alfabético e alfabético. Palavras-chave: Escrita; Leitura; Aprendizagem Introdução Este trabalho refere-se a uma pesquisa realizada no curso de Pedagogia, da Universidade Federal de Alfenas, que tem como objetivos investigar o nível de escrita de dois alunos participantes do projeto institucional de iniciação à docência (PIBID), já mencionado na caracterização do universo de pesquisa. Para tanto temos como referencial básico os estudo teóricos de Emilia Ferreiro sobre o processo de aquisição da escrita. Remetendo-nos há tempos passados, o ensino de leitura e escrita sempre se norteou por métodos que aqui serão descritos. O método sintético que tem como pressuposto que se aprende da parte para o todo, suava o método da soletração das letras do alfabeto e da silabação. Partindo do ensino das letras para as sílabas e só depois para as palavras e por fim ensinava frases isoladas sem um contexto. Quanto à escrita privilegiava o ensino de caligrafia e ortografia para tanto dispunha de ditados e cópias. Quanto ao método analítico a leitura deveria ser iniciada pelo todo, isto é pelas palavras ou frases, para depois analisar as partes, ou seja, as sílabas. Tem como principio que a escrita é uma transcrição da fala. O método analítico-sintético utiliza partes do analítico e partes do método sintético. Para o ensino parte das palavras para a sílaba ou do texto para a palavra, propunha um ensino que parta do conhecimento prévio do aluno. O método global parte do todo e não das partes, propunha uma metodologia na qual as palavras seriam escritas em fichas, cada ficha com um tamanho, formato e cor diferente, 44 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 esperava-se que de inicio a criança identificasse a palavra pelo papel e uma vez aprendida a criança reconheceria a palavras mesmo que diferentes palavras fossem escritas em papeis iguais. Valorizava o contexto educativo. A partir dos anos 1980, os métodos sofreram muitas criticas, e passaram a ser questionados pelo grande número de fracasso escolar cada vez mais evidente no país, certamente os métodos não eram eficientes para todos os alunos matriculados nas escolas de ensino regular produzindo um grande número de alunos que não obtiveram o sucesso escolar. Criticavam-se os métodos, pois toda a atenção da criança se voltar para o exercício da combinação das letras e das palavras e não para o significado da palavra. Prendia-se a decodificação e não a compreensão das palavras ou textos. Ainda, não consideravam que a criança viva em um mundo social, sendo a escrita um objeto social e não unicamente escolar. Muitas das vezes esses métodos parte da lógica do adulto, sendo este que define o que é mais fácil ou complexo para a criança. Em resposta a críticas e a presente necessidade de mudança teórica- metodológica para o problema de alfabetização, se difunde no Brasil a partir dos anos 1980 os estudos construtivistas, no qual para este trabalho apresentaremos os estudos de Emília Ferreiro. Na concepção construtivista desloca-se o foco da metodologia para o processo de aprendizagem. Para este trabalho estamos nos guiando pela concepção construtivista, assim faz se necessário um maior detalhamento de tal teoria. Pressuposto teórico do construtivismo e a teoria de Emilia Ferreiro O construtivismo não é método, não propõe passos para se alfabetizar, é importante concebermos que as crianças são seres históricos sociais, que ao chegarem à escola carregam com si uma série de conhecimentos específicos e que cada aluno possui suas próprias necessidades. Assim não é possível que técnicas que definam passo a passo como ensinar à escrita e leitura proporcione a todos os indivíduos os mesmos resultados, pois se não atende as necessidades especificas de cada um não pode garantir a todos o sucesso escolar. O construtivismo enquanto teoria da aprendizagem prevê uma aprendizagem significativa considerando as experiências e necessidades de cada educando, situando o aluno no centro do processo de ensino – aprendizagem, Rosa (2000), ressalta que: O construtivismo, a rigor, não oferece "outro" modelo. Aliás, não há modelos e é muito bom que assim seja! O que as abordagens psicogenéticas - construtivistas, seja nas versões de Piaget, Vygotsky, Wallon e outros — nos dão como referência é o pressuposto fundamental de que o indivíduo é o centro do seu próprio percurso em direção ao conhecimento. (ROSA, 2000, p. 55) Segundo os pressupostos teóricos do construtivismo o sujeito é um construtor do saber, que não aprende passivamente, ele produz conhecimento, o professor não chega com as respostas prontas, o aluno é incentivado a pesquisar para assim construir seu conhecimento. A aprendizagem se da quando o aluno se vê diante de um problema e para solucionar tal conflito percorre um caminho de inquietação e conflitos para encontrar a solução. Assim a aprendizagem resulta de uma pesquisa e investigações, como afirma Rosa, “assim a aprendizagem não resulta de memorização ou de associação e sim de atividade de pensamento”. (ROSA, 2000, p. 63) De acordo com a perspectiva estudada o professor deixa de ser o centro do processo de aprendizagem e as aulas deixam de ser apenas expositivas. O professor não é mais o detentor do saber, o saber é concebido como bem social, não mais como algo passado aos alunos, os educandos saem da postura de espectador passivo, e são incluídos no processo de aprendizagem como sujeitos ativos. O professor desenvolve o papel de orientador, motivador 45 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 da aprendizagem. E tarefa do professor definir as ações pedagógicas e definir os objetivos específicos de aprendizagem, Conforme assegura Rosa (2000): Sabe-se que, na perspectiva construtivista, o aluno é o centro. Sim, o centro do pólo aprendizagem, pois deve estar constantemente mobilizado para pensar e construir o seu próprio conhecimento. Entretanto, isto não significa deslocar o professor a um papel secundário, como se houvesse apenas um lugar privilegiado, em sala de aula, a ser disputado. O professor é o centro do processo de ensino. E preciso lembrar que professores e alunos não estão em pé de igualdade. Cabe aos primeiros a direção, a definição dos objetivos e o controle dos rumos da ação pedagógica. O que não significa exercício arbitrário da autoridade, mas exercício da autoridade de quem, profissionalmente, se responsabiliza pela qualidade de seu trabalho. (ROSA, 2000, p. 61) É importante destacar que o professor não está de igual aos alunos, ele é o orientador da aprendizagem devendo instigar os alunos e orientá-los neste caminho. O educador está no centro do processo de ensino, tem seu papel bem definido, deve ter seus princípios teóricos bem embasados e um profundo conhecimento dos conteúdos e do processo de aprendizagem para auxiliar seus alunos no processo de construção de conhecimento. Para Emilia Ferreiro, a escrita e a leitura são construídas paulatinamente, sendo o papel do professor organizar atividades que favoreça uma reflexão sobre a língua, nessa perspectiva o educador não deve seguir técnicas de como ensinaro foco principal e conhecer como a criança aprende para poder auxiliá-la neste processo. No livro “Reflexões sobre alfabetização”, Emilia Ferreiro coloca que o processo de alfabetização nada tem de mecânico, a criança se coloca problemas e conflitos, constrói sistemas interpretativos, pensa, raciocina e inventa na tentativa de compreender a escrita em toda sua complexidade. As crianças não inventam as letras e, para se apropriarem desse conhecimento, devem entender todo o seu processo de construção. Como mostra Emilia Ferreiro (2001), Desde que nascem são construtoras de conhecimento. No esforço de compreender o mundo que as rodeia, levantam problemas muito difíceis e abstratos e tratam, por si próprias, de descobrir respostas para eles. Estão construindo objetos complexos de conhecimento e -o sistema de escrita é um deles. (FERREIRO, 2001, p. 65) De acordo com Emilia Ferreiro, do ponto de vista construtivo a escrita infantil segue uma linha regular de evolução, que não se define por ordem cronológica mais por evolução cognitiva das crianças. • distinção entre o modo de representação icônico e o não-icônico; • a construção de formas de diferenciação (controle progressivo das variações sobre os eixos qualitativo e quantitativo); • a fonetização da escrita (que se inicia com um período silábico e culmina no período alfabético).(FERREIRO, 2001, p. 19) No primeiro período a criança consegue diferenciar figuras de palavras escritas. Nesse momento as crianças empregam grandes esforços para definir o que pode ser lido. E colocam critérios de quantidades para o que se pode ser considerado palavra, segundo a autora citada no “eixo qualitativo com a quantidade mínima de três letras para que a escrita diga algo” (FERREIRO, 2001, p.21). No eixo qualitativo a criança sente a necessidade de que as letras de uma mesma palavra tenham caligrafias diferentes, para que possam ter significado. Assim para uma criança nessa fase é inconcebível que uma palavra tenha a mesma letra repetida varias vezes. 46 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Quanto ao segundo período, as crianças levantam hipóteses e critérios para que um texto possa ser considerado texto. Exploram o eixo qualitativo e quantitativo estabelecido no primeiro nível, às vezes mudando as posições de letras ou invertendo a ordem das mesmas. No terceiro período as crianças atribuem valores sonoros as palavras, descobrem que as partes da escrita podem ser correspondentes a outras tantas parte, que são as sílabas. Nesse período a atenção da criança esta voltada para os valores sonoros das palavras. Nesse momento se inicia período silábico. Na escrita silábica inicia sem valor sonoro e depois com a correspondência sonora, a criança interpreta a letra a sua maneira, cada sílaba pode ser representada por uma letra. Ferreiro (2001) define o período silábico: hipótese silábica segundo a qual cada letra representa uma sílaba da palavra (momento no qual, por exemplo a letra p vale pela sílaba pá porque é o "pá de papai", e servirá então para escrever "pato", mas não para escrever "pipoca", porque "é necessário o pi", e assim por diante). (FERREIRO, 2001, p. 55) Emilia Ferreiro divide o processo de alfabetização em quatro níveis, em cada um a criança cria hipóteses para se apropriar do sistema da escrita. A fase inicial pré- silábica a criança não compreende que o nosso sistema de escrita alfabético, no qual a grafia representa som. O aluno adota critérios que para escrever necessita de uma quantidade mínima de letra, diferentes entre si. Na escrita silábica alfabética que vem após a fase da escrita silábica, na silábica alfabética, a criança supõe que a escrita representa a fala. É nessa fase que se inicia o processo de fonetização, cada sílaba é representada por uma letra e outras com mais letra, com ou sem conotação sonora. A escrita alfabética a criança faz correspondência entre fonemas e grafemas. Ela atinge a compreensão de que as letras se articulam para formar palavras. Escreve como fala, pois entendem a escrita como transcrição da fala, nessa fase os alunos ainda possuem erros ortográficos. Para Ferreiro, A escrita alfabética constitui o final dessa evolução. Ao chegar a este nível, a criança já franqueou a “barreira do código”; compreendeu que cada um dos caracteres da escrita corresponde a valores sonoros menores que a sílaba e realiza sistematicamente uma análise sonora dos fonemas das palavras que vai escrever. isso não quer dizer que toda dificuldade tenha sido superadas: a partir desse momento a criança se defrontará com dificuldades próprias da alfabetização. (FERREIRO, 1999, p. 219) Metodologia O presente estudo tem como referenciais metodológicos a pesquisa bibliográfica e a pesquisa empírica. O desenvolvimento do trabalho consiste na leitura das obras de Emilia Ferreiro que perpassam a temática em estudo a fim de embasar, teoricamente, toda a pesquisa. Na prática, foi realizado um estudo de caso que buscou elucidar como se dá a aquisição da língua escrita, por meio da análise das escritas construídas por duas criança durante um período do 3º ano do ciclo de alfabetização. Caracterização do universo da pesquisa A pesquisa foi realizada em uma escola municipal de Alfenas, que atende crianças do primeiro ao quinto ano. O fator que possibilitou esta pesquisa foi à inserção das 47 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 pesquisadoras no programa institucional de bolsa de iniciação à docência, qual proporcionou as autoras maiores aproximação da realidade estudada. Os alunos que colaboraram com a pesquisa, são sete alunos que estão cursando o terceiro ano do ensino fundamental e apresentam algumas dificuldades de aprendizagem. Todos têm hoje nove anos de idade, são moradores do município de alfenas, ingressaram nesta escola no primeiro ano do ensino básico. Análise das escritas P.A.S, tem 9 anos, está no 3º ano do ensino fundamental, já conhece o sistema alfabético, reconhece as letras e sabe nomeá-las, diferencia desenhos de textos e faz distinção entre letras e sinais de pontuação. Suas escritas incluem sílabas representadas com uma única letra como podemos verificar na palavra moço que a aluna escrevemos. Quanto a omissão de letras presente em sua escrita, Emília Ferreiro apresenta a seguinte consideração: É verdade que, do ponto de vista da escrita adulta convencional, faltam algumas letras. Mas, do ponto de vista do sujeito em desenvolvimento (isto é, considerando- se o que ocorreu antes no seu próprio desenvolvimento), este tipo de escrita é acréscimo de letras”. (FERREIRO, 2001, p. 83) Como se vê na Figura 1, a aluna se encontra no período silábico-alfabético, pois apresenta uma escrita algumas vezes com sílabas completas e outras incompletas. Figura 1 Fonte: Dados da pesquisa. O aluno F.S.C, tem 9 anos está no 3º ano do ensino fundamental, já conhece o sistema alfabético, reconhece as letras e sabe nomeá-las, diferencia desenhos de textos e faz distinção entre letras e sinais de pontuação. O aluno representa cada fonema com uma letra e a escrita possui erros ortográficos. Ele já se encontra na fase alfabética, pois faz a correspondência entre fonema e grafema, e atingiu a compreensão de que as letras se articulam para se formar palavras. Nota-se que ele escreve como fala, ou seja, vê a escrita como transcrição da fala. É o que se pode observar na Figura 2. 48 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG– 2010 Figura 2 Fonte: Dados da pesquisa. Considerações finais Através do estudo foi possível compreender que para Emilia Ferreiro as dificuldades e fracassos nas séries iniciais na aprendizagem da leitura e escrita constituem um problema que nenhum método conseguiu solucionar. Em suas obras, porem, ela não apresenta nenhum método pedagógico que deveria ser seguido pelos professores para alfabetizarem seus alunos, mas revela os processos de aprendizagem das crianças. 49 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Tendo como base de referencia a teoria psicológica e epistemológica de Piaget, a pesquisadora mostra que a criança constrói seus sistemas interpretativos, ou seja, pensa em diferentes hipóteses para construir seus conhecimentos. Como vimos, é necessário que o professor considere as escritas do ponto de vista construtivo, representando a evolução de cada criança, é preciso que haja uma re-estruturação interna na escola com relação à alfabetização e também no que se refere às formas de alfabetizar. Referências FERREIRO, Emília. Reflexões sobre a Alfabetização. São Paulo, Cortez, 2001. FERREIRO, Emília; TABEROSKY, Ana. A psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes médicas Sul, 1999. ROSA S. Sanny. Construtivismo e mudança. São Paulo: Cortez, 2000. Mariana da Costa de Souza e Silmara de Fátima Hipólito são estudantes do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG e integrantes do PIBID – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência. Retornar ao sumário 50 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Folia de Reis: cultura popular e educação1 Maria José Marcos de Oliveira Daniela Aparecida Eufrásio Geovânia Lúcia dos Santos RESUMO: O presente trabalho teve como foco de pesquisa e análise a representação da manifestação cultural Folia de Reis em Alfenas, para tanto instituiu como objetivo o de entrevistar adultos, adolescentes e crianças que se encontram inseridos e participam desta manifestação. Por meio do referencial teórico foi realizado um percurso histórico com contribuições que ajudaram a construir o presente trabalho. Utilizou-se metodologia que favoreceu a coleta de dados do trabalho, que se realizou, prioritariamente, por meio de entrevistas. De acordo com as entrevistas realizadas, evidenciou-se que ocorreram mudanças na manifestação porque, segundo os entrevistados, a cultura está em constante movimento, muitas coisas evoluíram e hoje a manifestação persiste porque se adequou a essas mudanças, que se mostraram necessárias para a continuidade da manifestação. A presença das crianças na manifestação é um ponto importante para sua renovação. Analisou-se tanto as entrevistas com os foliões adultos quanto com os foliões crianças e adolescentes que participam desta manifestação, com ênfase na valorização da cultura oral e na formação de leitor no espaço da escola. Palavras-chave: Manifestação Cultural; Folia de Reis; Oralidade. Introdução Esta pesquisa tematiza uma dentre as várias manifestações culturais, “A Folia de Reis”, e objetiva averiguar como ela se caracteriza na cidade de Alfenas - MG e avaliar a possibilidade de estabelecer um diálogo entre a cultura formal a ser ensinada, no processo de aquisição da escrita e da leitura nos anos iniciais do Ensino Fundamental, e a cultura popular local, representada, neste trabalho, pela manifestação supramencionada. Para tanto, procuraremos responder às seguintes questões: como se configura “A Folia de Reis” em Alfenas? Que diálogos são possíveis de serem realizados entre este conhecimento, vivenciado na comunidade, e o conhecimento escolar formal de aquisição da escrita e da leitura? Para efetivar o trabalho de pesquisa, os objetivos serão a caracterização da manifestação cultural supracitada, tendo em vista a consolidação de conhecimento sobre a mesma, e verificação dos possíveis aspectos enriquecedores que uma relação entre a tradição popular e o conhecimento formal escolar pode trazer para a formação dos alunos das séries iniciais. Nossa hipótese é a de que, num contexto formal de ensino, a valorização da cultura popular enquanto objeto de estudo possibilitará uma aprendizagem mais significativa. Acreditamos que a relação de ensino-aprendizagem que contemple o contexto cultural local 1 Este trabalho foi, em julho de 2010, defendido como Trabalho de Conclusão do Curso de Pedagogia, no Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). 51 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 proporcionará momentos de interação entre a escola e a comunidade a ponto de favorecer a formação leitora e, mais amplamente, a formação cultural dos alunos. Quadro teórico Para efetivação deste trabalho de investigação, importa tratar do conceito de “cultura popular”. Como afirma Santos (2008, p. 5), tal cultura “[...] possui uma lógica diferenciada, possui um espaço de atuação próprio, um código de simbologias e concepções singulares e um tempo particular que precisam ser identificados conforme cada situação específica”. Ainda conforme este autor, [...] Uma das principais características, quaisquer que sejam as manifestações, é justamente a formação de um contexto de conflitos de interesses e atuações. Talvez, a cultura popular seja exatamente um grande nicho de diversidade, tornando ainda mais complexa a alocação de seus sujeitos como constituintes de um único grupo. (SANTOS, 2008, p. 9) Considerando esta definição de “cultura popular”, focaremos nossa atenção sobre a manifestação objeto de estudo deste trabalho. A Folia de Reis é a festa popular folclórica mais festejada no Brasil, pelos referenciais estudados sua gênese pertence a Portugal. Segundo Brandão (1985, p.141), tratava-se de uma festa profana que acontecia durante os rituais da missa do ciclo do natal, uma encenação catequética, na qual participavam meninos vestidos de anjos, pastores e personagens representando a sagrada família. Tratava-se de um ritual dentro da igreja para o festejo natalino, um cerimonial popular para opor, de um lado, o bem representado pelos três reis, do outro, o mal Herodes, contando com toda uma mistura de drama, dança, canto e teatro para representar esta passagem, descrita no Evangelho. A Folia de Reis preocupa-se em descrever esta viagem, de José e Maria rumo à Belém, e justifica o porquê desta viagem e a visita dos três Reis Magos, informando que a: [...] viagem de José e Maria a Belém e em justificar por que fizeram aquela viagem – houve um decreto do imperador romano, ordenando um recenseamento e todos deviam se alistar na sua própria cidade. Chegando a Belém, deu-se a hora do Nascimento, a cidade estava cheia e tiveram que se abrigar nos arredores. Não se fala de Reis Magos. Toda a cena é composta pelo anjo que avisa os pastores, José, Maria e o Recém-Nascido. Não acontece a visita de reis vindos de longe, mas, em contrapartida, quando os pastores chegaram manjedoura, uma multidão, um exército de anjos desceu do céu, dando Glória a Deus. Na Folia de Reis das Lages é comum os embaixadores cantarem versos referentes à viagem de José e Maria a Belém. (PESSOA, 2007, p. 74) Esta é a base religiosa que fundamenta a Folia, anunciada recorrentemente nos versos e músicas, a cargo dos embaixadores que são responsáveis por seguir a linha de Reis na representação da Folia, por meio de versos e músicas que são aprendidos com os pais, tios e avós ou parentes próximose que contemplam esse conteúdo bíblico que se repete. Estes versos são rimados para constituir uma maneira de dar sonoridade e ritmos quando repetidos pelos foliões. Mesmo quando são feitos no repente eles usam essa linha para visitar um presépio numa casa ou para agradecer. Conforme Brandão (1985, p.142), atribui-se a Gil Vicente ter sido um dos precursores de inserir esse ritual nas missas dominicais. Ele populariza esse tipo de encenação e traz para o adro interno da igreja esse rito que era formado por diálogos e cantos diferentes dos autos eruditos. Estes rituais faziam parte da liturgia de natal e deixaram de aparecer nestes autos e 52 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 começaram a ser representados pelos populares, disseminando-se e preservando os ritos, formando a base da dança e cantoria da Folia de Reis no Brasil. De acordo com Brandão (idem, p. 144-5), a adaptação à realidade do Brasil não fugiu da linha de devoção aos santos reis cultuados nos costumes ibéricos. Permaneceram os cantos, a dança e dramas litúrgicos na cerimônia. A representação da Folia no Brasil é muito antiga, aqui iniciou dentro da igreja com a participação do clero e dos populares, não importando a raça, sendo brancos, negros ou mulatos, todos participavam do ritual litúrgico. Mas esses cultos foram proibidos, sofreram restrições e modificações pelos representantes da igreja, afirmando que, ao deixarem de ser representados pela iniciativa do clero e passando pelas mãos dos leigos, os cultos eram considerados ilegítimos. Ao deixar o espaço da igreja, as festas como a Folia de Reis passam para um sistema novo de representação, o catolicismo popular, o qual deixa de ser um ritual litúrgico para reproduzir uma forma de representação da religiosidade popular, que acontece fora do espaço da igreja, nas camadas populares. Esta manifestação ficou empobrecida por conta da igreja que impôs restrições e tornou-a mera novena familiar e representação do presépio num canto da igreja. Deixando de encenar, representar todo aquele ritual alegre de participação dos fiéis com danças e cantos de natal. Hoje, permanece em várias regiões do país a Folia de Reis, manifestação que sai no dia vinte e cinco de dezembro a seis de janeiro. Essa manifestação ocorre na periferia das cidades com a trajetória dos foliões de casa em casa, com reza, canto e dança, numa representação teatralizada dos três reis santos. O grupo de Folia de Reis sai com a bandeira representando o nascimento do menino Jesus, chegam às casas, cantam perto do presépio figurado e fazem adoração. Constitui-se também como uma forma de pagar promessa do grupo de folião ou do dono da casa que oferece almoço, a janta, café ou, simplesmente, faz uma oferta e recebe a bandeira. Cabe ressaltar também, neste trabalho sobre a Folia de Reis, que este tema de pesquisa já interessou muitos antropólogos, historiadores e sociólogos, que se veem atraídos por esta manifestação no contexto rural das primeiras décadas do século passado, pois nessa época estava acontecendo o êxodo rural, as pessoas estavam deixando o campo e migrando para a cidade. Por isso o interesse destes pesquisadores sobre o grupo Folia de Reis. A Folia de Reis é um ritual do catolicismo popular que desde muitos anos tornou-se predominantemente rural e se faz em povoados, sítios ou fazendas sem a necessidade de qualquer tipo de presença de sacerdotes da igreja. (BRANDÃO, 1985, p. 138) Este foi o marco das andanças da Folia de Reis no início de quando fazia seu giro nas comunidades rurais do Brasil. Com o êxodo rural, este movimento tornou-se objeto de estudos dos pesquisadores nas suas áreas específicas, citadas anteriormente. Este movimento mostra também a Folia, quando ela deixa o campo e vem junto com a tradição dos camponeses, ocupar os espaços nos bairros periféricos das grandes cidades. Com a vinda desses trabalhadores, eles trouxeram também a sua cultura e o respeito às suas tradições dos cultos, suas festas e ritos religiosos e, ao longo de sua trajetória, foi mudando e adquirindo maneiras diferenciadas de representar no encontro com outras pessoas de outros grupos e regiões diferentes do país. Hoje, em Alfenas, pode se observar esta manifestação presente nos dias de Reis representada nos bairros, nas casas das pessoas que são devotas dos Três Reis Santos. Nesse sentido, importa citar o conceito de “memória coletiva”, conforme aparece em CASSIANO (1998), como sendo fruto das vivências de um grupo, em que as manifestações representam as relações criadas por ele e, a partir das interações realizadas entre os membros, a tradição mantém-se em torno de uma estrutura fixa, no caso a Folia de Reis: 53 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 A memória coletiva, fruto das interações e vivências das diversas memórias individuais, gira em torno de uma estrutura fixa, que é o modo de estar no mundo, de ser, de agir do grupo: elementos que caracterizam a identidade coletiva. O que garante a coesão é que as variações girem em torno de uma estrutura fixa. Por isso, em todos os grupos [de Folia dos Reis] pesquisados, essa estrutura fixa é a mesma, e usando os termos dos foliões: todas as folias seguem o mesmo fundamento, mas cada grupo tem o seu sistema, decorrente dessas variações, e os foliões podem mudar de Companhia se adaptar-se melhor ao modo de trabalho de outro grupo. (CASSIANO, 1998, p. 92) Esta memória coletiva constitui a tradição em torno do que é conservado pelo grupo, que traz suas peculiaridades para a tradição, mas sem deixar de evidenciar uma linha comum para todos, um fundamento, ou seja, se um folião quiser participar de um outro grupo de Folia de Reis, diferente do que ele integrava até então, ele terá de adaptar-se a este outro grupo, mas poderá fazer esta mudança porque há uma estrutura fixa, que caracteriza a manifestação e constitui-se como um meio prático, como um mecanismo de construção e transmissão de saberes da cultura. Conforme Cassiano: “A memória das sociedades sem escrita que é transmitida de geração a geração através da fala e dos gestos, é vivida e constantemente reconstruída no interior da coletividade tendo como suporte fundamental a forma de expressão oral” (Idem, p. 190). Esta forma de expressar-se pela oralidade mostra o jeito que é comum nos grupos de Folia no que se refere à transmissão do conhecimento da tradição pelos mais velhos aos jovens e crianças, o que garante o aprendizado dos versos, das músicas e dos elementos que preservam a identidade do grupo. Neste trabalho de investigação importa também entender o tratamento dos discursos orais que mantêm viva a manifestação cultural estudada, de modo a avaliar as contribuições que tal conhecimento pode trazer para o ensino nas séries iniciais, uma vez que: É preciso repensar esses procedimentos em relação à escrita e a leitura na escola, dando um lugar de maior prestígio à leitura desde o inicio do processo de alfabetização. Uma criança que aprende a ler toma velocidade no aprendizado da primeira série. Um aluno que não lê aprenderá o resto com dificuldade, e pode passar a ter uma relação delicada com a escrita, não entendendo muito bem o que esta é nem como funciona. (CAGLIARI, 2007, p.169) A escola cumpre o papel de uma instituição formadora e logo nos primeiros anos escolares dos alunos, a escrita e a leitura precisam andar juntas e não desconexas. Para que isso ocorra, é necessário um desenvolvimento nas habilidades de leitor dos alunos, faz-se necessário oferecer aos alunos/as textos de qualidade e não só os que apresentamas famílias silábicas, mas sim textos que incentivem e desenvolvam o hábito da leitura. Conforme Cagliari (2007), no mundo de hoje é mais importante ler do que escrever, para compreender e interpretar as informações rápidas vinculadas na mídia e diversidade de textos impressos ou em forma de placas de informação, rótulos e sinalização os gêneros textuais, livros de literatura de qualidade, revistas fascículos. Propiciar esses tipos de textos aos alunos/as faz com que eles sejam capazes de ampliar o seu mundo letrado. Trazer esse desafio para a escola é trabalhar o complexo universo da leitura e literatura a que, por vezes, só na escola o aluno tem acesso. Mas, muitas vezes, a cartilha ainda é o único recurso didático que a escola usa e oferece aos alunos/as com atividades e textos que representam a família silábica. Desconsidera-se tudo aquilo que o aluno aprendeu no seu meio social, produto da vivência que, mesmo antes de ir para a escola, o aluno já tinha, no contato com a contação de histórias realizada por algum membro de sua família ou nas brincadeiras de pares que os ajudam nesse convívio social, quanto mais rico esse meio para o aluno mais amplo será o seu universo de 54 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 leitor. Então é preciso pensar o que a escola vai oferecer ao aluno nos primeiros anos escolares. No contexto social do seu grupo, a criança cria repertórios de histórias contadas por meio da oralidade advindas do folclore como: cantos, músicas, versos, adivinhações, cantigas e lendas que favorecem um desempenho no seu desenvolvimento criativo, o que mais tarde, quando se inicia na escola, pode auxiliar no desenvolvimento e na ampliação das habilidades na escrita e na leitura, por isso segundo Terzi: O desenvolvimento da língua oral e o desenvolvimento da escrita se suportam e se influenciam mutuamente. Nos meios letrados, onde a escrita faz parte da vida cotidiana da família, a construção das duas modalidades se dá simultaneamente: ao mesmo tempo em que a criança aprende a falar ela começa a aprender as funções e os usos da escrita [...]