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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM JUNTORES DE CONDICIONALIDADE E FINALIDADE EM NOTÍCIAS DO IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF EM JORNAIS ONLINE DE NATAL: IDENTIFICANDO TRADIÇÕES DISCURSIVAS YOUSSEF UD ALIGHIERE DE PAIVA MACENA DA SILVA Natal-RN 2019 YOUSSEF UD ALIGHIERE DE PAIVA MACENA DA SILVA JUNTORES DE CONDICIONALIDADE E FINALIDADE EM NOTÍCIAS DO IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF EM JORNAIS ONLINE DE NATAL: IDENTIFICANDO TRADIÇÕES DISCURSIVAS Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para fins de defesa, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Linguística Teórica e Descritiva. Orientadora: Profa. Dra. Alessandra Castilho Ferreira da Costa. Natal-RN 2019 À minha família AGRADECIMENTOS A Deus, pelo dom da vida. À minha mãe, Edilma, ao meu pai, Vicente, e ao meu irmão, Kalleb, por todo carinho, estímulos e conselhos dados nos momentos que fraquejei. Obrigado por serem referência de seres humanos na minha vida. Aos meus amigos, da vida, da Villa e do Marista, pela paciência nos momentos ausente. Que eles saibam o espaço que ocupam no meu coração. À minha orientadora, Alessandra Castilho, por me guiar durante todo o percurso. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, pelos conhecimentos compartilhados dentro e fora da sala de aula. Aos meus colegas do PPgEL, pelos conselhos e críticas quando precisei. A todos que se fizeram presente nessa etapa da minha vida e contribuíram de uma forma ou de outra para que eu alcançasse meus objetivos. À CAPES, pelo apoio financeiro e o estímulo à pesquisa e ao desenvolvimento científico na sociedade brasileira. 1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 RESUMO O presente estudo busca investigar juntores de condicionalidade e finalidade em um corpus composto por 138 notícias online sobre o impeachment de Dilma Rousseff, de quatro jornais da cidade de Natal-RN, visando constatar em que ponto do continuum de oralidade e escrituralidade, postulado por Koch e Oesterreicher (1992), as notícias se encontram. Para tanto, unimos o modelo de Tradições Discursivas (TD) (KOCH, 1997) e o modelo de categorização sintático-semântico dos principais conectores, proposto por Blühdorn (1999), que leva em conta os domínios conceptuais temporal, epistêmico e deôntico (LYONS, 1977; SWEETSER, 1990), buscando responder as seguintes questões de pesquisa: Quais juntores de condicionalidade e finalidade se fazem presentes no corpus? Em que domínios conceptuais se encontram esses juntores e como se distribuem nas notícias? Em que posição do continuum se localizam as notícias consideradas e os jornais em relação um ao outro? Tomando como base essas inquisições, traçamos os seguintes objetivos: Identificar os juntores de condicionalidade e finalidade presentes no corpus, segundo os critérios de nível de integração, relação semântica, ordem das entidades e domínio conceptual; analisar quantitativa e qualitativamente a distribuição desses juntores nos textos considerados; e localizar no continuum de oralidade-escrituralidade as notícias e os jornais. Os resultados permitem visualizar um comportamento parecido de todos os portais, com uma inclinação em direção ao polo da escrituralidade e elevado uso de integração sintática por preposição simples referentes às relações de finalidade nos domínios temporal/deôntico, seguido pelo uso de relações de condicionalidade no domínio temporal. Essa distribuição dos juntores pode ser explicada por três principais TD encontradas: o caráter prioritariamente narrativo das notícias, a linguagem jornalística recomendada pelos manuais de redação e estilo, e o espelhamento em jornais de circulação nacional, que muitas vezes são recortados e adaptados pelos jornais locais. A presente pesquisa busca contribuir para o estudo da mudança semântica, cooperando para a história do português brasileiro no âmbito do estado do Rio Grande do Norte. Palavras-chave: tradição discursiva; junção; notícias online; impeachment. ABSTRACT This dissertation investigates conditional and final junctors in a corpus composed of 138 online news coverages about Dilma Rousseff‗s impeachment, from four online periodicals produced in Natal city (Rio Grande do Norte-Brazil), in order to verify in which point of the continuum between orality and literacy, postulated by Koch & Oesterreicher (1992), the news are detected. For this purpose, we join the Discursive Traditions model (TD) (KOCH, 1997) and the syntactic-semantic categorisation model, proposed by Blühdorn (1999), which considers the temporal, epistemic and deontic domain (LYONS, 1977; SWEETSER, 1990), trying to answer the following questions: which conditional and final junctors are present in the corpus? In which conceptual domains are these junctors and how are they distributed among the news coverage? In which point of the continuum are the news coverages and the periodicals in relation to each other ased on those enquiries, the following aims were established: identify conditional and final junctors in the corpus according to the integration levels criteria, semantic relations, entities order and conceptual domain; analyse qualitatively and quantitatively the distribution of these junctors in the considered texts; and indicate where news coverages and periodicals are in the continuum between orality and literacy. The results allow the view of similar behaviour in all news portals, with a drift towards the literacy pole and a high use of simple preposition in the temporal/deontic domains, followed by the use of conditional relations in the temporal domain. This distribution of the junctors can be explained by three main DTs found: the narrative ethos of the news, the journalistic language recommended by the writing and style manuals, and the mirroring in newspapers of national circulation, which are often cut and adapted by local periodicals. This research seeks to contribute to the study of semantic change, cooperating for the history of Brazilian Portuguese within the state of Rio Grande do Norte. Keywords: discursive traditions; junction; online news, impeachment. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Esquema 1: filtro das tradições discursivas ............................................................................. 21 Esquema 2: evocação ............................................................................................................. 22 Esquema 3: posição dos exemplos no continuum de oralidade e escrituralidade ...................... 25 Esquema 4: macroestrutura do espaço semântico das relações interssentenciais. ..................... 45 Figura 1: esquema global com condições comunicativas ........................................................ 28 Figura 2: espaço variacional histórico-idiomático entre imediatez e distância comunicativa. ... 31 Figura 3: variantes de gêneros textuais ................................................................................... 33 Figura 4: tradições discursivas em panfletos italianos 1500-1550 (segundoWilhelm 1996) .... 34 Figura 5: plantão de notícias do Tribuna do Norte e do Agora RN .......................................... 36 Figura 6: abas temáticas dos jornais ....................................................................................... 36 Figura 7: notícia do Agora RN de 07 de janeiro de 2016 ......................................................... 38 Figura 8: notícia do Folha de São Paulo de 07 de janeiro de 2016 ........................................... 39 Figura 9: notícia do Tribuna do Norte de 15 de abril de 2016 ................................................. 40 Figura 10: notícia do Estadão de 14 de abril de 2016 .............................................................. 41 Figura 11: tabela do TraDisc com ocorrências totais ............................................................... 90 Figura 12: tabela do TraDisc com ocorrências normalizadas .................................................. 91 Figura 13: tabela de graus de complexidade do TraDisc ......................................................... 92 Figura 14: grau de complexidade de uma notícia .................................................................... 92 Figura 15: notícias por grau de complexidade no Agora RN ................................................. 134 Figura 16: notícias por grau de complexidade no Novo ........................................................ 135 Figura 17: notícias por grau de complexidade no Portal no Ar .............................................. 136 Figura 18: notícias por grau de complexidade no Tribuna do Norte ...................................... 137 Figura 19: notícias e médias no continuum ........................................................................... 139 Gráfico 1: análise global por níveis de integração sintática ..................................................... 97 Gráfico 2: grau de integração sintática dos juntores .............................................................. 101 Gráfico 3: análise global das relações semânticas ................................................................. 103 Gráfico 4: domínio das relações semânticas dos juntores analisados ..................................... 107 Gráfico 5: responsabilidades enunciativas no Agora RN ....................................................... 108 Gráfico 6: responsabilidades enunciativas no Tribuna do Norte ............................................ 