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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM ESTER CAVALCANTI DA SILVA ARAÚJO A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE LEITOR EM MEMÓRIAS DE LEITURA NATAL – RN 2013 ESTER CAVALCANTI DA SILVA ARAÚJO A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE LEITOR EM MEMÓRIAS DE LEITURA Orientadora: Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves. NATAL – RN 2013 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Linguística Aplicada. Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). Araújo, Ester Cavalcanti da Silva. A construção da imagem de leitor em memórias de leitura / Ester Cavalcanti da Silva Araújo. – 2013. 000 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Letras. Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem, 2013. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria da Penha Casado Alves. 1. Leitura. 2. Professores. 3. Educação permanente. I. Alves, Maria da Penha Casado. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BSE-CCHLA CDU 028 ESTER CAVALCANTI DA SILVA ARAÚJO A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DE LEITOR EM MEMÓRIAS DE LEITURA Aprovada em ____ de ________ de 2013 BANCA EXAMINADORA ________________________________________________________ Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves (Orientadora) Universidade Federal do Rio Grande do Norte __________________________________________________________ Profa. Dra. Araceli Sobreira Benevides (Examinador Externo) Universidade do Estado do Rio Grande do Norte ___________________________________________________________ Profa. Dra. Tatyana Mabel Nobre Barbosa (Examinador Interno) Universidade Federal do Rio Grande do Norte Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de concentração: Linguística Aplicada. O que vejo predominantemente no outro em mim mesmo só o outro vê (BAKHTIN, 2003, 2010b). À minha mãe e ao meu pai (in memorian), amores preciosos. À minha eterna princesa, minha filha, e ao meu amado esposo, participantes e incentivadores da minha caminhada da vida. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, por ter me dado força e coragem nesses dois últimos anos para seguir adiante, mesmo com todas as agruras da vida. Durante esse período, pensei muitas vezes que não conseguiria concluir este trabalho, pois no período de escrita perdi uma das pessoas que mais amo nesta vida, meu painho Damião Amaro da Silva, e sem ele a caminhada da vida se tornou mais dura, mais difícil. Agradeço à minha amada mãe, Vastir Cavalcanti da Silva, pelo amor, pelo consolo, pelos ensinamentos da vida e por ser minha amiga. Ao meu amado esposo, Renato Samuel Barbosa de Araújo, meu amigo de todas as horas, que tem me ajudado com muito amor, carinho e paciência a seguir nessa jornada da vida, pelo seu companheirismo, incentivo, orientações e apoio. Sem a sua colaboração, eu não teria chegado até aqui. À minha princesa, Renata Sophia Cavalcanti Araújo, pelo amor, carinho e por ser uma filha maravilhosa. Foi por sua causa que cheguei até aqui. Quando olho para você, vejo a mão de Deus, vejo um milagre da vida, e isso me motiva a prosseguir, a lutar por dias melhores. Aos meus familiares que direta ou indiretamente contribuíram nessa caminhada: Danielle Cavalcanti da Silva Borja, Marizinha Alves de Souza e tia Neide Cavalcanti, principalmente. Aos meus irmãos, Neide Cavalcanti da Silva Santos, Daniel Cavalcanti da Silva e Dário Cavalcanti da Silva. Aos meus amigos, Danielle de Paula, Janaína Moreno, Breno, Willame Sales, Fernanda Moura, Carmela, RhenaRaize, KássiaKamila Moura, Renata Moraes, Angélica Albuquerque, Rosa e Japonaíra, pelo apoio, incentivo, colaboração, ombro amigo, amor e carinho. À professora Maria da Penha Casado Alves, que tem me encaminhado para o mundo da pesquisa científica desde a graduação. Com ela, aprendi sobre pesquisa, teorias e, também, sobre a vida, com as suas atitudes de extrema humanidade e respeito pelo outro. Agradeço por sua paciência, por sua palavra amiga e por sua generosidade. Às professoras Tatyana Mabel Nobre Barbosa e Araceli Sobreira Benevides por aceitarem a participar da banca examinadora e por contribuírem com as suas considerações a respeito da dissertação. Às professoras Tatyana Mabel Nobre Barbosa eClaudianny Amorim Noronha, coordenadoras institucionais do projeto “Leitura/escrita: recortes inter e multidisciplinares no ensino da matemática e da língua portuguesa”� (Capes/OBEDUC – PPGED/PPGEL/PPGECNM – DPEC/DLET/DMAT) –, pela oportunidade de participar deste projeto. RESUMO Neste trabalho, analisamos as “memórias de leitura” de professores de língua materna, produzidas em contexto de formação continuada. Tivemos como objetivo compreender o modo como cada sujeito construiu a sua imagem de leitor. Nossa abordagem teórica sobre a construção da imagem de si foi fundamentada na concepção de ethos discursivo, percebendo-o com Charaudeau (2006) como algo construído no entrecruzamento de olhares (de si e do outro). Para compreender o modo como cada professor construiu a sua imagem de leitor nesse entrecruzamento de olhares (de si e do outro), baseamo-nos nas contribuições de Bakhtin (2003, 2010b) sobre o olhar exotópico ou o olhar distanciado/olhar externo. Portanto, na análise, procuramos flagrar o olhar exotópico dos professores sobre si, nas várias fases da sua formação de leitor, e, a partir do nosso olhar exotópico de pesquisadora, demos um acabamento provisório na imagem de leitor que os professores construíram de si. Para a análise, adotamos outros pressupostos teóricos, quais sejam: sobre gêneros discursivos, tema, composição e estilo, enunciado e vozes sociais, baseamos-nos em Bakhtin (1997, 2003, 2010a, 2010b); sobre a noção de ethos discursivo nos ancoramos nos estudos realizados por Maingueneau (2008a, 2008b); sobre a leitura, adotamos os referenciais teóricos de Rojo (2005, 2008, 2009a, 2009b, 2009c, 2009d), Garcez (2002), Freire (2008) e Silva Neto (2007). Pelo fato de o gênero discursivo “memórias de leitura” fazer remissão à temática memória e estar relacionado ao contexto de formação de professores, respaldamo-nos teoricamente em Aragão (1992) e Nóvoa (2007). Situada na área da Linguística Aplicada, a pesquisa se alinha à abordagem qualitativo-interpretativista de base sócio-histórica. Por fim, a partir da análise do corpus, dos dados que emergiram dos enunciados, concluímos afirmando que os leitores construíram imagens de si de leitores ativos, de leituras valorizadas e desvalorizadas pela cultura oficial. Palavras-chave: Leitura. Gêneros discursivos. Ethos discursivo.ABSTRACT In this work, we analyzed reading memories of mother language teachers in continuing education context. Our objective was to understand how each individual has built his/her reader image. Our theoretical approach to the construction of self- image was based on the concept of discursive ethos, understanding it with Charaudeau (2006) as something constructed in the intersection of glances (of the self and the other). To understand how each teacher has built his/her reader image in that intertwining of glances (of the self and the other) we are on the contributions of Bakhtin (2003, 2010b) on exotopic glance or distant/external glance. Therefore, in the analysis, we tried to capture the exotopic glance of the teachers about themselves in the various stages of their reader formation and from our exotopic look of researcher; we gave provisional finish of the reader image that teachers built of themselves. For the analysis, we adopted other theoretical assumptions: about genres, theme, composition and style, statement and social voices we based on Bakhtin (1997, 2003, 2010a, 2010b); on the notion of the discursive ethos we anchored in studies conducted by Maingueneau (2008a, 2008b); about reading, we adopted the theoretical references of Rojo (2005, 2008, 2009a, 2009b, 2009c, 2009d), Garcez (2002), Freire (2008) and Silva Neto (2007). For the discursive genre reading memories makes reference to the theme memory as well as is related to the context of teacher training, the study was supported in Aragão (1992) and Nóvoa's (2007) theory. Situated in the area of Applied Linguistics, the research aligns with qualitative-interpretative approach of socio-historical basis. Finally, from the analysis of the corpus, data that emerged from the findings, we conclude by stating that readers have created images of themselves as active readers, readers interested in both readings, the ones respected and the ones unappreciated by the official culture. Keywords: Reading. Discursive genres. Discursive ethos. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................... 11 1.1 JUSTIFICATIVA ......................................................................................... 16 1.2 QUESTÕES DE PESQUISA ...................................................................... 17 1.3 OBJETIVOS ............................................................................................... 17 1.3.1 Objetivo geral.................................................................................................. 