. Quanto a crianças de meios iletrados ou pouco letrados, um fato inquestionável é que, ao iniciar a aprendizagem da língua escrita na escola, elas já apresentam um bom domínio da língua oral. (TERZI, 1995, p. 91) Tendo em vista a importância, para o processo de formação leitora e escritora, de um trabalho que valorize a oralidade, acreditamos que, tanto para crianças de meios letrados quanto iletrados, a presença e tratamento docente dos conhecimentos advindos das manifestações populares podem apresentar possibilidades enriquecedoras para o ensino da escrita e da leitura no ensino regular. Metodologia Para realização da pesquisa proposta, recorremos à realização de entrevistas2 com moradores da cidade de Alfenas que participam ou já participaram da “Folia de Reis”. A entrevista mostra-se como instrumento adequado para nossos propósitos de investigação porque propicia um momento de interação, no qual o entrevistado é detentor de um saber que, dada a sua experiência pessoal, constitui-se enquanto patrimônio cultural do qual ele é representante de toda uma tradição. Sobre isso, Szymanski (2004, p. 12) afirma: “[...] a entrevista face a face é fundamentalmente uma situação de interação humana, em que estão em jogo as percepções do outro e de si, expectativas, sentimentos, preconceitos e interpretações para os protagonistas: entrevistador e entrevistado”. A valorização do saber da cultura oral e popular está no cerne deste trabalho, de modo que, na realização das entrevistas, torna-se essencial considerar os dizeres do entrevistado como esclarecimentos dos saberes do seu mundo e como uma tentativa de preservação, por meio do relato registrado pelo entrevistador, da cultura da qual se coloca como representante. Considerando-se a entrevista como um procedimento que necessita da contribuição de indivíduos que não são, necessariamente, integrantes do espaço acadêmico e científico, mostrou-se como importante que houvesse um ritual de cordialidade, no qual se potencializou o respeito das partes envolvidas nas entrevistas. A partir do diálogo e das respostas relacionados à manifestação cultural, objeto de estudo da presente pesquisa, o nosso papel, enquanto entrevistador foi o de estimular a ampliação das respostas dadas. As reações não- verbais também foram importantes para que houvesse interação entre o entrevistado e o entrevistador. 2 Foram realizadas entrevistas estruturadas, antecedidas pela entrega da Carta de Informação ao Sujeito de Pesquisa e pelo recolhimento da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas podem ser vistas na íntegra no Trabalho de Conclusão de Curso que deu origem a este texto, do qual há uma versão disponível na biblioteca da Universidade Federal de Alfenas. 55 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 De acordo com Lakatos e Marconi (2009, p. 199), o modelo de entrevista estruturada é aquele em que o entrevistador segue um roteiro previamente estabelecido para que o entrevistador não fuja dele. No presente trabalho, seguindo este modelo de entrevista, as perguntas realizadas aos indivíduos dos grupos de Folia foram predeterminadas, o que se demonstrou como um mecanismo favorecedor da possibilidade de comparação das respostas dadas pelos entrevistados. Caracterização da Folia de Reis em Alfenas De acordo com as entrevistas realizadas, com representantes de 03 grupos distintos de Folia de Reis, evidenciou-se que ocorreram mudanças na manifestação porque, segundo os entrevistados, a cultura está em constante movimento, muitas coisas evoluíram e hoje a manifestação persiste porque se adequou a essas mudanças, que se mostraram necessárias para a continuidade da manifestação. Entre as alterações citadas, constam aquelas que se referem ao acesso a materiais mais resistentes, entre eles os instrumentos e as máscaras, por exemplo, também houve modificações quanto à vestimenta para a identificação do grupo, à ajuda que recebem com as ofertas dadas pelas pessoas que são devotas e cumprem promessas, ao interesse dos jovens e crianças que ingressam e participam da Folia, ao papel dos mais velhos em passar essa tradição para os mais jovens ensinando, contribuindo para o acervo cultural da cidade. Percebemos na fala dos entrevistados que o termo “folclore” não aponta para a cristalização cultural, a algo estático, pois, ao utilizarem este termo, eles apontam para a concepção de folclore enquanto manifestação cultural caracterizada pela sua vivacidade. Os entrevistados referem-se ao folclore como algo vivo e que se renova constantemente, sendo assim, tal terminologia ganha um sentido próprio na fala dos foliões. A presença das crianças na manifestação é um ponto importante desta renovação da Folia de Reis em Alfenas, o que fica evidenciado pelas respostas dadas pelos entrevistados. A seguir, transcrevemos algumas perguntas e respostas que apontam para isso: A manifestação continua, hoje, em Alfenas? E1: continua porque a cada ano se renova. Desde as crianças // se manifestam à vontade de sair, pular de bastião, aprender a cantar, ser folião. Vai inovando, modificando, não é como era colocado há cinquenta anos atrás. O folclore vai evoluindo, mantendo a mesma postura, mais a convivência, a maneira de conduzir, vai evoluindo. Vai passando de geração em geração e é o que dá a certeza pra gente que não acaba, entendeu. Termina um ciclo inicia outro, tem menino que é criado dentroda companhia de reis e // peça fundamental e, além disso, tem mais tem gente que começa, por exemplo, andando junto com a companhia de Reis carregando sacola, carregando as oferendas, crianças que começam assim, acompanhando sem ter nenhuma função de grande importância e vai passando assim, a nossa mesmo tem quantos [quantas crianças]? [Neste momento, os entrevistados3 passam a falar de crianças que participam do grupo “Anunciação”.] [Tem o menino] André, o menino que entrou e está 3 A primeira entrevista realizou-se com dois foliões. A fim de manter o sigilo da identidade dos entrevistados, todos os nomes, tanto dos foliões adultos quanto dos foliões crianças e adolescentes, foram substituídos por pseudônimos. 56 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 batendo caixa, o Nivaldo, os dois bastião, o Dário e o Douglas, o Roberto, mais o Alessandro e o Alex4 (1ª entrevista; pergunta nº7). Tem participação de criança? E1: Tem bastiãozinho, sai junto com a gente cumprindo promessa, pulando , cantando (2ª entrevista; pergunta nº12) E1: Participam, se não já tinha acabado, a nossa mesmo já tinha acabado, nós começamos tudo pequenininho, igual à congada, a gente participa, tem que começar dos pequenos que toda vida nosso trabalho é assim, a gente põe as crianças pra ir chegando. O trabalho da gente é fazer uma companhia de reis // criança (1ª entrevista; pergunta nº 14). Pelas respostas ficou evidenciado que a Folia de Reis é uma tradição que continua e que o papel renovador dessa manifestação dá-se, em grande medida, pela presença das crianças. Esta presença é fundamental, porque sem elas esta manifestação já teria acabado, mas persiste e renova-se a cada ano, modifica e adequa-se às mudanças, pois é preciso sobreviver à modernidade e para os grupos esta manifestação representa algo muito valioso, relacionado às próprias origens. Para a continuidade e constante renovação da manifestação, a participação das crianças e jovens é imprescindível, são eles que dão a certeza de se ter ainda por muitos anos estas representações ocorrendo no município. Como afirma o entrevistado E1, na primeira entrevista, na Folia “Termina um ciclo inicia outro, tem menino que é criado dentro da companhia de reis”. Os mais velhos vão morrendo e os meninos que são criados dentro do grupo seguem o mesmo ritmo de ser folião ou aspirante de capitão da Folia, um ciclo que é repetido por várias vezes dentro das famílias de foliões, um desafio que demanda persistência e prática do aprendizado da tradição. Esta perseverança dos mais jovens, de continuarem revivendo esta tradição que acompanha os grupos desta manifestação, aponta para a perspectiva de que futuramente esta representação vai persistir nos espaços públicos e residenciais por muitos anos. Pela fala dos entrevistados, tem-se a idéia de que a tradição, que começou com os antepassados, numa forma de teatralizar o nascimento do menino Jesus e a visita dos três reis magos guiados por uma estrela até Belém, irá persistir na cidade de Alfenas, denotando sempre os modos pelos quais ela se renova. Algo que ficou registrado nas entrevistas feitas é a mensagem de que a tradição persiste devido ao envolvimento das famílias que representam os grupos de Folia de Reis, que são membros da Folia, há anos, e continuam prosseguindo com a tradição que começou com a avó e que, hoje, já conta com bisnetos de antigos membros. O folião mais antigo participante do grupo chama para si a responsabilidade. Nas entrevistas, fala-se também do companheirismo e do coleguismo que, mesmo doente, o folião faz questão de participar das apresentações da Folia. A presença dos mais velhos ajuda a preservar o conhecimento e eles 4 As duas barras indicam frases truncadas, ou seja, frases que foram iniciadas pelo entrevistado, mas que não foram finalizadas, e às quais se sobrepuseram formulações enunciativas. Esclarecemos que os modos de transcrição das respostas dos entrevistados fundamentaram-se na caracterização das operações de retextualização, apresentada em: MARCUSCHI, L. A. Modelo de operações de retextualização. In: Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2007. Neste capítulo, o autor trata dos modos de transformação do texto falado em texto escrito, analisando os mecanismos possíveis de retextualização e como eles interferem no que condiz ao texto escrito representar com maior ou menor fidelidade o texto falado. No presente trabalho, a escolha foi por não tentar retextualizar o texto falado de modo que isso implicasse muitas alterações, por isso se escolheu por manter as respostas tal qual foram faladas, sem correções de ordem gramatical e também optou-se por não inserir pontuação, o que já significaria uma primeira intervenção interpretativa dos textos orais advindos das entrevistas. 57 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 repassam para os mais jovens o respeito pela tradição e, disso, advém a união que favorece o entrosamento na hora de cantar, de falar os versos e os saberes que identificam a manifestação enquanto tal. Há pessoas da comunidade que identificam e sabem que o que faz a diferença é o grupo de folião estar há tanto tempo junto. Ao se tratar da tradição, é importante ressaltar o que apareceu na fala do entrevistado E1, na terceira entrevista, quando ele se refere às pessoas que iniciaram a tradição em Alfenas: “Quem começou foi o Sr João Dama, Josias Lourenço esses são os caras que chegou ao meu conhecimento, as pessoas mais velhas que conheci são meu avô Josias Lourenço primeiro do que ele foi Sr João Dama que fez a igreja e tem outras pessoas que momento eu não recordo. São pessoas simples, é de idade, gente sistemática”. Sobre a organização da Folia, apresentamos a seguir mais trechos das entrevistas feitas: Há substituição de um mestre, gerente etc., por outro? Como isso se dá? E1: Na nossa companhia tem três capitães, o Getúlio, Antônio e o Paulo Malaquias. Essa substituição funciona como chamar a responsabilidade, está precisando daquilo ou de outra coisa, bato no peito eu assumo, nós temos também a parte do coleguismo, companheirismo, a gente percebe que o outro tio, o Paulo, anda de bengala, mais é guerreiro, não abandona de jeito nenhum, tem que falar para ele: vai descansar, eu vou embaixar (1ª entrevista; pergunta nº 38). Lembra que vocês falaram dos seus parentes que eram foliões? E1: Minha bisavó. A Companhia era dela e antes dela já saía, ela chamava Carmen, Emília do Carmo (só que eles falavam da Carma) e antes dela já saíam (1ª entrevista; pergunta nº 23). Seus filhos/netos são foliões? E1: Eu não tenho neto, mais meus filhos, a Raíssa, a própria Maria Olívia, gosta muito de Folia de Reis, eu tive essa sorte de ter uma família, até pelo contrário, regaça mais a manga do que eu. Eu vou passando a experiência, ele vai, corre atrás. (3ª entrevista; pergunta nº 28). A presença dos mais velhos é que vai dar suporte à transmissão dos saberes da Folia de Reis, configurando assim como uma tradição, é a sabedoria deles em repassar essa manifestação para os mais jovens e as crianças é que dá certeza da continuidade dessa manifestação. Preservando as características do grupo que participa e permanece por muito tempo junto. Desse modo, sabendo que são responsáveis pela continuidade do trabalho com a Folia de Reis, os mais velhos e responsáveis pelo grupo mantêm a tradição que aprenderam com as pessoas que iniciaram a Folia no município, tendo em vista que muitos deles eram seus pais, avóse tios. Na fala de um dos entrevistados isso fica marcado pela expressão “Tá no sangue da família, uma história de vida” (1ª entrevista, pergunta nº7). A vivência no grupo propicia o aprendizado das várias funções, desde as mais simples até aquelas pertinentes ao representante do grupo, que chama para si a responsabilidade, comprometido em desempenhar a função de gerente dessa manifestação, coordenando o grupo para cumprir as obrigações nos dias de Reis. A seguir, apresentamos outras perguntas e respostas que denotam 58 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 as características presentes na manifestação, tal como ela é vivenciada no município de Alfenas. O grupo de vocês tem alguma coisa especial que diferencia dos outros grupos? E1: Mas de certa maneira, o pessoal identifica mesmo aquele pessoalzinho que gosta de sair junto na companhia, nós já tivemos muitas baixas, meu avô era um folião importante, Sr. Luís Carreiro e Sr. José, conhecidíssimos na cidade e faziam parte do nosso grupo, tivemos que ir repondo, o que faz a diferença é o pessoal estar há tanto tempo junto. Eu comecei com cinco anos, eu tenho vinte e cinco de companhia, é uma história a vida inteira na Companhia. (1ª entrevista; pergunta nº 53). Você sabe quem começou com esta manifestação em Alfenas? E2: Eu conheci diversos capitães, inclusive o que eu aprendi com ele, cantei pela primeira vez, seu nome era João Lúcio, morreu há muitos anos, há muito tempo atrás, depois vem vindo, conheci capitão daqui e dali, pra senhora ver, este ano nós perdemos um capitão muito bom, Libertino, um bom companheiro. (1ª entrevista; pergunta nº 22) Quem são as pessoas que, hoje, participam da manifestação em Alfenas? E1: São pessoas simples, são de idade, gente sistemática tem que saber mexer com ele, é pessoas muito séria, por acaso por nome, Santos que a família do Lourenço que é a minha família, família dos Divinos, Libertino, Prudêncio, Lardino, João Vitor, Valdivino, e assim vai// indo. Tem várias pessoas que a gente, que no momento a gente até esquece. (3ª entrevista, pergunta nº 29) Qual é o período de preparação? Como e onde se dá essa preparação? E1: No período de ensaio e preparação, a gente já tem tudo basicamente tudo definido, os bairros aonde vamos, os compromissos de promessas que as pessoas // a intenção de dar comida, o pessoal cumpre a promessa e paga, quando a gente sai no dia vinte e cinco [de dezembro] já está tudo predeterminado organizadinho. [...] o nosso grupo, por ser mais velho um pouquinho, o pessoal já tem algum tempo junto e o que tio tá falando, todo ano entra alguém mais jovem, uma pessoa que não tem conhecimento, tem interesse em aprender, então a gente tem que começar o ensaio mais cedo, na média de um mês de antecedência é o período de preparação. (1ª entrevista; pergunta nº9). E1: Vai de acordo com a companhia eles [os grupos de Folia de Reis] não têm nem local [ensaiar], são na casa deles mesmos, eles não têm 59 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 muita preparação, já são gente que estão acostumado com isso (3ª entrevista; pergunta nº13). Existe um grupo fixo? E1: Geralmente o povo acompanha, se você sai numa companhia de reis hoje, você fica vinte, trinta anos com aquela companhia, queira ou não, na companhia de reis os foliões é um conjunto, são sete voz que tem que ter que acostumar uns com os outros, até os versos, senão você fica perdido, o tom de cantar pra quem não estudou música é muito difícil, tem que ter muita competência, acompanhando, tocando que nem artista profissional, eles onde pôr o tom da voz, a altura sabe?, a média, o verso, às vezes improvisa até algum verso (3ª entrevista; pergunta nº 33). A Folia de Reis em Alfenas configura-se pela existência de dez a doze grupos, dos quais participam adultos e também crianças e jovens, que de uma forma ou de outra cumprem algum papel determinado pelo grupo. Esta participação, por parte dos mais jovens, dá-se pelo gosto de inserirem-se na companhia da qual o pai ou avô é dono. Pode-se ressaltar que a Folia é uma prática educativa que não é institucionalizada, que se constitui de saberes passados de geração a geração para que as crianças e jovens sejam preparados para uma prática cultural educativa, no que diz respeito à prática de cantar, recitar os versos, tocar um instrumento e isto se dimensiona em uma prática de educação não-escolar. Cultura popular e formação do leitor Na Folia de Reis, conforme toda a caracterização feita em relação a esta manifestação em Alfenas, depreendeu-se que existe uma cultura oral, presente nos grupos, bastante rica, principalmente no que concerne aos versos e músicas representados pela manifestação. Recu- peramos a seguir alguns dos versos recitados pelos foliões: Versos 5 Que encontro mais bonito Que tivemos nesta hora Encontramos os três reis santos E também nossa senhora Vim receber sua benção Ela vem trazer oração Que vai cair dentro do meu coração Oh senhora dona da casa Que recebeu nossa bandeira Com suas próprias mãos Recebe os três reis santos E também os foliões 5 Tais versos são declamados quando o folião de Reis chega à casa e encontra o presépio. 60 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Os três reis santos aqui chegou Neste momento nesta hora Chegamos pra cantar os três reis E vamos cantar agora Os três reis ta perguntando Quem alimentou os foliões Respondeu o dono casa Eu e a benção de nossa senhora A transcrição anterior coloca-nos uma questão sobre a possibilidade de os textos presentes na cultura de grupos de Folia de Reis serem trabalhados na escola. Isso poderia abrir espaço para que esses materiais pudessem ser utilizados na formação de leitores, em um projeto de parceria que levasse as escolas a conhecer um pouco das manifestações presentes no cotidiano dos alunos, trazendo vários elementos que fazem parte dos grupos de Folia, Congada, Pastorinhas. Isso poderia significar, por exemplo, um modo diferente de trabalhar a cultura popular, que não se limitaria à semana do folclore. Não estamos, com isso, afirmando que o aluno deva ficar limitado à cultura local, restrito às manifestações presentes na região em que reside, sem que haja a ampliação dos seus conhecimentos com saberes que ultrapassem a cultura regional. A proposta desta pesquisa é que junto a um trabalho de conhecimento da cultura universal possa aparecer a valorização da cultura local. Durante a pesquisa, percebeu-se como é rica a cultura local, cheia de significados importantes para muitos alunos que se encontram inseridos nela. Valorizar os grupos e a tradição que estes carregam com eles é dar continuidade aos saberes da cultura local dos alunos. Então por que não trabalhar com eles as manifestações presentes na região? De modo que se possa mostrar o valor e a tradição da manifestação, no espaço escolar, relacionando a cultura e o trabalho linguístico com a oralidade, para se alcançar os objetivos de formação do leitor, que pode percorrer caminhos diversos e enriquecedores. Por fim, acredita-se que, ao invés de limitar o trabalho com o conhecimento popular por meio de exercícios descontextualizados, como os que muitas vezes aparecem nos mais diferentes livros didáticos, a escola poderia aproveitar-se dos saberes que constituem a memória daqueles que estão envolvidos com as manifestações populares, sendo que dentre eles estão crianças e adolescentes que estudam em muitasescolas de Alfenas. Referências BOSI, A. Cultura Brasileira. São Paulo: Ática, 2003. BRANDÃO, C. R. Memória do Sagrado: estudos de religião e ritual. São Paulo: Paulinas, 1985. CAGLIARI, L. C. Alfabetização e Letramento. São Paulo: Editora Scipione, 2007. CASSIANO, C. M. Memórias itinerantes: um estudo sobre a recriação das Folias de Reis em Campinas. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1998. GOMES, N. P. M.; PEREIRA, E. de A. Do Presépio a Balança: representações sociais da vida religiosa. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1995. 61 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos de Metodologia Científica. 6. Ed. São Paulo: Atlas 2009. LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Métodos de coleta de dados: observação, entrevista e análise documental. In: Pesquisa em educação: Abordagens qualitativas. São Paulo: EPU Editora, 1986. PESSOA, J. de M. Mestre de caixa e viola. Cad. Cedes, Campinas, v. 27, n. 71, p.63-83, jan./abr.2007. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: set. 2009. SANTOS, J.R.C.C. A Festa do Divino de São Luiz do Paraitinga: o desafio da cultura popular na contemporaneidade. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH-USP, 2008. SZYMANSKI, Heloisa (org.). A entrevista na pesquisa em educação: a prática reflexiva. Brasília: Editora Plano, 2002. TERZI, S. B. A oralidade e a construção da leitura por crianças de meios iletrados. In: KLEIMAN, A. B. (org.). Os significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1995. Maria José Marcos de Oliveira é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG. Daniela Aparecida Eufrásio é docente do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG. Geovânia Lúcia dos Santos é graduada em História, Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e docente do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas - UNIFAL/MG. Retornar ao sumário 62 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Breve análise da formação de professores no século XX sob o olhar de Anísio Teixeira Regina Aparecida Correa RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar brevemente a história da formação de professores no Brasil no século XX, mais especificamente o da Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, tendo como suporte o olhar de Anísio Teixeira, um educador que teve sua vida marcada pela resistência e luta por uma educação democrática, acessível a todos e com professores qualificados. O problema de pesquisa foi investigar a formação de professores no século XX e o pensamento de Anísio Teixeira sobre a mesma. A pesquisa realizada foi bibliográfica, tendo como principais referenciais teóricos algumas obras de Anísio Teixeira, tais como: Educação não é privilégio (1971) e Educação no Brasil (1976), além de obras de outros autores como: Filosofia da Educação, de Maria Lúcia Arruda Aranha, História da Escola em São Paulo e no Brasil, de Maria Luiza Marcílio e o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, dentre outros. O Brasil viveu no Século XX um período de mudanças intensas na sua organização social com a expansão da rede urbana e das novas necessidades apresentadas pelo mundo do trabalho, o que ocasionou consequentemente inúmeras mudanças no sistema educacional, dentre elas, contamos com a promulgação de duas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1961 e 1996 e a reforma da primeira em 1971. Palavras-chave: Formação de professores; Anísio Teixeira; Educação. O século XX, no Brasil, foi um período de muita agitação no que diz respeito à formação de professores. Entre inúmeros decretos e tentativas de reformas contamos com a promulgação de duas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1961 e 1996 e a reforma da primeira em 1971. Diante deste cenário, é importante analisarmos algumas ideias de Anísio Spínola Teixeira, um educador que viveu no período de 1900 a 1971 e que foi extremamente importante pelas ações empreendidas nos cargos públicos que assumiu e pela sua imensa produção intelectual que, até os dias atuais, é pouco estudada e que merece atenção acadêmica. De acordo com Marcílio (2005), por volta de 1910, as Escolas Normais ganhavam atenção especial, pois o magistério estava aumentando o nível de preparo, o número de pessoas sem qualificação estava caindo e valorizava-se a formação. Em 1927 houve uma reforma para as Escolas Normais, Lei nº 2.269, que permitiu a criação das Escolas Normais particulares, chamadas escolas “livres”, a fim de suprirem as necessidades do ensino. 