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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE TECNOLOGIA DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO ANA CAROLINA GUILHERME COÊLHO MORAR POR DIREITO: locação social no Brasil. NATAL/RN 2020 2 ANA CAROLINA GUILHERME COÊLHO MORAR POR DIREITO: locação social no Brasil Tese de doutorado apresentado ao Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio grande do Norte, em cumprimento às exigências legais como requisito parcial para a obtenção de título de Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Dr. Márcio Moraes Valença NATAL/RN 2020 3 ANA CAROLINA GUILHERME COÊLHO MORAR POR DIREITO: locação social no Brasil Tese de doutorado apresentado ao Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio grande do Norte, em cumprimento às exigências legais como requisito parcial para a obtenção de título de Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Aprovada em:_______/_______/_______ BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________________ Profa. Dra. Simone Ferreira Gatti (Examinadora Externa) _____________________________________________________________ Dra. Maria Florésia Pessoa de Souza e Silva (Examinadora Externa) _______________________________________________________________ Profa. Dra. Sara Raquel Fernandes Queiroz de Medeiros (Examinadora Externa ao PPGAU/UFRN) _______________________________________________________________ Profa. Dra. Gleice Virgínia Medeiros Azambuja Elali (Examinadora Interna) _______________________________________________________________ Prof. Dr. Márcio Moraes Valença (Orientador) 4 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas – SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial Prof. Dr. Marcelo Bezerra de Melo Tinôco - DARQ - -CT Coêlho, Ana Carolina Guilherme. Morar por direito: locação social no Brasil / Ana Carolina Guilherme Coêlho. - Natal, RN, 2020. 205f.: il. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Tecnologia. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Márcio Moraes Valença. 1. Habitação - Tese. 2. Direito à moradia - Tese. 3. Direito à propriedade - Tese. 4. Locação social - Tese. I. Valença, Márcio Moraes. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/BSE15 CDU 728 Elaborado por Ericka Luana Gomes da Costa Cortez - CRB-15/344 5 AGRADECIMENTOS O sonho de cursar um doutorado é uma construção que começa junto com a minha história. Filha de professora desta Universidade, estive dentro de sala de aula desde as minhas primeiras memórias de infância. Num cantinho da sala de aula, quieta, pintando, enquanto minha mãe, uma mulher à frente do seu tempo, que engendrada num contexto de luta contra as amarras machistas da sociedade e de dentro de casa, aliou o trabalho na universidade e a maternidade com maestria. E assim, aprendi a amar a universidade como a extensão da minha casa. Entrar nos laboratórios, assistir minha mãe se agigantando nas histórias da arte, foi o primeiro passo para eu ser aluna da pós-graduação. Com o passar do tempo, esse sonho foi se tornando real com o mestrado e depois o doutorado. O conhecimento acadêmico é parte desse processo, mas não o único. O encontro com as realidades trazidas pelos colegas e professores, os diálogos nas bases de pesquisas, congressos e debates, as aulas que dei no curso de direito da mesma instituição, fortaleceram o caminho percorrido. E, nesses encontros da vida, talvez um dos mais especiais tenha sido com meu orientador. Conhecer Márcio Valença e ter o privilégio de ser sua aluna foi, sem dúvida, um dos pontos mais marcantes desse doutorado. A escolha da tese, as leituras que antecederam o projeto, as tentativas pretéritas antes da aprovação, as correções minuciosas dos meus textos agregaram um capital social e uma maturidade a mim que não podem ser expressas em nenhuma publicação acadêmica, mas foram, inequivocamente, os conhecimentos mais preciosos que adquiri. Aprendi com ele não só a ser aluna, mas a ser professora. Sou grata demais por esse encontro permitido pela vida. Agradeço à minha família. A rede de apoio ao longo dos últimos anos foi determinante para esse trabalho começar e terminar. E esse ciclo começou e está terminando com dois grandes marcos na minha vida: o nascimento de João Marcelo em 2015 e o nascimento de Maria Carolina em 2020. São eles também, frutos desse processo de autoconstrução minha enquanto mulher, estudante, professora, advogada e ser humano! Os dois, junto à Marcelo, minha mãe e minha irmã, formaram o núcleo duro para que esse doutorado fosse uma conquista plural. Toda minha família também é parte de cada reflexão, de cada vivência, de cada texto escrito. Somos o reflexo do que vivenciamos. E eu vivencio profundamente minha família. Agradeço, por fim, à UFRN, ao PPGAU e PPEUR por terem me acolhido com tanta estima, entusiasmo e confiança. Todo corpo docente e aos colegas de trajetória, que a cada aula, cada debate, cada crítica, tornaram esse trabalho ainda mais possível, abrindo meus olhos e 6 fazendo com que o desafio fosse cada dia mais instigante e prazeroso. Lembro com especial carinho das aulas das professoras Amadja e Edja, que além de grandes mulheres, sábias, aproximaram meu recorte com a teoria e me ensinaram a fazer da pesquisa uma escolha de vida. Aos servidores (diretos e terceirizados) e ao Estado, por intermédio da CAPES, que com o financiamento da bolsa de pós-graduação, ajudou com o doutorado, que mesmo sendo uma bolsa que não contempla a universalidades das necessidades do aluno da pós-graduação, são um incentivo para a pesquisa científica. Ser aluno de universidade pública é uma luta diária pela ciência, pela universalidade do conhecimento e pela independência e incentivo do ensino público. Por fim, o maior conhecimento adquirido com este doutorado é, sem dúvida, as lições aprendidas nas entrelinhas. Nos sorrisos, nos debates, nas angústias, nos prazos e, sobretudo, na amizade e no carinho que pautaram cada dia meu aqui dentro. Obrigada! 7 RESUMO A tese se propõe a analisar a locação social como uma alternativa de provisão habitacional no Brasil. Considerando que a carência de moradias ainda é uma realidade no país, vislumbra-se no cenário da habitação novas possibilidades que não contemplem a aquisição definitiva, permitindo que o direito à moradia seja garantido por políticas públicas habitacionais de locação social. A partir da análise sobre o significado da casa, do morar e do habitar e suas derivações, da perspectiva jurídica sobre direito à moradia e direito à propriedade e as implicações legais do aluguel no cenário brasileiro e a leitura de algumas experiências nacionais e internacionais, assim como o sistema jurídico brasileiro que ampara a possibilidade de aplicação desse tipo de provisão de moradia, esta tese contempla a possibilidade da locação social como uma forma de provisão habitacional. Para realização dessa pesquisa, de natureza eminentemente qualitativa, teve como vértice da pesquisa a análise documental de legislação e políticas habitacionais brasileiras, assim como análise de algumas experiências internacionais de políticasde locação social a partir de bibliografia, consulta de sítios eletrônicos e fontes oficiais. O trabalho se caracteriza por uma leitura conceitual sobre direito à moradia, contemplando a viabilidade de implementação de política pública de locação social como uma forma de acesso à moradia, mas com as garantias jurídicas que assegurem ao morador a efetiva contemplação de seu direito. Palavras-chave: direito à moradia; direito à propriedade; política habitacional no Brasil; locação social. 