17 1.3.2 Objetivos específicos ..................................................................................... 18 1.4 ESTRUTURA DO TRABALHO .................................................................. 18 2 ESTADO DA ARTE....................................................................................... 19 3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .................................................................... 22 3.1 GÊNEROS DISCURSIVOS ....................................................................... 23 3.2 O TEMA, A COMPOSIÇÃO E O ESTILO DOS GÊNEROS DISCURSIVOS25 3.3 O ENUNCIADO CONCRETO: A UNIDADE REAL DA COMUNICAÇÃO DISCURSIVA ................................................................................................... 31 3.4 AS VOZES SOCIAIS E AS RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE ELAS ...... 37 3.5 O OLHAR EXOTÓPICO: O OLHAR EXTERNO/DISTANCIADO ............... 43 3.6 O CONCEITO DE ETHOS DE ARISTÓTELES E O CONCEITO DE ETHOS DISCURSIVO DE DOMINIQUE MAINGUENEAU: DA PERSPECTIVA DA PERSUASÃO À DA ADESÃO DOS SUJEITOS A UM CERTO DISCURSO ... 46 3.7 A LEITURA EM PERSPECTIVA DIALÓGICA ............................................ 51 4 O CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO DO GÊNERO DISCURSIVO “MEMÓRIAS DE LEITURA” .................................................................................................. 64 5 METODOLOGIA ........................................................................................ 71 5.1 SOBRE O CORPUS .................................................................................. 75 5.2 PERFIL DOS SUJEITOS-COLABORADORES DA PESQUISA ................ 76 5.3 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE ............................................................. 76 5.4 CRITÉRIOS UTILIZADOS PARA A SELEÇÃO DO CORPUS ................... 77 6 ANÁLISE DOS DADOS: A CONSTRUÇÃO ARQUITETÔNICA DAS “MEMÓRIAS DE LEITURA” ............................................................................ 78 6.1 O TEMA, O ESTILO E A COMPOSIÇÃO DOS ENUNCIADOS ................. 78 6.1.1 O tema dos enunciados ................................................................................. 78 6.1.2 O estilo nos enunciados ................................................................................ 86 6.1.3 A composição dos enunciados ..................................................................... 94 6.2 AS VOZES SOCIAIS SOBRE LEITURA QUE EMERGIRAM DAS “MEMÓRIAS DE LEITURA” ................................................................................................... 98 6.2.1 As vozes sociais sobre leitura que emergiram do enunciado 1................. 98 6.2.2 As vozes sociais sobre leitura que emergiram do enunciado 2............... 104 6.2.3 As vozes sociais sobre leitura que emergiram do enunciado 3............... 112 6.3 Os ethe de leitor construídos nas “memórias de leitura” .......................... 117 6.3.1 Os ethe de leitor construídos no enunciado 1 ........................................... 118 6.3.2 Os ethe de leitor construídos no enunciado 2 ........................................... 124 6.3.3 Os ethe de leitor construídos no enunciado 3 ........................................... 127 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 133 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 136 ANEXOS ........................................................................................................ 141 11 1 INTRODUÇÃO O nosso interesse pelo estudo do gênero discursivo “memórias de leitura” ocorreu, inicialmente, na nossa formação inicial, no curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Iniciamos o estudo de tal gênero discursivo no período em que participamos como monitora da disciplina “Leitura e produção de textos I”. Uma das nossas atribuições, nessa função, era a de publicar artigos em eventos científicos. A escolha por esse gênero discursivo para construir os artigos científicos foi feita por meio da sugestão da nossa orientadora de monitoria, Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves. Ela possuía um acervo documental composto pelo gênero discursivo “memórias de leitura”, que foi produzido por uma turma de alunos de um curso de formação continuada, na UFRN. Nos artigos que produzimos nesse período, direcionamos o nosso olhar para a temática “leitura” – já bastante discutida, mas ainda com muitas lacunas a serem preenchidas –, o que suscitou em nós inquietações diversas, como, por exemplo, com relação ao discurso propagado por alguns grupos da sociedade sobre a “crise da leitura” no Brasil, os quais afirmam que o “brasileiro não lê”. Entendemos que esses discursos estão atrelados diretamente a algumas falas de determinados segmentos da sociedade, que ressoam ao longo do tempo e que têm como consequência um ensino de leitura e escrita preconceituoso, segregador, de exclusão social. Em relação à discussão sobre a “crise da leitura”, Abreu (2003, p. 42) afirma: Pensa-se que o bom leitor é um devorador ávido de alta literatura, é alguém que transita com facilidade pela produção intelectual de ponta, que tem os livros como elemento fundamentalde sua concepção de mundo. Quem partilha dessa imagem de leitor não se animará muito com casas cheias de cartilhas e livros didáticos, com multidões de leitores de Bíblia na mão. É com base na perspectiva de leitor de “livros que formam a tradição erudita nacional e internacional” (ROJO, 2009d, p. 50), leitura privilegiada pela escola, que 12 diversos programas/sistemas de avaliação, possivelmente, concluem que os alunos avaliados não leem, a partir do que diversos segmentos da sociedade constroem o discurso da “crise da leitura” no Brasil. A realidade da leitura no Brasil é outra, conforme mostra a autora. A leitura no cotidiano de muitos brasileiros é composta por textos privilegiados ou não pela escola e pela sociedade, porém, os programas/sistemas de avaliação parecem esperar que haja somente uma prática da leitura privilegiada pela escola e pela sociedade. Sobre o discurso de que “o brasileiro não lê”, Marucci (2009, p. 184), em sua pesquisa de doutorado, mostra de quais lugares ele provém: Mas quais seriam os processos de produção que suportam os discursos de que “o brasileiro não lê”? Esta pesquisa relacionou alguns discursos que sustentam esses processos de produção, como o discurso sobre o brasileiro, o discurso neoliberal, o discurso da escolarização e o discurso jurídico. Cada um desses lugares de produção de sentido afeta o que se diz sobre a leitura no Brasil. Destacamos, assim, um desses lugares de produção de sentido: o discurso neoliberal, que foi por um longo tempo ─ e atualmente ainda ressoam suas ações ─ um forte propagador da exclusão social, apontando a leitura de livros como único meio, único instrumento para definir um sujeito leitor. Conforme concluiu Marucci (2009, p. 182) em sua pesquisa, Na região de sentidos em que se inscreve a leitura, o discurso neoliberal ocupa seu lugar, representado pelo mercado de livros, que, por um lado, colabora para a leitura, ao apoiar projetos e programas de incentivo, por outro, leva sua parte dos lucros quando consegue elevar o número de “consumidores de livros”, ou promover “mega-feiras-bienais do livro” de dois em dois anos. Portanto, o sistema político neoliberal, representado pelo mercado de livros, é um forte propagador do falso discurso de que o “brasileiro não lê”, utilizando-o para garantir o seu lucro. O sistema político citado faz uso de projetos e programas para promover o incentivo à leitura (de livros), no entanto, o seu único objetivo é o de 13 lucrar com a venda de livros. É a partir do segmento político que o restante dos grupos sociais, como, por exemplo, as escolas ─ que são controlados pelo segmento político ─, (re)criam e colocam em prática seus discursos, entre eles, o de que “o brasileiro não lê”. Algumas ações têm sido promovidas a partir de teorias que pesquisadores da área da linguagem utilizam para ampliar o conceito de leitura e de leitor, as quais têm o objetivo de democratizar a leitura, indo de encontro ao conceito de alfabetização. Dentre elas, Marucci (2009, p. 184-185) apresenta a seguinte: [...] apesar da crença em que o brasileiro não é leitor, outras formas de conceber o ato de ler ganharam espaço. As correntes de prática de inserção às letras, que têm sido chamadas Letramento, a nosso ver, configuram um acontecimento discursivo, já que trazem uma outra maneira de conceber a leitura, que promove a ampliação dessa prática, no sentido de democratizá-la e de valorizar diversos materiais de leitura. O Letramento constitui uma ruptura com o mesmo, e convive com a tradição de se alfabetizar, na qual se inscreve a afirmação de que “ler é decodificar sinais gráficos”. Portanto, o Letramento1, contrário aos programas de alfabetização ─ que têm como objetivo a decodificação de sinais gráficos e que possuem, historicamente, o livro como objeto para a decodificação ─, pretende democratizar a escrita e a leitura, valorizando, para tanto, diversos materiais de leitura, além do livro. Mafra (2003, p. 1), em um estudo sobre as práticas de leituras não escolarizadas (romances de banca, animes, textos de autoajuda etc.), afirma: Em “Literatura, dentro, fora e à revelia da escola” (MAFRA, 2003), o então professor de Língua Portuguesa de ensino fundamental e médio de Minas e do Estado do Rio detectava, não obstante, o desinteresse dos alunos pelos textos escolares tradicionais, a presença nas conversas e mochilas daqueles alunos – tidos como mal ou não leitores – de práticas de leitura desprezadas e/ou rechaçadas pela escola, na forma de literatura de massa: best- sellers, romances de banca etc. 1 Compreendemos a importância dos estudos do Letramento, porém, neste trabalho, não iremos entrar em detalhes sobre a teoria. Para mais detalhes, conferir Rojo (2009c). 