63 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 No intervalo entre 1937 e 1945 houve grande expansão das Escolas Normais no Estado de São Paulo. Esta expansão ocorreu sem nenhum planejamento, atendendo a interesses políticos sem preocupação com a valorização e a qualidade do ensino. Em 1946, pelo Decreto-Lei 8.530, a Lei Orgânica do Ensino Normal, estabeleceu objetivos para a Escola Normal: 1. Promover a formação do pessoal docente às escolas primárias; 2. Habilitar administradores escolares destinados à gestão das mesmas escolas; 3. Desenvolver e propagar os conhecimentos e técnicas relativas à educação da infância. (MARCÍLIO, 2005, p. 239) Porém, a Lei Orgânica do Ensino Normal teria vigência de oito meses apenas, pois a Constituição de 1946 estabeleceria que os Estados organizassem seus sistemas de ensino. Com o aumento das Escolas Normais, onde encontrar professores qualificados para lecionar nos cursos? Essa expansão desnecessária foi feita à custa da degradação da qualificação profissional dos alunos - candidatos ao exercício do magistério primário. Onde achar professores bem preparados e capacitados para lecionar em tantas Escolas Normais, criadas em tão pouco espaço de tempo? Mais uma vez, o populismo e os interesses políticos escusos foram feitos à custa da educação, à custa do direito das crianças a uma boa educação e com bons professores. (MARCÍLIO, 2005, p. 294) Em 1932, quando foi divulgado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, havia uma preocupação com a formação de professores no Brasil, pois o país vivia uma fase de mudanças intensas na sua organização social, com a expansão da rede urbana e das novas necessidades apresentadas pelo mundo do trabalho. Nesse período, boa parte dos professores eram recrutados em todas as carreiras, sem ter uma sólida formação, como se não precisassem de preparação profissional, como afirma o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932: Ora, dessa elite deve fazer parte evidentemente o professorado de todos os graus, ao qual, escolhido como sendo um corpo de elução, para uma função pública da mais alta importância, não se dá, nem nunca se deu no Brasil, a educação que uma elite pode e deve receber. A maior parte dele, entre nós, é recrutada em todas as carreiras, sem qualquer preparação profissional, como os professores do ensino secundário e do ensino superior (engenharia, medicina, direito, etc.), entre os profissionais dessas carreiras que receberam uns e outros, do secundário à sua educação geral. O magistério primário, preparado em escolas especiais (escolas normais), de caráter mais propedêutico, e às vezes misto, com seus cursos geral e de especialização profissional, não recebe por via de regra, nesses estabelecimentos, de nível secundário, nemuma sólida preparação pedagógica, nem a educação geral em que ela deve basear-se. A preparação dos professores como se vê, é tratada entre nós, de maneira diferente, quando não é inteiramente descuidada, como se a função educacional, de todas as funções públicas a mais importante, fosse a única para cujo exercício não houvesse necessidade de qualquer preparação profissional. Todos os professores, de todos os graus, cuja preparação geral se adquirirá nos estabelecimentos de ensino secundário, devem, no entanto, formar o seu espírito pedagógico, conjuntamente, nos cursos universitários, em faculdades ou escolas normais, elevadas ao nível superior e incorporadas à universidade. (MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA, 1932, p. 11) O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932 afirmava que o professor precisaria de formação para atuar nos estabelecimentos de ensino. Precisaria ser preparado, com conhecimento sólido a respeito da criança, do seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e 64 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 social. Alguém capaz de refletir sobre a sociedade na qual o aluno está inserido, utilizando os estudos da filosofia e da psicologia para construir o conhecimento da criança por meio das disciplinas. A educação para o povo e a educação para a elite, ou seja, a dualidade da educação, repercute na formação dos professores no século XX, sendo o ensino superior função do governo federal e organizado sob seus moldes, enquanto as escolas normais, de formação de professores primários, eram de responsabilidade dos estados. A Escola Normal Caetano de Campos, instalada em São Paulo em 1990 era uma escola modelo, mas destinada à elite paulistana. Até a primeira guerra mundial, a relativa estagnação econômica da sociedade brasileira pôde mantê-la dentro desse dualismo educacional, com o ensino público primário para uma substancial percentagem da população (praticamente para toda a classe média nascente), o ensino vocacional e dentro dele as escolas normais para as mulheres da classe média que começavam a desejar trabalhar, e o ensino secundário acadêmico e o superior para a elite e pequena parcela da classe média, devido à existência daquelas poucas instituições públicas desse ensino. (TEIXEIRA, 1971, p. 91) Segundo Marcílio (2005), o curso normal do Estado de São Paulo era essencialmente feminino, frequentado por moças quase sempre oriundas da classe média e alta que procuravam esses cursos para adquirirem conhecimentos e formação completa, já que eram raras as que frequentavam os colégios naquela época. Dessa maneira, muitas delas não exerciam o magistério após concluírem o curso. Frequentavam-no a fim de prepararem-se para o matrimônio. O novo mestre, capaz de exercer essas novas funções, não pode ser a jovem recém saída de uma escola de nível médio, em que se matriculou por não haver outra mais adequada ao sexo – mas alguém amadurecido, que tenha voluntariamente escolhido o magistério para profissão, e revele desse modo, os primeiros sinais de vocação e se disponha a um treino prático de sua arte, na base de verdadeiro aprendizado. (TEIXEIRA, 1971, p. 123) Para Anísio Teixeira, o novo mestre, o novo professor que trabalharia em meio a todas as mudanças econômicas, sociais e culturais que estavam ocorrendo na época, não poderia mais ser alguém que escolhia o magistério por não haver profissão mais adequada ao sexo, mas deveria ser alguém disposto a receber uma formação adequada e eficaz. O curso normal também era visto como uma maneira de atingir o ensino superior, principalmente pelos rapazes. Com o processo de industrialização, havia a necessidade da democratização do ensino diante da grande procura por ele por parte da população. Havia aumentado os cursos normais nas escolas particulares e era enorme o número de pessoas não habilitadas para o cargo que exerciam. Uma das conseqüências, talvez inesperada, desse estado de causas é a complacência com que o país recebe o fato de serem em quase 50% leigos, ou seja, não diplomados, os professores primários, e não chegarem a 30% dos professores secundários diplomados pelas faculdades de Filosofia. (TEIXEIRA, 1971, p. 101) Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 4.024 de 1961, foi elaborado o Plano Nacional de Educação, estabelecendo metas que deveriam ser cumpridas até 1970. Dentre as metas havia uma relacionada à formação de professores, como afirma: 65 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Além de matricular a população em idade escolar primária, deverá o sistema escolar contar, até 1970, com professores primários diplomados, sendo 20% em cursos de regentes, 60% em cursos normais e 20% em cursos de nível pós-colegial. (TEIXEIRA, 1971, p. 103) Em 1971, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5.692 colocou as Escolas Normais ao nível das habilitações do Ensino Médio, o que segundo Marcílio (2005), resultou no esvaziamento, tecnicismo e perda de identidade dos cursos que substituíam a Escola Normal. Uma das consequências do fechamento das Escolas Normais foi a criação das licenciaturas curtas e das Habilitações Específicas para o Magistério (HEM), que eram ministradas em escolas e estabelecimentos adaptados, com as disciplinas reduzidas e o estágio destinado à observação das aulas. Em 1981 foram criados os Centros de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAM) com o intuito de melhorar a qualidade da formação dos professores. No entanto, se comparado aos cursos de Habilitação Específica para o Magistério (HEM) ele sobressaiu em alguns aspectos como a melhoria nas condições de trabalho, avaliação da equipe docente e bolsas de estudos para os alunos. Contudo, não foi capaz de suprir as necessidades da formação de professores. Em suma, a preparação inicial de professores feita nos HEM, CEFAMs ou nos cursos de pedagogia não preencheu, de forma cabal, uma formação de excelência para o professor da escola das primeiras séries e da pré-escola do ensino fundamental. Ai reside uma das explicações básicas da precária situação do ensino brasileiro. (MARCÍLIO, 2005, p. 303) Anísio Teixeira acompanhou de perto muitas destas tentativas de reformas e viu o problema educacional sendo relegado sempre a segundo e terceiro plano em relação aos demais. Os cursos de formação para professores apresentavam-se de maneira superficial. E Anísio Teixeira atentava para o fato de que não eram as leis impostas de uma hora para outra que iriam transformar os professores em pesquisadores, pressupondo-se assim que, apenas uma formação sólida e eficaz seria capaz de elevar a qualificação e a valorização do profissional educacional. [...] O ensino superior brasileiro tem sido um ensino fundamentalmente superficial, destinado apenas a transmitir conhecimento, só por exceção e em casos individuais, atingindo algum nível de pesquisa. Não há nenhum poder de lei que possa subitamente transformar todos esses professores em pesquisadores e dizer–se que toda universidade vai fazer pesquisa. (TEIXEIRA, 1976, p. 243) O principal redator da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº9394/96 foi Darcy Ribeiro. Ele criou o Instituto de Educação Superior que era uma instituição para a formação específica do professor. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº9394/96 prevê a formação do professor no ensino superior, mas admite a formação normal em nível médio para a atuação na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Fundamental. A formação de docentespara atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade normal. (LDB nº 9394/96, Art. 62) 66 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 O Decreto nº 3276, de dezembro de 1999, também prevê que a formação de professores para atuar na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental far- se-á preferencialmente em Cursos Normais Superiores conforme redação dada pelo Decreto nº 3.554, de 2000. Com a promulgação desta lei, fixou-se um prazo de dez anos para que todos os professores obtivessem a formação no ensino superior. A isto se deve o aumento em mais de 500% dos cursos normais superiores. Desde o momento que o MEC fixou que depois de 2007 não poderia mais ser contratado professor na rede pública sem apresentar diploma de nível superior, o número de cursos cresceu mais de 500% (de 2000 a 2002). Atualmente, há 668 cursos (normal superior) cadastrados no MEC. Com Tamanha pressa em criar cursos, não se pode esperar que sejam eles de boa qualidade. Onde encontrar bons professores para todos eles? (MARCÍLIO, 2005, p. 416) Diante da impossibilidade de conseguir que todos os professores tivessem o curso superior até 2007, em 2003 o MEC voltou atrás na decisão por meio de uma resolução que suspendeu a obrigatoriedade tanto para os professores da Educação Infantil como para os dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Ao mesmo tempo em que o Brasil traça estratégias para aumentar o número de professores com diploma de nível superior, discute-se também a qualidade de formação desses profissionais. Ter um curso superior, por si só, não garante a qualidade do ensino. Há muitas faculdades de fim de semana ou cursos aligeirados de pedagogia. É preciso garantir a qualidade dessa formação. Afirma a especialista na área Bernadete Gatti: “Sabemos que a formação de professores está sendo feita, na maior parte, pelas instituições isoladas de ensino superior e não pelas universidades. Sabemos também que a maioria destas instituições funciona em condições precárias, com pessoal de qualificação discutível. Por outro lado, há uma certa inércia nas universidades quanto a repensar as licenciaturas e embora existam algumas propostas alternativas, estas até aqui têm mostrado pouco sucesso. Nenhuma mudança radical, assumida enquanto proposta de universidade, foi efetuada até hoje. Quanto à situação das instituições isoladas, é patente a inércia dos órgãos que poderiam propiciar certo ajuste de algumas situações mais contundentes. De um lado, temos a dificuldade de autocrítica e de promoção de mudança; de outro, as limitações da burocracia nacional e suas possibilidades políticas. (MARCÍLIO, 2005, p. 416) Esse aumento irracional e desordenado de cursos para a formação de professores ocasionou, consequentemente, uma grande quantidade de professores mal formados. Resolveu-se, assim, o problema quantitativo. Mas e o problema qualitativo? Temos um grande número de pessoas com um certificado de conclusão de curso, mas estariam estas pessoas capacitadas, bem preparadas e qualificadas para atuar de maneira comprometida e decente no sistema educacional? De acordo com Aranha: Após a Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases (lei nº 9394/96) manteve os cursos universitários de Pedagogia e criou os Institutos Superiores de Educação, voltadas para a formação de professores de educação básica (curso normal superior), a formação pedagógica e a educação continuada para profissionais de educação. Os cursos de magistério de nível secundário continuam preparando professores para a educação infantil e as primeiras séries do ensino fundamental, exigindo-se para o restante a formação superior. No entanto, a intenção é que, com o tempo, todos os professores de qualquer nível tenham formação universitária. (ARANHA, 2006, p. 46) 67 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Essa citação demonstra que, mesmo após a LDB 9394/96, muitos professores que atuam na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental continuam recebendo formação nos cursos do magistério do nível médio. A desvalorização dos profissionais de educação torna-se evidente, uma vez que muitos deles não têm preparação para exercerem o cargo que ocupam. Segundo Aranha (2006), o grande número de mulheres matriculadas nos cursos de habilitação para o magistério explica-se pelo fato de continuarem mergulhadas na ideologia de que ser professor é algo vocacional, destinado às mulheres e que, portanto, basta gostar de criança para lecionar, o que reforça os estudos sobre a feminização do magistério. Esta ideologia relaciona-se intrinsecamente com a formação do professor. Ou seja, se é natural mulher cuidar de criança, não precisa então ter formação para tal. Infelizmente, quem sofre as piores conseqüências deste despreparo profissional são as crianças, que encontram muitas vezes durante sua formação professores não qualificados para o exercício da profissão. O magistério representa a peça mais importante da obra educativa, o “suporte humano” do ensino. Dele dependem a eficiência da escola, o rendimento escolar, a formação do aluno. O bom treinamento, a formação do professor, seu preparo, sua capacitação constante, seu entusiasmo pelo ensino, sua vocação, constituem a chave da educação de qualidade. E, justamente aqui, na formação do professor, é onde se encontram uma das mais sérias barreiras para o avanço da qualidade da educação brasileira e o combate eficiente ao fracasso escolar. O aluno não aprende porque o professor não ensina, ou não sabe ensinar. O professor não ensina porque não aprendeu bem como ensinar. (MARCÍLIO, 2005, p. 289) Em maio de 2006 o Conselho Nacional de Educação (CNE) definiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Pedagogia que compreende o estudo das relações sociais, os princípios e objetivos, os valores, a didática, a carga horária mínima do curso e do estágio supervisionado por meio de atividades teóricas e práticas, seminários, pesquisas, análises e reflexões de temas pertinentes à educação. Com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia pretende-se garantir a todos os graduandos uma formação pedagógica sólida, capaz de atender as necessidades dos alunos. Aranha (2006) afirma que a valorização da profissão deve começar pensando-se na formação do professor. A revalorização da profissão docente deve começar pelos cuidados com a formação do professor. Tornar os cursos de Pedagogia momentos efetivos de reflexão sobre a educação e condição para a superação da atividade meramente burocrática em que mergulham muitos desses cursos. Afinal, não basta ser químico para ser um bom professor de química nem “ter jeito para lidar com crianças” para dar aulas nos cursos de Educação Infantil. (ARANHA, 2006, p. 43) Outro fator que influencia decisivamente a vida do professor quanto à formação é que, em decorrência dos baixos salários, ele precisa trabalhar em dois ou mais turnos, restando pouco tempo para a sua formação e impedindo que ele faça um bom planejamento e uma boa avaliação de seus alunos. O curso de magistério compreende a técnica, e a Pedagogia a ciência. Desse modo, de nada vale o professor saber ensinar se não souber o porquê, a importânciae nem a metodologia a ser utilizada para um determinado grupo de alunos, levando-se em consideração o contexto social no qual o mesmo está inserido. Anísio Teixeira sabia que era fundamental a formação em nível superior, que iria garantir o estudo da psicologia, da sociologia e da filosofia, disciplinas auxiliares, essenciais para que o professor compreenda a sociedade e seu ideal de homem e de educação. 68 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Aos professores não bastaria apenas que tivessem para isso um bom conhecimento teórico, mas deveriam ter capacidade de refletir sobre as singularidades de sua própria atividade profissional, sobre as questões decorrentes do insucesso constante do empreendimento educativo, sobre a técnica e as vicissitudes ou indeterminações que constituem a própria natureza da atividade de ensino. E, mais do que isso caberia a esses profissionais resolver essas questões técnicas e determinar a atividade de ensino, conferindo-lhe um sentido humano que não contrariasse a vida e a experiência comum e que fosse a socialização mesma do exercício da atividade filosófica de refletir radicalmente o tempo presente. Nesse sentido, o perfil desse profissional seria o próprio perfil daquele que faz filosofia da educação na sua experiência cotidiana e, no limite, promove a capacidade de aprender a filosofar sobre o tempo presente, socializando-a e promovendo a constituição de um ambiente de comunicação sem violência, propício ao desenvolvimento da democracia. (PAGNI, 2008, p. 105) Segundo Pagni (2008), para Anísio Teixeira era preciso refletir acerca da profissão e da sociedade. Portanto, não basta dominar a técnica e conhecer algumas teorias se não souber aplicá-las reflexivamente. O curso superior é que seria capaz de dar uma formação pedagógica sólida auxiliando e justificando sua prática, de modo que ambas contribuíssem para melhor aprendizagem dos alunos. Como no período em que Anísio Teixeira viveu, ainda hoje a chave para a transformação do sistema educacional brasileiro pode estar na formação do professor, já que muitas tentativas de reformas foram feitas, mas desarticuladas, isoladas e rápidas, sendo assim, incapazes de realizar mudanças qualitativas na educação brasileira. Conclui-se que, apesar de muitas das obras de Anísio Teixeira ainda serem pouco conhecidas e estudadas, elas trazem uma contribuição singular para a reflexão do sistema educacional e particularmente, da formação de professores, uma vez que este autor foi um visionário, um homem além de seu tempo. Boa parte de suas idéias permanecem atuais, visto que, apesar de todas as transformações econômicas, sociais e culturais, o país ainda anseia por uma transformação no sistema educacional, especialmente no que tange à formação de professores. Como descrito no trabalho, grande parte dos profissionais da educação continuam ainda mergulhados na ideologia de que é normal mulher gostar de criança, que é algo vocacional, e que, portanto, não é preciso formação para trabalhar com as mesmas, o que também justifica os baixos salários e a grande maioria de mulheres nos cursos de formação de professores. Logo, é preciso repensarmos sobre a formação de professores se quisermos, de fato, uma melhoria no sistema educacional. Referências ARANHA, Maria Lúcia Arruda. Filosofia da Educação. São Paulo: Moderna, 2006. AZEVEDO, Fernado et al. Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. RBEP, Brasília, 1932. Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LEI 9394/96, 20 de Dezembro de 1996 (DOU 23.12.96). MARCÍLIO, Maria Luiza. História da Escola em São Paulo e no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Fernand Braudel, 2005. 69 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 PAGNI, Pedro Ângelo. Anísio Teixeira: experiência reflexiva e projeto democrático: a atualidade de uma filosofia da educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. TEIXEIRA, Anísio Spinola (2). Educação não é privilégio. São Paulo: Nacional, 1971. TEIXEIRA, Anísio Spinola (3). Educação no Brasil. São Paulo: Nacional, 1976. Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LEI 9394/96, 20 de Dezembro de 1996 (DOU 23.12.96). Regina Aparecida Correa é graduada em Pedagogia pelo Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé – UNIFEG e pós-graduanda em Docência no Ensino Superior na Universidade do Sul de Minas – UNIS-MG. Retornar ao sumário 70 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Sociologia do conhecimento na historiografia do Ensino Profissional Marcelo Rodrigues Conceição RESUMO: Este trabalho apresenta os resultados da revisão sobre a historiografia do Ensino Profissional. As publicações analisadas, seus respectivos autores e as datas em que foram divulgadas como livros são: Trabalhadores urbanos e Ensino Profissional (Maria Alice Ribeiro, Coraly Gará Caetano e Maria Lúcia Caira Gitahy, de 1986); A Escola Profissional de São Carlos (Ester Buffa e Paolo Nosella, de 1998); O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização e O Ensino Profissional na irradiação do industrialismo (Luiz Antônio Cunha, de 2000); Educação Profissional no Brasil (Silvia Maria Manfredi, de 2002) e A socialização da força de trabalho: instrução popular e qualificação profissional no estado de São Paulo (1873-1934) (Carmen Sylvia Vidigal Moraes, de 2003). As análises se basearam, primordialmente, no conceito de modo de produção de Ferro, que se destina a verificar as influências do momento e das circunstâncias em que e onde foram produzidos os trabalhos, ou seja, analisar sociologicamente a produção deste determinado conhecimento: a história do Ensino Profissional. Os objetivos foram: revisar o modo como foi produzida a historiografia do Ensino Profissional e seus resultados; apontar as características e analisar a relação desta produção com a da História da Educação; verificar as motivações que conduziram os autores a utilizar determinados modelos analíticos. As conclusões são de que a produção foi influenciada pelos momentos e circunstâncias em que os autores se formaram e desenvolveram seus trabalhos, marcado pelas discussões sobre o desenvolvimentismo do país. Palavras-chave: Ensino Profissional; historiografia, sociologia do conhecimento. Introdução A historiografia do Ensino Profissional, referente aos primórdios do processo de industrialização do Brasil (início do século XX), é o objeto central do presente trabalho. Em relação ao significado de historiografia, Warde (1990a, p. 4) destaca que há utilização de modo indiscriminado: para indicar o conjunto de obras das obras de História e/ou para se referir a um mapeamento, a um arrolamento ou a qualquer maneira de ordenação dessas obras, além de servir para nominar o estudo efetuado por meio de algumas formas de ordenação. O entendimento de historiografia, para este trabalho, se refere ao conjunto das obras e a maneira como foram produzidas em relação ao momento e ao lugar. Os livros que compõem o corpus da historiografia e seus respectivos autores são: Trabalhadores urbanos e Ensino Profissional (Maria Alice Ribeiro, Coraly Gará Caetano e Maria Lúcia Caira Gitahy, de 1986); A Escola Profissional de São Carlos (Ester Buffa e Paolo Nosella, de 1998); O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização e O Ensino 71 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhoscompletos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Profissional na irradiação do industrialismo (Luiz Antônio Cunha, de 2000); Educação Profissional no Brasil (Silvia Maria Manfredi, de 2002) e A socialização da força de trabalho: instrução popular e qualificação profissional no estado de São Paulo (1873-1934) (Carmen Sylvia Vidigal Moraes, de 2003). Os trabalhos supracitados que se tornaram referencial para os estudiosos do tema, foram analisados levando-se em consideração dois níveis de investigação, inter-relacionados: o primeiro visa a identificar as características e concepções sobre o Ensino Profissional e sua relação com a produção em História da Educação; o segundo visa a analisar a trajetória dos autores, as influências dos momentos e das circunstâncias em que se formaram e se tornaram pesquisadores, a partir dos anos de 1960, nas conclusões que efetuaram sobre a história do Ensino Profissional. 1. Delineamentos da investigação A leitura dos títulos dos livros que compõem as fontes principais desta pesquisa indicou que há vários termos para se referir ao Ensino Profissional. Entende-se por Ensino Profissional a formação destinada à obtenção de um ofício ou profissão, desenvolvida de forma independente ou integrada aos demais níveis de ensino (Primário, Secundário, Médio etc.). Os termos que designam este ramo de ensino (qualificação profissional, ensino de ofícios, Ensino Industrial, Educação Profissional etc.) serão utilizados de acordo com a versão dos autores. Nos anos de 1990, o termo mais utilizado é Educação Profissional, talvez porque a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (LDB/96) estabeleceu dessa maneira. Para o período de interesse desta investigação, o termo Ensino Profissional é o mais utilizado. As obras aqui analisadas foram produzidas nas décadas de 1980, 1990 e 2000, escolhidas por terem sido trabalhos publicados em livros pelas editoras, o que sugere terem maior circulação, o que pode fazer com que se determine um modo interpretativo a respeito da história do Ensino Profissional. Entretanto, o período escolhido para efetuar a análise das características do Ensino Profissional é de meados dos anos de 1880 a meados de 1940. Justifica-se a definição da periodização pelo fato de que as obras escolhidas têm como marco as iniciativas de industrialização e urbanização do país e, também, por ser o momento de organização do sistema de ensino brasileiro, aqui entendido como todos os níveis, sob um padrão de legislação e funcionamento, do qual o Ensino Profissional era parte integrante. Este trabalho pretende estabelecer um entendimento da maneira como se deu a produção sobre a história do Ensino Profissional e para a realização dessa tarefa é indispensável considerar um suporte conceitual primordial para o entendimento dos trabalhos e da conformação da historiografia: o “modo de produção das obras históricas”. Esse modo de produção, de acordo com Ferro (1989, p. 2), define-se “como as condições que determinam a produção e a natureza das obras históricas, ou seja, quais são os temas por elas privilegiados, de que maneira são abordados, como esses dados evoluem através do tempo”. Já em relação ao lugar de produção, há que se destacar a sua importância na condução e conformação dos trabalhos: [...] a análise das condições institucionais deve levar em conta o caráter de construto político da história, na produção do qual os grupos sociais, instituições ou civilizações, em disputa pelo controle do conhecimento do passado, e pelo próprio passado, fazem da história um monumento a conferir-lhes legitimidade. É justamente pela importância que as instituições e as sociedades conferem à história que as interdições e permissões que estão presentes no modo de produção das obras históricas agem como controladoras na produção de uma história vigiada. (BONTEMPI JR., 1995, p. 16-17) 72 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 A concentração de profissionais (pesquisadores, professores, administradores) em agrupamentos permite realizar exercícios imaginativos dos diversos interesses que moveriam um pesquisador a realizar trabalhos sobre um tema, com determinado tipo de abordagem. O primeiro vínculo é com o professor-orientador, em se tratando de trabalhos acadêmicos, que normalmente inserem o pesquisador em um grupo. Essa relação e o interesse do orientador, que já pertence a diversos grupos, podem influenciar a escolha do tema, objeto e referenciais teóricos, além dos métodos e técnicas para a realização do trabalho. A instituição a qual o pesquisador e o orientador estão vinculados pode fazer com que os estudos sejam dirigidos, a fim de garantir recursos, já que por vezes as universidades têm, em seus departamentos, institutos de avaliação de programas públicos ou prestam diversos serviços ao poder público (planejamento, execução de atividades, avaliação etc.). Outro importante influenciador é a filiação ou opção político-partidária, o que pode fazer com que o pesquisador divirja ou referencie a política educacional em vigência, de acordo com sua posição a respeito do partido que ocupa o poder: oposição ou situação. Ainda, em relação à situação política, é evidente o processo de ocupação de áreas do poder público, como a econômica, por exemplo, por grupos de intelectuais ligados a universidades, que assim se impõem na formulação e condução das políticas públicas. Essa verdadeira rede (orientador/universidade/institutos/entidades-civis/partidos- políticos), provavelmente, constitui um corpo de influência sobre os temas a serem pesquisados, a forma de realização da pesquisa e os resultados atingidos. O pertencimento a determinado(s) grupo(s) e, consequentemente, os interesses de cada um deles, além dos pessoais, talvez influenciem na escolha do objeto e na forma de pesquisá-lo, o que possivelmente trará vieses nas conclusões que estariam subordinadas às aspirações pessoais ou dos grupos de pertencimento. Como a vinculação imediata da história do Ensino Profissional é com o campo da História da Educação, cabe entender o que se produziu nos anos em que foram elaborados os trabalhos a serem analisados e nos quais os autores se formaram, ao mesmo tempo em que foram construídas e difundidas algumas concepções sobre Educação e História no meio acadêmico. 