8 ABSTRACT The thesis proposes to analyze social renting housing as an alternative for housing provision in Brazil. Considering that the lack of housing is still a reality in the country, new possibilities are envisaged in the housing scenario that do not contemplate the definitive acquisition, allowing the right to housing to be guaranteed by public housing policies for social leasing. Based on the analysis of the meaning of the house, the dwelling and the dwelling and its derivations, the legal perspective on the right to housing and the right to property and the legal implications of rent in the Brazilian scenario and the reading of some national and international experiences, as well as like the Brazilian legal system that supports the possibility of applying this type of housing provision, this thesis contemplates the possibility of social leasing as a form of housing provision. In order to carry out this research, of an eminently qualitative nature, it had as a vertex of the research the documentary analysis of Brazilian housing laws and policies, as well as the analysis of some international experiences of social rental policies from bibliography, consultation of electronic sites and official sources. The work is characterized by a conceptual reading on the right to housing, contemplating the feasibility of implementing public policy of social renting housing as a form of access to housing, but with the legal guarantees that ensure the resident the effective contemplation of their right. Keywords: right to dwelling; right to property; social housing policy; social renting housing 9 LISTA DE FIGURAS Figura 1- Habitações sociais no Reino Unido ................................................................114 Figura 2 - Habitações sociais no Reino Unido .............................................................114 Figura 3 - Habitações sociais no Reino Unido .............................................................115 Figura 4 - Habitações sociais na Alemanha..................................................................124 Figura 5 - Habitações sociais na Alemanha..................................................................124 Figura 6 - Habitações sociais na Alemanha..................................................................125 Figura 7 - Alguns prédios (projects) em Nova Iorque..................................................129 Figura 8 - Alguns prédios (projects) em Nova Iorque....................................................129 Figura 9 - Alguns prédios (projects) em Nova Iorque....................................................130 Figura10- Prédio destinado às habitações HLM na França............................................139 Figura 11 - Prédio destinado às habitações HLM na França..........................................140 Figura12 - Prédio destinado às habitações HLM na França ..........................................140 Figura 13 - Residencial Galápagos em Maceió - AL......................................................156 Figura 14 - Residencial Via Norte II- João Pessoa - PB.................................................157 Figura 15 - Conjunto Residencial Vale Velho II- São Paulo - SP..................................157 Figura 16 - Residencial Ribeira II- Natal - RN...............................................................158 Figura 17 - Conjunto PAR-Bahia- Blumenau - SC.........................................................158 Figura 18 - Residencial Parque do Gato, bairro do Bom Retiro, São Paulo – SP...........173 Figura 19 - Residencial Olarias, bairro do Canindé - SP.................................................173 Figura 20 - Residencial Vila dos Idosos, bairro do Pari, São Paulo - SP........................173 Figura 21 - Residencial Asdrúbal do Nascimento II, Sé, São Paulo - SP.......................174 Figura 22 - Residencial Senador Feijó, Sé, São Paulo - SP............................................174 Figura 23 - Palacete dos Artistas, Centro, São Paulo - SP.....................................................................................................................................175 10 LISTA DE TABELAS Tabela1- Instituições bancárias que oferecem financiamento bancário privado e juros praticados..................................................................................................................................90 Tabela 2 - Distribuição entre casas e apartamentos nas ofertas de aluguel na cidade de Natal- RN, 2018..................................................................................................................................97 Tabela 3 - número de habitações sob controle da associação habitacional de Munique, em 31/12/211 ................................................................................................................................121 Tabela 4 - Comprometimento da renda familiar no Programa de Locação Social de São Paulo.................................................................................................................................169 Tabela 5- Empreendimentos do Programa de Locação Social em São Paulo e número de unidades disponíveis, 2015.....................................................................................................172 11 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - estoque total, em porcentagem, de habitação na Inglaterra em 2017.............112 Gráfico 2 - divisão das moradias, em números de habitações, na Inglaterra, 2017...................................................................................................................................112 Gráfico 3 - número de habitações residenciais na Alemanha em 2018............................119 Gráfico 4- estrutura das moradias na Alemanha em 2014 ...............................................121 Gráfico 5 - status das habitações na Alemanha em 2014, por renda e forma de acesso................................................................................................................................123 Gráfico 6 - moradia, por tipo de aquisição, em 2017........................................................127 Gráfico 7 - habitações situadas em áreas de aluguel controlado, 2017.............................127 Gráfico 8 - distribuição de apartamentos subsidiados por bairro em Nova Iorque com vouchers da section 8, em 2018.........................................................................................131 Gráfico 9 - Distribuição do estoque habitacional de Nova Iorque, em 2010.....................132 Gráfico 10 - tipo de financiamento habitacional HLM 2018.............................................136 Gráfico 11 - número de habitações sociais HLM e taxa de famílias arrendatárias até 2017....................................................................................................................................137 12 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Características das habitações HLM.................................................................138 Quadro 2 - Características dos empreendimentos construídos no PAR..............................153Quadro 3 - Argumentos utilizados para justificar a política de locação social no município de São Paulo-SP......................................................................................................................167 Quadro 4 – Principais requisitos para participação no programa de Locação Social..................................................................................................................................180 13 Sumário PRIMEIRO CAPÍTULO- INTRODUÇÃO.......................................................................... 14 SEGUNDO CAPÍTULO - A casa e o morar: uma simbiose entre a necessidade e o desejo21 II.I Sobre a Necessidade e o Desejo: A Casa .................................................... 22 II.II A Casa como Abrigo: A Necessidade ........................................................ 24 II.III Sobre o Desejo: desejo de quê? ................................................................ 33 II.IV A Vida Cotidiana e a Casa .................................................................. 37 II.V Quando a Necessidade se Converte em Desejo: A Casa como sonho .... 43 II.VI O Sonho da Casa ...................................................................................... 46 TERCEIRO CAPÍTULO- A PROPRIEDADE, A MORADIA E O DIREITO ................... 49 QUARTO CAPÍTULO- AS FORMAS JURÍDICAS DO MORAR E O CENÁRIO DA LOCAÇÃO NO BRASIL ..................................................................................................... 77 QUINTO CAPÍTULO- LEITURA DE EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS DE LOCAÇÃO SOCIAL ......................................................................................................... 101 5.1 A perspectiva da habitação social e da locação no plano internacional .... 