14 Compreendemos que essa realidade é comum em todos os estados do Brasil. Talvez isso ocorra porque os alunos não conseguem ver uma relação entre os textos escolares tradicionais e a sua realidade social, com as suas práticas de leitura e escrita do cotidiano. Ademais, no dia a dia, fora da escola, estão imersos em práticas de leitura desprezadas por ela, como, por exemplo: best-sellers, romances de banca, revistas etc. Assim, entendemos que os alunos leem, sim, só não o que as instituições escolares esperam que eles leiam. Sobre a leitura no espaço escolar, Marucci (2009, p. 185) afirma que [...] o discurso da escolarização, muitas vezes, enforma a atividade de leitura, reduzindo-a ao espaço escolar e afastando-a de se tornar prática cultural naturalizada. A escola sustenta que somente algumas obras devem ser lidas por seu valor “inconteste”. Enquanto rejeitar a participação da cultura de leitura provinda da comunidade escolar o distanciamento entre o brasileiro e a leitura permanecerá. O problema do privilégio da leitura de textos literários valorizados pela cultura oficial dentro do espaço escolar, relacionado ao ensino da gramática normativa, é um ponto fundamental para compreendermos as prováveis causas de insucesso escolar no Brasil ─ no que se refere à leitura e à escrita de textos ─, pois o texto literário valorizado pela cultura oficial é, frequentemente, utilizado na escola como um meio para o ensino das normas gramaticais da variedade da língua padrão, da norma culta; o texto literário valorizado pela cultura oficial é considerado pela escola como modelo de escrita, em detrimento de uma enorme variedade de textos que circulam na sociedade e que também são importantes para a formação do aluno, para que ele possa agir na sociedade. Ademais, entendemos que é importante a escola levar em consideração a leitura para além dos muros escolares, das salas de aula, não se restringindo às obras valorizadas pela cultura oficial, de livros literários, pois os alunos são sujeitos sociais que têm as suas singularidades, seus gostos de leitura e necessidades que devem ser respeitados para que o discurso de que os “brasileiros não leem” ─ livros valorizados pela cultura oficial ─ não exerça mais influência na definição de projetos/programas de leitura e, consequentemente, em resultados estatísticos (negativos) da educação brasileira, no que concerne à leitura. 15 Rojo (2009a), em um estudo sobre as prováveis causas do insucesso escolar no Brasil no século XXI, utilizou dados que mostram as capacidades de leitura, escrita e letramentos escolares dos alunos brasileiros avaliados em exames, entre eles, PISA, ENEM e SAEB. Concluiu, então, que os resultados são negativos, que configuram, em geral, problemas e que isso vem demonstrar que a escola ─ tanto pública como privada, neste caso ─ parece estar ensinando mais regras, normas e obediência a padrões linguísticos que o uso flexível e relacional de conceitos, a interpretação crítica e posicionadasobre fatos e opiniões, a capacidade de defender posições e de protagonizar soluções, apesar de a “nova” LDB já ter doze anos (ROJO, 2009a, p. 33). Em pleno século XXI, é frustrante ver que o ensino de leitura e escrita é pautado prioritariamente (ou unicamente) em regras, normas e obediência a padrões linguísticos. Enquanto isso, na vida cotidiana, as práticas sociais exigem dos alunos, sujeitos-cidadãos, capacidades e competências para além das normas linguísticas bem como posicionamentos, opiniões e soluções sobre fatos concretos, os quais a escola e as instituições de ensino superior estão, por motivos diversos, sonegando. Rojo (2009a, p. 35-36), ainda, faz uma reflexão a respeito da ineficácia das práticas didáticas: Para além de nossa experiência cotidiana das salas de aula e da impressão de desinteresse, desânimo e resistência dos alunos das camadas populares em relação a propostas de ensino e letramento oferecidas pelas práticas escolares, resultados concretos e mensuráveis como esses configuram um quadro de ineficácia das práticas didáticas que nos leva a perguntar: como alunos de relativamente longa duração de escolaridade puderam desenvolver capacidades leitoras tão limitadas? A que práticas de leitura e propostas de letramento estiveram submetidos por cerca de dez anos? A que textos e gêneros tiveram acesso? Trata-se de ineficácia das propostas? De desinteresse e enfado dos alunos? De ambos? Que fazer para constituir letramentos mais compatíveis com a cidadania protagonista? 16 Nesse fragmento, a autora mostra que o desinteresse, o desânimo e a resistência dos alunos das camadas populares estão relacionados às propostas de ensino e letramento oferecidas pelas práticas escolares, propostas estas que estão desvinculadas das suas necessidades cotidianas, da sua realidade social. Por fim, Rojo (2009a) questiona aspectos importantes acerca da prática de leitura em sala de aula, os quais dizem respeito a uma realidade atual e comum, em todo o território brasileiro, sobre a qual todo docente de língua materna deveria refletir. Portanto, neste trabalho, tentamos amenizar as nossas inquietações relacionadas às práticas de ensino-aprendizagem de leitura por meio de um determinado grupo de sujeitos, em um determinado espaço e em um determinado tempo. Por fim, em concordância com Benevides (2005), afirmamos que [...] pretendemos olhar as práticas de leitura dos/as alunos/as, numa perspectiva despida de preconceitos e de uma postura elitista, que só entende a leitura a partir de textos pré-selecionados ou escolhidos como clássicos ou modelos. Com isso, procuramos as práticas silenciadas, ocultadas ou pertencentes ao senso comum. É com esse olhar que pretendemos nos posicionar no tocante às práticas de leitura dos/as alunos/as neste trabalho. 1.1 JUSTIFICATIVA O gênero discursivo que selecionamos para a pesquisa foi “memórias de leitura”, que tem sido uma fonte para a investigação de aspectos relacionados à leitura de discentes e sobre questões discursivas diversas. Optamos pelas “memórias de leitura” porque compreendemos que estas se constituem como um meio eficaz de os docentes refletirem a respeito das suas práticas de sala de aula. Ademais, o momento atual de mudanças ─ sociais, econômicas, tecnológicas, no comportamento dos discentes, nos gostos dos discentes bem como na exigência de um sujeito mais ativo na sociedade ─ requer um docente atualizado com as novas teorias que balizam a sua prática educacional, 17 e esse gênero pode propiciar a ele uma reflexão e possíveis mudanças em sua prática de sala de aula. Já em relação ao estudo do ethos discursivo, neste trabalho, consideramos como relevante, pois os ethe2 discursivos que emergiram podem proporcionar aos docentes ─ possíveis leitores desta pesquisa ─ uma reflexão sobre a sua prática de formação de leitores e sobre a sua própria formação de leitor, percebendo que existem variados leitores e, inclusive, que eles se encaixam em um ou mais dos ethe discursivos de leitor que emergiram na análise, o que proporciona uma reflexão sobre a sua prática de ensino de leitura. Portanto, com este trabalho, pretendemos contribuir com reflexões teóricas a respeito da leitura, do gênero discursivo “memórias de leitura” e, também, do ethos discursivo. 1.2 QUESTÕES DE PESQUISA Como foram construídas as “memórias de leitura” nos aspectos composicionais, temáticos e estilísticos? Que vozes sociais emergiram no processo de escrita sobre suas experiências de leitura? Que marcas linguístico-discursivas foram mobilizadas na escrita sobre o percurso de leitura para a construção do ethos discursivo de leitor? 1.3 OBJETIVOS 1.3.1 Objetivo geral Compreender o modo como cada sujeito construiu a sua imagem de leitor nas “memórias de leitura” produzidas no “Curso de Especialização em Língua 2 Termo referente ao plural de ethos. 18 Portuguesa: Leitura, Produção de Textos e Gramática”, da UFRN, realizado no ano de 2007. 1.3.2 Objetivos específicos Delinear os aspectos composicionais, temáticos e estilísticos do gênero discursivo “memórias de leitura”. Identificar as vozes sociais que se relacionam para a formação de leitor. Explicitar, com base nas marcas linguístico-discursivas, o modo como cada sujeito construiu a sua imagem de leitor. 