2. Algumas características da historiografia educacional brasileira A historiografia educacional brasileira referente ao período de produção dos trabalhos em tela (décadas de 1980, 1990 e 2000), é contemplada por alguns estudos sobre suas tendências, seus objetos e aportes teóricos, bem como críticas às maneiras de interpretação ou escolha de temas e objetos de pesquisa. A pesquisa em História da Educação ganhou evidência com a institucionalização da pós-graduação em Educação nos anos de 1970. Warde (1984), ao se referir à produção entre 1970 e 1984 nos programas de pós-graduação em Educação, identifica como seus traços característicos: a conformação do objeto de estudo nas condições históricas de sua produção; o enquadramento em períodos consagrados (Estado Novo, Primeira República); a presença marcante do Estado como interlocutor obrigatório das investigações sobre assuntos educacionais; a predominância de literatura das Ciências Sociais como aporte teórico nos trabalhos. A historiografia nascida nos programas de pós-graduação em Educação, segundo Warde (1984, p. 3), revela a predominância do diálogo com o Estado. É preciso destacar que, nos anos de 1970 e 1980, este seria o principal personagem do palco educacional: O que ele fez ou o que deixou de fazer, oque cumpriu ou deixou de cumprir, o que absorveu das demandas de setores sociais e o que deixou de absorver são ainda as 73 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 grandes questões vistas nesses estudos. Mesmo a seleção de uma temática que implica a captação da movimentação de forças no âmbito da sociedade civil tende a recair nas situações onde o estado apareceu como o principal interlocutor dessas forças e mais do que isso onde se manifestou, bem ou mal, a respeito das demandas dessas forças. (WARDE, 1984, p. 6) Além do Estado como interlocutor, Yamamoto (1996) constata o predomínio da abordagem marxista nos trabalhos sobre a história da educação brasileira entre 1970 e 1990. Essa prevalência estaria ligada a alguns fatores como: o local de produção, a instituição à qual se vinculava o pesquisador e o forte apego à militância política. Em relação à forma de utilização do referencial marxista, Yamamoto (1996, pp. 165-168), destaca ter havido “apropriação indébita” em algumas situações, com base em três aspectos: apreensão de Marx por meio de outros autores; utilização de uma leitura exegética, com citações clássicas, mas desprovidas de maior significação; falta de enquadramento histórico, o que, segundo o autor, culminava com afastamento do pensamento original, caso específico em que cita a utilização de uma suposta pedagogia marxista. Por meio dos problemas arrolados, Yamamoto concluiu que houve uma utilização marxista na Educação com anacronismos e muitos erros interpretativos. Bontempi Jr. (1995) corrobora as constatações de Yamamoto (1996) sobre a presença do marxismo na historiografia educacional brasileira, mas em análise de 2005 faz referência à presença de outra vertente sociológica, a de Durkheim, dividida, pelo autor, em visível e invisível. A presença visível se daria nas análises azevedianas, pela utilização do método comparativo de Durkheim, da função da Educação e do papel do Estado e pela integração do fenômeno social aos “fatos que o precedem e aos fenômenos mais gerais que caracterizam a sociedade em que se inscreve” (BONTEMPI JR., 2005, p. 50). Mesmo em fase designada como de uma historiografia crítica, Bontempi Jr. (2005, p. 58) constata a presença invisível de Durkheim, pelo mecanismo analítico dos trabalhos, apesar de não ser legítimo rotular a historiografia educacional como “durkheimiana”: [...] embora seja um despropósito afirmar que a historiografia da educação brasileira dos anos de 1970 e 1980 seja “durkheimiana”, posto que em nenhum momento ela exercitou o método rigoroso reclamado por Durkheim para a verificação das correlações entre os fatos sociais que dá suporte para as leis sociais gerais, é possível afirmar que nela perdurou a própria crença na existência de leis gerais de explicação dos fatos particulares e a correlata subordinação da história, o que não deixa de ser uma presença invisível de um autor em “posição de transdiscursividade”. (BONTEMPI JR., 2005, p. 59) Vale destacar, portanto, que a historiografia da Educação brasileira, produzida nas décadas de 1970 a 1990, foi fortemente influenciada pela Sociologia, com presença marcante de referenciais teóricos e de modelos analíticos, nem sempre assumidos ou mesmo compreendidos, de Marx e Durkheim. A partir de meados dos anos de 1980, a pesquisa em História da Educação buscou outras formas interpretativas e metodológicas. Segundo Warde e Carvalho (2000, p. 10), o primeiro aspecto de mudança percebido foi o das “iniciativas que buscavam penetrar nas relações intergrupais e na cotidianidade da vida escolar”, baseadas nos estudos etnográficos e na nova Sociologia da Educação: De modo mais indireto, o campo dos interesses e a inserção epistemológica dessas modalidades de pesquisa tiveram um efeito curioso: promoveram a redefinição do estatuto da produção historiográfica no campo da pesquisa sobre educação, liberando a História da Educação da função de saber subsidiário nesse campo. Essa redefinição acabou por favorecer a reflexão sobre questões metodológicas e 74 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 conceituais, sedimentando práticas de discussão historiográfica em torno de temas, questões e procedimentos, e produzindo, desse modo, uma certa tradição disciplinar partilhada pelos historiadores da educação. Questões como as relativas ao estatuto documental das fontes utilizadas e à produção da escrita da história adquiriram centralidade. Nesse processo, foi sobretudo a crescente problematização da relação entre historiografia educacional e fontes, que assumiu o papel motor principal das transformações. (WARDE; CARVALHO, 2000, p. 10) Em meados da década de 1990, segundo Warde e Carvalho (2000, p. 26-27), ocorreu um deslocamento, em múltiplas direções, dos estudos sobre a história da educação brasileira. Uma das principais características dessa mudança foi o direcionamento às práticas escolares e aos agentes do processo educacional (docentes, discentes, formação de quadros etc.). Essas mudanças ocorreram nos objetos de estudo, nas fontes, nos referencias (conceituais e metodológicos), e talvez tenham sido motivadas, segundo as autoras, por novas condições políticas e institucionais que redefiniram as relações entre os intelectuais e o Estado: A possibilidade de surgimento dessa nova historiografia educacional não decorre, entretanto, apenas dessas novas condições políticas e nem tampouco apenas do movimento de reconfiguração conceitual e metodológico das pesquisas educacionais desencadeado nessas décadas. Ela decorre, talvez principalmente, das condições políticas e institucionais que vêm promovendo a redefinição das relações entre os intelectuais e o Estado, produzindo o isolamento do campo acadêmico das políticas educacionais atuais. (WARDE; CARVALHO, 2000, p. 27) Os trabalhos sobre a história do Ensino Profissional analisados chegam ao ano de 2003, mas os balanços efetuados sobre a produção em História da Educação, após os anos de 2000 não indicam outras modificações substanciais como as apontadas por Warde e Carvalho (2000). Os novos rumos apontados por Warde e Carvalho (2000), representariam a consolidação do campo, mas nitidamente inscrito no âmbito da chamada Nova História Cultural. Dentre os aspectos mais importantes da Nova História Cultural está a importância da análise e descrição das fontes. Segundo Nunes e Carvalho (1993, p. 9), o exame das fontes estaria relacionado à vertente interpretativa contemporânea de um modo geral, e, em particular, à História da Educação que, por parte de um de seus grupos, absorvera a Nova História Cultural que tem tratado de problemas, temas e objetos considerados, até recentemente, como exclusivos da História da Educação. As características da historiografia educacional brasileira dos anos de 1970 e 1980 e a leitura dos trabalhos sobre a história do Ensino Profissional indicam haver semelhança entre os temas, enfoques e objetos. 3. No “des” compasso da historiografia educacional A relação entre a crítica à produção em História da Educação e a produção aqui analisada sobre a história do Ensino Profissional podem ser observadas sob alguns aspectos: interlocução como Estado, utilização da História, busca por novas fontes e presença dominante da Sociologia e do desenvolvimento da indústria na determinação das análises. A presença do Estado como interlocutor quase único é extremamente relevante nas obras analisadas. Em todos os trabalhos são consideradas as iniciativas estatais, bem como as legislações que teriamdeterminado e sido influenciadas pelo desenvolvimento urbano- industrial. Acrescenta-se o fato de que as iniciativas estatais, na visão dos autores, sempre estiveram aquém das necessidades de formação para o mercado, ou seja, de trabalhadores qualificados para possibilitar o desenvolvimento industrial, conforme atestam em suas 75 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 análises, Cunha (2000a, 2000b), Moraes (2003) e Ribeiro (1986), destacando que o Liceu de Artes e Ofícios, e depois o SENAI, teriam atendido melhor a essas “solicitações”. Parece correto afirmar que houve utilização da História, aspecto analisado por Warde (1984), para a produção entre os anos entre 1970 e 1980, pois o importante está na elucidação de problemas atuais, buscada pelos trabalhos de Cunha (2000b) e Manfredi (2002), principalmente. Seria a busca de explicações para os momentos de produção, daí tão importante se ater para as questões e discussões que estariam em pauta nos momentos em que nossos autores desenvolveram seus trabalhos. Ao tratarem do Ensino Profissional, os trabalhos em tela referem-se preferencialmente ao Ensino Industrial, desconsiderando a importância dos demais ramos (comércio e serviços, pelo menos) na construção da sociedade paulista e do sistema educacional brasileiro. Algumas iniciativas, como a criação da Escola de Ensino Comercial Álvares Penteado e a organização do Ensino Comercial precederam diversas leis ligadas ao Ensino Industrial e a criação de algumas instituições analisadas. Ao excluir as demais modalidades de Ensino Profissional fica latente que, mesmo que com algumas justificativas como as de Cunha, este era o único setor deste ramo de ensino que ajudaria no desenvolvimento do país, voltado à indústria. Para os autores, as iniciativas que não se destinaram ou não estiveram, em seus objetivos, ligadas ao mercado de trabalho, fracassaram justamente por não se relacionarem à dita “modernização” por meio da industrialização. É importante destacar que houve um movimento pela busca de novas fontes, mas permaneceram os mesmos padrões de análises em que a industrialização serviu como o modelo a ser seguido, também, no Ensino Profissional. De forma geral, os trabalhos sobre o Ensino Profissional apresentados pautam-se na utilidade do Ensino Profissional à modernização do país e à industrialização. Mesmo apresentando bom conteúdo de informações (cursos, programas, mecanismos de seleção, legislação), as conclusões são voltadas ao mercado de trabalho e à economia do país. Apesar de analisarem detidamente algumas experiências e mesmo atestando-as como inovadoras e pertinentes, ao buscar uma caracterização, os autores remetem ao processo de industrialização para que este seja o elemento ao qual o Ensino Profissional deveria atender, acompanhar e até conduzir. Nas análises predominaram as questões relacionadas ao desenvolvimento do país, destacadas por dois modos interpretativos sobre o capitalismo no país: a industrialização como única via ao desenvolvimento e a necessidade de modernização do país. Outro aspecto importante é o da influência da Sociologia nos estudos sobre a História da Educação, também presente na história do Ensino Profissional. Quais seriam as origens e as necessidades enfrentadas pelos autores para buscarem na Sociologia as explicações utilizadas no campo da História da Educação acerca do Ensino Profissional? Haveria relação entre Sociologia e desenvolvimentismo? 4. Sociologia e desenvolvimentismo no Brasil No Brasil, a Sociologia, ao lado da Economia, predominaram como áreas de maior relevância no debate acadêmico sobre o desenvolvimento do país. Especialmente nas décadas de 1950 a 1970, a preponderância dessas duas disciplinas se deu por algumas necessidades, dentre as quais a busca de formação de campos investigativos. Para analisar a realidade brasileira os agentes dos campos da Economia e a da Sociologia debateram em torno das questões sobre o desenvolvimento do país. As formulações que dominaram as maneiras de se pensar o Brasil se concentraram em torno da industrialização como único caminho para o desenvolvimento. 76 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 A historiografia do Ensino Profissional aqui analisada parece ter sido subtraída da Sociologia, por meio de uma correlação de fatores (políticos, econômicos, culturais) nos quais se destacam: a luta contra o regime autoritário e as disputas dos intelectuais em torno do prestígio e do poder do campo que a área deveria ter no campo científico. O ambiente no qual se deu a formação dos pesquisadores, exatamente no momento de predominância da Sociologia e da Economia, nos debates acerca do desenvolvimento do Brasil são fundamentais para se entender as outras variáveis que contribuíram para a influência da Sociologia nos trabalhos sobre a história do Ensino Profissional. Os autores em estudo realizaram e concluíram sua formação de graduação, a partir do ano de 1966, conforme demonstra o gráfico abaixo. Gráfico - Período de Formação dos autores 1974 1976 1973 1971 1966 1967 1984 1983 1986 1981 1977 1975 1972 1976 1990 1981 1979 1980 1983 1960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 Graduação Mestrado Doutorado Graduação 1974 1976 1973 1973 1971 1966 1967 1967 Mestrado 1984 1983 1986 1981 1977 1975 1972 1976 Doutorado 1990 1981 1979 1980 1983 Ribeiro Gitahy Caetano Moares Nosella Buffa Cunha Manfredi Fonte: Elaborado com base nas informações extraídas da Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq). Os autores se graduaram entre um período relativamente curto, de 1966 a 1976. A formação em nível de pós-graduação se deu entre 1972 e 1990. Há que se verificar o momento e as circunstâncias nas quais os pesquisadores foram formados por se pensar que os autores não se desprenderiam das questões e maneiras de interpretação com as quais tiveram contato e foram influenciados. No cenário político e intelectual houve a organização de grupos que debatiam alguns temas sobre a realidade nacional. Fato a se destacar é que o período de realização da graduação e da pós-graduação dos autores analisados coincidiu com a criação da pós-graduação no país, com o debate sobre democratização, com as discussões em torno de política educacional e, de maneira mais relevante, com a organização do campo intelectual frente a esses debates. Alguns dos autores foram os primeiros alunos profissionalizados por um novo modelo de pós-graduação implantado no país, especialmente no doutorado (Cunha, Manfredi, Buffa e Nosella). Quando os produtores de conhecimentos sobre o Ensino Profissional entram em cena, o campo acadêmico científico, no que tange às Ciências Sociais, já vinha, desde os anos de 1950, discutindo o processo de desenvolvimento do país, baseado em uma única possibilidade: a indústria. 77 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 5. O desenvolvimentismo no Brasil Alguns grupos e pensadores formularam teorias sobre desenvolvimento e industrialização, que levaram à determinação de marcos interpretativos sobre a situação econômico-social da América Latina e, logo, do Brasil. Sob perspectivas diferentes, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) e o grupo de Sociologia da USP, que depois criou o grupo de estudos do Centro Brasileiro de Pesquisa (Cebrap), debaterama questão do desenvolvimento do país, elaboraram e discutiram conceitos que se tornaram quase que obrigatórios para a discussão da situação do país em diversas áreas. Oliveira (2000, p. 123) afirma que as teorias cepalinas se tornaram ideologia, no sentido gramsciano, por terem orientado e pautado as discussões sobre a economia e a elaboração de projetos e programas visando ao desenvolvimento, nos países periféricos como os da América Latina. É mais do que isso! A construção de uma maneira de analisar se tornou quase que obrigatória nas discussões acadêmicas e conformaram o modo de pensar de uma geração de cientistas sociais e economistas, influenciando, mesmo passados os anos de 1970, a maneira de interpretação de toda a história do capitalismo no Brasil. Destaca-se que a história do Ensino Profissional foi caracterizada pela perspectiva trilhada nos trabalhos sobre as teorias de desenvolvimento da Cepal, do Iseb e de parte do grupo da USP. Não houve abertura para outras possibilidades ou análise da importância de outros setores (agrícola, comercial). Deixou-se de fora, apesar de algumas citações, a relação desta modalidade de ensino com a criação de um sistema educacional, tão em pauta nos anos de 1930, período de grande expansão e de organização do Ensino Profissional. Por meio de diferentes formas, excetuando-se as críticas de Oliveira, foi montado um verdadeiro arsenal discursivo, em que não se questionou em momento algum o modelo de desenvolvimento industrial, apesar das discordâncias nas formas em que se deu sua implementação. Teria sido construída uma hegemonia da indústria na idealização de um futuro promissor para a nação brasileira, o que seria uma grande ilusão: Assistimos, nos anos 50 e início de 60, a articulação das interpretações sobre a industrialização, sobre o progresso, sobre o nacionalismo e o imperialismo, orientada para a montagem da dominação ideológica da burguesia “moderna”, salientando-se sobretudo essa ilusão de que a riqueza se espalha. (FRANCO, 1978, p. 197) Franco (1978, p. 200) ainda critica com veemência o caráter particular dos interesses implícitos: O que é silenciado, mas é o pressuposto necessário desses raciocínios, é sempre a idéia do desenvolvimento industrial, moderno, nacional, como motor do progresso geral, tal como então preconizava o ISEB. Com isto, alcançar-se-á o melhor dos mundos possíveis para todos. É possível ir longe com esse pensamento em que se subsume sob o sistema, sob o comportamento médio de indivíduos, os interesses muito particulares de um setor muito determinado da sociedade. (FRANCO, 1978, p. 200) As ilusões em torno do desenvolvimento, mesmo que em algumas inserções tenham se discutido as condições sociais da população, galgando na indústria atingiram o país inteiro, não escapando nem intelectuais de esquerda. Os autores analisados também se renderam aos encantos. Mas, por quais motivos? Uma possível explicação, analisada para o Iseb, mas que em sua primeira parte pode ser estendida aos demais grupos: 78 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Todas as classes sociais no Brasil foram, de fato, mobilizadas pela propaganda do desenvolvimento, pela crença no progresso geral. Sua grande eficácia prática veio justamente de haver fornecido uma imagem especular da realidade sócio-econômica, invertendo o sentido das relações sociais e descortinando a miragem da participação igualitária na riqueza, na cultura e na política. A doutrina elaborada pelo ISEB pertence, no sentido preciso do termo, ao domínio da ilusão. Dizendo isto, entretanto, não pretendo que sejam falsas, irreais, desvinculadas das bases materiais ou, ainda que estejam “fora do lugar” no Brasil. Muito pelo contrário, é como ilusão mesmo que têm um lado de verdade e são inseparáveis do movimento global de constituição e reprodução do sistema socioeconômico. (FRANCO, 1978, pp. 190- 191) O desenvolvimento foi discutido fervorosamente e marcou as posições intelectuais por um grande período, se é que é possível afirmar que tenha saído dos debates: O desenvolvimento deixa de desempenhar o papel de lógica do social, inscrita no movimento do real e teleologicamente orientada no sentido da criação de uma nação soberana. Ao contrário, tudo evidencia os obstáculos “estruturais” ao desenvolvimento e as distorções multiplicadas por este. Já não se trata mais só do freio das estruturas arcaicas, mas do freio inerente à condição das sociedades periféricas. A interpretação econômica do social não pede sua importância central. Aliás, os economistas reforçam sua posição dentro do terreno intelectual: prova disso é a influência que exercem em todas as ciências sociais. Eles se encontram numa situação comparável à dos pensadores de 1930: com o encargo de definir, não mais a organização política da sociedade, mas sua organização econômica, par que se possa escapar ao “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Sem dúvida, o grande atingido é o evolucionismo, até então subjacente às concepções do social. A “hegemonia da esquerda” exprime também a crise da assimilação do desenvolvimento à modernização. (PÉCAUT, 1990, pp. 203-204) Conclusão Os anos em que os autores se formaram foram marcados por disputas nos campos das Ciências Sociais em que prevaleceram a Sociologia e a Economia, conduzindo a organização das diretrizes a serem seguidas: a história do Ensino Profissional se caracterizou por essa marca. Dentre os elementos mais destacados estiveram as questões acerca do desenvolvimento do país e a aceitação, por parte de todos os grupos (da esquerda e da direita) de tipos e tendências do desenvolvimentismo. Baseada na aceleração da industrialização e no avanço da tecnologia o referencial dessas discussões fez com que os autores não conseguissem se livrar deste exclusivo debate, mesmo apontando para necessidade de novas interpretações. Pelas necessidades atribuídas, sejam elas reais ou imaginárias, a historiografia publicada sobre Ensino Profissional dos anos de 1980 em diante pode ser considerada de influência da abordagem sociológica. As maiores influências, relatadas pelos balanços da historiografia da Educação brasileira apontam para Marx. Conceitos como luta de classes, produção capitalista e hegemonia estariam na base das interpretações. Uma das principais discussões sobre o Ensino Profissional dos anos de 1930 e 1940, principalmente, pelos pesquisadores, se centrou na dualidade do Ensino Secundário: formação geral para as elites e formação profissional para as classes menos abastadas. A influência sociológica se deu pela discussão sobre o processo de industrialização e desenvolvimento do país, e pelos modelos interpretativos baseados nas generalizações (sem analisar as singularidades de cada acontecimento em seu momento). Os historiadores e os educadores interessados em marcar presença no debate, dominado por sociólogos e 79 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 economistas, não conseguiram escapar ao predomínio dessas abordagens. Para os educadores o fundamental era fazer frente às políticas educacionais em evidência e criticar o Estado. Houve o uso da História para entender o presente. O problema não é partir do presente, já que é a partir dele que se pensa o passado. A questão é de utilizar a História, apenas isso, para concluir que o presente é fruto do que fora feito ou não no passado, ignorando as maneiras de elaboração do conhecimento histórico. O Ensino Profissional foi discutido mais com relação aos fatores externos do quepropriamente com as questões educacionais, deixando de lado até a influência que este pode ter tido nos demais ramos e modalidades de ensino. As características (uso da História, interlocução com o Estado, forte presença da Sociologia, etc.) apontadas pelos balanços da historiografia educacional brasileira, para os anos de 1970 e 1980, são as mesmas encontradas na análise da história do Ensino Profissional. Referências BONTEMPI JR., Bruno. História da Educação Brasileira: o terreno do consenso. Dissertação de mestrado em Educação: História, Política e Sociedade, PUC/SP, 1995. BUFFA, Esther; NOSELLA, Paolo. A Escola Profissional de São Carlos. São Carlos: EdUFSCcar, 1998. CUNHA, Luiz Antônio C. R. da. O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização. São Paulo: Editora Unesp; Brasília: Flacso, 2000a. ______. O Ensino Profissional na irradiação do industrialismo. 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Retornar ao sumário 81 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Literatura Infantil clássica e formação do leitor* Juliane Maria da Costa Daniela Aparecida Eufrásio Fernanda Vilhena Mafra Bazon RESUMO: Este trabalho visa ao entendimento das concepções acerca da Literatura Infantil Clássica e da formação do leitor no contexto educacional contemporâneo. Com o objetivo de apresentar reflexões sobre os clássicos, uma vez que eles se mostram como obras literárias de grande preferência pelas crianças. O principal argumento trazido por meio desta pesquisa é de que se as obras clássicas se destacam entre as crianças, entende-se que é necessária uma análise acerca destas obras. Para a análise proposta para este texto, selecionamos duas versões representativas da Literatura Infantil Clássica, mais especificamente, de Branca de Neve, e verificamos a qualidade literária presente nas versões sob análise. Além disto, avaliamos as potenciais contribuições destas obras para a formação do leitor infanto- juvenil. Portanto, o desafio que se coloca para a escola é a capacitação do aluno para que este saiba a diferença entre as obras que apresentam ou não qualidade literária e também o oferecimento de diferentes tipos de leituras que podem contribuir para a formação do sujeito. Palavras-chave: Literatura Infantil; Contos de Fadas; Formação do Leitor. Apresentação O nosso problema de pesquisa surgiu de um trabalho de entrevista que foi realizado com crianças, pais e professores, no interior da disciplina Literatura Infantil, em 2008, por alunos do quinto período do curso de Pedagogia, da Universidade Federal de Alfenas. Este trabalho acadêmico objetivava mapear algumas das leituras que já têm circulado entre o público infantil residente em Alfenas-MG. No contexto deste trabalho acadêmico, de conclusão de disciplina, verificou-se que os títulos dos clássicos infantis mostraram-se como sendo as leituras de maior circulação entre as crianças entrevistadas. Esta constatação foi o germe para o desenvolvimento da presente pesquisa, que se propôs, então, a verificar que concepção de literatura subjazia à constituição dos acervos de livros infantis clássicos em três bibliotecas do município de Alfenas, vinculadas ao Estado e ao Município e também ao patrimônio privado, e se tal concepção exercia influência na formação do leitor infantil. Nesta pesquisa, foram analisadas versões diferentes de livros clássicos infantis que se encontravam disponíveis nos acervos das três bibliotecas, são eles: A Bela Adormecida, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, João e Maria. Para o presente trabalho, iremos nos deter nas análises referentes às versões de Branca de Neve, somente. A proposta geral da pesquisa foi verificar a qualidade literária dos clássicos infantis encontrados nas bibliotecas, avaliando o trabalho de linguagem presente nas diferentes versões do mesmo texto. * Este trabalho foi, em julho de 2010, defendido como Trabalho de Conclusão do Curso de Pedagogia, no Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). 