101 5.2- Reino Unido ............................................................................................. 108 5.3. Alemanha .................................................................................................. 115 5.4- Cidade de Nova Iorque ............................................................................. 126 5.5- França ....................................................................................................... 133 5.6- O que as experiências ensinam................................................................. 141 SEXTO CAPÍTULO - A LOCAÇÃO SOCIAL COMO POLÍTICA DE PROVISÃO HABITACIONAL NO BRASIL ........................................................................................ 143 6.1- O Programa De Arrendamento Residencial- PAR ................................... 151 6.2- A Locação Social no Brasil sob a Perspectiva de uma Política Pública .. 161 6.3- Uma análise das possibilidades da locação social no Brasil .................... 176 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 184 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 189 14 PRIMEIRO CAPÍTULO- INTRODUÇÃO A subjetividade é um elemento fundamental para compreensão do Direito à moradia. A casa, como espaço afetivo onde a relação do morador com o ambiente construído acontece, precisa ser considerada para entender a necessidade do abrigo para o ser humano. Para além do atendimento às questões fisiológicas, o abrigo é uma necessidade vital para garantir ao indivíduo a possibilidade de acolhimento em relação ao mundo externo que pode ser, numa visão mais rudimentar, sinônimo do desconhecido e, portanto, de perigos e ameaças. Daí a importância de pensar a casa como um Direito e a presença do Estado como garantidor das políticas que assegurem o exercício desse Direito. O abrigo se converte em um espaço afetivo do desenrolar das atividades diárias. O cotidiano ganha um palco. As necessidades básicas dominam um espaço, em que o morador se reconhece em sua integralidade. Há, em cada parede, em cada janela, porta, em cada móvel, um retrato do mundo interior de quem mora. As cores, a disposição da mobília, os adornos são símbolos do interior do ser humano. Há, mesmo que implicitamente, uma razão para cada decisão tomada na construção e embelezamento do abrigo. A casa se torna então referência. É o ponto de partida e chegada do seu morador. Seus trajetos passam a ter como norte a casa. Os parâmetros de perto e longe, grande ou pequeno, acolhedor ou não, passam pela percepção da casa, casa esta que não se limita a um determinado tipo de construção; é sinônimo de qualquer tipologia construtiva, desde que se transforme em afetividade. A relação de identidade e pertencimento é construída a partir do tempo, tempo este que é crucial para que o morador estabeleça seus hábitos no espaço construído. Esse tempo também toma forma na materialidade e na relação jurídica que formaliza o meio de acesso. Considerando ser o Brasil um país cujo ordenamento das relações públicas e privadas estão sob o amálgama legal e dogmático, significa dizer que as relações entre o morador e a moradia também se constituem como fatos jurídicos e, assim sendo, a forma de junção da necessidade de morar com o desejo da moradia está envolvida em um pacto negocial, em um contrato ou uma política pública, firmado com o Estado ou com particulares, mas que independente de sua forma ou adequação da via eleita, não retira a validade do instrumento para consecução do Direito. Compreender alguns fatos jurídicos ligados ao direito à moradia também se revela pertinente na concepção de uma análise sobre locação social, visto que pressupõe a existência de uma lei ou programa de governo que regulamente a forma de acesso e estabeleça os critérios 15 básicos de existência e validade. A política pública em si já requer a adequação ao ordenamento jurídico, considerando que é ato da Administração Pública e, portanto, não pode ocorrer ao arrepio da lei. Falar então de política pública e de moradia num contexto propositivo de atuação do Estado requer uma análise não só da gestão da moradia e da política pública, mas também do Direito, compreendido como uma categoria que orienta as leis e a validade dos atos do Estado, além de ser o norte que elenca as obrigações e direitos do cidadão e também do Poder Público. Considerando, pois, que a moradia é um elemento central e numa perspectiva jurídica é tratado também como direito fundamental, sua pertinência temática se revela na análise de seu axioma e suas implicações práticas no campo de Direito como garantia, viabilizada pela política pública. Há, nesse contexto, ainda uma importante discussão que se trava na literatura sobre a propriedade privada e a moradia. A propriedade privada, sabidamente um instituto de ampla garantia e proteção do ordenamento jurídico brasileiro, tem um destaque nas disposições legais que orientam, também as políticas públicas (SILVA, 2007). Além disso, historicamente, a propriedade privada revela um caráter patrimonialista do Estado, em razão da mercantilização da terra e sua especulação, excluindo parcela populacional que não tem acesso à economia formal ou não possui renda para acessá-la (HARVEY, 2010). Assim, frente ao maciço aporte de regulação e proteção ao direito de propriedade nas leis brasileiras, e, partindo de uma premissa de que a propriedade privada é um óbice à consecução do direito à moradia por engendrar as políticas habitacionais e o acesso das classes menos abastadas à casa (HARVEY; VALENÇA; D’OTTAVIANO; GATTI), poderia haver, então, uma antinomia jurídica no Brasil quando um mesmo texto jurídico (Constituição Federal de 1988) traz em seu bojo a dupla garantia e proteção do direito à propriedade e direito à moradia? Nesse caso, os princípios jurídicos que garantem oacesso à casa se excluem ou se complementam? Para dirimir as implicações teóricas na hermenêutica jurídica e quais as consequências que essa interpretação legal representa nas políticas públicas habitacionais, em especial as políticas que não contemplem o acesso pela casa própria, o trabalho analisa os instrumentos jurídicos que tratam diretamente sobre propriedade e moradia, com recorte especial sobre as leis e garantias da locação, já que essa possibilidade de acesso é de especial interesse. A moradia se perfaz por vários caminhos e cada um apresenta suas peculiaridades, inclusive do ponto de vista jurídico. 16 Em adição, a ideologia da casa própria, presente no imaginário coletivo como garantia de uma moradia segura, também é vértice para proposição de leis e políticas públicas voltadas para a habitação. No Brasil, ao longo do último século, tivemos uma série de investimentos públicos para o setor da habitação, com massivo aporte de dinheiro e recursos direcionados para construção e aquisição da casa própria. Entretanto, o que já se consolidou no contexto brasileiro é que a política que promove o acesso à casa própria não atende a todas as pessoas que precisam de moradia, especialmente pela conjuntura de estratificação e desigualdades sociais que existe no país. Isso implica em dizer que o acesso à moradia no Brasil tem uma seletividade no atendimento do Direito à moradia, no sentido de que a renda e as condições econômicas e sociais de parte da população se tornam um obstáculo para a consecução do Direito de morar. Dito isso, os dados e índices oficiais (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE, 2020 e Fundação João Pinheiro, 2012) confirmam que, ao longo das décadas, a população de baixa renda (hoje classificada em quem ganha até 3 salários mínimos por mês) ainda é parcela majoritária de demanda por habitação, pelos óbices e dificuldades de comprometimento de renda e formalização burocrática para atendimento dos requisitos impostos pelo Estado e pelos agentes privados, como as instituições financeiras que fazem os financiamentos. Muito embora a realidade brasileira demonstre um paulatino aumento no número de pessoas necessitadas de moradia, atrelado a um crescente aprofundamento das desigualdades sociais (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio- PNAD, 2020), o Brasil não é um caso isolado. Pela leitura das políticas habitacionais de outros países, independentemente de sua condição econômica, os estudos demonstram que o acesso à moradia também é um problema para as políticas públicas. Assim, o setor de habitação é uma pasta nas organizações estatais dos países porque os dados e as análises demonstram que o acesso à moradia via mercado não é universal. Não obstante ser o Direito à moradia uma inscrição constitucional no Brasil, o Direito à propriedade também o é. Sob o olhar jurídico, o aparente conflito de normas entre assegurar o Direito do proprietário e aquele do morador se desfaz com uma análise hermenêutica do Direito. A partir da técnica de análise proposta por Habermas e Alexy (SACRAMENTO, 2019) é possível afirmar que a coexistência das garantias da propriedade e da moradia não se excluem, nem formam uma antinomia jurídica. O reflexo dessa conclusão para a habitação é que o fato de as políticas públicas que fomentam a moradia pela locação social pode ser somado às políticas públicas que fomentam o acesso pela aquisição de compra e venda. 