1.4 ESTRUTURA DO TRABALHO Este trabalho encontra-se organizado em sete capítulos. A introdução apresenta algumas questões referentes ao ensino de língua materna, especificamente ao ensino de leitura. Está dividida em três seções: a justificativa da escolha das “memórias de leitura” para a realização da pesquisa, as questões de pesquisa e os objetivos da pesquisa. O capítulo 2 apresenta o estado da arte dos temas “memórias de leitura”, que foi o enunciado que selecionamos para esta pesquisa, e ethos discursivo. O capítulo 3 expõe a fundamentação teórica que serviu de base para o diálogo na análise. Está dividido em sete seções: gêneros discursivos; o tema, a composição e o estilo dos gêneros discursivos; o enunciado concreto: a unidade real da comunicação discursiva; as vozes sociais e as relações dialógicas entre elas; o olhar exotópico: o olhar externo/distanciado; o conceito de ethos de Aristóteles e o conceito de ethos de Dominique Maingueneau: da perspectiva da persuasão à da adesão dos sujeitos a um certo discurso, que fizemos uma relação com o conceito de exotopia; e a leitura em perspectiva dialógica. O capítulo 4 destaca o contexto sócio-histórico do gênero discursivo “memórias de leitura”. 19 O capítulo 5 traz a metodologia da pesquisa. Está dividido em quatro seções: sobre o corpus; perfil dos sujeitos colaboradores da pesquisa; procedimentos de análise; e critérios utilizados para a seleção do corpus. O capítulo 6 apresenta a análise realizada, em que as questões de pesquisa foram integralmente, embora provisoriamente, respondidas. O capítulo 7 conclui a dissertação, mostrando a reflexão sobre o ensino- aprendizagem de língua materna e destacando a formação de leitura a partir da compreensão das categorias que emergiram dos enunciados dos leitores. Afirmamos, assim, que essa organização do trabalho foi construída mediante muitas leituras, escritas, reescritas e apagamentos necessários para alcançarmos o objetivo deste trabalho, o qual, provisoriamente, foi bem-sucedido. 2 ESTADO DA ARTE 20 Docentes da graduação e da pós-graduação, de áreas diversas do conhecimento, têm adotado alguns gêneros discursivos na sua prática de ensino em sala de aula, com fins variados, como memória, autobiografia, história de vida, memorial, entre outros. É notório, dentre eles,o uso de memoriais de leitura ou, com outra nomenclatura, de “memórias de leitura”. Tais trabalhos têm suscitado interesse em pesquisadores das mais diversas áreas e bases teórico-metodológicas. Embora não trate do gênero discursivo “memórias de leitura”, destacamos inicialmente um dos estudos pioneiros no Brasil com base na temática memória, que desencadeou uma série de outras pesquisas sobre gêneros discursivos diversos, realizado por Bosi (1994) e intitulado Memória e sociedade: lembranças de velhos. A seguir, iremos apresentar alguns trabalhos que versam sobre “memórias de leitura”. Benevides (2008) realizou um estudo utilizando o gênero discursivo memorial de leitura, em 2002, com uma turma de formação inicial do 6º período do curso de Letras da UERN. O trabalho tinha o objetivo de analisar os memoriais, observando o percurso de leitura dos alunos e refletindo sobre o modo como esses sujeitos se tornaram leitores. Constatamos que tal estudo teve a finalidade de “[...] conhecer o que é dito sobre essas leituras e como são experenciadas para perceber quais os caminhos que o/a professor/a-formador/a pode tomar para a preparação de uma prática reflexiva da atividade de ler [...]” (BENEVIDES, 2008, p. 90). A autora defende que esses futuros docentes deveriam ter uma formação de leituras diversas, podendo “ler para compreender, refletir, assumir novas posturas; ler para dialogar, ensinar, encenar, recitar, rememorar; ler para ensinar a ler, provocar, resistir, etc.” (BENEVIDES, 2008, p. 101). Outro estudo a respeito do gênero discursivo “memórias de leitura” foi realizado por Barreiros (2007), com duas turmas do 1º e 4º anos da UNIOESTE, em Cascavel/PR. Os dados analisados foram coletados por meio de depoimentos sobre práticas e preferências de leitura no curso de Letras, em 2007, no início do ano letivo. Para analisar as memórias, a pesquisadora utilizou os pressupostos teóricos da Análise do Discurso (AD). De acordo com ela, esse procedimento vem sendo realizado no primeiro ano do curso de Letras há dois anos com o objetivo de compreender se as 21 representações e memórias de leitura trazidas pelos acadêmicos para o primeiro ano do curso de Letras interferem (ou não) no processo de formação em leitura no curso superior. Para o quarto ano, nossos objetivos estão voltados, especialmente, para as referências sobre o papel da universidade – Curso de Letras – na formação do leitor/docente (BARREIROS, 2007, p. 1). Nesse estudo, a autora buscou relacionar a prática de leitura dos acadêmicos antes do ingresso na universidade, durante o processo de formação, verificando se essas leituras anteriores interferiam, ou não, na prática da leitura no curso superior, e no quarto ano da turma, refletindo sobre o papel da universidade na formação desses alunos. Um terceiro estudo sobre “memórias de leitura” foi desenvolvido por um grupo de pesquisadoras da área de Educação, juntamente com pesquisadores da área de Linguística Aplicada: Ana Lúcia Guedes Pinto, Geisa Genaro Gomes e Leila Cristina Borges (2008), que integram um projeto de pesquisa denominado “Formação do professor: processos de retextualização e práticas de letramento”. A pesquisa foi realizada com estudantes de Pedagogia e tinha como objetivo refletir sobre seus percursos como sujeitos leitores. Segundo os autores, “a metodologia segue os pressupostos da História Oral e dos estudos das ciências da linguagem” (GUEDES- PINTO; BORGES; GOMES, 2008, p. 74). Em relação aos estudos sobre ethos discursivo, destacamos um livro que tem como título Ethos discursivo, organizado pelas pesquisadoras Motta e Salgado (2008). Essa obra apresenta vários trabalhos, de autores diferentes, com reflexões diversas, embora todos tratem do ethos discursivo. Nos estudos a respeito do ethos discursivo, também verificamos o artigo de Trouche (2010), que faz uma correlação com o gênero discursivo carta do leitor. Segundo a autora, esse trabalho tem como objetivo abordar o ethos discursivo sob o ponto de vista da encenação discursiva no gênero carta de leitor, seguindo os pressupostos teóricos de Charaudeau (2006), com apoio nos princípios da linguística da enunciação de Koch (2012), relacionados às questões de construção do ethos, focalizadas por Maingueneau (2008a). O estudo foi realizado com uma “carta de leitor” do jornal O Globo, publicada na seção fixa “Dos leitores”. Outro trabalho que pesquisamos sobre ethos discursivo foi uma dissertação em que o autor (CRISTÓVÃO, 2010) teve como objetivo observar práticas 22 identitárias de professores de espanhol a partir de uma abordagem discursiva, fundamentada pela noção de ethos discursivo baseada nos estudos de Maingueneau. Na pesquisa, é proposta uma perspectiva de análise que relaciona conceitos da Análise do Discurso de linha francesa (AD) e dos Estudos Culturais, o que dá ao trabalho um caráter interdisciplinar. Por último, fazemos referência a um estudo que Maingueneau (2010, p. 47) realizou acerca do ethos discursivo, correlacionando-o a sites de relacionamento. Nesse trabalho, o autor analisou como as pessoas que participam desses sites faziam a apresentação de si, afirmando que o ethos se manifesta em quatro planos: 1) “através do pseudônimo que cada anunciante deve adotar”; 2) “como ethos dito: o anunciante pode, de fato, dar informações sobre si mesmo que contribuirão para ativar o seu ethos não discursivo”; 3) “como o ethos propriamente discursivo, mostrado, é construído pelo destinatário a partir de índices que são dados pela enunciação” e; 4) “como o ethos é construído a partir da ou das fotos do anunciante”. No decorrer da pesquisa, ao formularmos o estado da arte, percebemos trabalhos bastante expressivos voltados para as temáticas “memórias de leitura” e “ethos discursivo”, os quais podem contribuir para a reflexão tanto do percurso de leitor, questões relacionadas à leitura, quanto para compreendermos o processo de construção da imagem de si. 3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 23 Para a realização deste trabalho, recorremos aos referenciais teóricos de gêneros discursivos, enunciado, vozes sociais e olhar exotópico, baseados em Bakhtin (1997, 2003, 2010a, 2010b); para a concepção de leitura nos voltamos aos estudos de Garcez (2002), Freire (2008) e Rojo (2009a), que compartilham da visão de que a leitura vai além da decodificação; para a leitura em sala de aula, adotamos a visão, principalmente, de Silva Neto (2007), que defende uma leitura de textos variados em sala de aula. Na formulação teórica de “memórias de leitura”, respaldamo-nos em Aragão (1992), que faz um estudo histórico sobre as memórias, e Nóvoa (2007), que trata de dispositivos que procuram rememorar as práticas dos professores através de várias estratégias (narrativas orais, relatos escritos etc.). Além dos referenciais teóricos citados, adotamos outros que foram basilares para atingirmos os nossos objetivos nesta pesquisa, quais sejam: a noção de ethos discursivo apresentada por Maingueneau (2008a, 2008b) e Charaudeau (2006) e as formulações teóricas de Bakhtin (2003, 2010b) sobre o olhar exotópico. Por fim, afirmamos que compreendemos ethos discursivo, concordando com Charaudeau (2006), como algo construído no cruzamento de olhares e, para ampliar essa visão, utilizamos as postulações feitas por Bakhtin (2003, 2010b) sobre o olhar exotópico ou o olhar distanciado. 