82 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Ao iniciar a investigação proposta a partir da inserção nas bibliotecas e o consequente levantamento de características do acervo, pareceu-nos indispensável buscar, por meio da pesquisa nestes espaços bibliotecários, qual era a visão de mundo e de leitor contida nos mesmos, o que se constitui como fonte significativa de conhecimento, na medida em que o ser humano se transforma e transforma sua realidade de acordo com a sua própria experiência existencial e com as vivências que o espaço, no qual o sujeito se inclui, permite. Coube-nos também refletir acerca da importância da literatura infantil, enquanto manifestação cultural, na formação ampla e profunda do sujeito, pois as crianças não só internalizam a cultura, mas a reelaboram atribuindo-lhe sentidos. Esta pesquisa contribui pela proposição de fazer uma imersão analítica e interpretativa das obras infantis clássicas. Ressalta-se que um trabalho deste caráter traz em seu bojo a possibilidade de expandir a discussão, em torno da qualidade literária de livros infantis, para professores que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental, os quais, uma vez detentores deste debate, poderiam dispor de reflexões e instrumentais para avaliarem o valor dos clássicos infantis, não se detendo somente nos adornos que, muitas vezes, constituem estes textos, mas principalmente no valor linguístico e estético das obras a serem trabalhadas com as crianças em situação de sala de aula e, consequentemente, de formação do leitor. Desta forma, conforme anunciado anteriormente, o que propomos neste texto é a análise de obras presentes nas bibliotecas mencionadas e apresentar informações quanto ao acessoà literatura infantil na cidade de Alfenas, seja em escolas ou na biblioteca municipal pública. As crianças, em início de escolarização, têm hábitos parecidos em relação às preferências de leitura e ingressam na escola sem saberem ler, mas já apresentam a predileção por obras conhecidas por meio da família, de amigos e da mídia em geral. Introdução Presenciamos um momento de grandes transformações da sociedade contemporânea, afetada pelas inovações tecnológicas e, notadamente, pelos meios de comunicação de massa. Na literatura, manifestam-se concepções, conceitos e valores recorrentes nessa sociedade, os quais se expressam de diversas formas. A literatura aparece como um fenômeno social que transforma a realidade e é incorporada de maneira diferente em cada indivíduo, promovendo a reflexão e operando no imaginário das pessoas. Como afirma Candido (1995, p. 243) “[...] nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo”. A literatura e a literatura infantil, de uma forma mais específica, vivem um momento em que, segundo Coelho (2003, p. 11), “[...] vem-se sobressaindo a crescente onda de interesse pela literatura alimentada pela magia, pelo sobrenatural, pelos mistérios da vida, pelas forças ocultas, etc.”. No cotidiano, percebe-se o fascínio exercido nas pessoas pelos elementos oriundos do mundo maravilhoso: fadas, gnomos, bruxas, dentre outras figuras fantásticas. O maravilhoso, presente nos contos tradicionais da literatura infantil, faz com que leitores de todas as épocas ultrapassem a barreira do tempo, o que favorece a perpetuação dos contos de fadas no decorrer da história. Estes contos, inicialmente, eram transmitidos por meio de narrativas orais, até se tornarem, posteriormente, objeto de registro escrito no Classicismo Francês e, posteriormente, serem coletados pelos Irmãos Grimm, que compilaram em obras os contos que se tornaram conhecidos enquanto parte da literatura clássica infantil. Eis alguns exemplos: Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, Joãozinho e Maria, A Bela Adormecida, dentre outros. Atualmente, estes clássicos ressurgem em grandes produções do cinema e da TV, aparecem nas mídias digitais de alto padrão em relação aos efeitos especiais e continuam vívidas na literatura escrita. Em abordagens críticas, 83 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 percebe-se que tais produções, por vezes, falham, quanto à qualidade literária, sendo mal- elaboradas e resumidas. A indústria, na produção e reprodução dos clássicos, em linguagem verbal e não- verbal, influencia na formação cultural do público em geral. Se focalizarmos o público infantil, no que diz respeito aos clássicos que são reeditados em obras escritas, percebemos que uma das características predominantes é que elas são produzidas a partir do ponto de vista moralista e “pedagogizante” do adulto. Tal posicionamento gera concepções equivocadas acerca da literatura infantil, atuando de forma negativa no processo de formação do leitor e deixando de conferir à criança o direito a uma literatura que corresponda aos seus anseios. A formação do gosto preconiza o contato com obras de valor literário, que ampliam a visão de mundo do leitor e leva-o à construção de sua identidade enquanto sujeito crítico-reflexivo. De acordo com Meireles (1979, p. 96): “Um livro de Literatura Infantil é, antes de mais nada, uma obra literária. Nem se deveria consentir que as crianças freqüentassem obras insignificantes, para não perderem tempo e prejudicarem seu gosto”. Quadro teórico Para o trabalho analítico das obras constituintes do corpus, partimos da descrição de arte literária como proposta por Candido (1995): A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e consciente. (CANDIDO, 1995, p. 244) Os elementos destacados por Candido foram importantes para a análise proposta porque concernem ao estabelecimento de uma tríade que considera tanto a capacidade de uma obra tornar-se significativa para um grande número de pessoas de localidades diversas, quanto de apresentar as manifestações sociais de uma dada época e também de interferir na vida do leitor enquanto objeto, que demanda dele sua re-construção, concretizando assim um processo de relação com o saber. Ressalta-se também, que este autor tece considerações acerca do importante papel desempenhado pela literatura, enquanto instrumento de denúncia e de reflexão, uma vez que a grande maioria das pessoas não tem acesso à literatura de qualidade, mas não por escolha própria, mas porque lhes é retirado esse direito e conclui afirmando que um direito que deveria ser de todos é restrito a poucos. Para a descrição das obras, apoiamo-nos na caracterização da estrutura da matéria narrativa, tal qual apresentada por Nelly Novaes Coelho em Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática (1991). Foram priorizados os seguintes elementos para análise: narrador, personagem, enredo, o qual a autora chama de estória, espaço, tempo e linguagem. Na análise dos contos de fadas selecionados para o corpus da pesquisa, ficaram evidentes as características mais comuns a estas histórias fantásticas. Também foi analisado o item “ilustração”, que não foi retirado de Coelho, mas mostra importante papel na Literatura Infantil, pois, por vezes, livros imagéticos destinados às crianças pequenas falam apenas por meio de ilustrações sem precisar necessariamente, da presença do texto verbal. É uma característica típica nos textos clássicos infantis, a presença de um narrador primordial, definido como sendo em terceira pessoa, que não participa da história como personagem e narra as histórias de outros personagens sobre os quais detém um conhecimento 84 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 totalizante. As personagens em narrativas deste caráter, especificamente, são classificadas como personagem-tipo, categoria muito encontrada na Literatura Infantil. É fácil reconhecer tais personagens, pois representam uma função ou estado social, enquanto reis, rainhas, bruxas, simbolizando o carpinteiro, o pescador, o caçador, a mãe, a avó (COELHO, 1991). Diferentemente, das pessoas que vivem no mundo real que são únicas e ambíguas com defeitos e qualidades, as personagens do mundo encantado das fadas são estereótipos: boas, más, feias, bonitas, etc. Em relação à função do espaço nos contos de fadas, está presente a função estética que favorece a criação de uma atmosfera propícia a cada evento que se desenvolve no conflito. Isso é percebido nos contos de fadas no que se refere ao cenário, meio físico onde se desenvolve a história, mas que não tem a pretensão de interferir nas ações das personagens. Trata-se da criação de um ambiente que permite o desenvolvimento dos eventos, mas não o influenciam diretamente. Por não corresponder a lugares existentes no mundo real, é chamado de trans-real. No gênero narrativo, um dos elementos estruturais mais importantes é o tempo. Nos contosde fadas o tempo em que se passa a ação, é denominado mítico “... tempo imutável, eterno, que se repete sempre igual, sem evolução, nem desgaste: é o tempo da fábula, das lendas, do mito, da Bíblia, da ficção do ‘Era uma vez’...” (Ibidem, p.75). Por fim, destacamos ainda a importância de considerações acerca da formação do leitor que levem em conta, em especial, a particularidade de formar o leitor em processo de alfabetização ou recentemente saído dele, tendo em vista que a esta pesquisa subjaz o questionamento acerca do papel da literatura em situação de escolarização regular. Zilberman (2003, p. 28-29) defende que: A atividade com a literatura infantil – e, por extensão, com todo o tipo de obra de arte ficcional – desemboca num exercício de hermenêutica, uma vez que é mister dar relevância ao processo de compreensão, complementar à recepção, na medida em que não apenas evidencia a captação de um sentido, mas as relações que existem entre essa significação e a situação atual e histórica do leitor. Portanto, não é atribuição do professor apenas ensinar a criança a ler corretamente; se está a seu alcance a concretização e expansão da alfabetização, isto é, o domínio dos códigos que permitem a mecânica da leitura, é ainda tarefa sua o emergir do deciframento e compreensão do texto, pelo estímulo à verbalização da leitura procedida, auxiliando o aluno na percepção dos temas e seres humanos que afloram em meio à trama ficcional. [...] A literatura infantil, nessa medida, é levada a realizar sua função formadora, que não se confunde com uma missão pedagógica. [...]. Essa autora evidencia a forte influência da escola na formação da criança e alerta para a problemática da utilização de textos moralistas e “pedagogizantes” que apresentam uma concepção equivocada e degradante da infância que enxerga a criança como um ser, por vezes, ingênuo e dependente (Ibidem, p.24). Metodologia Para realização da pesquisa foram fundamentais as seguintes etapas de trabalho: a) seleção das obras literárias infantis clássicas, pertencentes às bibliotecas públicas das esferas municipal e estadual e também biblioteca de escola privada, para que compusessem o nosso corpus; b) análise e interpretação das obras selecionadas, de acordo com o referencial teórico- metodológico escolhido; 85 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 c) entrevista com os responsáveis pelo acervo das bibliotecas sob análise*. Dedicaremos algumas palavras para esclarecer o processo de escolha dos ambientes de coleta. A seleção dos espaços de recolhimento dos livros infantis a serem estudados delineou- se a partir dos contatos realizados durante os estágios pertencentes à dinâmica curricular do curso de Pedagogia. Tendo em vista o escopo dessa pesquisa, tivemos de restringir os espaços de coletas de dados a algumas instituições que pudessem representar locais de acesso a livros na cidade de Alfenas. Por isto, foram escolhidas duas instituições da esfera pública, a Biblioteca Municipal de Alfenas e a biblioteca de uma escola pertencente à rede estadual de ensino, por serem locais de fácil acesso ao acervo. Também foi escolhida a biblioteca de uma escola pertencente à rede particular de ensino. Tal escolha se deu em virtude do contato anteriormente realizado em função do estágio, o que facilitou a inserção nesta escola, uma vez que os locais pertencentes ao patrimônio privado fazem restrições quanto à entrada de pesquisadores. Sobre a Biblioteca Municipal de Alfenas, destaca-se a falta de obras destinadas ao público infantil, com um número escasso de obras na sessão de livros pertencentes à literatura para este público, o que fica perceptível pelos vazios existentes nas prateleiras onde se encontram os livros dedicados aos leitores infantis. Quanto ao espaço físico da biblioteca da escola pública, ele é grande e é também utilizado como sala de reforço. Há um pequeno acervo, que está disposto de forma organizada, com algumas opções de leitura. Inclusive, encontramos nessa biblioteca obras destinadas aos professores. Um fato comum entre a biblioteca municipal e a biblioteca da escola pública, percebido durante a pesquisa, é que as pessoas retiram livros emprestados e não os devolvem. Na ida às bibliotecas citadas, passamos a verificar que títulos da Literatura Infantil Clássica estavam presentes no acervo e, desta etapa de coleta do material objeto de estudo, selecionamos os títulos que existiam nas três bibliotecas e que possuíam versões diversificadas. Deste processo, ficaram para análise os seguintes títulos: A Bela Adormecida, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, João e Maria. No presente trabalho, iremos nos deter na discussão sobre as versões analisadas de Branca de Neve. Para análise das obras clássicas infantis, tomamos como necessário um procedimento metodológico de análise que favorecesse a decifração do trabalho linguístico, não somente em relação ao que aparecia evidenciado pela escrita, mas também quanto às características que se encontravam menos explícitas. Ginzburg (1990) afirma que, ao pesquisar em Ciências Humanas, é preciso atentar-se aos indícios, às pistas negligenciáveis. A importância deste paradigma para a presente pesquisa deu-se no sentido de orientar o trabalho de análise literária para os pontos que possibilitavam o desvelamento do que se encontrava implícito, pois, como afirma Ginzburg, nos pontos menos evidentes encontram-se indícios que permitem interpretações aprofundadas dos materiais colocados sob análise. Nesse sentido, esse modelo indiciário, embora não desconsidere o todo, revela que é nas entrelinhas que se expressam as reais interpretações e intenções do sujeito acerca de determinada idéia ou conceito. Após estruturarmos o corpus com as versões das obras a serem analisadas, seguiram-se as seguintes etapas: 1. Análise descritiva das obras: que se pautou na descrição da matéria narrativa estruturada quanto aos seus elementos constituintes: narrador, personagem, espaço, tempo, estória, linguagem e ilustração. * Foram realizadas entrevistas estruturadas, antecedidas pela entrega da Carta de Informação ao Sujeito de Pesquisa e pelo recolhimento da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas podem ser vistas na íntegra no Trabalho de Conclusão de Curso que deu origem a este texto, do qual há uma versão disponível na biblioteca da Universidade Federal de Alfenas. 86 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 2. Análise da qualidade literária: que buscou perceber detalhes e características que levassem a definir se as versões e adaptações contemporâneas apresentavam qualidade estética. Análise do corpus Passamos agora a expor a análise dos livros. Apresentaremos, inicialmente, uma análi- se descritiva, que poderá ser acompanhada por meio de quadros nos quais foram descritos os elementos característicos da matéria narrativa. A seguir, apresentaremos a análise da qualida- de literária, verificando se as versões sob análise apresentavam, ou não, riqueza de detalhes e valor estético. Análise descritiva Faremos a seguir a análise descritiva das versões escolhidas como objetos de análise. Para fazermos este tratamento analítico do corpus, recorremos, como dito anteriormente, à descrição da matéria narrativa no que concerne aos seus elementos constituintes: narrador, personagem, espaço, tempo, estória, linguagem e ilustração. No presente texto, apresentaremos a análise de duas versões de Branca de Neve. A referência de cada uma das versões aparece logo no iníciode cada análise, após o título da obra. BRANCA DE NEVE Informações bibliográficas presentes na obra Adaptação: Patrícia Amorim Coleção : Clássicos Inesquecíveis Editora: Sabida Local de publicação: Blumenau-SC Local onde foi encontrada esta versão da obra infantil: Biblioteca da escola pública NARRADOR Narrador-primordial, pois relata a história em 3ª pessoa sem participação pessoal. PERSONAGEM Branca de Neve - personagem que representa uma princesa, jovem e bonita que é perseguida pela inveja da madrasta, em razão de sua beleza. Branca de Neve é como desejara sua mãe: linda, branquinha com os cabelos negros. Caçador - personagem tipo que corresponde a uma função de trabalho, o caçador, pode ser considerado uma pessoa do bem que ajudou Branca de Neve a fugir de sua madrasta. Príncipe - personagem tipo, que corresponde a um estado social. Nesta história, o Príncipe salva Branca de neve beijando-a e despertando-a do sono. Os sete anõezinhos- não há descrição dos anões nesta história, apenas o relato de que ajudaram Branca de Neve. Madrasta- personagem má, jovem e vaidosa Espelho Mágico- personagem que, com suas intervenções, dizendo à rainha que Branca de Neve ficou mais bonita que ela e que ainda estava viva na casa dos anões, contribui para o desenrolar da história. 87 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 ESTÓRIA Esta história começa com uma rainha desejando uma filha que tenha a pele branca como a neve, boca vermelha como o sangue e cabelos pretos como a noite. Sua filha nasceu conforme desejara e fora chamada de Branca de Neve. Entretanto essa rainha logo morreu e seu marido casou-se com uma mulher muito vaidosa que tinha um espelho mágico a quem sempre perguntava quem era a mulher mais bonita do mundo. Ao perceber que Branca de Neve se tornara uma jovem belíssima, a madrasta manda um caçador matar Branca de Neve. Branca de Neve foge e esconde-se na casa dos anões. Ao conversar novamente com o espelho, a madrasta descobre que Branca de Neve está viva e envenena-a com uma maçã. Certo dia um príncipe vê Branca de Neve num caixão de vidro nas montanhas, onde fora colocada pelos anões, apaixona-se por ela, dá-lhe um beijo que a faz despertar e casa-se com ela. ESPAÇO O espaço em que ocorre a história é: o castelo do pai de Branca de Neve, a floresta onde é deixada pelo caçador da madrasta e a casa dos anões. TEMPO Mítico, diferentemente do tempo cronológico, esta categorização do tempo corresponde ao tempo do Era uma vez... LINGUAGEM Apresenta linguagem facilitada, que agrada os leitores iniciantes na fase de alfabetização como se pode ver no trecho abaixo: Na manhã seguinte Branca de Neve contou sua história para os anõezinhos que a convidaram para morar com eles. A rainha continuava a conversar com o espelho. Que avisou onde estava a Branca de Neve. Ao descobrir que a princesa ainda estava viva, a rainha ficou furiosa, e preparou uma maçã envenenada. Disfarçada de Velhinha, foi até a casa dos anões e ofereceu a maçã para Branca de Neve (p.12*). Observou-se na obra o seguinte erro de concordância de gênero: Na primeira mordida, a menina caiu morta no chão. Somente um beijo de um príncipe apaixonada** poderia acordá-la. A rainha estava voltando para o castelo, quando passou por uma ponte, e esta se quebrou. A rainha caiu num abismo profundo (p.14). ILUSTRAÇÃO A ilustração é colorida em tons fortes e bonitos, despertando o interesse do leitor, predominado sobre o texto verbal. As cores alegres ficam ao fundo e a cor da letra utilizada é o branco, contrastando . Um exemplo pode ser encontrado nas páginas que mostram, no primeiro plano, uma ilustração da Branca de Neve na floresta, sentada embaixo de uma árvore conversando com os bichinhos e no fundo aparecem árvores. * O livro não apresenta numeração original das páginas, deste modo as passagens exemplificadas foram relacionadas de acordo com numeração feita pelas autoras deste trabalho. ** Grifo nosso. 88 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 BRANCA DE NEVE Informações bibliográficas presentes na obra Autor: Irmãos Grimm Tradução: Maria Cimolino e Grazia Parodi Ilustrações: Manuel Victor de Azevedo Filho e Mario Couto Pita Coleção: Conta pra mim Editora: Rideel Local de publicação: São Paulo Local onde foi encontrada esta versão da obra infantil: Biblioteca da escola particular NARRADOR Narrador-primordial, pois relata a história em 3ª pessoa sem participação pessoal. PERSONAGEM Branca de Neve- personagem que representa uma princesa, jovem e bonita que é perseguida pela inveja da madrasta, em razão de sua beleza. Branca de Neve é como desejara sua mãe: linda, branquinha com os cabelos negros. Guarda- personagem cujas características não são descritas na história, apenas interpretamos que ele é bom por ter deixado Branca de Neve fugir, é uma personagem-tipo que corresponde a uma função de trabalho, guarda da Madrasta de Branca de Neve. Príncipe- personagem jovem que corresponde a um estado social. Sendo príncipe, apresenta-se de maneira estereotipada, ou seja, representa a figura do herói apaixonado que salva a princesa dos seus infortúnios. Os sete anões- personagens representadas por trabalhadores de uma mina de diamantes dentro da montanha. Não são nomeados e são identificados pelos autores como anões barbudinhos. Madrasta- personagem que representa maldade no contexto da história. Apesar de ser muito bonita, não mede esforços para eliminar Branca de Neve em razão da inveja que sente da beleza da menina . Espelho Mágico- personagem representada por um espelho que fala, cuja função nesta história é instigar a inveja da madrasta com seus comentários acerca da beleza da princesa. ESTÓRIA A história começa com o desejo da mãe em ter uma filha de pele branca e cabelos negros. Algum tempo depois, nasce uma menina com tais características, sendo chamada de Branca de Neve. A mãe desta menina morre e o seu pai casa–se com uma mulher que perseguirá Branca de Neve por inveja da beleza da menina. Ao conversar com o espelho mágico, a madrasta sente-se ofendida ao saber que sua enteada tornou-se uma mulher mais bonita do que ela. Então tenta se livrar de Branca de Neve pedindo a um dos seus guardas que mate a princesa e traga seu coração como prova. Ao descobrir que fora enganada, a madrasta vai até a casa dos anões disfarçada de 89 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 mercadora e aperta Branca de Neve com um cinto até que esta desmaie. Branca de Neve é salva a tempo pelos anões que cortaram o cinto. Novamente, ao conversar com o espelho, a madrasta descobre que Branca de Neve está viva, vai até a casa dos anões e envenena- a com uma maçã. Os anões pensam que Branca de Neve está morta, colocam-na m caixão de vidro e levam-na para a colina. Certo dia, um príncipe passa por ali, apaixona-se por Branca de Neve e pede para levá-la consigo. No meio do caminho, um anão tropeça fazendo com que caia da boca de Branca de Neve, o pedaço de maçã envenenado, fazendo-a despertar. Branca de Neve casa-se com o príncipe e a madrasta morre com um ataque cardíaco. ESPAÇO O espaço em que ocorre a história é: o castelo do pai de Branca de Neve, a floresta onde ela é deixada pelo guarda da madrasta e a casa dos anões. TEMPO Mítico, diferentemente do tempo cronológico, esta categorização do tempo corresponde ao tempo do Era uma vez...LINGUAGEM Apresenta trabalho linguístico, com riqueza de detalhes, como podemos ver em uma passagem, que aparece logo no início da história, que descreve o desejo da Mãe de Branca de Neve por uma filha: Um dia, a rainha de um reino bem distante bordava perto da janela, cujos batentes eram de ébano - uma madeira escuríssima. Era inverno, nevava muito forte. De repente a rainha desviou o olhar para admirar os flocos de neve que dançavam no ar, distraiu-se e furou o dedo com uma agulha. Na neve que tinha caído no beiral da janela pingaram três gotinhas de sangue. O contraste foi tão lindo que a rainha murmurou: Pudesse eu ter uma menina branquinha como a neve, corada como o sangue e com os cabelos negros como o ébano...(p. 1-2). ILUSTRAÇÃO As ilustrações aparecem em tons claros como o rosa, o azul e o branco. Trata-se de ilustrações que instigam a imaginação do leitor, aparecendo de maneira simples e equilibrada. O final feliz para Branca de Neve e o Príncipe concretizados no casamento e o fim trágico da Madrasta que sofreu um ataque de ira explodindo o coração não são ilustrados, ficando a cargo da imaginação do leitor; mostram-se apenas os anões dançando e cantando. Isso exemplifica a função do texto não- verbal de complementar o texto e não servir apenas como adorno. Análise da qualidade literária e formação do leitor Nesta seção, propomos apresentar, a partir das descrições anteriormente mencionadas, a qualidade literária e estética das obras analisadas no que concerne ao trabalho linguístico presente em cada uma das versões sob estudo. Segundo Zilberman (2003): [...] os critérios que permitem o discernimento entre o bom e o mau texto para crianças não destoam daqueles que distinguem a qualidade de qualquer outra 90 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 modalidade de criação literária. Seu aspecto inovador merece destaque, na medida em que é o ponto de partida para a revelação de uma visão original da realidade, atraindo seu beneficiário para o mundo com o qual convivia diariamente, mas que desconhecia. Nesse sentido, o índice de renovação de uma obra ficcional está na razão direta de sua oferta de conhecimento de uma circunstância da qual, de algum modo, o leitor faz parte. (ZILBERMAN, 2003, p.26-7) Na verificação da qualidade literária das versões dos contos de fadas, destacamos, quanto às versões de Branca de Neve, que na publicação da Editora Sabida (doravante versão 1) existe a supressão de detalhes, especialmente, em relação ao anúncio da morte da madrasta, que de repente cai de uma ponte e morre. Já na versão da Editora Rideel (doravante versão 2), há o acréscimo de detalhes, que não se encontram nas traduções para o português dos originais dos Irmãos Grimm, o que se observa em um trecho desta versão em que a madrasta tenta asfixiar Branca de Neve, sufocando-a com um cinto. Neste sentido, observamos que cada versão dos contos de fadas traz elementos distintos para discussão. Privilegiamos, para esta exposição, tendo em vista o escopo do presente texto, focalizar a discussão sobre as distintas concepções de literatura infantil que subjazem a diferentes versões do mesmo conto de fada. Para prosseguirmos nesta argumentação, dispusemos lado a lado os dois fragmentos, anteriormente citados, dos contos sob análise: Versão 1 Na manhã seguinte Branca de Neve contou sua história para os anõezinhos que a convidaram para morar com eles. A rainha continuava a conversar com o espelho. Que avisou onde estava a Branca de Neve. Ao descobrir que a princesa ainda estava viva, a rainha ficou furiosa, e preparou uma maçã envenenada. Disfarçada de Velhinha, foi até a casa dos anões e ofereceu a maçã para Branca de Neve (p.12)*. Versão 2 Um dia, a rainha de um reino bem distante bordava perto da janela, cujos batentes eram de ébano - uma madeira escuríssima. Era inverno, nevava muito forte. De repente a rainha desviou o olhar para admirar os flocos de neve que dançavam no ar, distraiu-se e furou o dedo com uma agulha. Na neve que tinha caído no beiral da janela pingaram três gotinhas de sangue. O contraste foi tão lindo que a rainha murmurou: Pudesse eu ter uma menina branquinha como a neve, corada como o sangue e com os cabelos negros como o ébano...(p. 1-2). Nas passagens transcritas, observamos que na versão 2 há uma preocupação em apresentar a descrição do ambiente e dos sentimentos da rainha, focalizando o seu desejo de tornar-se mãe. Percebe-se a preocupação em criar literariamente uma atmosfera de encantamento por meio, por exemplo, de prosopopéias e metáforas, respectivamente, presentes em “flocos de neve que dançavam no ar” e “branquinha como a neve, corada como o sangue e cabelos negros como o ébano”. Nesta versão, há indícios de uma concepção de literatura infantil que inclui o trabalho linguístico como atributo necessário à produção literária infantil, em relação aos efeitos de verossimilhança criados por meio da descrição detalhada e ao trabalho estético na elaboração de enunciados articulados para a contextualização dos ambientes e das personagens. Na versão 1, subjaz a concepção de que o texto infantil deve fundamentar-se pelo máximo de encadeamentos de sequências narrativas sobre as ações feitas. Deste modo, se tomarmos o excerto da versão 1 citado percebemos que, em um pequeno trecho, aparece a narração que trata desde o encontro de Branca de Neve com os anões até o seu envenenamento. Com isso, verifica-se a ideia subjacente de texto literário que se constrói pelo * O livro não apresenta numeração original das páginas, deste modo as passagens exemplificadas foram relacionadas de acordo com numeração feita pelas autoras deste trabalho. 