17 As políticas públicas habitacionais promovidas pelo Estado e o financiamento público e privado para aquisição de habitações formam um conjunto de variáveis que, aliadas à crise urbana enfrentada pela sociedade brasileira em razão da concentração urbana crescente nas cidades (MARICATO, 2014), traz à tona a problemática da solução da provisão habitacional que contemple, além de questões pragmáticas como preço e localização (VILLAÇA, 2001), aspectos sociais e estruturais que estão atrelados ao Direito de morar. Considerando a gama diversificada de medidas propositivas, seja do Estado, seja do próprio mercado, no sentido de diversificar os modos de apropriação e mercantilização dos lotes de terra, é inexorável ao tema constatar que a propriedade privada, por meio da aquisição definitiva, é o modo mais convencional instituído no Brasil no que tange à questão jurídica das formas de acesso à propriedade. Porém, mesmo diante de um cenário de intensificação do uso do solo urbano e sua crescente demanda, há ainda problemas que tangenciam a moradia. A localização, a mobilidade, o acesso aos equipamentos e serviços, as condições estruturais precárias, a informalidade e a segregação são só alguns pontos que podem ser debatidos. Ademais, vislumbra-se que, mesmo diante de grandes programas financeiros para subsídio de aquisição de moradia, como os do BNH (Banco Nacional de Habitação) e o Programa Minha Casa Minha Vida1, por exemplo, ainda existem lacunas profundas no déficit habitacional brasileiro (Fundação João Pinheiro, 2012). A respeito de fundado debate teórico sobre a renda da terra e o uso do espaço urbano (HARVEY, 2013), pretende-se compreender a questão habitacional brasileira a partir da perspectiva da locação social. Discutir-se-á formas alternativas de acesso à moradia e, para além desse debate, se contemplará algumas experiências que, aliando ações do setor público e do setor privado, conseguiram, de alguma maneira, prover moradia para certos grupos sociais através da locação social. Então, em um recorte espacial que toma o Brasil como espaço de análise e estudo, busca-se compreender a locação social como uma possível forma para provisão de moradia, em particular nas grandes cidades. Elenca-se, pois, a locação social como uma forma de acesso à moradia (TIPPLE, 2015), considerando que há uma demanda por habitação no espaço urbano das cidades brasileiras (MARICATO, 2014). Pelos estudos já realizados nessa temática (ver TIPPLE, 2015; 1 As políticas citadas são de fundamental importância para a compreensão da política habitacional brasileira. Porém, a história da habitação no Brasil não se limita a esses casos; é preciso também considerar uma série de políticas relevantes, como a dos IAP's, Projeto União por Moradia Popular, entre outros, realizados no passado (ver BONDUKI, 2002). 18 VALENÇA, 2015; BONATES, 2007), percebe-se que a política de implantação da locação social em um território pode considerar elementos fundamentais como localizações centrais disporem de infraestrutura adequada (BONATES, 2007) e poderem ser economicamente viável para o público. A viabilidade da locação social no Brasil, a partir dos estudos de Gatti (2015), Bonates (2007), Valença (2008;2015) e D’Ottaviano (2014), é ilustrada pelas leituras de experiências com o Programa de Arrendamento Residencial- PAR, de abrangência nacional, e com o Programa de Locação Social, na cidade de São Paulo. Ambas experiências, fruto de políticas de Estado para promoção de acesso à moradia, têm a característica de possibilitar o acesso à moradia pelo arrendamento ou locação, fugindo a priori da lógica da casa própria e da aquisição do título definitivo, o que demonstra que o Estado considera a locação como uma via de provisão. Considerando a possibilidade de o Estado gerir seu próprio estoque de moradia, dispondo à sociedade habitação a ser acessada por meio de uma locação, percebe-se que esta prática é possível de ser executada (VALENÇA, 2015). Partindo de uma análise de algumas experiências de locação social internacionais, mais especificamente no Reino Unido, Alemanha, França e a cidade de Nova York, por serem esses locais referências em políticas de locação social, e amparado pela avaliação das políticas voltadas à locação no Brasil, como o Programa de Locação Social de São Paulo, este trabalho busca fazer uma análise da viabilidadeda política de locação social para o Brasil, cujo recorte temporal da pesquisa inicia-se na década de 1990, período em que deu-se início à execução de políticas dessa natureza no país. A construção de uma narrativa habitacional que contemple os enredos de outras experiências é importante para perceber que o acesso à moradia é uma questão de agenda pública não só no Brasil. A escolha dos casos para análise se deu pelo fato de que os contextos escolhidos abraçaram a política de locação social – embora com diferentes formatos – como uma política de Estado, incrementando o rol de alternativas dadas aos cidadãos no sistema de provisão habitacional. É, assim, a conjuntura do urbano, que congrega um olhar plural, multifocal, que denota medidas e respostas na mesma velocidade que transforma e é transformada (LEFEBVRE, 2010). A locação social mostra-se, então, como uma proposta de acesso à cidade, de possibilidade de uso do solo condigna com a práxis do mercado, sem, contudo, excluir o vértice humano, de necessidade e desejo, de integração e relação (DE CERTEAU, 2013). 19 Com o objetivo de analisar a possibilidade da locação social como forma de acesso à moradia no Brasil, este trabalho apresenta uma dimensão analítica que congrega um olhar do Direito para a política pública de moradia no Brasil. Considerando o atual panorama, ainda deficitário, de moradia pelas classes pobres do Brasil, é patente que as formas de provisão habitacional que o Estado tem executado não têm sido suficientes para prover a demanda por casa. As pessoas anseiam pela garantia do seu direito à moradia, e não se pode dizer que essa moradia se dê exclusivamente pela casa própria. A política da casa própria tem sido discutida e avaliada e, pelos elementos apresentados ao longo desse texto, afirma-se que existem fragilidades em seu planejamento e execução as quais mitigam o acesso de quem precisa de moradia. Além disso, através das leituras das experiências internacionais escolhidas (Reino Unido, Alemanha, França e cidade de Nova Iorque), é perceptível que a locação social é plausível e executável dentro das políticas habitacionais promovidas pelo Estado como forma de acesso à moradia, o que justifica a escolha dessas experiências para, a partir de uma leitura de como esses suas políticas de locação social são estruturadas, usá-las possivelmente como parâmetro para a realização de uma política própria no Brasil. Por fim, buscando compreender a atual conjuntura habitacional brasileira que se debruça sobre a locação social, é possível identificar que o Brasil, mesmo que de forma pontual, já possui algumas experiências de acesso à moradia por políticas de locação, o que permite, aliado à uma permissibilidade do ordenamento jurídico para que essas políticas sejam válidas, que a locação social seja uma forma de provisão habitacional no país, visto que os requisitos para sua existência e validade estão