110 Gráfico 7: responsabilidades enunciativas no Novo ............................................................... 112 Gráfico 8: responsabilidades enunciativas no Portal no Ar ................................................... 114 Gráfico 9: níveis de integração sintática do Agora RN .......................................................... 119 Gráfico 10: relações semânticas no Agora RN ...................................................................... 119 Gráfico 11: níveis de integração sintática do Tribuna do Norte ............................................. 122 Gráfico 12: relações semânticas no Tribuna do Norte ........................................................... 123 Gráfico 13: níveis de integração sintática do Novo ................................................................ 127 Gráfico 14: relações semânticas no Novo .............................................................................. 128 Gráfico 15: níveis de integração sintática do Portal no Ar .................................................... 131 Gráfico 16: relações semânticas no Portal no Ar .................................................................. 132 Quadro 1: níveis e pontos de vista do linguístico segundo Coseriu (1980) .............................. 19 Quadro 2: níveis e domínios do linguístico ............................................................................ 21 Quadro 3: concepção vs. meio ............................................................................................... 24 Quadro 4: tipos de integração sintática ................................................................................... 44 Quadro 5: relações expressas vs. fatores ................................................................................. 47 Quadro 6: classificação sintática vs. traços ............................................................................. 57 Quadro 7: domínio vs. relações .............................................................................................. 71 Quadro 8: relações semânticas a partir do quadro de domínio vs. relações .............................. 72 Quadro 9: relações semânticas adotadas a partir do quadro domínio vs. relações .................... 74 LISTA DE TABELAS Tabela 1: dados de representatividade do pré-corpus. ............................................................. 85 Tabela 2: números oficiais do corpus de notícias .................................................................... 86 Tabela 3: juntores de cada jornal por grau de integração sintática ........................................... 96 Tabela 4: juntores de cada jornal por relações semânticas ..................................................... 103 Tabela 5: juntores do Agora RN............................................................................................ 116 Tabela 6: juntores do Tribuna do Norte ................................................................................ 120 Tabela 7: juntores do Novo ................................................................................................... 124 Tabela 8: juntores do Portal no Ar........................................................................................ 129 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AGRN – Agora RN ATD – Análise textual dos discursos NOV – Novo PdV – Ponto de Vista PORT – Portal no Ar TN – Tribuna do Norte E – Objeto Situado R – Objeto de Referência RE – Responsabilidade enunciativa R1 – Primeiro relatum R2 – Segundo relatum TD – Tradição Discursiva Sumário 1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................................... 18 2.1. De Coseriu à tradição discursiva .............................................................................. 18 2.2. Linguagem da imediatez – linguagem da distância ................................................... 23 2.3. Processo de formação de uma TD e o advento da notícia .......................................... 32 2.4. Juntores como indicadores de TDs ........................................................................... 42 2.5. As relações sintáticas ............................................................................................... 48 2.5.1. Traço I: posição obrigatória do conector no segundo relatum ............................... 49 2.5.2. Traço II: o conector encontra-se em posição inicial no relatum ............................. 50 2.5.3. Traço III: o conector atribui papel relacional ........................................................ 51 2.5.4. Traço IV: o conector pede complemento oracional ............................................... 55 2.5.5. Síntese do comportamento sintático dos juntores analisados ................................. 57 2.6. Comportamento semântico dos juntores ................................................................... 59 2.6.1. Categorias de entidades ........................................................................................ 59 2.6.1.1. Entidades de primeira ordem ............................................................................ 60 2.6.1.2. Entidades de segunda ordem ............................................................................60 2.6.1.3. Entidades de terceira ordem ............................................................................. 61 2.6.1.4. Entidades de quarta ordem ............................................................................... 61 2.6.2. Conectores - os domínios conceptuais e os recursos da língua .............................. 62 2.6.2.1. Conexões no domínio espacial ......................................................................... 62 2.6.2.2. Conexão no domínio temporal.......................................................................... 63 2.6.2.3. Conexões no domínio epistêmico ..................................................................... 65 2.6.2.4. Conexões no domínio deôntico......................................................................... 66 2.6.3. Identificação do domínio...................................................................................... 66 2.6.4. Tipos de relação estabelecida ............................................................................... 67 2.6.4.1. As relações de similaridade .............................................................................. 68 2.6.4.2. As relações de situamento ................................................................................ 68 2.6.4.3. As relações de condicionalidade ....................................................................... 69 2.6.4.4. As relações de causalidade ............................................................................... 70 2.6.5. Quadro de relações semânticas ............................................................................. 70 2.6.5.1. As especificidades das relações de finalidade ................................................... 73 2.6.5.2. Síntese das relações em recorte ........................................................................ 73 2.7. Atos de fala ............................................................................................................. 74 2.8. Responsabilidade enunciativa nas notícias ............................................................... 76 3. ASPECTOS METODOLÓGICOS ............................................................................... 80 3.1. Corpus..................................................................................................................... 80 3.1.1. Critérios de design do corpus ............................................................................... 81 3.1.2. Representatividade ............................................................................................... 84 3.2. Considerações sobre juntores multifuncionais de condicionalidade e finalidade ........ 87 3.2.1. Se ........................................................................................................................ 87 3.2.2. Para ..................................................................................................................... 88 3.2.3. E .......................................................................................................................... 89 3.3. Metodologia de análise no TraDisc .......................................................................... 90 3.4. Perfis dos jornais analisados .................................................................................... 93 3.4.1. Tribuna do Norte ................................................................................................. 93 3.4.2. Agora RN............................................................................................................. 94 3.4.3. Novo .................................................................................................................... 94 3.4.4. Portal no Ar ......................................................................................................... 95 4. ANÁLISE ................................................................................................................... 96 4.1. Análise global da junção por graus de integração sintática........................................ 96 4.2. Análise global da junção por relações semânticas ................................................... 