91 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 conteúdo narrativo exposto, mas que não se volta para o trabalho linguístico com o objetivo de criação literária de efeitos estéticos. Apesar da complexidade deste tema, a formação de leitores parte do pressuposto de que é preciso incentivar o aluno a descobrir o mundo pela leitura. Por outro lado, o professor deve atentar-se às necessidades desse aluno, incentivando-o a buscar leituras que colaboram para a sua formação. É importante salientar que o professor precisa pensar a literatura como manifestação cultural que tem papel fundamental na formação do leitor. Zilberman (2003) trata de modo importante esta questão quando afirma que: A seleção dos textos advém da aplicação de critérios de discriminação. O professor que se vale do livro para a veiculação de regras gramaticais ou normas de obediência e bom comportamento oscilará da obra escrita de acordo com um padrão culto, mas adulto, àquela criação que tem índole edificante. Todavia, é necessário que o valor por excelência a guiar esta seleção se relacione à qualidade estética. Porque a literatura atinge o estatuto de arte literária e se distancia de sua origem comprometida com a pedagogia, quando apresenta textos de valor artístico a seus pequenos leitores; e não é porque estes não alcançaram o status de adultos que merecem uma produção literária menor. (ZILBERMAN, 2003, p.26) Dessa forma, não são quaisquer obras que levam à formação do leitor proficiente. Para que o aluno se lance com motivação à leitura, é preciso que o livro desperte sua curiosidade num primeiro momento, para posteriormente prender sua atenção e ampliar sua visão de mundo. No que se refere aos clássicos infantis, a complexidade subjacente a estas obras permite ao leitornão apenas a descoberta do prazer proporcionado pela leitura de um livro interessante, mas também possibilita ao sujeito a exploração do seu mundo interior. Uma das características que identifica um texto como literatura Clássica é sua perenidade: são lidos de geração à geração. E por que permanecem? Porque respondem aos anseios mais profundos do ser humano; abordam questões existenciais, universais, presentes em cada pessoa, de qualquer lugar, em qualquer tempo. São textos que tratam de sentimentos, idéias sempre presente no ser humano que se manifestam em comportamentos, instintivamente, como ciúme, inveja, medo, busca da identidade dentre outros. Cada leitura proporciona um encontro do leitor consigo mesmo. (OLIVEIRA, 2007, p. 85) Nesse sentido, a oferta de obras que apresentam qualidade literária favorece não apenas o desenvolvimento cognitivo do leitor, mas possibilitam também o desenvolvimento emocional e afetivo do sujeito. A formação do leitor depende das possibilidades de leituras que, de diferentes modos, chegam-lhe às mãos. Um acervo variado, com diferentes versões de um mesmo título, proporciona ao professor oportunidade de uma reflexão acerca do potencial formativo de cada livro e, consequentemente, favorece a realização um trabalho juntamente com os alunos que lhes desperte o gosto pela leitura e os incentive a identificar elementos que atribuem qualidade às obras. A fim de obter informações acerca do processo de seleção e aquisição das obras literárias infantis constituintes dos acervos pesquisados, optamos pela realização de entrevistas com os responsáveis pela biblioteca pública municipal, pela biblioteca da escola pública e pela biblioteca da escola particular. Os acervos de tais bibliotecas apontaram para um fato interessante: a maioria das obras destinadas a esse público é proveniente de doações de alunos e da Secretaria da Educação. Das três bibliotecárias entrevistadas, apenas uma sinalizou que existe uma consultoria para a escolha das obras literárias que compõem o acervo da biblioteca pela qual ela é responsável. Enquanto as demais afirmaram não existir em suas respectivas bibliotecas esse 92 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 tipo de consultoria para a escolha de obras literárias, havendo somente uma consultoria para a escolha de livros didáticos. Quanto aos livros mais procurados pelas crianças, as bibliotecárias confirmaram a preferência desse público pelos contos de fadas e apontaram também para outros gêneros como suspense, terror e títulos do folclore brasileiro como A mula sem cabeça e Lobisomem. No que se refere às campanhas de incentivo à leitura, notou-se que há empenho por parte das bibliotecas em atrair o leitor, tais como as aulas semanais de biblioteca, exposições itinerantes, visitação de classes de escolas da rede pública e contação de histórias. Entretanto, cabe ressaltar que, numa análise mais restrita, o fato de a maioria das obras destes acervos serem provenientes de doações e não haver consultoria para a escolha de obras literárias contribui para a composição de um acervo que apresente obras que não apresentem qualidade literária. Referências CANDIDO, A. O direito à literatura. In: Vários escritos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995. CANDIDO, A. A personagem de ficção. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 1981. COELHO, N. N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 1991. ______________. O conto de fadas: símbolos mitos arquétipos. São Paulo: DCL, 2003. GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. MAGNANI, M. R. M. Leitura, literatura e escola: a formação do gosto. São Paulo: Martins Fontes, 1989. MEIRELES, C. Problemas da literatura infantil. 2. ed. São Paulo: Sumus,1979. OLIVEIRA, M. A. A literatura para crianças e jovens no Brasil de ontem e de hoje: caminhos de ensino. Tese (Doutorado em Educação)- Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola. 11 ed. São Paulo: Global, 2003. Juliane Maria da Costa é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG. Daniela Aparecida Eufrásio é docente do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG. Fernanda Vilhena Mafra Bazon é docente do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Retornar ao sumário 93 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 O Serviço Social e a manutenção da sociedade de classes: uma análise dos Projetos Sociais de qualificação profissional para jovens Amanda Eufrásio Maria Beatriz Costa Abramides RESUMO: O presente trabalho busca refletir sobre a atuação dos (as) assistentes sociais nos projetos sociais que desenvolvem cursos de qualificação profissional para jovens. Com base em pesquisa realizada no Projeto Inclusão Produtiva, desenvolvido no município de Guarulhos/SP e no PROJOVEM- Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária, executado nos bairros de Campo Limpo e Santo Amaro, na cidade de São Paulo, pudemos identificar os conflitos e tensões existentes acerca dos resultados obtidos nesses projetos no que se refere às mudanças na vida desses jovens. Desse modo, deparamo-nos com as contradições do nosso cotidiano profissional e buscamos respostas para uma atuação profissional comprometida com o nosso projeto ético-político. Palavras- chave: jovens; qualificação profissional; projeto ético-político. 1. Alguns conceitos sobre o termo juventude O termo “juventude” contempla, de acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), as pessoas com faixa etária entre 15 e 24 anos. Em alguns países europeus, a fase da juventude estende-se até os 35 anos de idade. No Brasil, os marcos conceituais definem por lei que a idade mínima para o trabalho é 14 anos, de acordo com o art. 227 da Constituição Brasileira, com o art. 60 do Estatuto da Criança e do Adolescente e o art. 2º da Lei do Aprendiz. Para votar basta ter 16 anos de idade e a maioridade penal se inicia aos 18, sendo que apenas aos 21 anos se conquista a maioridade civil. Contudo, quais os parâmetros que dão base para tais determinações? O conceito de juventude resume uma categoria essencialmente sociológica, que indica a preparação dos indivíduos para assumir o papel de adultos na sociedade, tanto no plano familiar como no profissional. Os parâmetros definidores das idades mínimas para votar, trabalhar ou responder penalmente são muito difusos, pois as mudanças e transformações ocorridas em nossa sociedade, nos diversos períodos históricos, suscitam diferentes olhares, valores éticos e necessidades que criam diferentes conceitos de juventude. O presente trabalho baseia-se nas definições de juventude utilizadas pelos projetos pesquisados: o PROJOVEM (Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária) e o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). O primeiro delimita o grupo de jovens atendidos na faixa etária entre 18 e 24 anos. O segundo oferece cursos de capacitação profissional para jovens a partir de 18 anos, estendendo-se para adultos também. É recorrente, nos debates sobre o tema, associar os jovens a determinados problemas sociais ou reconhecê-los como agentes de transformação social. Para nossa reflexão, é importante pensar se é possível fazer essas associações? Alguns autores vão negar essa teoria, 94Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 com base no argumento de que essa imagem dos jovens não passa de construções sociais, assim como os conceitos sobre jovens a partir do ciclo de vida e comportamento. O consenso a respeito das classificações metodológicas sobre o que é ser jovem é questionável porque se atribui a essa categoria um caráter passível de definições universalizantes. E, dessa maneira, cria-se uma distância entre a realidade e o modo como apreendemos e reproduzimos o real, ou seja, as representações sociais. 1.1 O segmento juvenil enquanto objeto de políticas públicas Se analisarmos os dados estatísticos sobre os jovens no Brasil, observaremos que, dentre os diversos problemas sociais que perpassam a vida dos jovens, são mais evidentes as fragilidades do sistema educacional e as dificuldades para o ingresso no mundo do trabalho. A juventude se depara com os mesmos problemas que toda a população mais vulnerável necessita enfrentar, porém, os pesos desses mesmos problemas podem tornar-se diferenciados, na medida em que essa geração possui características próprias que podem demandar necessidades mais particulares. A definição de grupos prioritários entre a população usuária dos serviços sociais suscita controvérsias e debates importantes no meio profissional. Muitas pessoas defendem a idéia de que o atendimento diferenciado aos diversos segmentos da sociedade, como por exemplo, a crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, jovens, entre outros, segue um modelo societário de caráter positivista. Desse modo, as discussões acerca desse assunto criam um embate entre as idéias contrárias e favoráveis a esse modelo de gestão da questão social. Por um lado, a definição de grupos prioritários é positiva para distinguir as diversas identidades, as quais podem ser referência para a criação e execução de políticas públicas. Por outro lado, as pessoas passam a ser vistas como “pedaços” que devem ser analisados e cuidados por diferentes instituições, órgãos governamentais e/ou técnicos especializados. Ou seja, os seres humanos não são respeitados em sua plenitude. A autora Mary Garcia Castro nos remete a Marx em relação a seguinte afirmação: “são várias as populações para o capital e que o capitalismo se recorre a diferenças tidas como naturais para acirrar competições, diversidades que ajudam que mais se explorem alguns e, ao mesmo tempo, todos das classes dos sem propriedades” (Marx apud Castro, 2004, p. 3). Com esta passagem, ela procura nos mostrar que, no atual quadro sócio-histórico, a discriminação e a dominação de classes são apenas uma das formas de exclusão social, pois a força das relações entre capital e trabalho reproduz, no decorrer dos períodos históricos, inúmeras intolerâncias de ordem moral, cultural, étnico-racial, dentre outras formas. Segundo ela, a defesa da política de ações afirmativas e por identidades não requer apenas boas intenções e programas pontuais para esta ou aquela identidade, mas sim alterações na estrutura orçamentária da União, o que não se conseguiu, até hoje, com base na segmentação por classes sociais. Podemos apontar para mais um desafio a ser enfrentado pelos profissionais de Serviço Social: os critérios exigidos para a inserção em programas e serviços sociais. Estes definem que as pessoas pobres devem estar numa condição extremamente vulnerável para ter acesso aos direitos sociais. A crise estrutural do capital e do capitalismo atinge toda a classe trabalhadora, em maior ou menor grau. Portanto, como mensurar os graus de vulnerabilidade social? Foram criadas muitas formas de identificar os vários níveis de vulnerabilidade social e, a partir delas, políticas e programas voltados para o segmento da população que se encontra em situação de grave risco social. Porém, o nosso cuidado deve estar voltado para a não focalização do trabalho em políticas compensatórias somente. Afinal, os indivíduos que se encontram numa situação de extrema pobreza, atualmente, são ou descendem dos mesmos que, um dia, não 95 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 tiveram os seus direitos mínimos garantidos. Então, é importante lembrarmos que as políticas focalizadas não devem se limitar a elas mesmas, pois necessitam ser pensadas a partir das políticas estruturantes. 2. As respostas à questão social no Brasil As desigualdades geradas pelo processo de acumulação capitalista dão maior visibilidade à questão social, a qual se expressa de várias formas nos mais diferentes períodos históricos. Durante o regime de trabalho escravo, a questão social era explícita. Os escravos, na condição de propriedades de outras pessoas, criavam suas próprias respostas às mazelas sociais vivenciadas naquela época, através de tocaias para os senhores, rebeliões nas senzalas, fugas, formação de quilombos e, até mesmo, cometiam suicídios. No caso dos chamados “trabalhadores livres”, a luta por melhores condições de vida dá maior visibilidade à emergência da questão social. Nas décadas de 20 e 30, a classe dominante tende a enxergar os problemas sociais no seu âmbito político, mas acima de tudo, como caso de polícia. A partir da década de 50, a economia brasileira se expande em função dos investimentos de capital estrangeiro no país de maneira vultuosa. O Brasil inicia, timidamente, o processo de urbanização, modernização e industrialização, porém, a má distribuição de renda acentua-se. Durante o período ditatorial no Brasil, forma-se uma poderosa aliança entre o grande capital financeiro nacional e estrangeiro com o Estado nacional e ocorre o chamado “milagre brasileiro”, período de crescimento econômico, a partir do qual a classe dominante vincula-se ainda mais com o capital internacional. É importante ressaltar que, nesse período, mesmo com as barbáries da ditadura são criados alguns sistemas de proteção social. Enquanto isso, no plano internacional, o mundo capitalista avançado enfrenta uma longa e profunda crise econômica. Então, as idéias neoliberais ganham peso: há uma redução do Estado, o qual passa a combater a social- democracia e a ação dos sindicatos. A sua principal meta é a estabilidade monetária e, para isso, são realizadas reformas fiscais e as altas taxas de desemprego garantem o funcionamento do mercado. Durante a década de 80, os rebatimentos da crise em âmbito internacional atingem o Brasil em suas esferas política, cultural e, sobretudo, nas esferas produtivas. Porém, foi nesse contexto da chamada “década perdida”, que a sociedade civil mostrou uma extraordinária força de mobilização e capacidade de organização social. Os trabalhadores organizam-se e resistem na luta contra a ditadura e a favor do processo de redemocratização do país. Isto possibilitou uma maior democratização no trato com as necessidades sociais. Entendemos que a questão social deve ser compreendida como resultado de desigualdades e injustiças geradas pelo processo de acumulação capitalista e, portanto, parte de um complexo processo social. Ela deve ser tratada a partir de uma visão crítica e de totalidade das relações sociais que vivemos, oriundas da macroestrutura econômica e política, nas quais estamos inseridos, pois somente assim poderemos enfrentá-la adequadamente. O que vemos no Brasil são os “pactos sociais” por meio dos quais as soluções para os problemas sociais são negociadas. A exemplo disso temos os projetos sociais de formação para o trabalho, nosso objeto de pesquisa, que podem se limitar às propostas do Estado e dos setores dominantes de “desafogar”a procura por vagas em um mercado de trabalho já saturado. Ou seja, os projetos oferecem qualificação técnica e transferência de renda para que os jovens pobres garantam a sua sobrevivência, mesmo desempregados, mas isso não garante a inserção destes no mercado de trabalho. Por outro lado, o objetivo de pacificá-los foi 96 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 garantido por parte do Estado. Outros resultados são alcançados, como por exemplo, a diminuição dos índices de violência e a manutenção do ciclo de pobreza. Esse é um exemplo de pacto social muito perverso, onde é negociada uma forma de enfrentamento de um problema social, o desemprego juvenil, mas os setores dominantes do país é que são privilegiados novamente. Por isso, buscamos refletir no sentido de nos atentarmos para os reais objetivos dos projetos sociais de qualificação para o trabalho. Há realmente implicações objetivas na vida dessas pessoas? 2.1. A contribuição dos cursos de qualificação profissional para a manutenção da desigualdade de classes Vivenciamos a reprodução do discurso de que a falta de qualificação profissional da população jovem desempregada a exclui do mercado de trabalho, aumentando o nível de desemprego nesse segmento. Porém, o que se destaca é que o desemprego e o subemprego são manifestações dos fluxos e refluxos dos ciclos dos negócios. A miséria, a pobreza e a ignorância, em geral, são ingredientes desses processos. O contingente de trabalhadores de reserva tem sido um elemento altamente conveniente para a empresa e a fazenda, no sentido de reduzir os custos da mão- de- obra para o comprador; além de facilitar a divisão da classe operária, enfraquecendo-a em seus sindicatos, partidos, movimentos sociais. (IANNI, 1991, p.6). É mais conveniente para as classes sociais dominantes criar políticas, programas e projetos sociais pontuais de inserção de jovens no mercado de trabalho do que intervir na política econômica. De fato, a qualificação pode ser mesmo importante para a massa trabalhadora, porém a carga ideológica dominante que se faz presente nesse discurso é imensa e os resultados concretos de inserção no mercado de trabalho são poucos. Normalmente, os cursos de qualificação para jovens pobres são pensados para a manutenção da desigualdade de classes. Certamente, os projetos sociais que oferecem cursos de panificação, artesanato, pedreiro, dentre tantos outros, não almejam a possibilidade de mobilidade social das pessoas pobres. Raramente, há casos de pessoas que ocupavam espaços de trabalho mais subalternos e, por meio da profissão, alcançaram níveis de vida mais elevados. Os projetos sociais de formação para o trabalho além de não oferecerem condições para a ascensão social dessa parcela da população, também não atendem às expectativas mínimas de qualidade dos cursos que são oferecidos, pois, muitas vezes, os recursos materiais são escassos, os professores ou monitores são desqualificados e desmotivados e a carga horária é insuficiente para uma formação satisfatória. 2.2. O Serviço Social no contexto neoliberal e de reestruturação produtiva do trabalho O Serviço Social se expande nos marcos do padrão taylorista/ fordista e da regulação keynesiana da economia, durante o período pós-guerra até meados da década de 70. Este período é marcado por uma enorme expansão da economia capitalista, de modo que o Estado tinha como principal função arrecadar fundos para o financiamento do capital e da reprodução da força de trabalho. Além disso, era vantajoso para o mercado a garantia do “pleno emprego” e da manutenção de um certo padrão salarial dos seus empregados, pois a ampliação dos 97 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 mercados dependia de um certo poder aquisitivo da população para consumir os produtos fabricados. Nesse contexto, surgiram os salários indiretos para aqueles que estivessem desempregados ou com poucas condições de prover os mínimos sociais para a sobrevivência. Isso ocorreu por meio das políticas sociais públicas. Em alguns países, esse modelo de produção até criou condições para avanços, como por exemplo, a implantação do Welfare State ou Estado do Bem Estar Social. Porém, no Brasil, não ocorreu essa experiência. Na década de 80, houve um novo redirecionamento das relações de poder no mundo, por isso, a competitividade capitalista se tornou mais acirrada entre os países globalizados e surgiram, então, novas mudanças no padrão de produção: o modelo de acumulação flexível ou toyotismo. A flexibilidade desse novo modo de produção vem acompanhada da desregulamentação dos direitos trabalhistas, da contratação informal de trabalhadores, das novas formas de estruturação dos serviços financeiros, entre outros fatores. Seguindo as recomendações do Consenso de Washington, o ajuste fiscal do Estado impede os gastos governamentais com os serviços públicos, pois esses são direcionados para as prioridades neoliberais que dizem respeito aos investimentos no mercado. O Serviço Social depara-se com uma intensificação das desigualdades sociais e a ampliação do desemprego. Desse modo, surge também a necessidade de se interpretar as novas expressões da questão social. 3. As políticas de trabalho para jovens Nos últimos anos, o tema “Juventude” demandou maior interesse de investigação nas ciências humanas e começaram a se esboçar algumas iniciativas de ações para esse segmento da população. É importante compreendermos que mesmo com a crescente implantação de programas e políticas sociais voltadas para a população jovem, novamente, deparamo-nos com a dificuldade na definição das necessidades desse público. Como criar diretrizes e fundamentos para a elaboração de políticas que têm como foco o recorte por idade? Além disso, como basear-se numa dimensão simbólica da problemática a ser tratada e na transversalidade da questão já que ela perpassa todas as ações do Estado? Podemos transcender as ações setoriais e, de alguma forma, vincular as políticas de trabalho para jovens com as políticas estruturais para não cairmos no “fosso do assistencialismo”. Sabemos que as políticas sociais focalizadas são criadas a partir da ineficiência das políticas universais. Nesse sentido, a garantia da universalização dos direitos vai depender de mudanças ou ruptura com a política econômica vigente. O que se discute é: quais as orientações que baseiam as ações destinadas ao segmento juvenil? Muitos vão questionar os motivos dessas ações tendo em vista que os direitos desses mesmos jovens já são contemplados por meio do acesso às políticas universais de saúde, educação, transporte, esporte, entre outras. Portanto, de acordo com esse ponto de vista, não seria necessário se fazer um recorte que privilegiasse tal segmento. No outro extremo, há os que defendem que as políticas de juventude devem ser focalizadas e direcionadas apenas àqueles que estão em situação de extrema vulnerabilidade social. Partindo dessas posições, podemos dizer que ambas são bastante radicais. Há uma diversidade de orientações no Brasil, por parte dos atores sociais pertencentes ao aparelho estatal e da sociedade civil, no que se refere à criação e implementação de programas e políticas sociais para jovens. 98 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 As autoras Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano (2005) defendem que, mesmo sem haver mudanças significativas na vida desses jovens, tais políticassão inflexões importantes que podem abrir espaços de discussão na esfera pública acerca das representações sobre a condição juvenil no país. Outro ponto a ser destacado é que as políticas de trabalho priorizam a formação e a qualificação profissional com o objetivo de capacitar os jovens, mas também de retardar o ingresso de mais pessoas no mercado de trabalho. Com base nos objetivos específicos de alguns projetos governamentais voltados aos jovens, podemos refletir sobre os seguintes aspectos: a preocupação em “ocupar” os jovens pobres no seu tempo livre, a contrapartida que tais programas exigem da população atendida e o estímulo para que eles contribuam para as melhores condições de vida das comunidades e se engajem em ações sociais. Sobre isso, destaca-se que são esperados dos jovens determinados comportamentos, como por exemplo, o engajamento social com vistas a um projeto de transformação do mundo, como se isso fosse uma característica natural dos jovens, o que não necessariamente corresponde à realidade e, nem mesmo, compartilha de um senso comum. As expectativas dos jovens, muitas vezes, não são atendidas porque se referem, principalmente, à qualificação para o trabalho e à continuidade e posterior inserção no mercado de trabalho, atividades marcadas pela precariedade nesses tipos de programas. Constatou-se nas entrevistas* realizadas com as profissionais do PROJOVEM e CRAS, sendo que, especificamente, foram realizadas entrevistas com três assistentes sociais do PROJOVEM e uma do CRAS, que, após as frustrações com os cursos, os jovens permaneciam no programa por causa da bolsa, vale- transporte, lanche ou demais benefícios. Então, os profissionais desses programas se frustram igualmente e acabam tendo uma determinada compreensão de que os jovens desejam apenas a bolsa oferecida. Sobre os resultados de inserção de jovens no mundo do trabalho ou da diminuição do quadro de desemprego nesse segmento populacional, não há registros de impacto sobre isso. Partindo do pressuposto de que qualquer inclusão em nossa sociedade é perversa, não seria diferente no caso dos jovens pobres. Sabemos que o ideal seria a possibilidade de estudar e se formar e, mais que isso, aproveitar a fase da juventude em todos os seus aspectos de tempo livre, lazer, cultura, arte, atividades essenciais para o desenvolvimento de qualquer ser humano saudável antes de se inserir no mundo adulto que traz consigo outras responsabilidades e compromissos. 4. Análise dos dados coletados Os dados para esta pesquisa foram coletados por meio de consulta bibliográfica e, como anunciado anteriormente, por meio da realização de entrevistas com assistentes sociais de Projetos de qualificação profissional para jovens, como poderá ser acompanhado a seguir. 4.1. Projeto Inclusão Produtiva O Projeto Inclusão Produtiva foi elaborado pela Secretaria de Assistência Social do município de Guarulhos, em novembro/ 2004, e é executado pelo CRAS (Centro de Referência da Assistência Social), localizado no bairro do Jardim São João, em Guarulhos. Os objetivos específicos desse Projeto são “oferecimento de cursos de capacitação profissional para pessoas de ambos os sexos e maiores de 18 anos de idade nas áreas de cabeleireiro, eletricidade residencial básica, corte e costura, artesanato em geral, manicure. * As entrevistas foram realizadas, no ano de 2006, com assistentes sociais atuantes no PROJOVEM do município de São Paulo e do CRAS no município de Guarulhos. As entrevistas foram realizadas no local de trabalho e nas proximidades. Seguiu-se o modelo de entrevistas estruturadas (Cf. LAKATOS e MARCONI, 2009, p. 199). 