3.1 GÊNEROS DISCURSIVOS O filósofo russo Mikhail Bakhtin (2003, 2010b), ao refletir sobre a linguagem e seu uso, renovou o conceito de gêneros do discurso, trazendo novos direcionamentos para os estudos linguístico-discursivos. Estudavam-se antes os gêneros literários, os gêneros retóricos (jurídicos, políticos) e os gêneros discursivos do cotidiano (principalmente as réplicas do diálogo cotidiano). Porém, osgêneros literários eram analisados, desde a Antiguidade, de acordo com Bakhtin (2010b, p. 263), sob a perspectiva artístico-literária e não como “determinados tipos de enunciados, que são diferentes de outros tipos mas têm com estes uma natureza verbal (linguística) comum”. Ele afirma que os gêneros retóricos, também desde a Antiguidade, tinham uma relação com a natureza verbal desses gêneros enquanto enunciados, que levava em consideração o ouvinte e sua influência sobre o 24 enunciado. Os gêneros discursivos do cotidiano eram estudados sob a perspectiva da linguística geral, como um diálogo simples, sem considerar os autores dos enunciados, seus posicionamentos axiológicos, ideológicos, o papel ativo do outro no processo de comunicação discursiva, entre outros aspectos contemplados nos enunciados pelo filósofo russo. O autor russo, ao construir a sua teoria sobre os gêneros do discurso, explica: Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana [...]. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2010b, p. 262, grifos do autor). Na sua teoria, a linguagem tem um papel fundamental. Ele inicia esse fragmento relacionando o uso da linguagem aos diversos campos da atividade humana, até apresentar o conceito de gêneros do discurso. Ressalta que os três elementos do enunciado, “o conteúdo temático”, “o estilo” e “a construção composicional”, estão diretamente e na mesma proporção ligados ao enunciado e são determinados pela especificidade de cada campo da comunicação. Conclui conceituando o que são os gêneros do discurso: “tipos relativamente estáveis de enunciados”. Sobre a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso, o autor afirma: [...] são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo. Cabe salientar em especial a extrema 25 heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos) [...]. (BAKHTIN, 2010b, p. 262). Portanto, compreendemos que os gêneros do discurso são tão variados que não temos como enumerar. Eles crescem em número na medida em que determinados campos da comunicação discursiva se complexificam. O autor mostra, ainda, que os gêneros do discurso são divididos em primário e secundário, apresentando a diferença entre eles: Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc. No processo de formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata (BAKHTIN, 2010b, p. 263). A diferença entre os gêneros do discurso secundários e primários, conforme o autor, é que o primeiro é mais complexo, está ligado a atividades culturais mais complexas, e aparece, geralmente, na modalidade escrita; já o segundo é mais simples, sendo formado “nas condições da comunicação discursiva imediata”. O autor mostra como os gêneros secundários são formados, por exemplo, romances, dramas, pesquisas científicas e os grandes gêneros publicísticos: no processo de convívio cultural mais complexo, como o científico, sociopolítico e artístico ─ “eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários”, ou seja, eles são formados por vários gêneros primários. A seguir, iremos apresentar os três elementos que estão diretamente ligados ao todo do enunciado: o conteúdo temático (o tema), a construção composicional e o estilo. 3.2 O TEMA, A COMPOSIÇÃO E O ESTILO DOS GÊNEROS DISCURSIVOS 26 O tema do enunciado/da enunciação é um termo sujeito a dúvidas, pois muitas vezes se confunde com o tema de uma obra de arte (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010a, p. 133) ou o assunto tratado em um enunciado, por exemplo. Em seus estudos sobre a língua, Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 133) apresentam a definição de tema: Um sentido definido e único, uma significação unitária, é uma propriedade que pertence a cada enunciação como um todo. Vamos chamar o sentido da enunciação completa o seu tema. O tema deve ser único. Caso contrário, não teríamos nenhuma base para definir a enunciação. O tema da enunciação é na verdade, assim como a própria enunciação, individual e não reiterável. A partir dessa definição, podemos compreender que em cada enunciado/enunciação existe um tema que é único, individual, irrepetível, diferentemente do assunto, por exemplo, que pode ser repetido em enunciados/enunciações diferentes. Na sequência, Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 133) mostram como o tema se apresenta: Ele se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação. A enunciação: “Que horas são?” tem um sentido diferente cada vez que é usada e também, consequentemente, na nossa terminologia, um outro tema, que depende da situação histórica concreta (histórica, numa escala microscópica) em que é pronunciada e da qual constitui na verdade um elemento. Compreendemos, então, que o tema é condicionado a uma situação histórica concreta, a um contexto histórico. Por isso, um mesmo enunciado concreto ou uma mesma enunciação completa, pronunciado(a) em momentos diversos, ganha sentidos diferentes e, em consequência, apresenta temas diferentes, pois não temos como concretizar um enunciado/uma enunciação da mesma forma em situações distintas, mesmo que ele(a) seja pronunciado(a) por um mesmo sujeito. O exemplo nos mostra que o tema pode ser depreendido de uma oração, desde que ela se 27 apresente como um enunciado concreto/uma enunciação completa, isto é, seja fruto de uma situação histórica concreta, pronunciada por algum sujeito. Para Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 133-134), [...] o tema da enunciação é determinado não só pelas formas linguísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entoações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação. Se perdermos de vista os elementos da situação, estaremos tampouco aptos a compreender a enunciação como se perdêssemos suas palavras mais importantes. O tema da enunciação é concreto, tão concreto como o instante histórico ao qual ela pertence. Somente a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta, como fenômeno histórico, possui um tema. Isto é o que se entende por tema da enunciação. Nesse excerto, compreendemos que o tema do enunciado concreto/enunciação completa é depreendido não somente por meio das formas linguísticas, mas, também, pelo contexto extraverbal que “[...] compreende o compartilhamentopelos interlocutores do horizonte espaço-temporal, do conhecimento da situação e de avaliações e julgamentos” (GEGE, 2009, p. 99). Ao tratar sobre o tema em conexão com o problema da compreensão, Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 136-137) afirmam que “qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo, deve conter já o germe de uma resposta. Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema [...]”. Em relação ao estilo, Bakhtin (2010b) compreende que o estilo individual é construído a partir de, no mínimo, duas consciências: eu-outro, mesmo que o “outro” seja a consciência do próprio sujeito, como podemos ver no exemplo em que Bakhtin (1997, p. 75) cita a personagem Raskólnikov, a qual trava um diálogo consigo mesma (“o monólogo interior dialogado”), como se conversasse com outra pessoa. Mesmo assim, seu discurso interior está cheio de palavras, enunciados de “outros”, pois o consciente e o discurso interior são formados socialmente pela pluralidade de vozes. Portanto, apesar de o estilo individual ser construído dessa forma, pela alteridade, ele é singular, pois cada sujeito é único, irrepetível. Bakhtin (2010b, p. 265), ao realizar o estudo sobre os gêneros do discurso, trouxe para a discussão a questão do estilo, afirmando, inicialmente: 28 Todo estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso. Todo enunciado ─ oral e escrito, primário e secundário e também em qualquer campo da comunicação discursiva [...] ─ é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter estilo individual. Portanto, para compreender o estudo bakhtiniano acerca de estilo, é necessário o entendimento de que o estilo não se dissocia do gênero do discurso, aquele é um dos componentes deste, em qualquer esfera da comunicação discursiva, no gênero oral ou escrito, ou, ainda, primário ou secundário, podendo ter como característica o posicionamento individual do falante/escrevente. Compreendemos também que o auditório do falante define o seu estilo. Nesse sentido, concordamos com o filósofo russo quando ele afirma que “o mundo interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se constrói suas deduções interiores, suas motivações, apreciações, etc.