102 4.3. Análise das vozes do texto ..................................................................................... 107 4.4. Análise da junção no Agora RN ............................................................................. 116 4.5. Análise da junção no Tribuna do Norte .................................................................. 120 4.6. Análise da junção no Novo ..................................................................................... 124 4.7. Análise da junção no Portal no Ar ......................................................................... 128 4.8. Síntese e discussão dos resultados em relação ao continuum de oralidade e escrituralidade ................................................................................................................... 132 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 143 REFERÊNCIAS................................................................................................................ 146 ANEXO A – Corpus (Agora RN) ...................................................................................... 151 ANEXO B – Corpus (Tribuna do Norte) ........................................................................... 179 ANEXO C – Corpus (Novo) .............................................................................................. 202 ANEXO D – Corpus (Portal no Ar) .................................................................................. 227 13 1. INTRODUÇÃO A presente dissertação faz uso do aporte teórico das Tradições Discursivas (doravante TD). Em seu estudo de 1992, Raible propõe um modelo de junção cujos parâmetros apresentam correlação com fatores como a evolução da língua, a aquisição da linguagem e a relação entre oralidade e escrituralidade. Partindo desse e de outros estudos, Kabatek (2006) desenvolve um projeto de análise de textos medievais do espanhol no qual afirma que a distribuição dos juntores pode ser sintomática para a identificação de diferentes Tradições Discursivas (TD) e para localizá-las no continuum de oralidade e escrituralidade proposto por Koch e Oesterreicher (1985). Seguindo essa vertente de pesquisa temos estudos como os de Longhin-Thomazi (2011), que busca compreender o processo de aquisição dos juntores por meio de produção textuais de alunos de uma escola pública de São José do Rio Preto/SP; Lopes (2012), que analisa a mudança linguística em cartas do século XIX e XX; Lopes-Damásio (2013), com seu estudo sobre justaposição oracional; e Castilho da Costa (2015), analisando a expressão de contra-causa em cartas de Câmara Cascudo. Apesar de haver estudos na área, é notória a necessidade de novas investigações, principalmente no que tange ao estado do Rio Grande do Norte, com vista a contribuir para o estudo sobre a história do português brasileiro. Em outra tradição de investigação, Blühdorn (1999) apresenta uma classificação sintático-semântica dos conectores a partir de um modelo que leva em conta a disposição do conector entre os relata e dentro do relatum, bem como a categoria das entidades relacionadas e o tipo de relação. Segundo o autor, é possível estabelecer conexões entre as entidades de primeira, segunda, terceira e quarta ordem, que correspondem, respectivamente, aos domínios espacial, temporal, epistêmico e deôntico 2 . Esse modelo contribui diretamente para as TD, pois a ordem das entidades e ao domínio a qual pertencem possibilitam uma distinção mais apurada dos juntores. Nessa vertente temos os trabalhos de Gutz Inglez (2007), analisando conectores de causa e condicionalidade em fóruns na internet; de Rodsi Ferreira (2011),com o estudo contrastivo entre português e alemão; e os do próprio Blühdorn (2006a, 2006b, 2008), com o comportamento sintático-semântico dos conectores. 2 As entidades de primeira ordem são objetos físicos, as entidades de segunda ordem são estados de coisas e eventos, as de terceira ordem são as proposições em que se acredita e suas evidências, e as de quarta ordem são os objetos de desejabilidade. 14 Na presente dissertação fazemos uso do diálogo entre essas duas teorias para analisar os juntores de condicionalidade e finalidade em um corpus composto por 138 notícias online sobre o impeachment de Dilma Rousseff oriundos de quatro jornais da cidade de Natal-RN (Agora RN, Novo, Portal no Ar e Tribuna do Norte). Segundo Kabatek (2018, p. 519), no que se refere às pesquisas em tradições discursivas, ―nosso objetivo só poderá ser alcançado se nos basearmos na intuição e na empatia do pesquisador [...] essa intuição só poderá ser o ponto de partida de uma busca sistemática do tradicional‖. 3 Ao dizer isso, o autor se refere ao papel do linguista de olhar para o texto sem categorias pré-estabelecidas e buscar o que é recorrente e sistemático, os elementos tradicionais. A opção por trabalharmos com os juntores de condicionalidade e finalidade se deu pela sua ampla utilização nas notícias em recorte. Se, por um lado, os juntores de condicionalidade estavam presentes mostrando constantemente a iminência de o impeachment acontecer, por outro, os de finalidade marcam o objetivo final desse processo e contribuem para ver a ideologia por trás dos jornais. A escolha do gênero se deu por dois motivos principais: a relevância da linguagem jornalística em relação à esfera da realidade e a capacidade do gênero de influenciar e refletir a linguagem dos leitores. Segundo Castilho da Costa (no prelo), no âmbito da linguagem jornalística escrita, tem crescido o uso de gírias, não só em jornais populares, mas também nos de grande divulgação nacional, como O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e revistas de prestígio como a Veja. A autora conclui que a relação entre textos orais e escritos no Brasil têm sofrido uma mudança em dois sentidos: há um movimento de baixo para cima com a difusão de normas empregadas pela mídia; mas também de cima para baixo com o crescente prestígio da linguagem popular da qual o jornal busca se aproximar, garantindo sua legibilidade e sua circulação em diferentes esferas (CASTILHO DA COSTA, no prelo). Adotamos como norte para essa dissertação a seguinte questão principal: Qual a localização das notícias do corpus e dos próprios jornais no continuum de oralidade-escrituralidade? 3 Original: “nuestro objetivo solo se podrá alcanzar se nos basamos en la intuición y empatía del experto, es decir, la empatía del lingüista, que, gracias a una de sus ocupaciones principales, a saber, la de ser, él mismo, productor de textos, sabe cuáles pueden e suelen ser los recursos de los que se sirven los texto. Eso sí, esta intuición solo podrá ser el punto de partida de una búsqueda sistemática de lo tradicional, cuya finalidad es la de identificar, en la mayor medida posible, la totalidad de las posibles tradiciones”. (KABATEK, 2018, p. 219). 15 Temos como questões específicas: Quais juntores de condicionalidade e finalidade se fazem presentes no corpus? Em que domínios conceptuais se encontram esses juntores e como se distribuem nas notícias? O objetivo geral desta dissertação é mostrar, por meio da análise dos juntores de condicionalidade e finalidade, em que ponto do continuum entre oralidade e escrituralidade as notícias do corpus se localizam. Temos os seguintes pontos como objetivos específicos: Identificar os juntores de condicionalidade e finalidade presentes no corpus, segundo os critérios de nível de integração, relação semântica, ordem das entidades e domínio conceptual. Analisar quantitativa e qualitativamente a distribuição desses juntores nas notícias consideradas. Interpretar os resultados, levando em conta os parâmetros comunicativos e as marcas de pertencimento a grupos culturais característicos. Apoiamo-nos nas seguintes hipóteses: Primeiramente, esperamos encontrar um amplo leque de juntores de finalidade e condicionalidade por estarmos analisando um corpus de notícias com elevado grau de planejamento e conhecimento específico. Também temos a expectativa que predominem os usos dos juntores de condicionalidade no domínio temporal, haja vista que é característico do gênero a conexão entre eventos observáveis no espaço/tempo. Além disso, esperamos que uso de juntores no domínio deôntico se dê por meio de citações, no qual predominam os desejos de vozes externas. Por fim, presumimos que haja uma proximidade maior das notícias na direção do polo escrituralidade. A relevância desse trabalho se encontra no fato de estarmos usando dois modelos teóricos que, embora tenham pesquisas substanciais na Europa, em especial na Alemanha, carecem de pesquisa no português brasileiro. A pesquisa também contribui para os estudos da mudança semântica, pois, do ponto de vista diacrônico, as mudanças 16 linguísticas seguem uma ordem, indo do mais concreto para o mais abstrato por motivações cognitivas e comunicativas (LOPES-DAMASIO, 2011). Por essa razão, optamos por trabalhar com duas relações semânticas cognitivamente distintas. A relação de condicionalidade é uma das menos complexas, enquanto que a de finalidade é apresentada por Raible (2001) como sendo uma das mais complexas, atrás das de concessividade. Para os estudos do português brasileiro, essa diferenciação de complexidade é relevante, pois mostra a historicidade do idioma e sua capacidade de abstração e especificação. Para as tradições discursivas, essa diferenciação é fundamental para vermos o deslocamento de uma tradição discursiva no continuum de oralidade-escrituralidade. Assim, o presente estudo contribui para consolidar as pesquisas sobre