amparados na lei e que há uma similitude nas experiências internacionais, as quais justificam a importância do Estado em promover e diversificar as formas (jurídicas) de moradia no Brasil. Por fim, os capítulos estão dispostos de modo que a questão da moradia seja tratada primeiro em seu aspecto subjetivo, a partir de uma leitura afetiva e dos elementos que tornam a casa um objeto de desejo (ou necessidade), para que seja possível compreender o caráter elementar da casa: por que todos nós queremos uma moradia? Com isso, é traçado um percurso de conversão do desejo em Direito, considerando que as leis são as normativas que o Estado encontra para limitar seus poderes e deveres. Tomando o Direito como norte, a política habitacional, tida como o resultado de uma construção social do desejo elementar do abrigo e da necessidade da moradia, é considerada como parâmetro para identificar as formas que o Estado tem adotado para promover o direito à 20 moradia, bem como identificar se nessas políticas habitacionais a locação social é tomada como forma de promover o acesso à casa. Ao passo em que o cenário brasileiro é visitado para compreender a execução das políticas habitacionais e a possibilidade de aplicação da locação social como uma forma de provisão de moradia, experiências internacionais também são utilizadas para construção de um diálogo entre o que temos aqui e o que se encontra hoje lá fora, em alguns países e cidade que têm uma relevância quando se fala em locação social. O recorte dos contextos de estudo se justifica ou pelo ineditismo na concepção de políticas de Estado voltadas à locação ainda na primeira metade do século XX, como Reino Unido e Alemanha, ou pela envergadura e representatividade do número de moradias na atualidade destinadas à locação (França e cidade de Nova Iorque), demonstrando que a locação social é uma realidade experienciada atualmente em vários países do mundo. Por fim, na construção dialética que se propõe esse trabalho, o último capítulo traça um panorama do contexto brasileiro atual sobre locação social, mostrando experiências pontuais que se desenvolveram no país, os esforços legislativos nesse sentido e se há, finalmente, viabilidade para que o Brasil possa ter sua própria política de Estado voltada para locação social. Como resultado das análises e leituras, é possível concluir que a moradia é uma necessidade humana e, por isso, seus traços se materializam no campo do possível a partir da regulamentação e garantia como um Direito, sendo a lei uma extensão do campo subjetivo, assegurando que o Estado promova políticas que garantam o abrigo, que deixa de ser conceito onírico e passa a Direito Fundamental. E, como visto, assumindo o dever de provisão, o Estado pode (e deve) contemplar nas suas políticas habitacionais formas diversificadas que atendam as demandas sociais, especialmente àquelas voltadas às classes mais pobres, que representam uma significativa demanda por habitação com suporte de política púbica. A locação social é então uma forma de provisão habitacional, cuja forma jurídica, quando tida como política pública, garante ao cidadão o direito ao exercício da moradia e proporciona experienciar o Direito à Cidade, através de acessos e uso dos espaços, em que a moradia é uma parte importante de uso e convergência do espaço urbano. 21 SEGUNDO CAPÍTULO - A casa e o morar: uma simbiose entre a necessidade e o desejo O indivíduo tem constituída em sua essência a necessidade de proteção, que no decorrer do tempo foi se construindo socialmente a identificação do abrigo como o local onde a segurança e a proteção ocorreriam, blindando do mundo externo. Desde a concepção, o ventre representa lugar de acolhimento, de segurança e conforto e essa característica de natureza vital perdura durante o processo de socialização e construção de suas relações com o meio e com os pares. A construção imagética do ambiente se materializa em sua relação com a casa, busca sempre o retorno à cabana, lugar de proteção, segurança e conforto (BACHELARD, 2008), que oferece ao indivíduo a possibilidade de imprimir no ambiente construído as raízes mais originais da sua condição de existência e sobrevivência. A casa, o morar e o habitar serão três termos usados neste trabalho. É importante iniciar explicando a abordagem que se dará ao tratar habitar destes termos. Embora os três possam designar a ideia de estar sob abrigo, de residir, levando o leitor à figura do ambiente construído, na acepção que se busca tratar a questão nesta tese exige que se ressalve que a casa apresenta um sentido abstrato; quando usada no texto, quer inferir o conceito genérico de estar abrigado, independente da forma como se apresente (casa, apartamento, vila, cabana, etc.), ultrapassando a visão da casa somente como uma tipologia, mas dando-lhe um sentindo abstrato e subjetivo que dá impressões afetivasao ambiente, tratando, pois, de um conceito que alia o ambiente construído ao laço afetivo que se tem entre o ambiente construído e quem está dentro dele (BRANDÃO, 2008). Entre os verbos morar e habitar nitidamente existe uma aproximação, mas semanticamente guardam particularidades que serão importantes na compreensão da discussão. O habitar é usado para determinar as relações mais pragmáticas entre o residente e o espaço construído. Não há na sua menção um caráter subjetivo que implique em senso de pertencimento ou identidade. É o residir na forma mais fria e prática. Ao contrário, quando se utiliza o verbo morar (que permeia a maior parte da discussão teórica deste trabalho), se pretende ir além do habitar: é adentrar no universo íntimo da relação entre o morador e o espaço de moradia. É considerar a relação estreita e afetiva de pertencer, de criar laços de emoção com o ambiente construído, o edifício. Aproxima-se, então, bastante o conceito de casa e de morar, por retratarem as facetas mais íntimas entre o indivíduo e o edifício. 22 Numa pesquisa semântica em dicionário (AURÉLIO, 1999) entre as três palavras (casa- habitar-morar), se atesta que há, mesmo que tênue, uma pequena distinção entre elas. A casa, com todas as suas possibilidades de aplicação, remete o leitor para o edifício, ao residir, mas ligando o sentido ao morar. O habitar indica, como escolhido por este trabalho, o sentido mais direto e prático de residir, ocupar como residência. E, por fim, se destaca o morar pelos verbos que são usados como explicativos: encontrar-se, achar-se, existir, permanecer. É esse o sentido que orienta a presente discussão. De estar na residência ser mais do que ocupar, mas ocupar com intuito de querer permanecer, de existir junto ao ambiente. A perspectiva de tratar da casa em sua subjetividade explica-se a partir da pergunta: será que todos precisam de uma casa ou a casa é um desejo construído socialmente? A casa é necessidade ou desejo? Este capítulo busca compreender essa relação do habitante com a casa, com suporte em teóricos clássicos sobre o morar e a vida doméstica especialmente em um espectro humanista da observação. É, pois, com uma abordagem teórica sobre o que torna a casa um elemento essencial para o homem e para a sociedade, o que faz dela objeto central na discussão sobre a vida, variável presente nos debates sociais de cunho político, econômico, cultural e acadêmico (entre tantos outros). II.I Sobre a Necessidade e o Desejo: A Casa A relação da pessoa com a casa é profunda, complexa e arraigada de projeções de desejos, sentimentos e subjetividades que ultrapassam a mera relação com o ambiente construído. Como afirma Lefebvre (1971), essa relação do indivíduo com o meio é complexa e pode ser analisada sob variadas dimensões, as quais se associam e diferem entre si, pois cada uma tem uma perspectiva diferente sob a análise, mas elas se complementam para explicar o todo. A casa assume um papel central na construção da identidade social e na sua interface com o ambiente. A casa, aqui, é sinônimo de lar; o que desencadeia uma necessidade de compreensão do papel que essa casa assume na construção da percepção do mundo e da vida do morador e de que forma essa característica subjetiva é expressa por meio de normas jurídicas, políticas públicas e programas de governos que busquem a implementação da casa para a vida do indivíduo, considerando que a moradia adquire uma matriz principiológica de direito fundamental do indivíduo. 