99 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Além disso, procura-se promover atividades sócio- educativas grupais a fim de estimular a reflexão sobre novas alternativas de geração de trabalho e renda, o exercício da cidadania, as transformações no mundo do trabalho e os conceitos de economia solidária. Outra alternativa é a formação técnica e o acompanhamento para a organização de cooperativas, associações e outras formas de organização comunitária, a articulação da rede sócio- assistencial a fim de garantir eficiência e eficácia nos encaminhamentos, palestras temáticas e oficinas lúdico- pedagógicas como complementação ao processo de formação” (PROJETO “GERAÇÃO DE RENDA”, p. 10). Na entrevista realizada com a assistente social atuante no Projeto Inclusão Produtiva, observou-se que o papel desta profissional é bem definido: encaminhar as pessoas que procuram o serviço para participarem dos cursos de capacitação. Há uma tentativa de inserir as beneficiárias, em sua maioria mulheres, do Programa Renda Cidadã, nesses mesmos cursos de capacitação profissional. O Programa Renda Cidadã tem por objetivo atender famílias de baixa renda com o apoio financeiro de R$ 60,00 associado a ações que possibilitem a melhoria da qualidade de vida. Exige-se da população atendida, contrapartidas necessárias para a permanência no programa, como por exemplo, uma freqüência mínima de 75% às reuniões sócio-educativas. Para que essas políticas não tenham um caráter isolado de transferência de renda, criam-se outras medidas, as quais são chamadas “emancipatórias”. Como é o caso das reuniões sócio-educativas e cursos profissionalizantes que são oferecidos aos beneficiários do Programa Renda Cidadã. Então, passamos a nos questionar sobre os impactos reais, no que diz respeito à emancipação, desses programas e projetos. O poder econômico e a hegemonia ideológica dominantes impõem um modo de pensar, agir e viver das pessoas. Digamos que essas forças dominantes têm uma forte influência sobre as escolhas dos indivíduos. Desse modo, o conflito entre liberdade e necessidade se instala. No caso do CRAS - São João, a procura dos jovens por cursos de manicure, eletricidade, cabeleireiro, entre outros, pode representar o real interesse em aprender algumas dessas profissões. Por outro lado, podemos também supor que os atores sociais envolvidos nesse processo (a equipe de profissionais e os usuários do serviço) reproduzem uma prática alienante. A assistente social entrevistada nos apontou para algumas dificuldades. Dentre elas, podemos destacar um acúmulo de tarefas, na medida em que elas realizam, além dos encaminhamentos para o Projeto Inclusão Produtiva, o atendimento em plantões sociais, a execução do Programa Renda Cidadã e o acompanhamento de todas as famílias beneficiárias (o que inclui visitas domiciliares, reuniões sócio-educativas, etc.) e orientações e cadastros do Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Previdência Social. Além disso, os recursos humanos são insuficientes para o atendimento da demanda e os recursos materiais e físicos não oferecem condições adequadas para um atendimento de qualidade. A equipe de profissionais não tem acesso à formação continuada e os salários são muito baixos, exigindo, muitas vezes, que o profissional mantenha dois empregos. Os jovens usuários do CRAS se caracterizam por serem, em sua maioria, jovens meninas que buscam atendimento no Projeto Inclusão Produtiva por estarem gestantes ou por terem completado os 18 anos de idade e, portanto, alimentam a expectativa de inserção no mercado de trabalho. A maior procura pelos cursos se dá por jovens na faixa etária de 18 a 25 anos. Ao contextualizarmos essa procura, podemos afirmar que se trata de um grupo numa faixa etária que está sujeita a muitas cobranças, em todos os sentidos. A principal delas, refere-se à preparação para a inserção no “mundo adulto”. Os jovens se iniciam no mundo do trabalho e da família. 100 Anais do VII Seminário sobreLeitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 A partir da entrevista realizada com a assistente social do Projeto Inclusão Produtiva, pudemos observar que a gravidez precoce é uma das principais causas de preocupação com a inserção no mercado de trabalho. Um dos motivos para tal fato é a necessidade financeira que se agrava com a chegada de um filho. Na maioria das vezes, essas jovens são mães solteiras que necessitam prover o sustento de seus filhos. No caso daqueles que completaram os dezoito anos de idade, as obrigações escolares são substituídas pelo compromisso com o trabalho, além disso, o “desejo” em participar da sociedade de consumo faz com que esses jovens pobres “escolham” ter uma colocação no mercado de trabalho. Partimos do pressuposto de que as pessoas fazem suas escolhas baseadas em necessidades reais, valores, ideologias, entre outros. Sendo assim, defendemos a idéia de que os jovens que buscam os cursos de capacitação profissional do CRAS - São João são levados, numa situação de estranhamento com os cursos que procuram, a escolher uma das capacitações que são oferecidas pela organização. Afinal, a variedade de ofertas e oportunidades de cursos profissionalizantes é muito restrita e as necessidades imediatas em ingressar no mundo do trabalho são muito intensas. Na leitura do documento do Projeto Inclusão Produtiva, pudemos constatar que este foi pensado a partir de objetivos “emancipatórios”, mas após o contato com a realidade do cotidiano profissional no CRAS, observamos que há inúmeras dificuldades de colocá-los em prática. Tal fato se comprova a começar pela escolha dos cursos profissionalizantes que seguem o mesmo modelo reprodutor da idéia de que “para pobre, qualquer coisa basta”. Além disso, as atividades formativas ainda abordam as regras comportamentais (como se portar em uma entrevista, como elaborar um currículo), questões que também têm a sua importância, mas que não são focos de uma discussão importante sobre o mundo do trabalho que deve ser feita com a juventude. As atividades sócio-educativas ainda são limitadas, até porque não há recursos materiais suficientes para realizá-las e as condições de trabalho dos profissionais não favorecem um maior empenho nesse tipo de ação. 4.2. PROJOVEM - Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária O PROJOVEM foi pensado a partir da Política Nacional de Juventude, do Governo Federal. O programa atende jovens de 18 a 24 anos, por meio de um curso que proporciona formação integral, por um período de 12 meses. Aos alunos, devidamente matriculados, é concedido um auxílio financeiro mensal, no valor de R$ 100,00. A formação integral compreende atividades de formação escolar, qualificação profissional e desenvolvimento de ação comunitária. O PROJOVEM também se caracteriza por ser um programa paliativo e emergencial, o qual busca elevar o grau de escolaridade dos jovens pobres, prepará-los para o mercado de trabalho e, ainda, estimular práticas de cidadania que diminuam os altos índices de violência. Um dos seus objetivos é cumprir uma meta de inclusão e conclusão escolar dos jovens, dever que não foi cumprido pelos serviços de educação no Brasil. Além disso, o programa cumpre um caráter assistencial quando concede uma bolsa mensal em dinheiro e incentiva as ações nas comunidades. No que se refere às ações comunitárias, é inegável que o estímulo às noções de cidadania e práticas comunitárias é muito positivo. Porém, nesse caso, é importante possibilitar aos jovens a construção crítica e reflexiva do que eles entendem por cidadania e ações comunitárias. Caso contrário, concepções e idéias são impostas hierarquicamente, sob o ponto de vista do Estado, e as responsabilidades das melhorias das condições de vida das 101 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 comunidades onde moram também são transferidas para o grupo que deveria estar sendo beneficiado por elas, ou seja, para os próprios jovens. O acesso à educação, sem dúvida, é de extrema importância para garantir a dignidade a qualquer indivíduo na atual sociedade. Portanto, as ações estratégicas nesse sentido devem ser válidas para a resolução de um grave problema, como é o caso da não conclusão de todos os níveis de ensino. Até porque o acesso ao ensino é dever e obrigação do Estado. No entanto, é sempre importante lembrar e considerar que há um desvio do foco da questão principal: a exclusão escolar e a má qualidade do ensino público. A concessão da bolsa mensal de R$ 100,00 aos jovens estudantes nos traz algumas divergências. Há aqueles que acreditam nos programas de transferência de renda como um meio eficiente de distribuição de renda em nosso país. Por outro lado, há os que defendem que tais políticas são muito necessárias para o enfrentamento da pobreza, porém, não interferem de maneira alguma nos índices brasileiros de desigualdade social. A atuação profissional dos assistentes sociais no PROJOVEM não acontece apenas na seleção dos jovens por meio da avaliação sócio- econômica, como geralmente ocorre em muitos programas. Mas a presença da profissão se dá, principalmente, no âmbito da formação sócio- política de um grupo de jovens dentro das salas de aula, local onde se pode refletir coletivamente o cotidiano dos indivíduos e os problemas sociais existentes e, mais do que isso, as alternativas para o seu enfrentamento. A partir daí, podemos afirmar que o PROJOVEM nos possibilita atuar em um novo espaço sócio- ocupacional, a escola, e o trabalho nesse local pode trazer uma qualidade nova para a profissão. Então, a formação para o mundo do trabalho não se dá de maneira tecnicista somente, como é o caso da grande maioria dos projetos sociais que desenvolvem esse tipo de trabalho, mas tem como proposta partir de uma visão de totalidade nas discussões sobre o trabalho que acompanham as capacitações. Dessa maneira, a formação desses jovens deixa de ser fragmentada e passa a ser mais completa, porque os prepara para o mercado de trabalho enquanto profissionais competentes e aptos a desenvolver certas habilidades, e também lhes dá condições de decodificar e atribuir significados à realidade, por meio de uma nova relação entre teoria e prática. Mesmo assim, as tensões e angústias profissionais existem. Elas surgem com as dificuldades de relacionamento interdisciplinar com as demais profissões, da descontinuidade de programas e políticas governamentais, da mobilização dos jovens para as ações comunitárias e discussões temáticas em sala de aula e, assim como em outras organizações sociais, da falta de recursos materiais e humanos, das más condições de trabalho e da precariedade dos serviços sociais oferecidos. Considerações Finais Consideramos que os projetos sociais que desenvolvem cursos de qualificação profissional para jovens podem adquirir um caráter pragmático e mecânico. Por isso, perguntamo-nos: qual o enfrentamento dos assistentes sociais diante dessa problemática? No caso dos jovens, os assistentes sociais deparam-se com problemas que necessitam de uma atenção especial, como por exemplo, a evasão escolar, o desemprego, os altos índices de violência que atingem esse segmento, a ausência de espaços de lazer e cultura, entre outros. E, geralmente, nos deparamos com a implantação de projetos de capacitação profissional de jovens para responder a essa questão social. Será que esse é o melhor e mais efetivo caminho para se pensar a melhoria das condições de vida da população jovem? O questionamento central do nosso trabalho se refereàs reais propostas e resultados desses modelos de projetos sociais. As demandas dos jovens 102 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 são atendidas por meio desses projetos? Quais os reais impactos sobre a sua inserção no mercado de trabalho? Mais do que isso, como se dá essa mesma inserção? De acordo com o projeto e programa social pesquisados, pudemos observar que os resultados concretos na vida desses jovens usuários do serviço são mínimos. Na maioria dos casos, os impactos em suas vidas se limitam às mudanças subjetivas de auto- estima, auto- conhecimento e realização pessoal e, algumas vezes, de inserção no mercado de trabalho informal ou formal de maneira bastante precária. Por outro lado, as respostas aos interesses do capital são bastante satisfatórias, tendo em vista que há um “desafogamento” do mercado de trabalho e aumento da massa sobrante de trabalhadores, uma garantia de renda para que os jovens pobres sobrevivam mesmo desempregados, a pacificação desses indivíduos e o combate à ociosidade que pode gerar o aumento da criminalidade e, principalmente, a manutenção da desigualdade de classes por meio do ensino de cursos tecnicistas e desvalorizados no mercado de trabalho. Portanto, a atuação de profissionais do Serviço Social pode alterar o direcionamento ético- político dessas ações. Para isso, devemos pensar a preparação dos jovens para o mundo do trabalho sob um ponto de vista diferenciado, a partir da junção entre o desenvolvimento técnico e intelectual desses indivíduos, por exemplo. Os projetos sociais de capacitação profissional não precisam se limitar ao ensino técnico e manual, mas podem ter em seu conteúdo programático espaços de reflexão e discussão sobre a compreensão da categoria “trabalho” e os seus impactos na vida em sociedade. Nesse aspecto, o PROJOVEM é o modelo que mais se aproxima desse tipo de proposta, porém, não resolve o problema do desemprego juvenil. Referências ABREU, Marina Maciel. Serviço Social e a organização da cultura: um estudo sobre a função pedagógica do Assistente Social. Tese de Doutorado, PUC-SP, 2001. 229 p. ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (orgs.). Pós-Neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado Democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 9-23. ANTUNES, Ricardo (org.). 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Amanda Eufrásio é graduada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e, atualmente, Assistente Social do CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) Parque Rodrigo Barreto, em Arujá/ SP. Maria Beatriz Costa Abramides é professora Doutora da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Retornar ao sumário 105 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Revistas infantis do inicio do século XX: uma representação de Infância Marissa Rezende de Andrade; Marcella Godinho Nascimento; Samantha Rosa de Paula; Claudia Panizzolo RESUMO: O presente trabalho tem como finalidade a investigação das representações que se tinha de criança e infância no inicio do século XX, investigar a visão sobre a infância e o lugar social da criança no período proposto. O conceito de representação, segundo Gouvêa (2004), remete a função de apresentar novamente (re - presentar) a consciência uma “coisa” ou objeto ausente, dessa forma, ela não reproduz o objeto, mas o reconstrói, reconstitui, modifica. A representação social é uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos. A pesquisa tem, portanto como objetivo investigar como práticas dirigidas a sujeitos determinados os moldam para funcionar como portadores de imagens ou de representações, e como suportes de sentimentos, e mais especificamente, investigar práticas dirigidasa crianças que as moldam para funcionar como portadores das imagens ou das representações de infância. Para isso será usado como referencial teórico Norbert Elias, que estuda os comportamentos / hábitos presentes na sociedade e como esses delimitam / modelam as atitudes das pessoas, através de manuais de condutas dos séculos XVI, XVII e XVIII, Philippe Áries que analisa o percurso da construção da idéia moderna da infância, desde a indistinção em relação ao adulto, característica da sociedade medieval, até o lugar social de destaque que a criança assume na família burguesa e Michel Foucault que legitima as referências à Pedagogia e à Psicologia como discursos modeladores da infância e à escola como panóptico, olho único que tudo vê e que a todos controla. A pesquisa tem como procedimentos metodológicos levantamento bibliográfico, busca e análise de fontes, no caso as revistas infantis “Bem – te – vi”, com algumas edições que circularam no Brasil entre os anos de 1933 a 1936. Como a pesquisa ainda esta em andamento o que se pode apresentar de resultados parciais são a análise das revistas, que de maneira geral trazem textos e contos, em sua maioria tendo como fundo, exemplos de boa educação que crianças “boas” devem seguir, e como essa tem cunho religioso, traz ainda mais a fundo a questão de se fazer de uma criança um cidadão do bem, segundo os ensinamentos da Igreja. Palavras-chave: infância, representações, revista infantil Um olhar sobre a Infância A fase da vida denominada infância nas ultimas décadas vem ganhando espaço em estudos científicos específicos. Pode se afirmar que foi a partir dos estudos de Áries no seu clássico trabalho Historia social da Criança e da Família, que essa fase da vida foi se valendo de uma construção social. Segundo Gouvêa (2004, p. 11), Áries analisou o percurso da construção da idéia moderna da infância, desde a indistinção em relação ao adulto, característica da sociedade medieval, ate o lugar social de destaque que a criança assume na família burguesa. 106 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 O estudo de Áries, segundo Panizzolo (2009), foi realizado a partir de fontes iconográficas que privilegiaram para datar a emergência de um sentimento, de uma idéia ou ainda de uma representação da infância na alta modernidade do século XVIII, por oposição à ausência daquele sentimento nos registros de fins da Idade Média e começos da Moderna. Faz ainda uma associação dessa idéia com o desapego ou destrato dos adultos em relação aos menores. Sendo assim seu trabalho demonstrou que a infância constitui, mais que um fenômeno biológico, uma construção cultural. No século XVI a criança era tida como um ser inacabado, carente e individualizado (BUJES, 2003, p.46), logo essa deveria se submeter a uma criação e instrução, como única forma de salvação desse ser tão sem características próprias, visão assim nessa época. A referência a uma natureza infantil começa a aparecer com alguma ênfase a partir dos discursos, segundo Bujes (2003), dos humanistas, filósofos e reformadores do século XVI e XVII que se dedicaram a falar sobre a infância. Esses vão defender que esta criança que passa a ter características e sensibilidades próprias é vista também como ameaça, desafio e risco. Isso se dá porque os autores dessa época têm uma visão pejorativa e negativa da natureza infantil, associando-a ao mal. Consideram ainda as crianças como seres sem razão e que só serão conduzidas a razão por meio de um governo e controle das então populações infantis. A consolidação de um significado moderno para o termo “infância” vai ocorrer, segundo Bujes (2003), apenas em meados do século XVII, entre a burguesia francesa. Porém só por volta do século XVIII que o sentido que hoje atribuímos ao termo vira a se generalizar, abrangendo assim todas as classes sociais. Tem-se no livro Emilio, de Rousseau (1762), como sendo o nascimento de uma infância moderna. Esse defende a infância como sendo um novo fenômeno que deve ser considerado como objeto de estudo, campo de significados e também como um potencial aplicável, desenvolvimento social e ação educativa (BUJES, 2003, p. 49). Ele foi o primeiro a ver na criança não apenas uma oportunidade para aplicação de preceitos educativos, mas uma fonte de problemas que temos que resolver. De acordo com Gouvêa, “a Rousseau é que estava reservado ser o verdadeiro iniciador da ciência da criança, pode mesmo dizer-se o descobridor da criança” (GOUVÊA apud Claparede, 2004, p. 59), acabando por defender que antes de educar a criança devemos observá-la. Por muito tempo a produção de saberes sobre a infância esteve conectada a regulação das condutas dos sujeitos infantis e a instituição de práticas educacionais voltadas para elas. Nesse aspecto, Foucault é outra presença marcante nos estudos de história da infância. Segundo Panizzolo (2009), Foucault legitima as referências à Pedagogia e à Psicologia como discursos modeladores da infância e à escola como panóptico, olho único que tudo vê e que a todos controla. Para usar uma expressão do próprio Foucault, a sua presença permite que se fale da história da infância como história de uma prática ortopédica (Cf. FOUCAULT, 1975). Seguindo os pensamentos de Foucault, trazendo assim as discussões a respeito das relações entre Infância e Poder, permite-se questionar os significados da infância e os pressupostos que sustentam os discursos acerca de sua educação. Para Bujes (2003), ao tomar a criança como um sujeito / objeto cultural, tende a mostrar como o sujeito infantil é fabricado pelos discursos institucionais, pelas formulações cientificas, pelos meios de comunicação. As crianças como sendo considerados seres modelados por discursos que as rodeiam e as controla de alguma forma, acabam por possibilitar entendimentos particulares sobre como se delineiam as relações de força na sociedade, as relações de poder – eficazes, mas invisíveis- que modelam certos modos de ser criança, de viver esta idade e de nela “descobrir o mundo” (BUJES, 2003). Para autores, como Bujes (2002), Stephanou (1999) entre outros, que trazem as teorias de Foucault como referencial teórico em pesquisas ligadas a criança e infância, defendem de maneira geral que os fenômenos associados à infância - suas representações, seus códigos, 107 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 suas identidades - não são naturais, dados ou inevitáveis, são o produto de um complexo processo de definição: as crianças são constantemente produzidas pelos discursos que se anunciam sobre elas. Sendo assim as crianças são sempre vistas e ate mesmo estudadas a partir de discursos feitos para elas que tem como finalidade implícita ou explicita de moldá- las a forma considerada mais adequada à sociedade que está inserida como próprio meio de controle. A fase da vida então denominada infância não se define por suas características próprias e sim por discursos que moldam e modela seus sujeitos. Tendo como significados atribuídos a infância, segundo Bujes (2003), resultados de um processo de construção social, dependendo assim de um conjunto de possibilidades que se conjugam em determinado momento da historia, são organizados socialmente e sustentados por discursos nem sempre homogêneos e em perene transformação. Portanto, os significados de infância variam com o tempo, com a autoridade de quem fala, variam também segundo a classe social de quem os anuncia e de quem é o objeto da fala. Sendo então a infância uma variável inconstante na formação de uma sociedade. Em Norbert Elias encontra-separte dos seus estudos dedicados para analisar os comportamentos / hábitos presentes na sociedade, a formação das pessoas que nela vivem e os meios usados para modelação / imposição de suas atitudes. Seus interesses estão examinar práticas e processos de modelação dos sujeitos da infância e demais integrantes de uma sociedade. As fontes, como poemas e tratados dos primeiros séculos da modernidade, servem a Elias como instrumentos diretos de condicionamento ou modelação (PANIZZOLO, 2009). De adaptação do indivíduo a esses modos de comportamento, que a estrutura e a situação da sociedade onde vive tornam necessários. E mostram, ao mesmo tempo, através do que censuram e elogiam a divergência entre o que eram consideradas, em épocas diferentes, maneiras boas e más (Cf. ELIAS, 1990, p. 95). Nesse autor encontramos delineado o quadro das mudanças civilizadoras que ocorrem durante a Renascença e que vão consolidando esta nova versão moderna de sujeito: uma maior individualização, um crescente controle das emoções, uma expansão da autoconsciência (Bujes, 2003). Elias faz uso de manuais destinados às crianças que permaneceram por varias edições em circulação no século XVI, XVII e XVIII, para análise desses que produziram por certo efeitos bastante concretos sobre as condutas dos sujeitos infantis. O código social de conduta neles instaurado grava-se de tal forma no ser humano (...) que se torna elemento constituinte do individuo (ELIAS, 1994). Num outro aspecto relacionado à infância, tem-se que ate o século XIX o campo religioso ocupa o espaço privilegiado de produção de um discurso sobre a infância, porém a partir dai constituição desses discursos virá para o campo cientifico ocupando assim cada vez mais espaço na discussão desse tema. A construção de praticas discursivas voltadas para a infância no interior do campo científico tem como premissa sua alteridade em relação ao adulto, a qual antecede a formulação de conhecimentos técnicos – científicos que qualificam tal alteridade (GOUVEA, 2004, p.59). Nesse sentido vale destacar autores do inicio do século, tais como Claparede, Dewey, Montessori, Binet e Kilpatrick que irão dirigir sua produção no sentido de defender um novo olhar sobre a criança, que a perceba como qualitativamente diferente do adulto. No Brasil a produção especifica relacionada a historia da infância é recente e parcial, segundo Gouvêa (2004), quase restrita a dissertações e teses que se voltam para a análise do contexto cultural da criança, ora analisando-o de acordo com uma perspectiva sincrônica, ao comparar a inserção da criança em diferentes contextos culturais, ora numa perspectiva diacrônica, historicizando o percurso de construção da noção de infância no Brasil. Tendo assim ambas as perspectivas o objetivo de investigar a idéia de uma infância única, abstrata e 108 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 universal, tradicionalmente desenvolvida no interior das ciências voltadas para a infância e nas praticas a elas relacionadas. A investigação da historicidade da infância remete ao percurso pelo qual se constituíram valores, hábitos e normas que hoje tomamos como absolutos. Busca-se a compreensão da mudança, daquilo que se redefiniu ao longo do tempo, na tentativa de ler os significados que se tinha de infância para os determinados sujeitos da época. Significa verificar o jogo de permanências e deslocamentos acerca da visão de infância e do lugar social da criança em um momento histórico diferenciado. (GOUVEA, 2002, p. 14) Em relação às praticas voltadas a infância tem em Bujes (2003) que as crianças como sujeito de seu tempo, pressionadas pelas condições do meio, marcadas por diferenças de gêneros, classe, etnia, raça, idade, corpo, entre outros, vão sendo moldadas de acordo com suas características impostas desde seu nascimento. Sendo o estudo dessas práticas pensadas a partir destes pressupostos já colocados a essa categoria, infância. As denominações de infância se modificam com o tempo e com o modo que elas são vistas na sociedade, “os significados de infância variam com o tempo, com a autoridade de quem fala, variam também segundo a classe social de quem os enuncia e de quem é o objeto da fala”. (BUJES, 2003, p. 24) Assim sendo, é importante destacar que a descoberta da noção de infância vem em consonância com modificações mais amplas na cultura e nos valores que regem a vida social (GOUVÊA, 2004, p.63), sendo considerado fruto de um longo processo de transformação sociocultural. Portanto, discutir a infância significava ou proclamar sua diferença em relação ao adulto, ou afirmar a indistinção e incompletude da criança. Foi em torno desses eixos que se constituíram ao longo dos anos a maioria dos discursos em relação à criança. Porém hoje o campo científico afirmará cada vez mais a idéia da especificidade da infância. A Revista Infantil: “Bem-Te-Vi” A revista infantil Bem-Te-Vi, cujo primeiro volume foi publicado em 1886, com o nome de “Nossa Gente Pequena”, então sob a responsabilidade do missionário J.J. Ransom, teve sua primeira edição com o nome Bem-Te-Vi em 1922. Era editada e publicada em São Paulo, sua publicação era mensal e sua venda era realizada através de assinatura anual ou com o preço avulso. As redatoras da revista Bem-Te-Vi, segundo Almeida (2003, p.57), a apresentavam como uma “edição voltada para todas as igrejas cristãs”. Tinha a finalidade de atender as crianças através de uma linguagem simplificada (porém, com forte apelo moral e voltado para normatização de condutas), em suas páginas, eram transcritos contos infantis, relatos da mitologia grega, poemas de autores nacionais e, principalmente, de autores norte-americanos e ingleses. A formação da criança em traços evangélicos era ainda instilada por meio de uma infinidade de textos conhecidos do público infantil. Contos de fadas com seus personagens principescos e serviçais, contos indígenas e de populações negras trazidas para o Brasil em regime de escravidão eram transcritos e interpretados segundo critérios morais constitutivos do universo religioso protestante, tendo em vista modelar o comportamento dos pequenos leitores. A revista Bem-Te-Vi é denominada por Almeida (2003) como sendo um material rico em informações a respeito de normas reguladoras de condutas requeridas das crianças e valorizadas pelos metodistas. Obediência, valorização do trabalho e do estudo, cuidados higiênicos e o exercício da caridade eram os temas que mais se repetiam na revista, como própria forma de inculcar esses valores nos pequenos leitores. 