a história do português brasileiro, em especial do estado do Rio Grande do Norte. Além da introdução, que caracteriza a seção 1, essa dissertação apresenta três seções com suas subdivisões. A seção 2 é dedicada ao referencial teórico utilizado. Em um primeiro momento, na divisão 2.1, temos a apresentação do modelo das tradições discursivas. Nessa seção apresentamos o conceito de linguagem de Coseriu (1992) e o percurso até o surgimento do conceito e das características do que vem a ser conhecida como TD. Em seguida, 2.2, falamos sobre o continuum de oralidade-escrituralidade, a linguagem da imediatez e da distância comunicativa e um esquema com dez parâmetros que devem ser levados em conta para situar um texto no continuum. Na subseção 2.3, apresentamos o processo de formação de uma TD e as características linguísticas e estruturais das notícias online atuais, apoiando-nos nos estudos Koch (1997), Sodré (1999) e Castilho da Costa (2011). A subseção 2.4 é referente à proposta de Raible (1992) de juntores. Fazemos uma explanação sobre a relação entre análise de junção e TD e introduzimos o crescente grau de complexidade das relações semânticas proposta por Kortmann (1997), que serve de inspiração para Raible (2001). Na divisão 2.5, detemos-nos a explicar as relações sintáticas dos conectores propostas por Blühdorn (2006a), bem como critérios para diferenciar os diferentes graus de integração sintática.. Na subseção 2.6, expomos o aporte teórico, proveniente de Blühdorn (2006b), necessário para a compreensão do comportamento semântico dos conectivos, bem como 17 as características dos domínios espacial, temporal, epistêmico e deôntico com seus respectivos exemplos. A divisão 2.7 é dedicada à noção de proposição, oriunda da teoriados atos de fala e fundamental para o conceito de juntor, proposto por Raible (1992). Na subseção seguinte, 2.8, apresentamos o conceito de responsabilidade enunciativa e exemplificamos, com recortes do corpus, como os domínios conceptuais, propostos na seção seis, são influenciados pelas vozes do texto. Com isso, encerramos a seção da fundamentação teórica e damos início aos aspectos metodológicos na seção 3. De 3.1 a 3.3, caracterizamos o corpus, apresentamos todos os aspectos metodológicos envolvidos na pesquisa, critérios para escolha dos jornais e coleta das notícias, bem como, descrevemos, de forma breve, o funcionamento do TraDisc, programa de processamento de dados linguísticos usado na pesquisa para estipular o grau de complexidade das notícias. A subseção 3.4 é reservada à descrição dos perfis dos quatro jornais pertencentes ao corpus. São introduzidos nessa seção a história de cada um, seu público-alvo, traços estruturais e influência política. A última seção é dedicada à descrição e análise dos dados obtidos, primeiro de forma global, da divisão 4.1 a 4.3, e, em seguida, com foco em cada jornal separadamente, 4.4 a 4.7. Na subseção 4.8 fazemos uma explanação geral, apontado as notícias e os jornais do corpus no continuum. Encerramos o estudo com as considerações finais, buscando fazer um apanhado de tudo que foi encontrado e mostrando as aberturas que o trabalho oferece para pesquisas futuras. 18 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA A presente sessão traz a fundamentação teórica no qual essa dissertação se baseia. Aqui apresentamos não só o surgimento do conceito de Tradição Discursiva (TD) oriundo dos três níveis do linguístico de Coseriu (1992), mas também contribuições feitas por Koch (1985, 1997), Kabatek (2005, 2006, 2018) e Castilho da Costa (2011, 2015, 2017) para que possamos ter uma visão mais detalhada do que é TD e algumas de suas características. No decorrer do texto, passando pelas categorias sintáticas e semânticas propostas por Blühdorn (1999, 2001, 2006a, 2006b), bem como a Teoria dos Atos de Fala (AUSTIN, 1926) e a Responsabilidade Enunciativa (ADAM, 2008). Além dos autores já citados, as vozes de diversos outros teóricos são cruzadas durante essa sessão para que o texto se torne claro e coerente. 2.1. De Coseriu à tradição discursiva As raízes do conceito de tradição discursiva (doravante, TD) remontam à filosofia da linguagem de Eugenio Coseriu. Segundo o autor (COSERIU, 1992), a linguagem pode ser entendida de três pontos de vista: a) como energeia, no sentido humboldtiano (cf. HUMBOLDT 1979/1988), de atividade de criação e fixação de conhecimento, de ir mais além do aprendido, o produzir originário que não repete simplesmente o já produzido, em outras palavras, aquela atividade que precede sua própria potência (p. 22-23); b) como dynamis, uma potência ou saber fazer a partir de algo, que pode, inclusive ser novo, e que serve de modelo para produtos ulteriores (p. 23); c) como érgon, quer dizer, produto que é criado pela atividade, como, por exemplo, produto do falar individual (discurso) é o texto que pode ser conservado na memória, fixado, registrado, anotado, etc. (cf. p. 88). Partindo da visão da linguagem como energeia, o falar é caracterizado por Coseriu (1992, p. 86) como atividade humana universal, que é realizada individualmente, em situações determinadas por falantes individuais, como representantes de uma comunidade linguística, com tradições comunitárias do saber falar. Aqui não se trata de uma atividade meramente psico-física, mas, sobretudo, 19 cultural, ou seja, uma atividade que cria cultura, pois o falar cria algo que eventualmente pode ser aprendido e que se pode converter em tradição (p. 86). Coseriu (1992, p. 87) distingue, ainda, três planos ou níveis do falar como atividade cultural: a) o nível universal, b) o histórico e c) o individual. No nível universal está o falar em geral, comum a todos os homens, correspondente à capacidade antropológica de falar, de se comunicar. Segundo Coseriu (2007, p. 38), esse nível diz respeito à ―possibilidade de a linguagem se referir à realidade extralinguística, isto é, o caráter significável da linguagem e o fato de ela se referir a algo que não a si mesma‖ (tradução nossa) 4 . Até mesmo o calar está em relação direta com o falar, já que calar significa ―deixar de falar‖, ―não falar ainda‖ (COSERIU, 1992, p. 87). Todo falar é falar uma língua determinada, seguindo uma tradição histórica. Por isso, no nível histórico estão as línguas particulares como herança cultural do seu povo (português, inglês, alemão, espanhol, etc., incluindo suas variedades), com seus vocabulários e regras particulares. Contudo, o falar é também individual sob duas perspectivas: de um lado, é sempre um indivíduo que o executa (e não um grupo); de outro, cada enunciado é único no tempo e no espaço, proferido dentro de uma situação comunicativa única. Dessa maneira, no nível individual, está o texto ou discurso. Aos três níveis, correspondem também três saberes: o saber linguístico, ou saber elocucional; o saber idiomático e o saber expressivo (COSERIU, 1980, p. 93). O saber elocucional é o saber sem distinção histórica, de competência expressiva em geral. Já o saber idiomático diz respeito à habilidade de utilizar as regras de um determinado idioma. Por fim, o saber expressivo refere-se ao saber construir um discurso, o saber executar um ato linguístico determinado em uma situação determinada. Quadro 1: níveis e pontos de vista do linguístico segundo Coseriu (1980) Níveis/pontos de vista ἐνέργεια (atividade) δσναμις (saber) εργον (produto) Universal Falar em geral Saber elocucional Soma do falado Histórico Falar uma língua Saber idiomático Língua particular 4 Original: [...] es la posibilidad del lenguaje de referirse a la realidad extralingüística, esto es, el carácter sígnico del lenguaje o el hecho de que el lenguaje se refiere a algo que no es él mismo. 20 particular abstraída Individual Produzir um Discurso Saber expressivo Texto Fonte: adaptação de Coseriu (1980, p.93) Alguns autores, todavia, criticam a colocação do saber expressivo no nível individual. Koch afirma que ―o discurso é, na verdade, o lugar da aplicação do saber linguístico, mas como cada discurso é único e o saber linguístico implica a possibilidade da reprodução, saber e discurso serão incompatíveis” 5 (2008, p.54, tradução minha). Porém, considerar o discurso apenas como local de aplicação do saber linguístico equivale a dizer que a língua é um produto e, portanto, não entender sua dinamicidade, atribuindo as mudanças linguísticas a fatores externos (COSERIU, 1982, p .21-22). Ao usar ἐνέργεια (atividade), Coseriu faz referência à noção aristotélica, isso é, atividade criadora livre, que tende ao infinito. Ainda segundo o autor, todo ato de falar é, em alguma medida, um ato criador; daí a necessidade de recorrer aos contextos na interpretação de qualquer ato linguístico (COSERIU, 1982, p.22). Após os estudos de Coseriu, novas pesquisas surgiram no âmbito da linguística de texto, em especial nos anos 60 a 70. Em seu trabalho de 1983, Brigitte Schlieben- Lange, além de propor a separação entre o meio fônico e gráfico e a criação de um continuum entre os polos de escrituralidade e oralidade, chama atenção para essa tradicionalidade e sua independência das tradições da língua (apud KOCH, 2008, p.54). É partindo dos estudos de Coseriu (1980; 1982; 1992) e também dos de Schlieben-Lange (1983) que Koch (1997), ao perceber que há formas e fórmulas tradicionalmente usadas no discurso que estão além das regras do idioma histórico, mas que também não se encaixam no nível individual, nota a necessidade de criar uma nova divisãono nível histórico. Os níveis e domínios propostos por Coseriu (1980, p. 93) são revisados e uma nova separação é proposta para acomodar o saber discursivo, retirando- o do nível individual e repartindo o nível histórico conforme a tabela abaixo 6 : 5 Original: El discurso es, en verdade, el lugar de la aplicación del saber linguístico, pero, como cada discurso es único y el saber implica la posibilidad de la reproducción, saber y discurso serán incompatibles. 