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010a, p. 117). Porém, não é em todos os gêneros do discurso que o estilo individual se manifesta, conforme o autor chama a atenção: Entretanto, nem todos os gêneros são igualmente propícios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado, ou seja, ao estilo individual. Na imensa maioria dos gêneros discursivos (exceto nos artísticos- literários), o estilo individual não faz parte do plano do enunciado, não serve como um objetivo seu, mas é, por assim dizer, um epifenômeno do enunciado, seu produto complementar (BAKHTIN, 2010b, p. 265). Após informar que nem todo gênero discursivo é propício à emergência do estilo individual, o autor apresenta os gêneros do discurso mais favoráveis a essa ocorrência: Os gêneros mais favoráveis da literatura de ficção: aqui o estilo individual integra diretamente o próprio edifício do enunciado, é um 29 dos seus objetivos principais (contudo, no âmbito da literatura de ficção, os diferentes gêneros são diferentes possibilidades para a expressão da individualidade da linguagem através de diferentes aspectos da individualidade) (BAKHTIN, 2010b, p. 265). Ele declara que os gêneros mais propícios para a presença do estilo individual são os da literatura de ficção, campo de investigação que muito apreciava e utilizou em seus estudos para tratar de questões relacionadas à linguagem, em sua concepção dialógica. Porém, esse traço de individualidade pode ser observado em gêneros discursivos diversos, pois, além de estudos de gêneros discursivos pertencentes ao campo da literatura, Bakhtin contemplou os estudos de outros gêneros do discurso, não literários, que circulam nas variadas esferas da sociedade. A seguir, apresenta os gêneros do discurso menos propícios para a expressão da individualidade da linguagem: As condições menos propícias para o reflexo da individualidade na linguagem estão presentes naqueles gêneros do discurso que requerem uma forma padronizada, por exemplo, em muitas modalidades de documentos oficiais, de ordens militares [...] (BAKHTIN, 2010b, p. 265). Nesses documentos oficiais, o efeito de individualidade é menos propício porque a sua construção composicional, o seu conteúdo temático, geralmente, são fixos, rígidos, não havendo, dessa forma, espaço para marcas de individualidade, diferentemente de outros gêneros do discurso, pertencentes tanto às camadas literárias quanto às camadas não literárias, que não têm uma estrutura fixa, rígida, portanto, são mais propícios à presença das marcas de individualidade. Além do estilo individual, Bakhtin (2010b, p. 266) estudou o estilo funcional, ou seja, o estilo do gênero do discurso de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação, conforme afirma: A relação orgânica e indissolúvel do estilo com o gênero se revela nitidamente também na questão dos estilos de linguagem ou funcionais. No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são 30 outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação. Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determinada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros. Esse estilo é condicionado por alguns fatores, como enfatiza o filósofo: “determinada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo”. Portanto, quando construímos enunciados, os concretizamos por meio de gêneros e, de acordo com os nossos objetivos, utilizamos determinados gêneros, que são próprios de cada campo discursivo. Os gêneros do discurso, de acordo com Bakhtin (2010b, p. 262), são “tipos relativamente estáveis de enunciados”, pois são passíveis de renovações, mudanças. Nesse sentido, “[...] à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo” (BAKHTIN, 2010b, p. 262), os usuários da língua vão fixando as suas particularidades nos gêneros. Bakhtin (2010b, p. 268) afirma: Em cada época de evolução da linguagem literária, o tom é dado por determinados gêneros do discurso, e não só gêneros secundários (literários, publicísticos, científicos), mas também primários (determinados tipos de diálogo oral- de salão, íntimo, de círculo, familiar-cotidiano, sociopolítico, filosófico, etc.). Toda ampliação da linguagem literária à custa das diversas camadas extraliterárias da língua nacional está intimamente ligada à penetração da linguagem literária em todos os gêneros (literários, científicos, publicísticos, de conversação, etc.), em maior ou menor grau, também dos novos procedimentos de gênero de construção do todo discursivo, do seu acabamento, da inclusão do ouvinte ou parceiro, etc., o que acarreta uma reconstrução e uma renovação mais ou menos substancial dos gêneros do discurso. A passagem do estilo de um gênero para outro não só modifica o som do estilo nas condições do gênero que não lhe é próprio como destrói ou renova tal gênero. Desse modo, quando o estilo de um gênero penetra em outro, ocorrem mudanças de ordens diversas: eles podem ser reconstruídos, renovados, estando 31 em constante modificação. Em relação às modificações dos gêneros, Alves (2008, p. 139-140), em concordância com Bakhtin(2010b), afirma que [...] os gêneros apresentam um caráter sócio-histórico, uma vez que estão diretamente relacionados a diferentes situações sociais. Dado esse caráter, os gêneros não são estáticos, imutáveis ou formas desprovidas de dinamicidade. Relativamente estáveis, eles mudam com as práticas sociais, alteram-se com a aplicação de novos procedimentos de organização e de acabamento do todo verbal e de uma modificação do lugar atribuído ao ouvinte. Portanto, é devido ao fato de os gêneros apresentarem, na sua essência, um caráter sócio-histórico e cultural e serem expostos a diferentes situações comunicativas que eles se caracterizam como formas passíveis de mudanças, pois, como afirmam Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 118), “a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação”. 3.3 O ENUNCIADO CONCRETO: A UNIDADE REAL DA COMUNICAÇÃO DISCURSIVA A discussão sobre enunciado (unidade real da comunicação discursiva) é apresentada por Bakhtin/ Volochínov (2010a) e Bakhtin (2010b) a partir dos seus estudos críticos sobre a denominada corrente filosófico-linguística “objetivismo abstrato”. No centro dos estudos de Bakhtin/ Volochínov (2010a) está a linguagem, na perspectiva dialógica ─ seja ela pensada como língua, seja como discurso/linguagem ─, em suas várias manifestações nas relações humanas, voltada para os contextos histórico-social e cultural. Nesse sentido, o filósofo apresenta a sua posição em relação à língua e à linguagem, que se diferencia da do pensamento filosófico-linguístico do objetivismo abstrato. O representante maior desse pensamento filosófico-linguístico foi Ferdinand de Saussure, conforme afirmam Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 86): “A chamada escola de Genebra, com Ferdinand 32 de Saussure, mostra-se como a mais brilhante expressão do objetivismo abstrato em nosso tempo”. Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 87) mostram que Saussure, em seus estudos, parte do princípio da tríplice distinção: le langage (a linguagem), la langue (a língua) e la parole (a fala), em que a língua e a fala são os elementos constitutivos da linguagem ─ “compreendida como a totalidade (sem exceção) de todas as manifestações ─ físicas, fisiológicas e psíquicas ─ que entram em jogo na comunicação linguística”, importando para ele o estudo da língua. Segundo Bakhtin/Volochínov (2010a, p. 85, grifo dos autores), essa orientação de estudo está nas raízes do racionalismo dos séculos XVII e XVIII: É preciso procurar as raízes desta orientação no racionalismo dos séculos XVII e XVIII. Tais raízes mergulham no solo fértil do cartesianismo. Foi Leibniz quem exprimiu, pela primeira vez, estas ideias de forma clara, na sua teoria da gramática universal. A ideia de uma língua convencional, arbitrária, é característica de toda corrente racionalista, bem como o paralelo estabelecido entre o código linguístico e o código matemático. Ao espírito orientado para a matemática, dos racionalistas, o que interessa não é a relação do signo com a realidade por ele refletida ou com o indivíduo que o engendra, mas a relação de signo para signo no interior de um sistema fechado, e não obstante aceito e integrado. Em outras palavras, só lhes interessa a lógica interna do próprio sistema de signos, este é considerado, assim como na lógica, independentemente por completo das significações ideológicas que a ele se ligam. Os autores mostram as raízes da orientação dos estudos saussureanos: “no racionalismo dos séculos XVII e XVIII. Tais raízes mergulham no solo fértil do cartesianismo”; criticam a escolha de Saussure, pois foi baseada em um sistema fechado, puramente racional, orientado para o estudo matemático, que não contempla o contexto do uso da língua e os variados sujeitos-usuários dela; ademais, “só lhes interessa a lógica interna do próprio sistema de signos”, deixando de lado a ideologia, privilegiando a lógica. Portanto, para Bakhtin/Volochínov (2010a), o signo é por natureza ideológico e indissociável de um contexto histórico- social-cultural e da relação social de interação entre os sujeitos na comunicação verbal. Sobre tal discussão, eles afirmam que 33 [...] o que falta à linguística contemporânea