23 A linguagem aparece nesse contexto interpretativo da casa como uma importante ferramenta para unir as diferentes compreensões sobre a casa e o habitar. Estar na casa, então, pode ganhar um sentido muito mais profundo do que somente o que se extrai da literalidade da semântica. Como afirma Heidegger (1954), a linguagem é essencial para que o habitar e o construir, verbos que estão intimamente ligados à casa, possam ser compreendidos em suas diferenças e nas implicações que cada atividade significa na leitura social da casa. Ressalte-se, por oportuno, que o habitar de Heidegger (1954) é tratado também como morar. O edifício construído por paredes e teto, com estrutura de alvenaria ou pau a pique é locus de uma rede conectada de sentimentos e atividades, que formam o sentido da casa. A repetição e a vida diária transformam sua existência em um significado muito mais complexo do que o mero espaço construído, dotado de infraestrutura (ou não). São entre as paredes e debaixo de um teto que o cotidiano se revela, imprimindo nos moradores o gosto pela rotina partilhada com a (e na) casa, tecendo os fios da história de quem lá mora, revelando ao mundo exterior o conteúdo de escolhas e sentimentos que colorem a casa (BRANDÃO, 2008). Alçada a item indispensável à sobrevivência, a casa é explicada como a congregação de diversos pequenos espectros da vida humana refletidas na construção da habitação. Assim, morar é ir além de estar sob um teto. Comparativamente à Bachelard (2008), morar é sentir-se na cabana ou, como afirma Lefebvre (1971), o morar é o conjunto de percepções da sua casa e das relações que se constrói junto a ela. A compreensão do universo de significâncias (LEFEBVRE, 2006) que a casa toma na leitura da vida social, da implicação dos verbos morar e habitar e de quais são suas implicações nos anseios sociais é o primeiro passo deste trabalho, na busca de compreender se a locação social, como uma forma de provisão habitacional, é uma forma viável de constituir-se num abrigo e cenário para o desenrolar de uma vida cotidiana, em que o habitar sejam plenamente vividos por seus habitantes. Mesmo não sendo a casa própria, a casa acessada por meio da locação social pode ser concebida, vivida e apropriada afetivamente pelo seu morador? O morar compõe essa dinâmica complexa que determina a observação do pesquisador sobre o fenômeno que se origina da interação entre o indivíduo e o espaço construído e todas as variáveis envolvidas nessa construção (LEFEBVRE, 1971). Como se extrai dos ensinamentos de Lefebvre (2010), o olhar sobre essa relação não pode ocorrer de forma superficial e restrita, pois o pesquisador não pode condicionar sua análise do morar a algumas variáveis determinadas, sob pena de mitigar o entendimento sobre o real sentido da casa para o indivíduo. 24 Nessa esteira, cabe pormenorizar que é anseio deste trabalho procurar elucidar as relações entre a pessoa e a casa, buscando uma compreensão que supere a realidade fria e apática aos sentimentos que revestem o habitar. Afinal de contas, é numa linguagem de profusão de sentimento e conflito que a casa ganha vida e coloração; é nessa profusão que conflito e desejo superam a necessidade de um teto para dar ao construído o lugar para o morar (HEIDEGGER, 1954). Partindo da premissa estabelecida por alguns teóricos como Lefebvre e Heidegger de que o fato de ter uma habitação nem sempre significa morar, busca-se encontrar o elo que faz surgir sentido no “querer a casa”; é tentar compreender por que a necessidade convergiu em um desejo sublime de possuir. Encontrar o resultado dessa equação entre desejo e necessidade é determinante para que haja uma conexão entre o morador e a morada e para que o verbo morar nasça nessa relação. Tem que haver uma simbiose entre a necessidade de um teto e o desejo de possuí-lo, relação essa que implica uma apropriação efetiva da casa e transmuta-se na consecução do direito de habitar. Nessa cadência, o trabalho emerge numa reflexão sobre essa tênue linha que transforma o construir em morar. Verbos que outrora parecem dispersos no ar, unem-se na tentativa de demonstrar a razão de ser a casa um anseio tão enraizado no discurso social. II.II A Casa como Abrigo: A Necessidade É no espaço construído que os sonhos se materializam em desejos,que tocam o espaço através da utopia da casa como abrigo e lugar de segurança. Essa casa, situada no devaneio e na realidade, se funde em uma necessidade revestida de sonho: ela é dotada de matéria, com estrutura que assegure proteção e conforto mínimo que permita a repetição do dia a dia. E toda essa dinâmica tem um palco: tudo isso se funde na cidade, espaço que congrega pessoas e coisas, formando um conjunto uníssono e sonoro, permeado de conflitos que se alimentam nas diferenças, mas se encontram nos iguais (LEFEBVRE, 1971). Nesse cenário, estão construídas as (im)possibilidades de cada um: transpor o sentimento de pertencimento e identificação do abrigo interior das paredes que delimitam o espaço construído da casa. Como essa ligação entre o interior e exterior se materializam no estudo da habitação, por meio do enfoque da casa como uma extensão do abrigo interior, quase numa relação uterina entre o homem e a casa, entre o animal e seu ninho (BACHELARD, 2008). 25 Vale mencionar, de acordo com Rybczynski (1999) essa dinâmica estabelecida no interior da casa pode ser explicada por uma análise da evolução histórica da sociedade. De maneira geral, conforme se percebia que a casa poderia assumir um significado para além de ser somente um espaço para atividades triviais (dormir, comer e depósito de pertences), as pessoas retomam a ideia de dar um novo uso ao espaço interno da casa, (re)estabelecendo ali conexões familiares e de abrigo. Tal jornada está explicada no tempo e espaço. Durante muitos séculos, o espaço de morar limitava-se às poucas atividades cotidianas que necessariamente exigiam um teto. Fora a isso, todas as relações interpessoais e de contato com o ambiente se davam no exterior da casa. Uma das razões para isso (e talvez a principal) era o tamanho da casa para o tamanho das famílias que dela precisavam, fazendo com que o exterior fosse mais aprazível do que estar dentro de casa (ENGELS, 2008). Com as práticas sociais em constante mudança, especialmente no final da Idade Média, novas formas de viver e se relacionar emergem na sociedade ocidental (RYBCZYNSKI, 1999). A casa que outrora se apresentava como um lugar alheio à mobília, quase séptico, alheio às emoções e desventuras da vida cotidiana, agora, principalmente com o arranjo familiar e comercial inaugurado pela burguesia emergente, a casa toma um novo significado de lugar. O lugar para morar. E é a partir dessa nova configuração que a retórica sobre a casa se desenlaça. A concha, o ninho e a cabana são alegorias para demonstrar que a casa está além do limite arquitetônico e estrutural. Cada item que compõe e preenche o espaço das paredes, pisos e mobílias expressam, de alguma maneira, quem mora dentro dela. E quem mora dentro dela está, inexoravelmente, condicionado aos auspícios de sentimentos e desejos, das necessidades extrapoladas em consumo ou no desejo de consumir. Mas seria a casa somente um objeto de consumo? A casa, tal qual ela é percebida, não é a congregação de complexas necessidades de seus habitantes? Como afirma Roberto DaMatta (1997) a casa está intimamente ligada ao seu dono. É umbilicalmente conectada. Na rua, ela se distingue do esmo que constitui o que parece ser genérico e desconhecido. É a sua casa. Cada porta de entrada, a distribuição da mobília, as cores das paredes são conexões entre o habitante e a casa. Ali está, quer queira quer não, estabelecida uma linguagem entre os “de casa” e os estranhos, os da rua, que não conhecem o que está dentro. A casa é então, nesse condão, um cartão de visitas de quem está dentro. É a possibilidade de acolhimento ou de estranheza, a depender de como ela seja apresentada (DAMATTA, 1997). Assim, se ela pode ser lida e interpretada, significa que em sua essência existe algum elemento 26 (ou isso pode ser plural) de que expurgue a frieza das paredes cimentadas e ponha nelas um sentimentalismo humano. Mas a ação de