6 Críticas a esta divisão podem ser vistas em Tradiciones discursivas y cambio linguístico: El ejemplo del tratamento vuestra merced em Español (KOCH, 2008). Todavia, os diferentes posicionamentos sobre onde incluir a Tradição Discursiva não a desvalida, nem altera o modo como lidamos com ela neste trabalho, servindo apenas para termos classificatórios. Defendemos que as TD pertencem ao nível 21 Quadro 2: níveis e domínios do linguístico Nível Domínio Regras Universal Atividade do falar Regras elocucionais Histórico Língua histórica Regras idiomáticas Tradição Discursiva Regras Discursivas Individual Discurso Fonte: adaptado de Koch (2008, p. 54) Surge, então, o conceito de tradição discursiva como é entendida hoje. A TD deve ser vista como uma reduplicação do nível histórico (KOCH, 1997). Em outras palavras, o nível histórico proposto por Coseriu (1980) passa a ser dividido em dois filtros pelos quais a finalidade comunicativa passa antes de se transformar em ―enunciado‖, como na imagem seguinte: Esquema 1: filtro das tradições discursivas Fonte: Kabatek (2005, p. 161) O nível histórico da língua particular coincide com a historicidade do homem como ser histórico, já a historicidade das TD refere-se às manifestações linguísticas que se repetem culturalmente, sofrendo outras influências. Kabatek (2006, p. 510) argumenta que: O traço definidor das TD é, então, a relação de um texto em um momento determinado da história com outro texto anterior: uma relação temporal com repetição de algo. Esse ‗algo‘ pode ser a repetição total do texto inteiro, como no caso da fórmula ‗bom dia‘, mas também pode ser apenas a repetição parcial ou ainda a ausência histórico haja vista que, assim como as línguas, constituem uma maneira tradicional do falar, uma manifestação cultural repetível. Contudo, Coseriu já postulava uma historicidade no nível individual. Esse debate se dá, pois o termo “historicidade” pode corresponder a mais de um sentido, dando margem a diferentes interpretações. Para mais detalhes recomenda-se ler Sobre a historicidade de textos (KABATEK, 2004. Tradução: José Simões). 22 total de repetição concreta e unicamente a repetição de uma fórmula textual. Isso significa que todo modelo textual recorrente, como gênero, é uma TD, mas nem toda TD precisa ser um gênero. Da mesma forma, nem toda repetição é uma TD. É preciso primeiro que seja uma repetição discursiva, e também que haja uma evocação. Assim, qualquer situação comunicativa que evoque uma forma tradicional de falar, seja ela no âmbito lexical, sintático, fonético ou qualquer outro, se caracteriza uma tradição discursiva. O seguinte esquema demonstra a relação entre as partes: Esquema 2: evocação Fonte: Kabatek (2006, p.511) A imagem acima pode ser melhor compreendida através de um exemplo de saudação, que é evocada por uma situação concreta (situação 1), que se repete (situação 2) e evoca (texto 2) sequência igual ou semelhante de elementos do texto anterior (texto 1), seja em termos de conteúdo ou formulação. Com isso, fica evidente que não é possível se considerar a TD somente pelo seu aspecto textual, já que a situação concreta é a contrapartida necessária para sua explicação (KABATEK, 2006, p. 511). Isso implica dizer que quando encontramos alguém na rua dizemos ―bom dia‖ pelo fato de que a finalidade comunicativa não atravessou somente o filtro histórico do idioma e encontrou resposta no acervo lexical, como também atravessou o filtro das TD para encontrar uma tradição estabelecida além das regras idiomáticas. Isso fica claro quando recorremos ao conceito de marcação proposto por Givón (1990, p. 947) e atentamos para o fato de que o enunciado ―desejo-lhe um dia bom‖ seria menos marcado já que o adjetivo viria posterior ao substantivo. Como chave central dessa pesquisa, assumo a definição de TD proposta por Kabatek (2006, p.512): Entendemos por Tradição Discursiva (TD) a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável). 23 Pode-se formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma relação de união entre atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente entre dois elementos de tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos linguísticos empregados. Essa definição abrange o caráter referencial da TD em seus mais diversos aspectos, destacando a impossibilidade de compreendê-la sem seu contexto. Isso é, toda TD se conecta a um falar produzido anteriormente. Além do mais, atenta ao seu valor de signo nos grupos sociais aos quais pertence, comunicando mais do que um texto sem tradição. 2.2. Linguagem da imediatez – linguagem da distância Por muito tempo a relação entre linguagem oral e linguagem escrita foi bastante confusa. A princípio os termos ―oral‖ e ―escrito‖ eram utilizados para designar a realização material das expressões linguísticas, por meio sonoro ou registro gráfico. Observou-se, contudo, a dificuldade de se enquadrar expressões cuja materialidade era oral, mas de configuração escrita, como anúncios fúnebres, ou o oposto, cuja materialidade era gráfica, mas de configuração oral, como cartas privadas (KOCH e OESTERREICHER, 1990, p. 20). A solução para esse problema classificatório foi apontada por Ludwig Söll (1985, p.17-25 apud KOCH e OESTERREICHER, 2013, p.155) ao propor a separação entre meio e concepção. Nesse sentido, o meio é o canal pelo qual o texto é veiculado, ou seja, existem o meio fônico e o gráfico. A concepção diz respeito ao grau de elaboração do discurso. Um discurso com alto grau de elaboração e planejamento é típico da escrituralidade, na terminologia de Bühler, típico do Sprachwerk, a ―obra linguística‖, isto é, a reflexão sobre o próprio enunciado (apud CASTILHO DA COSTA, 2011, p. 248). O resultado obtido pode ser visto a seguir: 24 Quadro 3: concepção vs. meio Fonte: Koch e Oesterreicher (2013[1985], p. 156) Dessa forma, um enunciado pode ser produzido através do meio fônico ou gráfico, utilizando uma concepção oral ou escrita, resultando em quatro possibilidades. Uma conversa casual entre amigos seria produzida através do meio fônico se fosse presencial, ou gráfico caso venha a ser por SMS, por exemplo. Mas muito provavelmente terá uma concepção oral, com falas bastante informais. Já um ato jurídico fará uso de uma concepção escrita, para manter o distanciamento e não mostrar envolvimento emocional, e um meio gráfico (sendo uma palestra, o meio seria fônico). É possível notar, então, que o conceito de oralidade pode ser entendido de duas formas distintas. Quando fazemos alusão à sua materialidade, falamos de oralidade medial (código fônico). Porém, quando nos referimos ao grau de elaboração do discurso nos referimos à oralidade concepcional (concepção oral). A verdade é que, embora os problemas terminológicos tenham sido resolvidos, Koch e Oesterreicher (2013, p. 156)atentam para a necessidade de leitura da diferenciação entre oralidade e escrituralidade não de forma dicotômica, mas a partir de um continuum de escrituralidade capaz de comportar os mais variados graus de elaboração do discurso. Os autores desenvolvem, então, um modelo teórico da ―imediatez e distância comunicativa‖. Segundo Castilho da Costa (2017, p. 111) o polo da oralidade marca a imediatez máxima, mais próximo do ego-hic-nunc (eu-aqui-agora), e o polo da escrituralidade se identifica pelo oposto, ou seja, a distância do ego-hic- nunc. Quanto mais distante do ego-hic-nunc um texto for, mais ele tende à escrituralidade. Uma conversa casual entre amigos (a) seria algo mais próximo do polo da oralidade do que um depoimento em um diário (b) ou uma entrevista de emprego (c), mas todos os três dificilmente se aproximariam tanto do polo da escrituralidade quanto um artigo científico (d), por exemplo. Vejamos a figura abaixo: 25 Esquema 3: posição dos exemplos no continuum de oralidade e escrituralidade Fonte: adaptado de Koch e Oesterreicher (2013[1985] p. 157). Os pontos marcados com (‗) correspondem a possível transposição de um meio ao outro. (a‘) seria a transcrição desta conversa casual, ou talvez a mesma conversa em um aplicativo de celular, por exemplo. 7 Do ponto de vista do modelo de TD, ―O continuum entre oralidade e escrituralidade é o fator mais saliente que determina a escolha de elementos nos diferentes textos‖ 8 (KABATEK, OBRIST, VINCIS, 2010, p. 252). Ou seja, as TDs determinam a escolha das formas linguísticas e variedades empregadas, já que as características linguísticas são próprias de determinadas TDs (OESTERREICHER, 1997 apud TUÃO, 2014, p.31). Além disso, é a partir dele que podemos localizar e classificar os diferentes textos e as diferentes tradições. Para localizarmos uma determinada TD em um ponto do continuum Koch & Oesterreicher (2013, p.158-162) nos apresentam dez parâmetros ou condições comunicativas: a) Grau de privacidade – corresponde ao caráter mais ou menos público da comunicação (um diálogo entre duas pessoas, uma conversa em grupo, uma comunicação em massa, etc...). Comumente o texto escrito tem caráter público, diferentemente do oral. Mesmo as cartas costumavam ser lidas para familiares. b) Grau de familiaridade – corresponde à intimidade entre os envolvidos, do conhecimento compartilhado (desde o muito próximo até o desconhecido). Amigos e familiares, na maioria dos casos, usam uma linguagem mais familiar do que a usada para atender um cliente no ambiente de trabalho. 