109 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Para a pesquisa foram usadas edições que circularam no Brasil entre os anos de 1933 a 1936, vistos que apenas alguns números estavam disponíveis no Arquivo Público de São Paulo, local onde foram retiradas tais fontes. Sendo os seguintes números: Ano XI – n. 2: Fevereiro de 1933 Ano XI – n. 4: Abril de 1933 Ano XII – n. 1: Janeiro de 1934 Ano XII – n. 4: Abril de 1934 Ano XII – n. 5: Maio de 1934 Ano XII – n. 10: Outubro de 1934 Ano XII – n. 11: Novembro de 1934 Ano XIII – n. 5: Maio de 1935 Ano XIII – n. 7: Julho de 1935 Ano XIII – n. 8: Agosto de 1935 Ano XIV – n. 3: Março de 1936 Ano XIV – n. 4: Abril de 1936 Ano XIV – n. 5: Maio de 1936 A revista em seu conteúdo trazia as seções e séries: Brinquedos e Jogos, Petiscos para os Bem-te-vistas, Quem é que sabe?, Tesouro das Coisas Novas e Velhas, Seção dos Pequeninos, Cartas a Zezinho, Vultos da Raça Negra, A Página dos Pais. Em Brinquedos e Jogos, a revista apresenta propostas de brincadeirase jogos para crianças, descrevendo as 110 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 regras, o modo como se joga, dando dicas de melhores formas de se brincar e até o tempo previsto para a realização. As brincadeiras trazidas eram sempre de fácil aprendizagem, dirigidas sempre ao público infantil, quase sempre sua realização se dava sem custo algum, e não necessariamente tinha de haver a presença de um adulto. Na seção Petiscos para os Bem-Te-Vistas, é apresentado receitas que visam atender aos gostos das crianças em geral, tais como receitas de bolos, geléias, rolinhos, balas entre outras. Geralmente tanto o modo de fazer como a ilustração da revista incentivava a criança a ajudar sua mãe na realização das receitas. Já na seção Quem é que sabe?, a revista publica todo o mês 15 perguntas possíveis de serem respondidas por crianças e só no numero seguinte que se tem as respostas. Perguntas relativas a animais e seus costumes, a música, a curiosidades do cotidiano, entre outros temas. Em Tesouro das Coisas Novas e Velhas, ensinamentos antigos, que nunca perdem seu valor na educação e sabedoria das crianças e mais velhos, são apresentados à página 2 da edição de janeiro de 1934: Para ser rico não basta aprender como se adquire, mas é preciso, além disso saber poupar e conservar [...] Envergonhais-vos de vos achardes na ociosidade, quando tendes tanto que fazer em vosso beneficio, da vossa pátria e vossa família. Na Seção dos Pequeninos, a revista publica textos considerados mais simples e sempre como um fundo educativo, com alguns títulos como: Marinheiro, história que conta que duas crianças preferiram seu velho brinquedo o cavalo Marinheiro ao invés de um novo, O Terninho novo de Peter, que traz a história do menino que com a lã de seu carneiro fez um terninho novo com a ajuda e troca de favores de seus avós, mãe, vizinho e alfaiate, llza não quer brincar, que relata a história de dois irmãos que se entenderam e brincaram juntos, entre outros títulos, todos como personagem uma criança que vive uma lição de bom comportamento, de ajuda ao próximo, de respeito e obediência, como um exemplo a ser seguido pelos pequenos leitores. Já na seção A Página dos Pais, é publicado mensalmente textos que são dirigidos aos pais, que visam auxiliarem de alguma maneira na educação das crianças, trazendo com reagirem a determinados comportamentos de seus filhos, tal como quando se tem um filho denominado, segundo a revista, de criança fechada, sendo aquelas que tem dificuldades de expressarem seus sentimentos, a revista então aconselha os pais a não tratarem seus filhos como sendo inferiores a outras crianças como forma de evitar esse tipo de comportamento tal qual também sempre os incentivarem de maneira positiva, encorajando-os em suas atitudes contribuindo assim para que essa criança se torne mais segura e expresse melhor seus sentimentos. Outro exemplo trazido por essa seção é o texto Bons e maus hábitos, em que faz com que os pais reflitam sobre os hábitos de seus filhos e que esses só vão ser bons com a ajuda e próprio exemplo de seus pais. Na série Cartas a Zezinho, a revista publica cartas escrita por uma senhora a seu filho, ela esta fazendo uma viagem ao redor do mundo com seu marido e filha, e a cada carta a mãe descreve ao filho a cultura e as características do lugar visitado como própria forma de aprendizado para ele e leitores da série, lugares como o Havaí, o Japão, Egito. Já na série Vultos da Raça Negra, a revista apresenta caracteres da raça negra que se salientaram em E.U.A. Além dessas séries e seções ainda era publicado histórias longas que eram divididas em capítulos e contadas em vários números. A imagem/representação da criança na Revista: Ver o Brasil nas décadas de 1920 e 1930 é pensá-lo como uma recente república que tem como um dos objetivos principal educar o povo, tendo na visão das elites dirigentes um 111 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 caráter essencialmente político. A educação seria o instrumento de formação do cidadão republicano, vinculava-se, portanto à sobrevivência e consolidação do novo regime. Os meios de comunicação seriam, dessa forma, mais um transmissor de disciplina, dominação, normatização, na tentativa de modelar condutas através da difusão de ideias que serviriam de suporte para a aquisição de um discernimento que estabeleceria e diferenciaria o bem e o mal em termos das ideias liberais. A realização dessa tarefa implicaria a construção de elementos que estabelecessem uma identidade coletiva e, através dela, a coesão da população, pela aceitação de parâmetros de comportamentos necessários ao desenvolvimento e ao progresso nacional, dentro da ordem liberal de organização da sociedade. Para as crianças como ser em plena formação não seria diferente o uso desses meios para a divulgação de uma imagem de cidadão idealizado, isso sem considera a própria escola como principal palco da divulgação dessas boas maneiras a serem seguidas pelas crianças, porém essa não será o objeto da pesquisa, cabendo aqui então a busca da imagem e representação de infância dos anos 1930 a partir da análise de algumas edições da Revistas infantil Bem-Te-Vi. Falar em representação significa investigar a visão sobre a infância e o lugar social da criança no período proposto. Nesse sentido, as análises das revistas não significam uma tradução do real, que espelhariam fielmente a infância da época analisada. Ao contrário, o conceito de representação remete a função de apresentar novamente (re - presentar) a consciência uma “coisa” ou objeto ausente (GOUVEA, 2004, p. 15). Dessa forma, ela não reproduz o objeto, mas o reconstrói, reconstitui, modifica. Assim sendo, a revista Bem-Te-Vi tenta de maneira geral trazer uma imagem idealizada da infância e da criança, demonstrando sempre uma preocupação em divulgar uma representação de criança corajosa, sincera, amorosa, respeitosa, obediente e digna. No entanto suas publicações se definem em trazer textos, estórias e exemplos ora de criança já definida como toda certinha, uma criança do bem, se definindo sob todas essas características acima citadas ora criança que justamente a princípio não se encaixa nesses adjetivos, aprontam algo recebendo assim às vezes sua devida punição ou a própria história com o uso da consciência do próprio personagem em não praticar o tido como um mau comportamento se encarrega de conduzir essa criança ao caminho do bem, em que as crianças se constituem sob essas características, em um modelo que deve ser seguido por todas. Histórias publicadas na revista que retratam bem essa dualidade presente no contexto de Bem-Te-Vi podem ser perceptível em A Páscoa de Berta, que narra a história de uma garota que todos os anos na época da Páscoa entregava ovos, pintinhos e coelhinhos de chocolate para as crianças hospitalizadas de um grande hospital, levando assim um pouco de alegria para aquelas pobres crianças que estão doentes, acabando com a frase “Quanta alegria houve depois da visita de Berta nessa enfermaria!” (Revista Bem-Te-Vi, Ano XII, n. 4, abr. 1934,p. 85). Já um exemplo que mostra outra maneira de retratar o bem se encontra na história Uma boa peça, que narra a história de Luizinho que passa horas pensando em como pregar boas peças no dia Primeiro de Abril e quando surge a oportunidade de pregar uma, que era a de enganar um amigo com uma moeda de estanho ao invés de uma de valor, Luizinho desiste percebendo a necessidade que o amigo estava passando com sua irmãzinha, resolvendo assim dar ao amigoa moeda de verdade. Outro episódio trazido pela revista em que sugere na vida de uma criança um acontecimento que traz um problema (bem ou mal resolvido) provocando assim uma tomada de consciência, mediante a qual a criança é transformada, ocorre em Serviço de Homem, história que narra que um menino, Zuque, achava que limpar alpendre era serviço só de mulher e se convence ao contrário quando vê os marinheiros limpando seus navios: 112 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Finalmente chegaram ao cais, onde, como sempre, estavam ancorados diversos navios. A Tia Berta descobriu um banco no qual eles se podiam sentar e apreciar bem de perto o navio-escola e seus marinheiros trabalhando. Alguns estavam pintando o navio. Outros iam formando rolos bem feitos com as cordas pesadas. Alguns estavam brincando com um sagüi, o mascote do navio. E bem no alto, no convés, Zuque viu dois fortes marujos energicamente trabalhando com baldes e esfregões. Eles não pareciam estar com vergonha desse trabalho. E de fato não estavam. Para frente e para trás iam as escovas, deixando o convés limpo e reluzindo. - Eu não sabia que os marinheiros tinham que fazer isso, declarou Zuque. - Se fazem! Exclamou a Tia Berta. Alguns ate costuram e cozinham. Zuque estava muito quieto ao voltar para casa. - Tia Berta, ele disse, de repente, ao virarem a esquina, quando for preciso lavar o alpendre outra vez, acho que posso deixá-lo bem bonito. Estive observando o jeito com que os marujos esfregavam o chão. É preciso bastante muque para esfregar como os marujos; mas veja só os músculos que eu tenho no braço direito! (idem, ano XIV, n. 3, mar. 1936, p. 50) As narrativas seguindo essa representação de criança obediente e prestativa ainda destacam exemplos de crianças que abrem mão de atividades prazerosas para prestarem ajuda a pais, vizinhos, tios. Nesse sentido, tem-se em As Férias de Clarisse, a narrativa de uma criança que abre mão de suas férias na fazenda do tio e com o dinheiro compra um fogão a gás para sua mãe, “estaria na fazenda descansando e passeando, enquanto sua mãe ficava naquela cozinha quente. Não parecia direito. Então ela teve uma idéia. Se ficasse em casa teria meios de comprar o fogão a gás para a mamãe!” Outra situação apresentada relacionada à ajuda aos pais a revista publica uma poesia Meu dia de lavar roupa, na página 39, ano XI, n.2, fevereiro de 1933, a qual se coloca a idéia de que lavar roupas pode ser divertido como própria representação da criança boa que ajuda a mãe: Lavei hoje as roupinhas Da boneca, que entre as minhas É por certo a predileta, Da formosa Guiomar. Tina, água e sabão E uma tabua de esfregar; Para secarem então Pendurei-as afinal, No meu pequeno varal. O sol brilhava ardente; Uma brisa doce e amena Soprava constantemente. A roupa secou depressa; Fui, dobrei peça por peça; Pus a pilha para um lado E passei-a com cuidado, E apesar de tanta lida A manhã foi divertida! Conclui-se, portanto, que as páginas da Revista infantil Bem-Te-Vi são repletas de um conjunto de valores a que autores/ redatores recorrem constantemente, sendo aqui visto como própria forma de representação de infância e criança do referido período, tais como: obediência, amor, ordem, trabalho, honra, ajuda aos pais, bondade, que refletem assim um modelo familiar e social a ser seguido pelo seu público de pequenos leitores, com o intuito de esses passarem de boas crianças a exemplares cidadãos. 113 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Fontes Revista Bem-Te-Vi. Arquivo Público do Estado de São Paulo, 1933/ 1936. Referências ALMEIDA, Vasni. O metodismo e a ordem social republicana. Revista de estudos da Religião, São Paulo, n. 1, p. 41-60, 2003. Disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/rv1_2003/p_schune.pdf>. ARIÈS, P. História Social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. BUJES, M.I.E. Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. CHARTIER, Roger. A ordem dos Livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Trad. Mary Del Priore. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. _______.A Historia Cultural. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand, 1990. ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. v. 1. GOUVEA, Maria Cristina Soares. A escrita da história da infância: periodização e fontes. In: SARMENTO, Manuel; GOUVEA, Maria Cristina Soares (orgs.). Estudos da infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008. _______. O mundo da Criança: a construção do infantil na literatura brasileira. 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Samantha Rosa de Paula é estudante de Pedagogia da Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG e bolsista do PIBIC vinculada ao projeto “Brincar na Brinquedoteca: A presença/ausência da cultura lúdica infantil nas produções acadêmicas”. 114 http://www.pucsp.br/rever/rv1_2003/p_schune.pdf Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Claudia Panizzolo é professora adjunta da Universidade Federal de Alfenas - UNIFAL/MG, coordenadora e orientadora da pesquisa “A educação de meninos e meninas no Brasil da primeira metade do século XX” financiada pela Fapemig. Retornar ao sumário 115 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 Um estudo sobre a creche: caracterização das profissionais do município de Alfenas/MG Vanusa Correa Lourenço RESUMO: O atendimento a criança pequena no Brasil, passou por uma longa trajetória. Várias denominações foram instituídas ao lugar que as crianças ficavam: salas de asilo, jardins de infância, escolas maternais, creches, pré-escolas. Segundo Kuhlmann Jr (2000), as creches foram implantadas no Brasil com o desenvolvimento da urbanização e industrialização, pois as mulheres passaram a ingressar no mercado de trabalho. As mães quando saiam para trabalhar não tinham onde deixar seus filhos, sendo instituídas então as creches de cunho assistencialista. Estas instituições tinham apenas a função de cuidar das crianças, ou seja, de alimentá-las e cuidar de seus corpos; sendo que o lado profissional ficava obscurecido. Depois de um longo período em que as creches apenas cuidavam das crianças, estas conquistaram o direito de também serem educadas nessas instituições. Com as mudanças que ocorreram na legislação como, por exemplo, a Constituição de 1988, na Lei De Diretrizes e Bases da Educação n° 9394/96 designou que o profissional para atuar na educação infantil, deve possuir formação em normal superior ou formação em Pedagogia. Então depois de todas essas mudanças, a presente pesquisa de iniciação científica será realizada nascreches municipais que atendem crianças de zero a três anos de idade do município de Alfenas/MG visando compreender como estas mudanças foram incorporadas pelas instituições de educação infantil, a partir do conhecimento das profissionais que estão atuando nas creches. Para o desenvolvimento da pesquisa serão utilizados os seguintes instrumentos: entrevistas e questionários. Palavras - chaves: Creches; Profissionais; Educação Infantil. História das creches e a nova legislação. Este trabalho é decorrente de uma pesquisa de iniciação científica que está sendo realizada no município de Alfenas/MG, com o intuito de pesquisar a composição das creches municipais desta cidade, ou seja, número de instituições, clientela, as formas de atendimento, etc. Para isso focaremos nas profissionais que lá trabalham, com a realização de questionários e entrevistas. Depois das mudanças que ocorreram na legislação, pesquisar quem são hoje as profissionais que trabalham nas creches é algo muito relevante para as pesquisas na área de educação infantil, pois elas nos fornecerão importantes informações sobre a organização destas instituições no âmbito do desenvolvimento das políticas educacionais para esta área. As creches hoje fazem parte do sistema educacional, o cuidar e o educar de acordo com a legislação agora deve estar presente tanto nas creches como nas pré-escolas. Mas não foi sempre assim, o atendimento à criança pequena no Brasil, passou por uma longa trajetória. Segundo Marcílio (1997), a roda dos expostos foi uma das primeiras instituições de atendimento à infância abandonada. Inventada na Europa Medieval, sendo uma das 116 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 instituições brasileiras de mais longa data, sobrevivendo aos três grandes regimes do Brasil: Colônia, Império e República. Neste sentido, de acordo com Kuhlmann Jr. (2000), muitas mães solteiras que não tinham condições de criarem seus filhos, deixavam na roda dos expostos; criada no Brasil em 1738. Eram colocadas em uma roda de madeira e abandonadas, mantendo o anonimato das mães. Essas crianças eram amamentadas pelas amas de leite, mulheres que amamentavam várias crianças ao mesmo tempo. Depois iam para o orfanato. As instituições para crianças pequenas surgiram no século XIX, devido a crescente industrialização e urbanização, chegando ao Brasil na década de 1870. O lugar onde as crianças ficavam passou por várias denominações: salas de asilos, escolas maternais, escolas de tricotar, creches, pré-escolas. A primeira creche surgiu no período republicano, inaugurada em 1899, vinculada a uma fábrica de tecidos; atendendo crianças de 0 a 3 anos de idade . Era um apoio para as famílias que trabalhavam, pois as mães iam trabalhar nas fábricas e as crianças tinham um lugar seguro para ficar, podendo até serem amamentadas durante os intervalos de trabalho. As salas de asilo surgiram na França, não sendo obrigatória a frequência das crianças, pois tinha um caráter assistencialista. Os jardins de infância atendiam uma clientela de classe média e alta, sendo um lugar de desenvolvimento e bons hábitos. O primeiro jardim de infância público no Brasil foi instituído em 1896, construído na praça da república na capital de São Paulo, como uma maneira de estágio para a formação de professoras das escolas normais (KUHLMANN Jr., 2000). As profissionais que trabalhavam nestas instituições, creches e pré escolas recebiam denominações diferentes, como a creche cuidava e a pré escola educava, acabou gerando dois tipos de profissionais. Segundo Kuhlmann Jr. (2000), nas creches as profissionais apenas cuidavam das crianças, não tinham nenhum tipo de formação e possuíam várias denominações quanto ao modo de serem chamadas: pajens, crecheiras, monitoras, auxiliares de desenvolvimento infantil e funcionavam em período integral. Já nas pré-escolas, que funcionavam em meio período, tinha um caráter educacional e possuíam professoras para a educação das crianças. Segundo Kuhlmann Jr (1991), nas creches e asilos a criança deveria ser cuidada por mãos femininas; os regulamentos das creches na França, de 1862 e 1867 afirmavam que as creches deveriam ser dirigidas exclusivamente por mulheres, ou seja, as profissionais da creche atuariam substituindo o papel materno, tornando-se uma segunda mãe para as crianças. Outra autora que nos levanta essa questão é Cerisara (2002), mostrando com sua pesquisa que as funções exercidas por essas profissionais nas creches está muito ligada ao trabalho doméstico, o papel de maternagem gerando uma contaminação destas práticas femininas domésticas, aplicadas na prática profissional com as crianças pequenas. Segundo dados do Departamento da Criança no Brasil (DCB), que se constituiu como uma associação criada para registrar e estabelecer um serviço de informação, sobre as instituições que dedicavam a proteção direta e indireta da infância. Apontou que em 1921 foram registrados apenas 15 creches e 15 jardins de infância. Já em 1924 ocorreu um aumento no número dessas instituições passando para 47 creches e 42 jardins de infância. Esse aumento no número de instituições deve-se ao fato da ascensão do capitalismo, a grande demanda da industrialização, que retirou muitas mulheres de casa, levando-as para o trabalho. Isso ocasionou a entrada das mulheres no mercado de trabalho, e com isso houve um aumento nestas instituições, devido ao fato das mães trabalharem e não terem onde deixar seus filhos (KUHLMANN Jr., 2000). Em 1966, a Secretaria Municipal de São Paulo promoveu um seminário sobre as creches, reunindo 90 representantes de entidades e profissionais. Nesta época, haviam 27 creches na Capital e 89 no interior. Segundo Pereira (1966, apud KUHLMANN Jr., 2000, p. 117 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 487), que foi uma das palestrantes do evento, o papel da creche é dar assistência as crianças, para que elas não fiquem desamparadas, se sintam como no seu lar, com carinho e afeto. As mulheres que trabalhavam nestas instituições não tinham qualificação, nem se exigia, no entanto, a profissão que se oferecia às mulheres naquela época era professora (KUHLMANN Jr., 2000). Até 1988 a creche tinha apenas a função de cuidar das crianças; o profissional para atuar nestas instituições não se exigia qualificação e as crianças não ''tinham uma educação escolar''. Segundo Corsino (2009), através de movimentos sociais urbanos e feministas, foi instituído na Constituição de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que creches e pré-escolas passariam a ter a função de cuidar e educar as crianças. A educação infantil passou a ser a primeira etapa da educação básica, de responsabilidade dos municípios, um dever do estado e um direito a todos que a demandarem. A Lei de Diretrizes e Bases (9394/96), nos artigos 29, 30 e 31, nos apresenta dados sobre a educação infantil mostrando que esta passou a ser a primeira etapa da educação básica; creches e pré-escolas passariam a ter a função de cuidar e educar, desenvolvendo aspectos físicos, psicológicos, intelectuais e sociais, das crianças de zero a seis anos de idade. As creches ficaram responsáveis por atender crianças de 0 a 3 anos de idade e as pré escolas crianças de 4 a 6 anos de idade, ambas com a função de cuidar e educar. Sendo a avaliação sem promoção, podendo ser contínua e feita por meio de registros e observações. Para as profissionais que atuam nestas instituições também ocorreram mudanças quanto a sua formação,pois foi instituído que para trabalhar em creches e pré-escolas é necessário ter formação em normal superior ou formação em pedagogia. A pesquisa O objetivo da presente pesquisa é caracterizar as creches municipais do município de Alfenas/MG, que atendam crianças de 0 a 3 anos de idade visando conhecer o número de instituições, formas de atendimento, clientela atendida, número de profissionais, etc. Tendo como objetivo específico caracterizar o perfil das profissionais que atuam nestas instituições, ou seja, depois das mudanças que ocorreram, desejamos saber quem são hoje as profissionais que trabalham nas creches. Esta é uma pesquisa tanto qualitativa, quanto quantitativa. Segundo Richardson (1999 apud RAUPP, BEUREN, 2003, p. 22), na pesquisa qualitativa as análises são mais profundas em relação ao fenômeno que está sendo estudado, não apresentando um instrumento estatístico, na análise do problema. Entretanto, na pesquisa quantitativa, caracteriza-se pelo emprego de instrumentos estatísticos (percentual, média, desvio-padrão); precisão dos resultados, evitando distorções de análise e interpretação. É muito usada nos estudos descritivos, que procuram descobrir e classificar as variáveis e a relação de causa entre os fenômenos. A pesquisa consta-se também de revisão de literatura; sendo uma pesquisa de campo realizada nas instituições de educação infantil de Alfenas/MG. Será dividida em etapas, para um melhor desenvolvimento. Constando-se nestas etapas, informações sobre o número de instituições que atendam crianças de 0 a 3 anos; entrevistas com duas profissionais de cada creche; distribuição de questionário para todas as profissionais que trabalham lá. E a análise dos dados se dará a partir da tabulação e categorização destes dados encontrados. Composição das creches municipais de Alfenas/MG Os resultados preliminares da pesquisa até o momento nos mostram que poucas mudanças ocorreram nestas instituições. Mesmo imposta na legislação o cuidar e o educar 118 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 ainda não está sendo aplicado; espaços inadequados, direitos desrespeitados e ainda profissionais sem qualificação atuando nestas instituições. Podemos comprovar esses dados em nossa pesquisa, pois as crianças nas creches ainda estão submissas a um espaço fechado, com pouquíssimos brinquedos e profissionais que estão misturando o feminino e o profissional. A pesquisa constatou até o momento que 100% das creches são constituídas por mulheres. O que podemos constatar que ainda é uma profissão ligada ao gênero, prevalecendo a presença maciça de mulheres nesta etapa de ensino. Segundo Kuhlmann Jr (1991), na França, em 1862, as creches só poderiam contratar profissionais femininas e que estas profissionais atuariam substituindo o papel materno, tornando-se segundas mães. A composição destas creches apenas por mulheres acaba obscurecendo o papel da profissional, pois para o desenvolvimento do seu trabalho, as profissionais acionam informações e práticas decorrentes da sua atuação enquanto mãe/mulher. Na pesquisa podemos constatar que a maioria destas profissionais relata que aprendeu a trabalhar com crianças, cuidando de seus próprios filhos, trabalhando como babá ou cuidando dos sobrinhos. A identidade destas profissionais acaba ficando obscurecida prevalecendo o cuidar e não o educar. De acordo com Cerisara (2002), a função destas profissionais nas instituições de educação infantil está muito ligada ao trabalho doméstico e o papel de maternagem que eles executam em casa. Não conseguindo fazer uma distinção entre o profissional e o feminino. Segundo Silva (2001), há uma crise de identidade das profissionais que atuam nas creches. A educação na creche ainda é recente, por isso os aspectos relacionados ao cuidar estão mais presentes levando as profissionais a trabalhar utilizando elementos advindos da maternidade por exemplo. Na prática ser mãe, mulher e trabalhadora acaba resultando em uma mistura das identidades. De acordo com a LDB 9394/96 o profissional para atuar na educação infantil, exige-se hoje formação em magistério (normal superior) ou pedagogia. Mas o que podemos perceber através da análise dos dados dos questionários é que 40% apenas destas profissionais são formadas em pedagogia, o restante 60% não possui nenhum tipo de formação superior. Ou seja, as creches não estão constituídas de acordo com a LDB de profissionais qualificados para trabalhar na educação infantil. Com isso o atendimento à criança fica prejudicado devido ao despreparo dessas profissionais que acabam trabalhando com as crianças sem desenvolverem atividades, conhecimentos que uma formação profissional lhe daria. Outro dado da pesquisa é que algumas profissionais relatam que usam plano de aula ou planejamento semanal para organizarem as atividades que serão realizadas durante as aulas. Algumas seguem as orientações dos eixos da educação infantil (Comunicação e expressão; conhecimento lógico- matemático e conhecimentos da natureza e da sociedade). Segundo Xavier (2001), esses eixos da educação infantil contêm objetivos e conteúdos que foram criados para o melhor desenvolvimento do aluno nas instituições de Educação Infantil, possibilitando um conhecimento em diferentes áreas, sem tirar o lúdico, o faz de conta presente nesta faixa etária. Outro dado importante na análise dos dados da pesquisa, é a clientela atendida na creche. Segundo Kuhlmann Jr (2000), as creches tinham um caráter assistencialista, atendiam crianças pobres que as mães trabalhavam. Através da pesquisa, podemos perceber que ainda hoje a creche cuida das crianças em sua grande maioria carentes, que as mães trabalham e não tem onde deixar seus filhos. Até o presente momento da pesquisa, podemos constatar que as creches cuidam das crianças para as mães trabalharem; crianças carentes e que o educar ainda '' está muito tímido''. Contudo a formação destes profissionais ainda não está de acordo com a legislação. E muitas que formam não conseguem por a teoria que aprenderam em prática. Segundo Cerisara 119 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade Federal de Alfenas – UNIFAL/MG – 2010 (2002), a formação do professor das series iniciais deveria ser diferente do professor de Educação Infantil, pois esta área possui especificidades. Referências CERISARA, Ana Beatriz. Professoras de educação infantil: entre o feminino e o profissional. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002. Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LEI 9394/96, 20 de dezembro de 1996. KUHLMANN JUNIOR, Moysés. Educando a infância brasileira. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive (orgs). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 469-96. KUHLMANN JUNIOR, Moysés. Instituições Pré-Escolares Assistência no Brasil (1899- 1922). Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 78, p. 17-26, 1991. NUNES, Maria Fernanda Rezende. 2009. Educação Infantil: instituições, funções e propostas. In: Corsino, Patrícia (org). Educação Infantil: cotidiano e políticas. Campinas: Autores Associados, p.33-37. SILVA, I. de O. A creche e suas Profissionais: processo de construção de identidades. Em Aberto, Brasília, v. 18, n. 73, p. 112- 119, 2001. Vanusa Correa Lourenço é estudante de de Pedagogia da Universidade Federal de Alfenas/MG – UNIFAL/MG e bolsista do PIBIC/FAPEMIG sob orientação da Prof.ª Dr.ª Fabiana de Oliveira – ICHL/UNIFAL-MG. Retornar ao sumário 120 Anais do VII Seminário sobre Leitura e Produção no Ensino Superior Seção II: Trabalhos completos Universidade