pôr esse sentimento na construção da casa implica em alguma motivação interna do habitante e morador para imprimir no palpável, no mundo dado, suas percepções pessoais. Desde que se registra a história da humanidade, independente da forma de organização social, da forma de produção e consumo, foi traço comum nas civilizações que a casa era representada por alguma forma de construção (MUMFORD,1998) ou, em outras palavras, seja de qual maneira se apresentasse estruturalmente, mas o abrigo sempre foi uma constante. Habitações coletivas, pequenas, casarões, de materiais resistentes ou não, houve e há uma necessidade por se sentir acolhido. A casa acolhe em suas mais diversas formas de apresentação. Se ela está intimamente ligada à história do homem, ela pode ser considerada como elemento essencial à sua sobrevivência? É ela então uma necessidade? Auxiliando na resposta das questões propostas, Hannah Arendt (2007), falando sobre as três condições básicas do ser humano (labor, trabalho e ação), escreve que todas essas condições estão diretamente ligadas às questões mais íntimas da própria existência, e é em nome dela que a pessoa se organiza na tentativa de garantir a perpetuação de sua história. Em outras palavras, diz a autora: “As três atividades e suas respectivas condições têm íntima relação com as condições mais gerais da existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade”. Estando-se, pois, a própria existência ligada à necessidade de se estabelecer determinados aparatos que lhe assegurem a sobrevivência, a casa emerge nesse cenário como um elemento essencial para proteção e abrigo, como o local de desenvolvimento do labor, lugar de descanso após o trabalho e onde a ação pode ser sufragada. Se diante essa diversidade de estruturas e formas ela cumpre seu papel de abrigo, pode- se também inferir que a casa somente adquire significado para o morador quando ela se torna o local onde seus desejos e fantasias tornam-se possíveis. Onde o real e imaginário, o cotidiano e o inacessível se convertem em uma única coisa no dia a dia, o onirisimo se perpetua como um sonho da casa natal de Bachelard (2008). É nessa tênue linha entre o inconsciente e o vivido que a casa se torna matéria: ela deixa de ser um aglomerado de materiais e se torna complexa, com simbolismo de lugar de proteção, de defesa, de acolhimento contra o inimigo, contra o que é estranho, em face daquilo que não é bem vindo. O habitar passa a ser uma realidade percebida pelo indivíduo, num processo constante de sinergias que congregam numa dupla função: ser espaço usado pelo indivíduo, mas também desempenhar papel determinante da construção deste como ser coletivo. É no interior da casa 27 que os indivíduos iniciam o estabelecimento de seus primeiros laços interpessoais, de convivência, desejos, ânsias e conflitos. Dentro do ambiente construído tem-se a possibilidade de uma vida coletiva em um espectro micro, que poderia se afirmar, analogamente, ser uma simulação da vida social que se engendra no espaço da cidade. Nas palavras de Rybczynski essa mudança pode ser vista Quanta mudança houve entre o modesto local de trabalho ilustrado por Albretch Dürer e o escritório do cavalheiro do século XVIII! O teto nu, as paredes de pedra e o chão de tábuas foram substituídos pelo reboco com detalhes delicados, por papeis de parede e por tapetes sob medida. Ao invés de pequenos caixilhos com vidro escuro, as janelas tem grandes peças de vidro claro, e as suas molduras correm, convenientemente, para cima e para baixo para ventilar o ambiente. Há muito mais móveis (...) estes móveis foram projetados para se ficar à vontade neles, bem diferente dos escabelos de encosto duto e dos bancos simples de dois séculos antes (RYBCZYNSKI, 1999, p. 131). Dentro de casa, estando as paredes estabelecidas no espaço e no tempo como delimitações visíveis entre o íntimo e o exterior,o desconhecido e o conhecido, o habitante pode revelar-se em sua profundidade. Despido das convenções e comportamentos sociais e de ordem coletiva, ele vislumbra na casa o lugar de abrigo e imune às ameaças exteriores. Nessa dinâmica, as suas próprias impressões sobre sua realidade e sobre suas expectativas são impressas no ambiente exterior, que é a casa. Portanto, essa casa ganha dupla semântica: ela é uma construção interior, de sensação de acolhimento e abrigo e é também a casa construída, a estrutura exterior, dotada de ornamentos e peculiaridades que revelam ao estranho quem está ali, ou por quem aquela casa está sendo vivida. Nessa perspectiva, a profundidade e complexidade do ser humano (HAUMONT e RAYMOND, 1967) devem ser consideradas para que se possa compreender a dimensão e extensão da relevância que a casa exerce na construção social do habitante e de que forma isso reverbera em normatizações dos desejos expressos em morar, ter um lar, habitar e ter uma casa para imprimir nela suas raízes, percepções de mundo e conflitos refletidos na forma de usar e fruir da casa, de a conceber como ninho (BACHELARD, 2008) e dela se utilizar como refúgio e espaço de segurança e acolhimento. 28 As impressões presentes em um lar são como as identificações de seus moradores, revelando um complexo enredo de sua relação com a habitação e com o mundo. Nesse contexto, o abrigo é moldado à maneira de seu morador: com suas percepções e anseios, gostos e escolhas. Mas essa construção do abrigo demonstra que a casa está para servir ao próprio habitante como abrigo e lugar de proteção, bem como ser referência desse próprio indivíduo para o mundo exterior. A análise do morar exige considerar subjetividades que não podem sempre ser expressas com objetividade. É, portanto, como explica Michel de Certeau (2013), na compreensão da subjetividade que se pode chegar ao seu todo: o morar é a reunião de todas as dimensões da vida do habitante e da sua habitação; é seu conjunto que, isolado não se explica, mas forma um todo, unitário e completo. São as presenças e ausências que colorem o habitar (DE CERTEAU, 2013), aliadas aos conflitos e à festa do habitante e do espetáculo do cotidiano (LEFEBVRE, 1971). Essa reunião pressupõe a composição de alguém lidando com seus instintos biológicos de sobrevivência e perpetuação da espécie, combinado com a forma em que está condicionado (ou que vive) as regras socialmente construídas. As condutas sociais e o lado instintivo implicam na dualidade que se reúne, todos os dias, dentro da casa. É, pois, o espaço de convivência do biológico com o social. Do orgânico com o construído. De acordo com Leitão (2004), o ser humano imprime no espaço construído essa necessidade biológica de abrigo, que adquire desde o útero materno. É com essa percepção de necessidade de estar acolhido, que a casa vira lar. É a materialização do instinto humano de proteção. A interação entre essa necessidade arraigada em seu instinto, combinada com as necessidades pressupostas pela sociedade em que está inserida, serão os pilares da construção dessa casa. Dessa casa interior, inicialmente construída no interior do habitante, em sua consciência do melhor abrigo, e da casa construída, da casa erguida sob materiais que sedimentam a estrutura na terra, que faz do homem um ser abrigado e com referência, inclusive geográfica. Mas falar desses dois aspectos que constroem a casa implica em tratar de uma gama bastante variada de aspectos da vida, seja em seu sentido público ou privado. Os determinismos sociais e as condutas privadas do indivíduo, por diversas vezes, pode estar em conflito ou não serem exatamente harmônicas. Se há a necessidade da convivência coletiva, pois essa é uma máxima da espécie (ou ser político, segundo Aristóteles), as regras sociais podem nortear o caminho do comportamento e das escolhas individuais. Entretanto, como um refúgio ou 29 delimitação de seu ser, a casa é uma marca social. O vazio deixado pela sua construção passa a ser recheado de adornos (ou a falta deles) e símbolos que têm uma significância dentro de uma análise pessoal (LEFEBVRE, 2006). O ser se consubstancia no ter no instante em que a casa do devaneio, a casa construída na imaginação, possa oferecer na realidade o abrigo e a proteção que o indivíduo necessita (LEITÃO, 2004). Novamente, a casa (ter) se transforma em lar (ser). A casa exterior, estrutural, precisa