7 Todo texto pode ser transferido do meio fônico ao gráfico ou vice-versa a depender dos meios técnicos de apoio específico. 8 Original: “the continuum between orality and literacy is the most salient factor that determines the choice of elements in different texts”. 26 c) Grau de envolvimento emocional – diz respeito ao envolvimento com o interlocutor (afetividade) ou com o objeto da comunicação (expressividade). Vai desde a proximidade emocional até o distanciamento emocional. Na linguagem oral o enunciador está mais envolvido e responsável pelo seu discurso. É recorrente na escrituralidade usar vozes de outros enunciadores, o que acaba por tirar a responsabilidade e o envolvimento do enunciador principal. d) Grau de ancoragem na situação de comunicação imediata – é a conexão entre texto e contexto. Um alto grau de ancoragem é quando o contexto possibilita a interpretação de conteúdos que não foram necessariamente ditos. Se uma garota diz para a amiga ―olha essa mulher!‖ pode estar se referindo à sua beleza, ou ao modo como está vestida, ou ao fato de ela estar vindo de bicicleta e ser um conselho para que a amiga preste atenção ao atravessar a rua. Nesse caso, o texto possui um baixo grau de autonomia em relação à situação de comunicação imediata e um alto grau de ancoragem. e) Campo referencial – relacionado à distância dos objetos e pessoas referidas com relação ao ego-hic-nunc do falante. A proximidade entre falante e objetos e pessoas referidas facilita o uso da dêixis situacional, não sendo necessária uma descrição detalhada do contexto. f) Imediatez ou distância física dos interlocutores – tanto no sentido espacial quanto temporal. A interação face a face facilita a comunicação sobre elementos contextuais situados no ambiente. Na linguagem escrita é necessário situar o receptor, dando muito mais informações como descrição do local, data que foi escrito, enunciador, entre outras coisas. g) Grau de cooperação – capacidade de intervenção dos receptores na produção do discurso. Na linguagem oral concepcional o produtor e receptor costumam guiar a progressão do conteúdo constante e conjuntamente. O interlocutor demonstra reações, linguísticas ou não, que servem como feedback para o autor do discurso. h) Grau de dialogicidade – no que se refere à possibilidade de alternância de turnos de fala. A distribuição de falas costuma ser muito mais livre na linguagem oral, constantemente marcada por diálogos e troca de turnos entre emissor e receptor. A linguagem escrita, por sua vez, apresenta menos troca de turnos. Um exemplo seriam as trocas de cartas com turnos de falas muito 27 mais distantes. É importante ressaltar que mesmo na linguagem oral também pode haver ausência de dialogicidade, como no caso dos programas TV em que o espectador, na maioria das vezes, não interage. i) Grau de espontaneidade – corresponde ao planejamento da fala no momento da produção. A espontaneidade é um dos traços marcados da oralidade, por isso é tão comum dizer-se algo e reformular. Na escrituralidade o enunciador tem tempo para refletir e pensar nas palavras bem como combiná-las, o que, muitas vezes, evita ruídos de comunicação. j) Grau de fixação temática - O caráter imediato da comunicação oral facilita a espontaneidade e a não necessidade de planejamento prévio. Por isso não é incomum fazer-se pausas para planejar a fala seguinte ou até mesmo correções. Na linguagem escrita, por sua vez, o planejamento é necessário para manter o texto coeso e coerente, e facilitar a compreensão. A combinação de ―alto grau de privacidade‖, ―intimidade‖, ―proximidade física e temporal‖, ―espontaneidade‖, etc. caracteriza o ponto extremo do polo da oralidade. Segundo Koch (2013, p. 160) a forma de comunicação correspondente a esse polo pode ser denominada pelo conceito de linguagem da imediatez. Do lado oposto, ―baixo grau de privacidade‖, ―desconhecimento‖, ―distância física e temporal‖, etc. correspondem ao polo escrito e a forma de comunicação é denominada linguagem da distância. É importante ressaltar que o parâmetro F é o único que não é considerado de natureza gradual e escalar, por Koch e Oesterreicher (2013), pois, se limita a distância física e temporal entre os interlocutores. Contudo, com a advento de tecnologias, como o Skype e o WhatsApp, é possível fazer ressalvas ao caráter dicotômico de F, já que é possível haver uma distância física e uma imediatez temporal. A figura 1 mostra o esquema global, no qual os triângulos marcam a afinidade do meio com cada uma das concepções, levando em conta os mesmos exemplos do esquema 3: 28 Figura 1: esquema global com condições comunicativas Fonte: adaptado de Koch e Oesterreicher (2007, p. 34) A figura 1 ilustra as características da comunicação dos dois polos. As posições relativas de a - d indicam o suposto grau de imediatez ou distância dos exemplos no continuum proposto, a depender das características encontradas. Ao analisarmos alguns pontos dessas comunicações, podemos notar que uma conversa casual entre amigos (a) possui um alto grau de emocionalidade, espontaneidade e liberdade temática. Já um depoimento em um diário (b)tem alto grau de privacidade, mas não possui o mesmo grau de dialogicidade. Uma entrevista de emprego (c) tem proximidade física e caráter dialógico, mas menor grau de privacidade (se houver mais de um entrevistador ou a conversa for gravada). Um artigo científico (d) se aproxima muito mais do polo da distância comunicativa porque apresenta distância física, baixo grau de emocionalidade e alto grau de publicidade. Uma análise global das notícias do corpus, sem distinção entre os jornais, possibilita fazer a seguinte interpretação dos 10 parâmetros propostos por Koch & Oesterreicher (2013): a-) Grau de privacidade – As notícias possuem um altíssimo grau de publicidade haja vista que sua disseminação é global através da internet. Embora o maior público seja estado do Rio Grande do Norte, as notícias online não encontram barreiras físicas que impeçam o acesso em outro país. 29 b-) Grau de familiaridade – O corpus possui um baixíssimo grau de familiaridade, pois, mais uma vez, sua destinação é mundial. Essa característica influencia a norma jornalística que busca uma linguagem acessível, sem marcas diatópicas. c-) Grau de envolvimento emocional – O baixo grau de envolvimento emocional é uma das principais características da linguagem jornalística, que preza pela imparcialidade, evitando a expressividade, ou seja, o envolvimento com o objeto da comunicação, no caso, o tema da notícia. É natural que esse grau varie entre os jornais à medida que eles são mais ou menos influenciados politicamente. Contudo, quando comparado a outros gêneros, as notícias de jornais comumente se aproximam do polo da escrituralidade. d-) Grau de ancoragem – O discurso é distante do contexto. As notícias de jornais possuem um baixo grau de ancoragem situacional, com descrição do contexto em que os eventos se passam. Uma característica que ressalta esse ponto é a localização geográfica, data e hora encontrada no início das notícias, dando uma breve contextualização para o leitor. e-) Campo referencial – As notícias visam ser de fácil compreensão para a maior parte da população, por isso mesmo elas fazem pouco uso das dêixis situacionais, evitando deixar informações implícitas no contexto. Ainda assim, como no início das notícias há os dados sobre data e hora, é comum encontrar expressões como ―na noite de ontem‖, ―amanhã‖, ―nessa quarta‖, que só podem ser compreendidas quando observados esses dados. f-) Imediatez ou distância física dos interlocutores – Em relação a esse item é preciso fazer ressalvas. A distância física é comum nas notícias dos jornais; contudo, o recorte semântico do corpus em questão goza de uma peculiaridade. Como as informações vêm de Brasília, há três pontos: o local onde a notícia é coletada (Brasília) é fisicamente distante de onde ela é editada (Natal) para ser publicada (Natal/Internet). Nesse sentido, a distância não acontece somente entre o locutor e interlocutor, mas também durante todo seu processo de produção. Isso aproxima as notícias do polo da escrituralidade. Apesar disso, a imediatez temporal das notícias online possibilita a narração dos fatos em questões de minutos, o que aproxima as notícias do polo da oralidade. Assim, pode-se dizer que há uma tendência das notícias em recorte de se deslocarem para a escrituralidade, sem, contudo, apresentarem somente características desse polo. 30 g-) Grau de cooperação – O grau de cooperação nas notícias é bastante baixo. A notícia é produzida sem interferência do interlocutor. Isso significa que o leitor só tem acesso à versão final da notícia e não pode dar feedbacks que contribuam para sua melhor formulação, salvo poucos casos no qual o jornal comete algum erro que é percebido pelo leitor e origina uma edição na notícia anteriormente publicada. Porém, nada semelhante foi constatado nas notícias do corpus. h-) Grau de dialogicidade – As notícias possuem um grau de dialogicidade muito reduzido, próximo ao zero. É possível que, vendo os comentários dos leitores abaixo da notícia, o jornal opte por publicar novas informações a respeito de um tema e, por isso, responda, de forma indireta, dúvidas ou