é uma abordagem da enunciação em si. Sua análise não ultrapassa a segmentação em constituintes imediatos. E, no entanto, as unidades reais da cadeia verbal são as enunciações. Mas, justamente, para estudar as formas dessas unidades, convém não separá-las do curso histórico das enunciações. Enquanto um todo, a enunciação só se realiza no curso da comunicação verbal, pois o todo é determinado pelos seus limites, que se configuram pelos pontos de contato de uma determinada enunciação com o meio extraverbal e verbal (isto é, as outras enunciações) (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010a, p. 129). Já em outro estudo empreendido por Bakhtin (2010b), a respeito do enunciado, a discussão gira em torno da distinção entre enunciado e oração gramatical. Para o referido autor, o estudo do enunciado parte do princípio de que no processo da comunicação discursiva é necessário reconhecer o papel ativo do “outro”, enquanto que na oração gramatical o “outro” é apagado, silenciado, desconhece o papel ativo do “outro”. Bakhtin (2010b, p. 272-273) faz críticas aos estudos que se baseiam na oração gramatical para descrever uma língua e moldar o seu uso: O ouvinte com sua compreensão passiva, que é representado como parceiro do falante nos desenhos esquemáticos das linguísticas gerais, não corresponde ao participante real da comunicação discursiva. Aquilo que o esquema representa é apenas um momento abstrato do ato pleno e real da compreensão ativamente responsiva, que gera a resposta (a que precisamente visa o falante). […] Como resultado, o esquema deforma o quadro real da comunicação discursiva, suprimindo dela precisamente os momentos mais substanciais. Desse modo, o papel ativo do outro no processo de comunicação discursiva sai extremamente enfraquecido. Nesse trecho, percebemos que as críticas partem dos seus estudos sobre a corrente filosófico-linguística denominada de objetivismo abstrato, que se diferencia da concepção dialógica da linguagem, empreendida por ele. Nessa última perspectiva, a língua é compreendida como signo ideológico e o sujeito como indivíduo falante, respondente, posicionado, diferentemente da concepção de objetivismo abstrato, que vê a língua como um sistema neutro, desprovido de conteúdo ideológico, em que uma mesma palavra utilizada em variados contextos 34 terá sempre um único significado. Mostra que o sujeito/ouvinte nos desenhos esquemáticos das linguísticas gerais é passivo, não corresponde ao participante da unidade real da comunicação discursiva, o que ocorre, certamente, porque “[…] se é indefinido e vago o que dividem e decompõem em unidades da língua, nestas também se introduzem a indefinição e a confusão” (BAKHTIN, 2010b, p. 274). O autor mostra outro problema das linguísticas gerais: a vagueza da decomposição das orações em unidades mínimas e de forma descontextualizada da realidade do sujeito participante da sua construção, afirmando que […] o discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. O discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir. O falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva. O enunciado não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, precisamente delimitada da alternância dos sujeitos do discurso, a qual termina com a transmissão da palavra ao outro, por mais silencioso seja o “dixi” percebido pelos ouvintes [como sinal] de que o falante terminou (BAKHTIN, 2010b, p. 274-275).O filósofo russo mostra que o discurso somente pode existir na forma de enunciações concretas de determinados falantes. Inclui, ainda, na sua perspectiva, o sujeito na sua posição ativa responsiva, além de apresentar a perspectiva “clássica de comunicação discursiva”, que é o diálogo, configurado na alternância dos sujeitos no discurso ─ denominados por Bakhtin (2010b, p. 275) de “parceiros do diálogo” ─, pois todo discurso pressupõe uma resposta, mesmo que esta seja em forma de silêncio, o que indica que o falante concluiu o diálogo ou está se preparando para responder. Para Bakhtin (2003, p. 300), o falante não é um Adão, e por isso o próprio objeto do seu discurso se torna inevitavelmente um palco de encontro com opiniões de interlocutores imediatos (na conversa ou na discussão sobre algum acontecimento do dia a dia) ou com pontos de vista, visões de mundo, correntes, teorias, etc. (no campo da comunicação cultural). Uma visão de mundo, uma corrente, um ponto de vista, uma opinião 35 sempre têm uma expressão verbalizada. Tudo isso é discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal), e este não pode deixar de refletir-se no enunciado. O enunciado está voltado não só para o seu objeto, mas também para o discurso do outro sobre ele. Dessa forma, o autor nos informa que, na perspectiva dialógica do discurso, além da existência da opinião do falante/escrevente em relação ao seu objeto discursivo, há pontos de vista de interlocutores imediatos sobre o seu objeto de discurso, que são configurados como discurso do outro, refletindo-se no enunciado. Um traço essencial, constitutivo do enunciado, de acordo com Bakhtin (2003), é o direcionamento do enunciado a alguém, o seu endereçamento. A respeito de tal traço, ele afirma: À diferença das unidades significativas da língua ─ palavras e orações ─, que são impessoais, de ninguém e a ninguém estão endereçadas, o enunciado tem autor [...] e destinatário. Esse destinatário pode ser um participante-interlocutor direto do diálogo cotidiano, pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo especial da comunicação cultural, pode ser um público mais ou menos diferenciado, um povo, os contemporâneos, os correligionários, os adversários e inimigos, o subordinado, o chefe, um inferior, um superior, uma pessoa íntima, um estranho, etc. [...] (BAKHTIN, 2003, p. 301). Nesse fragmento, ele faz uma diferenciação básica entre as características das unidades significativas da língua (palavras e orações) e o enunciado. Enquanto as palavras e as orações apresentam a característica da impessoalidade ─ não têm autor, nem destinatário ─, o enunciado, ao contrário, possui autor e destinatário. Em outro fragmento, ainda sobre o destinatário, Bakhtin (2003, p. 302, grifo do autor) apresenta seu ponto de vista: Ao falar, sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação; levo em conta as suas concepções e convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de vista), as suas simpatias e antipatias – tudo isso irá determinar a ativa compreensão responsiva do meu enunciado por ele. Essa consideração irá 36 determinar também a escolha do gênero do enunciado e a escolha dos procedimentos composicionais e, por último, dos meios linguísticos, isto é, o estilo do enunciado. Para ele, o destinatário é um elemento fundamental na construção de todo enunciado, de qualquer esfera da comunicação discursiva. O autor fala/escreve o seu enunciado de maneira tal que o seu destinatário possa ter uma compreensão responsiva. Além disso, o destinatário influencia a escolha do gênero do discurso, os procedimentos composicionais e o estilo do enunciado que o autor fará para colocar em prática e alcançar os seus objetivos no seu projeto de dizer algo a alguém. Conforme Bakhtin (2010b), os três fatores definidores do enunciado são: a exauribilidade do objeto e do sentido; o projeto de discurso ou vontade de discurso do falante; e as formas típicas composicionais e de gênero do acabamento. O primeiro fator diz respeito ao que é possível dizer no momento que alguém produz um texto, são os limites da conclusibilidade. O segundo está diretamente ligado ao primeiro pela conclusibilidade, diz respeito à vontade discursiva do falante e esta irá determinar o todo do enunciado, desde o volume até a escolha do gênero discursivo. Por fim, o terceiro fator trata das escolhas dos gêneros discursivos que fazemos para construirmos nossos enunciados. Bakhtin (2010b, p. 282) afirma que “a vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero do discurso” e ressalta que “falamos apenas através de determinados gêneros de discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo”. Outra questão importante relacionada ao enunciado é sobre a análise estilística. Bakhtin (2010b, p. 306) ressalta: A análise estilística, que abrange todos os aspectos do estilo, só é possível como análise de um enunciado pleno e só naquela cadeia da comunicação discursiva da qual esse enunciado é um elo inseparável. 37 Dessa forma, somente é possível fazer uma análise estilística se for considerado o enunciado pleno, pois quando se analisa uma oração isolada, fora de um contexto, se perdem muitas informações que podem alterar a análise. A seguir, iremos apresentar alguns enfoques para a compreensão das vozes sociais no discurso. 