comentários dos leitores; todavia, o jornal não responde os comentários diretamente em novas notícias. Assim, a dialogicidade se encerra no próprio comentário do leitor. i-) Grau de espontaneidade – Até a publicação de uma nova notícia o texto passa por diversos revisores e diversas versões. Por isso, o grau de espontaneidade é baixíssimo e muito próximo ao polo da escrituralidade. j-) Grau de fixação temática – O grau de fixação temática nas notícias é bastante alto. Isso ocorre porque cada notícia gira em torno de um tema em recorte. Como uma das características desse gênero é ser de fácil compreensão para a maior parte da população, as notícias não devem entrar em mais de um tema por vez. Outro fator que contribui indiretamente para o alto grau de fixação temática é o tamanho da notícia. Quanto mais informações, mais espaço e mais tempo ela levará para ser lida. As notícias do corpus têm uma média de 300 a 400 palavras, o que evita que muitos temas possam ser desenvolvidos em uma mesma notícia. Até agora observamos características da oralidade e da escrituralidade relevantes para o aspecto conceptual no nível universal, passíveis de serem observados em qualquer língua histórica. Porém, é indispensável ocupar-se da língua da imediatez e da distância comunicativa no nível histórico, levando em conta sua relação com as variedades diatópicas, diastráticas e diafásicas. Segundo Koch e Oesterreicher (2013, p. 155) o parâmetro oral/escrito é algo transversal e não redutível a tais diferenciações diassistemáticas. É natural que exista certa correlação entre algumas variedades e a modalidade oral ou escrita, mas é preciso que não as confundamos. Existem três dimensões principais da variação linguística intraidiomática: 31 A variação diatópica diz respeito às diferentes regiões considerando-se os limites físico-geográficos (como Natal, São Paulo, Porto Alegre). A variação diastrática refere-se aos diferentes grupos e estratos, levando-se em conta fronteiras sociais (como classe alta, classe baixa, ou, médicos, pedreiros, motoristas). A variação diafásica tem a ver com o estilo, podendo ser mais ou formal, ou mais informal a depender da situação comunicativa (como português coloquial, português literário) Koch e Oesterreicher (1990, p. 37) argumentam que a diferenciação entre oralidade e escrituralidade no diassistema é ―fundamental para uma modelação adequada do aspecto variacional idiomático de uma língua histórica‖ 9 , e que tal variação deve ser tomada como constituinte central do diassistema variacional (KOCH e OESTERREICHER, 1990, p. 37). Vejamos a figura abaixo: Figura 2: espaço variacional histórico-idiomático entre imediatez e distância comunicativa. Fonte: Koch e Oesterreicher (1990, p. 39) Segundo os autores, estudos mostram que as variedades diafásica, diastrática e diatópica não coexistem de forma desconexa em uma determinada língua. Elas 9 Original: “En la diasistemática esbozada se echa de menos la diferenciación entre oralidad y escrituralidad, que, em nuestra opinión, es fundamental para uma modelación adecuada del espacio variacional idiomático de uma lengua histórica”. (KOCH e OESTERREICHER, 1990, p. 37) 32 estabelecem relações em uma direção fixa determinada. As variedades diatópicas (4) podem funcionar como diastráticas (3), que por sua vez pode funcionar como diafásicas (2), mas não ao inverso (observar figura 2) (KOCH e OESTERREICHER, 1990, p. 38). Os autores ilustram essa afirmação mostrando que uma expressão dialetal muito marcada pode ser classificada como diastraticamente baixa, ao mesmo tempo que também pode ser classificada comodiafasicamente baixa ao ser usada por um falante de classe social alta em um momento de informalidade. A posição central da dimensão variacional 1(a/b) é notória pois abarca elementos de qualquer uma das outras variedades. Além disso, as outras três dimensões orientam sua escala de marcas internas por meio dessa dimensão. Uma variedade diatopicamente forte, diastraticamente baixa e diafasicamente baixa é mais marcada e se aproxima da língua da imediatez. Por outro lado, uma variedade diatopicamente fraca, diastraticamente alta e diafasicamente alta é menos marcada e se aproxima da língua da distância. Na visão dos autores, a dimensão variacional falado/escrito (1b) é ―expressão direta do continuum universal entre imediatez e distancia comunicativa (1a)‖ que resulta das condições comunicativas (parâmetros a-j) (KOCH e OESTERREICHER, 1990, p.38). Por isso, deve sempre ser levada em conta. Nesta seção discutimos a importância do continuum de escrituralidade para a classificação efetiva de TDs. Na seção seguinte, apresentaremos o processo de formação de uma TD, o surgimento da notícia e as suas características atuais. 2.3. Processo de formação de uma TD e o advento da notícia O surgimento do jornal está diretamente ligado aos hábitos de correspondência do passado. Durante os séculos XIV e XV, muitas cartas traziam uma rubrica que continha informações sobre a situação política e comercial do local de origem. Com o passar do tempo, a rubrica dá origem a uma carta inteira dedicada a essas informações e que é anexada à carta de conteúdo privado. Algo essencial para o processo de transformação do gênero que origina a notícia de jornal é a divulgação das notícias recebidas. Era comum divulgá-las entre amigos e familiares, uma honra recebê-las em primeira mão. Para alguns especialistas, como Steinhausen-Kassel (1928 apud CASTILHO DA COSTA, 2011), esse é um momento de transição da carta privada para o jornal, mas precisamos entender melhor como se deu essa transformação. 33 Os gêneros textuais são compostos por formas mais ou menos prototípicas. O conceito de prototipicidade, adotado da linguística cognitiva, admite que ―não existem formas sem variantes e de que todo modelo textual é composto por uma classe de variantes com aspectos formais semelhantes‖ (CASTILHO DA COSTA, 2011, p.38). Diacronicamente, a variedade prototípica pode mudar, sendo, com a passar do tempo, totalmente diferente da variedade dominante que lhe deu origem. Segundo Koch (1997 apud CASTILHO DA COSTA, 2011), novas TD surgem como soluções por meio do ―afrouxamento‖ do já existente. Em outras palavras, uma TD nunca surge ex nihilo, mas, sim, a partir de modificações nos traços de outra TD já existente, como pode ser visto na figura 3: Figura 3: variantes de gêneros textuais Fonte: Koch (1997, p.60) Essa afirmação implica que sempre algo anterior/tradicional é levado adiante enquanto que novos traços surgem. O processo de inovação em tradições culturais, assim como em TD, é comumente feito através da diferenciação de tradições. Wilhelm (1996 apud CASTILHO DA COSTA, 2011) apresenta um estudo no qual analisa a evolução textual dos panfletos, na Itália a partir de 1471, através do processo de diferenciação. Segundo o autor, apesar de serem inovadores, os panfletos se apoiam em TDs já existentes. A ―história‖ em oitava e o ―avviso‖ em prosa são percebidas do ponto de vista das TDs como uma mudança funcional da cantare (balada declamada de memória). A partir da impressão e comercialização, a história torna-se uma fonte de renda para os que cantavam as baladas. O aviso, por sua vez, surge da impressão de cartas de notícias escritas a mão. A figura 4 ilustra a influência de outras TD na composição do panfleto e a origem de notícia de jornal a partir do avviso: 34 Figura 4: tradições discursivas em panfletos italianos 1500-1550 (segundo Wilhelm 1996) Fonte: Castilho da Costa (2011, p. 40) Segundo Wilhelm (1996 apud CASTILHO DA COSTA, 2011), o gênero ―notícia de jornal‖ tem sua origem na impressão de cartas e de relatos enviados por correspondência ao jornal e, portanto, o gênero avviso pode ser considerado um pai da notícia. No que se refere à sua linguagem, Wilhelm (1996, apud CASTILHO DA COSTA, 2011) relata críticas destinadas à mudança da norma a partir do surgimento de uma linguagem própria do jornalismo, afastando-se da linguagem literária, com estilo simples e caráter referencial. Desse modo, os panfletos italianos do século XVI passam a utilizar uma norma autônoma de gêneros textuais informativos, caracterizada por simplicidade, compreensibilidade, adequação ao público popular e ausência de ―enfeites‖ literários. Tais características são recomendadas até hoje na escrita das notícias. Sobre o estilo, o manual de redação e estilo de O Globo recomenda ―fidelidade a três requisitos: exatidão (para não enganar o leitor), clareza (para que ele entenda o que lê) e concisão (para não desperdiçar nem o tempo dele nem o espaço do jornal).‖ (GARCIA, 2001, p. 19). Em termos mais linguísticos, o mesmo manual afirma que a frase ―deve ser curta. 35 [...] permitindo ao leitor assimilar uma ideia ou um fato de cada vez. Mais de uma frase intercalada no mesmo período dificulta o entendimento‖ (GARCIA, 2001, p.29). Na mesma direção vai o manual da redação da Folha de São Paulo. Segundo esse outro manual, é aconselhável evitar o excesso de ques, para tornar o texto mais elegante e a leitura mais ágil. ―Muitas vezes, é melhor usar ponto e dividir o período em dois.