3.4 AS VOZES SOCIAIS E AS RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE ELAS A unicidade do sujeito, construída por meio da alteridade, e o signo ideológico são questões fundamentais para a compreensão da constituição das vozes no enunciado, segundo estudos de Bakhtin. Vale ressaltar que essas questões não foram contempladas na teoria linguística de Saussure, que concebia a língua como um signo estável, homogêneo, abstrato, neutro e como um fenômeno social. Ademais, Saussure rejeitou o estudo da fala porque a compreendia como um objeto instável, um ato individual, efêmero, condicionado à vontade do indivíduo. Sinteticamente, ele explica a sua visão de língua e fala: “Separando-se a língua da fala, separa-se ao mesmo tempo: em primeiro lugar, o que é social do que é individual; em segundo lugar, o que é essencial do que é acessório e relativamente acidental” (SAUSSURE apud BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010a, p. 89). Bakhtin/Volochínov (2010a), ao analisarem tais postulações, tecem críticas ao pensamento do linguista em relação à língua e à fala e apresentam a concepção de língua como um fato social, como signo ideológico, concreto, cuja função é atender às necessidades de comunicação dos sujeitos, em contexto determinado, que leva em consideração os aspectos espaço-temporais. Diante disso, eles afirmam que [...] toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010a, p. 117). 38 Ampliando o conceito de palavra, Bakhtin/ Volochínov (2010a) argumentam que a palavra veicula a ideologia e define a língua, conforme ressalta Yaguello (2010), como expressão das relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito dessa luta, ou seja, a palavra não é neutra, ela é por natureza ideológica. A interação do eu com o outro é um fenômeno determinante para a compreensão das noções empreendidas pelo filósofo russo, pois os sujeitos, em sua totalidade, são construídos na relaçãosocial, por meio da interação eu/outro, portanto, a sua linguagem, em todas as modalidades, estará carregada da especificidade da relação social, conforme argumenta Bakhtin (2010b, p. 350): É extraordinariamente aguda a sensação do seu e do outro na palavra, no estilo, nos matizes e meandros mais sutis do estilo, na entonação, no gesto verbalizado, no gesto corporal (mímico), na expressão dos olhos, do rosto, das mãos, de toda a aparência física, no modo de conduzir o próprio corpo. O acanhamento, a presunção, o atrevimento, a desfaçatez (Snieguirióv), a afetação, a denguice (o corpo se torce e dá voltas na presença do outro), etc. Em tudo através do que o homem se exprime exteriormente (e, por conseguinte, para o outro) ─ do corpo à palavra ─ ocorre uma tensa interação do eu com o outro: luta entre os dois (luta honesta ou impostura mútua), equilíbrio, harmonia (como ideal), desconhecimento ingênuo de um a respeito do outro, ignorância mútua deliberada, desafio, não reconhecimento (o homem do subsolo, que “não dá atenção”, etc.), etc. Repetimos que essa luta ocorre em tudo através do que o homem se exprime (revela-se) exteriormente (para os outros): do corpo à palavra, inclusive à última, à palavra confessional (BAKHTIN, 2010b, p. 350). Diante do exposto, não há como negar o caráter social, tanto da língua quanto da fala, uma vez que ambas, assim como a totalidade do homem, são resultados das construções sociais, na interação eu/outro. A luta à qual o autor se refere está relacionada ao travamento de ideias, de ideologias, da relação das vozes do eu e do outro. Bakhtin (1997, p. 182-183, grifo do autor) mostra que na linguagem, enquanto objeto da linguística, não pode haver relações dialógicas: Na linguagem, enquanto objeto da linguística não há e nem pode haver quaisquer relações dialógicas: estas são impossíveis entre os 39 elementos no sistema da língua (por exemplo, entre as palavras no dicionário, entre os morfemas, etc.) ou entre os elementos do “texto”, num enfoque rigorosamente linguístico deste. Elas tampouco podem existir entre as unidades de um nível nem entre as unidades de diversos níveis. Não podem existir, evidentemente, entre as unidades sintáticas, por exemplo, entre as orações vistas de uma perspectiva rigorosamente linguística. Não pode haver relações dialógicas tampouco entre os textos, vistos também sob uma perspectiva rigorosamente linguística. Qualquer confronto puramente linguístico ou grupamento de quaisquer textos abstrai forçosamente todas as relações dialógicas entre eles enquanto enunciados integrais. [...] a linguística estuda a “linguagem” propriamente dita com sua lógica específica na sua generalidade, como algo que torna possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai consequentemente as relações propriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo do discurso, pois este é por natureza dialógico [...]. Portanto, isso ocorre devido ao fato de a linguística ter como base o estudo puramente linguístico ─ da unidade mínima da língua ao texto ─ e não levar em conta aspectos extralinguísticos, como os sujeitos participantes do discurso, marcados por suas vozes sociais, suas posições axiológicas, que são fundamentais para a ocorrência das relações dialógicas. O autor continua a sua crítica ao pensamento da linguística pura em relação à linguagem, afirmando: As relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas ou às concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, torna-se enunciados, converte-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas (BAKHTIN, 1997, p. 183, grifo do autor). Nesse trecho, o filósofo russo, ao tratar das relações dialógicas, deixa claro que estas somente ocorrem quando há “posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas” (BAKHTIN, 1997, p. 183). Nesse sentido, Faraco (2006, p. 64) confirma que as relações dialógicas são 40 [...] relações entre índices sociais de valor – que [...] constituem, no conceitual do Círculo de Bakhtin, parte inerente de todo enunciado, entendido este não como unidade da língua, mas como unidade da interação social; não como um complexo de relações entre palavras, mas como um complexo de relações entre pessoas socialmente organizadas. O autor russo cita dois exemplos de como as relações dialógicas podem ocorrer, levando em conta as relações lógicas ou concreto-semânticas: “A vida é boa”. “A vida não é boa”. Estamos diante de dois juízos revestidos de determinada forma lógica e em conteúdo concreto- semântico (juízos filosóficos acerca do valor da vida) definido. Entre esses juízos há certa relação lógica: um é a negação do outro. Mas entre eles não há nem pode haver quaisquer relações dialógicas, eles não discutem absolutamente entre si (embora possam propiciar matéria concreta e fundamento lógico para a discussão). “A vida é boa”. “A vida é boa”. Estamos diante de dois juízos absolutamente idênticos, em essência, diante de um único juízo, escrito (ou pronunciado) por duas vezes, mas esse “dois” se refere apenas à materialização da palavra e não ao próprio juízo. É verdade que aqui podemos falar de relação lógica de identidade entre dois juízos. Mas se esse juízo puder expressar-se em duas enunciações, de dois diferentes sujeitos, entre elas surgirão relações dialógicas (acordo, confirmação) (BAKHTIN, 1997, p. 183-184, grifo do autor). Nesses dois exemplos, observamos que o autor não nega a importância da relação lógica ou concreto-semântica nos enunciados. No entanto, mostra que, da forma como os exemplos se apresentam, não existem informações suficientes para que ocorram relações dialógicas. Da maneira que os exemplos foram escritos, não há informação alguma da presença dos sujeitos (que devem ser no mínimo dois ─ mesmo que esses dois sujeitos sejam: o indivíduo e a sua consciência, como nos modelos de diálogo interior) para delimitar o enunciado de um e o enunciado do outro ─ e, consequentemente, seus posicionamentos. Portanto, nesses exemplos, não se trata de enunciados, e, sim, simplesmente, de frases soltas. Porém, elas podem tornar-se enunciados e entre eles surgir relações dialógicas, desde que se tenha a nítida percepção de enunciados de diferentes sujeitos num dado contexto social ─ em forma de embate, de acordo, de desacordo, de adesão, de 41 questionamento, de confirmação etc., pois “o Círculo de Bakhtin entende as relações dialógicas como espaços de tensão entre enunciados” (FARACO, 2006, p. 67). Ampliando a discussão no que concerne às relações lógicas e concreto- semânticas, Bakhtin (1997, p. 184, grifo do autor) declara: As relações dialógicas são absolutamente impossíveis sem relações lógicas e concreto-semânticas, mas são irredutíveis a estas e têm especificidade própria. Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e concreto- semânticas devem [...] materializar-se, ou seja, devem passar a outro campo da existência, devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado, e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ela expressa. Nesses trechos, o autor, mais uma vez, esclarece sobre a importância das relações lógicas e concreto-semântica nas relações dialógicas, mas confirma que somente a presença dessas duas características não é suficiente para a ocorrência das relações dialógicas no discurso. Outra importante informação nessa discussão diz respeito ao discurso/enunciado: para que as relações lógicas e concreto- semântica se tornem dialógicas é necessário que elas se tornem, segundo o autor, “discurso, ou seja, enunciado, e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ela expressa”. Ainda nessa perspectiva, nas palavras de Faraco (2006,
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