‖ (FOLHA DE S. PAULO, 2001, p. 96). De modo geral, os jornais presam por um estilo próximo da linguagem cotidiana, sem deixar de ser fiel à norma culta, com frases curtas e pouco incentivo às orações subordinadas. Nos jornais paulistas do século XIX analisados por Castilho da Costa (2011), a pesquisadora constata o uso de ―técnicas linguísticas próprias da linguagem publicitária e da linguagem jornalística‖ que pode ter seguido os princípios dos panfletos italianos (CASTILHO DA COSTA, 2011, p. 246). Essa influência se dá, devido à ascensão do capitalismo europeu e ao desenvolvimento da imprensa e ampliação desse modelo para novos mercados. Segundo Sodré (1999, p. 28), apenas países em que o capitalismo se desenvolveu, a imprensa também se desenvolveu. No Brasil, a ausência de capitalismo e burguesia, atrelada à censura administrativa e religiosa em uma país predominantemente analfabeto, auxiliou para que o Brasil não tivesse uma indústria tipográfica e jornalística consolidada antes do século XIX, diferentemente de outros países da América Latina (SODRÉ, 1999, p. 28). Somente em 1808, com a vinda da família real portuguesa e a abertura dos portos foi criado o primeiro jornal oficial, a Gazeta do Rio de Janeiro. Ao analisar TDs em jornais paulistanos de 1854 a 1901, Castilho da Costa (2011) atenta para dois aspectos oriundos das cartas presentes no corpus: a organização segundo proveniência e segundo ordem de chegada das informações, dois princípios que, segundo a autora, orientam os jornais paulistas da 1ª metade do século XIX. É possível dizer que até os dias atuais esses dois traços ainda guiam a publicação das notícias, principalmente nos jornais online: 36 Figura 5: plantão de notícias do Tribuna do Norte e do Agora RN Fonte: Tribuna do Norte e Agora RN Tanto no caso do Tribuna do Norte (à esquerda), quanto no caso do Agora RN (à direita), a seção de plantão fica na tela inicial e expõe as notícias por ordem de chegada, de modo que as últimas publicações aparecem no topo, reforçando o aspecto cronológico proveniente das cartas observado por Castilho da Costa (2011) nos jornais paulistanos. Quanto ao aspecto de proveniência, observa-se uma nova tendência: a catalogação das notícias online na maioria das vezes sedá por abas temáticas, das quais o leitor pode escolher seu ponto de interesse. A figura 6 ilustra melhor: Figura 6: abas temáticas dos jornais Fonte: Novo; Tribuna do Norte; Agora RN; Portal no Ar 37 Embora os jornais utilizem nomenclaturas diferentes, todos apresentam uma aba com as notícias provenientes da própria cidade. No caso do Novo e do Portal no Ar temos a aba ―cotidiano‖, no Tribuna do Norte, a aba se chama ―natal‖; e no Agora RN, ―cidades‖. Com exceção da própria cidade de Natal, todas as notícias provenientes de outras origens parecem ter que se encaixar em uma aba temática, sendo a localização da fonte muitas vezes explicitada dentro do próprio corpo da notícia. Em uma perspectiva mais atual, o gênero textual notícia apresenta em sua macroestrutura, o lead e o corpo do texto (body). Nesse modelo, as informações mais relevantes são apresentadas no início e são detalhadas no texto (body). Esse tipo de construção textual foi adotado somente a partir de 1950 no Brasil (VIZEU & MAZZAROLO, 1999 apud CASTILHO DA COSTA, 2011). No que se refere à linguagem jornalística presente nas notícias do corpus, constata-se o caráter altamente informativo, com adequação ao público e sem ―enfeites literários‖, contribuindo para a crença de que suas raízes se encontram inicialmente nos panfletos italianos, mas também nos grandes jornais de circulação nacional, como os analisados por Castilho da Costa (2011). Muitas notícias veiculadas pelos jornais do corpus são recortes de jornais maiores, como visto nas figuras 7 e 8: 38 Figura 7: notícia do Agora RN de 07 de janeiro de 2016 Fonte: Agora RN 39 Figura 8: notícia do Folha de São Paulo de 07 de janeiro de 2016 Fonte: Folha de S. Paulo Na figura 7 temos uma notícia do Agora RN de quatro parágrafos. Na figura 8 temos uma notícia da Folha de S. Paulo de oito parágrafos. O Agora RN não faz 40 referência a fontes externas e atribui sua publicação à ―redação‖, adicionando um subtítulo, característico desse jornal, recortado do terceiro parágrafo da publicação. Contudo, encerra a notícia sem publicar na íntegra a notícia da Folha de S. Paulo, que atribui sua fonte Marcelo Toledo. Comportamento semelhante pode ser visto em outros jornais analisados. Vejamos um exemplo do Tribuna do Norte: Figura 9: notícia do Tribuna do Norte de 15 de abril de 2016 Fonte: Tribuna do Norte 41 Figura 10: notícia do Estadão de 14 de abril de 2016 Fonte: Estadão Na figura 9, temos uma notícia do Tribuna do Norte extraída do Estadão (figura 10). Mais uma vez o jornal em questão não faz referência a fontes externas, retirando, inclusive, a referência geográfica a Brasília do início da notícia. Outra pequena mudança feita pelo jornal é a retirada do subtítulo e também do título do subtópico ―abaixo-assinado‖ em negrito, no quarto parágrafo. 42 Essas constatações, se por um lado contribuem para a crença de que os jornais do estado do Rio Grande do Norte são influenciados pelos jornais de grande circulação nacional, por outro evidenciam a falta de autonomia do jornal em relação a temas nacionais e de elevado conhecimento específico, como no caso do impeachment. Na seção seguinte relacionamos a noção de TD à proposta de juntores de Raible (1992) e apresentamos a hipótese de que o modo como os juntores se distribuem em um texto pode ser sintomático para a descoberta de novas TD. 2.4. Juntores como indicadores de TDs A comunicação humana é primordialmente baseada em enunciados e textos, não em frases soltas. Isso significa que conectar unidades menores em unidades maiores é uma atividade básica do ser humano. Em seu artigo de 2001, Linking clauses, Wolfgang Raible nos apresenta cinco técnicas fundamentais que os falantes usam para ligar proposições: (I) hierarquia sintática, (II) relações semânticas, (III) dinamismo comunicativo, (IV) manutenção da referência e (V) gênero textual. A combinação entre hierarquia sintática e relações semânticas origina o que Raible chama de juntor (RAIBLE, 1992). Conforme Wolfgang Raible (1992 apud CASTILHO DA COSTA, 2015) a junção é vista como como uma dimensão universal e deve ser entendida como o estabelecimento de relações semânticas segundo a qual podem sistematizar-se os diferentes elementos e as diferentes técnicas linguísticas para juntar ou combinar elementos proposicionais. As técnicas de combinação a que Raible se refere estão dispostas em um continuum que vai desde o polo da agregação até o polo da integração. Peguemos um exemplo de relação semântica como causalidade para podermos compreender melhor: (1) Pedro está doente. Ele continua em casa (2) Pedro continua em casa. Ele está doente Os exemplos 1 e 2 são representações de agregação. Nesse nível, a relação expressa é uma simples questão de inferência, tanto que a ordem das frases não tem importância (RAIBLE, 2001). No exemplo 1, afirmamos que Pedro está doente, então inferimos que o fato de ele continuar em casa é causada pela doença. Em 2, afirmamos que Pedro continua em casa e isso se dá por conta de ele estar doente. A diferença entre 43 os dois exemplos aparece somente quando atentamos a qual proposição é mais relevante para o enunciador, contudo, a relação semântica se mantém. Vejamos outra frase: (3) Pedro continua em casa, pois está doente. No exemplo 3, mantemos a mesma relação semântica. Porém temos uma técnica de junção por coordenação na visão de Raible (1992). A segunda oração (pois está doente) está conectada à oração que a precede com o uso explícito do juntor ―pois‖. Nesse ponto, já notamos a vantagem do continuum de técnicas de integração sintática proposta por Raible (1992) em relação à visão dicotômica coordenação-subordinação proposta pela gramática tradicional. Enquanto Raible admite a existência da agregação como a relação semântica criada sem uso de juntor explícito, a gramática tradicional considera os exemplos 1, 2 e 3 como orações coordenadas, sem distinção. Vejamos outra técnica: (4) Já que está doente, Pedro continua em casa. Em 4, temos uma junção por subordinação. É possível notar isso pois há um juntor explícitos (já que), diferentemente do exemplo 1 e 2, e há a possibilidade de inversão das orações, diferentemente das coordenadas 3. Seria possível dizer ―Pedro continua em casa, já que está doente‖. Além do mais, o transpositor ―que‖ é uma marca de junção por subordinação. Agora vamos a mais um exemplo: (5) Por doença, Pedro continua em casa. É inegável que neste caso a relação de causalidade também é clara. Contudo, mais uma vez a dicotomia coordenação-subordinação adotada pela gramática tradicional não faz jus à técnica usada, pois temos uma preposição (por) ligada a um substantivo (doença) e não a uma oração. O modelo de Raible (1992) adota termos mais neutros – como a agregação e integração -, pontos extremos em uma escala que admite diversas técnicas intermediárias de combinação (RAIBLE, 2001, p. 8). O caso 5 é o que Raible exemplifica como sendo do polo da integração sintática, feita a partir do uso da preposição simples. A escala de integração sintática proposta por Raible (2001, p. 9) tem diversas técnicas e pode ser aplicada para comparar diversos idiomas, já que todas as línguas expressam proposições. Dada a universalidade da escala, a diferença entre as línguas 44 está no fato de elas aplicarem diferentes técnicas de ligação. O que o autor nos propões são as seguintes principais categorias: Quadro 4: tipos de integração sintática Integração I Junção por justaposição (sem juntor explícito) II Advérbio juntivo III Junção por coordenação (com juntor explícito) IV Junção por subordinação (hipotaxe e encaixamento) V Junção com gerúndios
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