ser edificada. O sonho alia-se então ao biológico, ao ser como morador e o ser como sociedade: a casa une os dois polos dessa dicotomia existencial. A junção das polaridades está materializada na casa. É ela que oferecerá a possibilidade de ser tanto o instinto de sobrevivência como o ser social, fruto de uma vida coletivamente realizada. A casa vira, então, moradia. A casa, então, se mostra como um ambiente complexo, arraigada de sentimentos e construções sociais. É, como dizia Freud (apud LEITÃO, 2012) “o sucedâneo do útero” que se transforma no “espaço-encenação”, como afirma Leitão. É inteiro e vazio ao mesmo tempo já que é um indivíduo dotado de particularidades, mas é também um ser social, engendrado num contexto do coletivo e público. Assim como esse conjunto, complexo também o é a compreensão do morar. Ele pode se apresentar como o conjunto de todas essas análises em um único resultado, mas também pode ser visto como somente uma parte de uma estrutura física posta em um determinado lugar com uma determinada função. Este trabalho envereda nas raízes mais complexas de entender o morar e o habitar. O morar, posse subjetiva e afetiva do espaço construído, reveste a casa do conceito de lar. Uma casa com emoções. O habitar, por seu turno, pragmático verbo de estar sob uma residência, recobre este trabalho na análise factual dos direitos e políticas públicas que podem garantir, através do direito objetivo da habitação, o direito subjetivo de morar. A perspectiva de observação da casa como mero elemento construído, destituído de sentido subjetivo, apesar de válido, não se sustenta como premissa para a análise. Aqui a casa cheia de sentidos, de símbolos e interpretações é o que importa. É a casa como fortaleza para quem está dentro dela. É o significado que se pode exprimir na leitura e observação de suas paredes e adornos, da mobília e decoração. É a casa que está viva no coração de quem mora, na casa de quem tinha uma necessidade e a garantiu usufruindo também como um objeto de desejo. Ainda sobre a distinção entre a casa como um conjunto complexo e a casa como um mero substantivo, Heidegger (1954), numa análise sobre o construir e o habitar, expressa como 30 se pode distinguir as duas ações, afirmando que embora não sejam idênticas, estão atreladas no sentido e na lógica. Em suas palavras, vejamos: Este, o construir, tem aquele, o habitar, como meta. Mas nem todas as construções são habitações. Uma ponte, um hangar, um estádio, uma usina elétrica são construções e não habitações. (...) As construções que não são uma habitação continuam a se determinar pelo habitar uma vez que servem para o habitar do homem. Habitar seria, em todo caso, o fim que se impõe a todo construir. Habitar e construir encontram-se, assim, numa relação de meios e fins (HEIDEGGER, 1954, p. 1). Cabe, enfim, a indagação: qual elemento diferencia o construir do habitar? Nas palavras de Heidegger (1954), a linguagem ajudará o intérprete a diferenciar os dois verbos. Presume que toda habitação é uma construção, mas o contrário não é verdadeiro. Pontes, estradas, monumentos são edificações, mas não podem ser habitadas porque não há, por parte do indivíduo, uma identificação que aquela construção possa abrigá-lo. E vai além, quando menciona que há um elemento que faz do construído, o habitável: Na auto-estrada, o motorista de caminhão está em casa, emboraali não seja a sua residência; na tecelagem, a tecelã está em casa, mesmo não sendo ali sua habitação. Na usina elétrica, o engenheiro está em casa, mesmo não sendo ali sua habitação. Essas construções oferecem ao homem um abrigo (HEIDEGGER, 1954, p.1). Mormente pela passagem acima, se pode afirmar que há um fator que torna o espaço construído em habitável: ser abrigo. Quando se identifica em um espaço construído uma possibilidade de se sentir abrigado, aquela construção torna-se então habitar; é a casa em seu sentido mais íntimo que toma forma e materializa-se. É a espacialização da vida uterina, refletida na arquitetura, que não se limita a paredes e teto – que, se assim fosse, seria apenas uma caixa, como afirma Zevi (apud LEITÃO, 2016) - mas torna a arquitetura uma expressão onírica (LEITÃO, 2012), em que o espaço e o sonho formam uma trama indissociável de necessidade do abrigo com o desejo de expor no meio físico os sonhos mais íntimos do ser humano. A arquitetura então, revela-se como o caminho utilizado pelo habitante em dar ao abrigo o sentido de lar. 31 A lacuna a que denominamos “vazio” expressado pelo edifício visto como mera construção, pressupõe que o que determina a função de uma construção em lar é a presença de algo maior do que a própria estrutura física da casa. Essa casa, sem a identificação do morador como lugar de abrigo, não passa de mais um espaço construído. É nessa perspectiva que Lefebvre (1971) propõe que o morar é revestido de significantes e significados. Cada objeto, cada cor, cada disposição de um móvel ou de um adorno implicam em uma leitura da relação que o habitante tem com a casa. No momento em que é vivida pelo morador, ela deixa de ser uma mera estrutura e passa a ser pertencida, identificada como moradia, como a verdadeira casa. Ainda sobre a casa, o acolhimento se mostra uma característica marcante na conversão da estrutura para o lar. O habitar se perfaz no construído quando o habitante se sente acolhido e em segurança. É estar livre dos riscos iminentes do ambiente externo, em suas cabanas (BACHELARD, 2008), naquilo que remete o ser humano ao seu habitat natural de proteção e liberdade. É o deslinde do usufruto do espaço privado, destinado às atividades domésticas sem interferências externas que produzem no ambiente construído a possibilidade de conversão em abrigo. O cotidiano, a repetição das ações humanas, a expressão dos desejos, alegrias e agruras, dão ao abrigo o sentido de lar. Passa-se, pois, do mero habitar ao morar, num aprofundamento paulatino das ações subjetivas exercidas dentro do espaço de abrigo. Sobre as impressões que o habitante constrói em sua casa elas são as mais autênticas expressões de sua intimidade, revelada na relação que possui com sua casa: a mobília e sua disposição pelos cômodos, as cores, texturas, aromas e costumes, ou a ausência de tudo isso, revela o significado da moradia para seu morador e traduz, até onde se possa interpretar os anseios humanos, as vontades, os desejos e as necessidades implícitos em cada morador. De Certeau (2013, p. 204), sobre isso, afirma que “indiscreto, o habitat confessa sem disfarce o nível de renda e as ambições sociais de seus ocupantes. Tudo nele fala sempre e muito: sua situação na cidade, a arquitetura do imóvel, a disposição das peças, o equipamento de conforto, o estado de manutenção”. Por ser o local que abriga os sonhos e os desejos, onde o cotidiano se revela diuturnamente, mostrando a vida de seu morador, em suas mais íntimas práticas, a casa não pode ser apartada do seu morador: ela é parte de sua história e o espaço reflete suas mais íntimas aspirações e inquietações. Assim, a preservação de suas características das mais sutis às mais aparentes é valiosa quando da necessidade de compreender o papel da casa numa leitura social. 32 Neste espaço privado, via de regra, quase não se trabalha, a não ser o indispensável: cuidar da nutrição, do entretenimento e da convivialidade que dá forma humana à sucessão dos dias e à presença do outro. Aqui os corpos se lavam, se embelezam, se perfumam, têm tempo para viver e sonhar. Aqui as pessoas se estreitam, se abraçam e depois se separam. Aqui o corpo doente encontra refúgio e cuidados, provisoriamente dispensado de suas obrigações de trabalho e representação no cenário social. Aqui o costume permite passar o tempo “sem fazer nada”, mesmo sabendo que “sempre há alguma coisa a se fazer em casa”. Aqui a criança cresce e acumula na memória mil fragmentos de saber e de discurso que, mais tarde, determinarão sua maneira de agir, sofrer e de desejar (DE CERTEAU, 2013: p. 205). Lefebvre (1971) afirma que o habitar é a soma de todos os fragmentos da vida do habitante, aliados à percepção que ele mesmo elabora sobre esses fragmentos. Símbolos, signos, códigos, a repetição das ações cotidianas resulta na interpretação (ou significantes, nas palavras de Lefebvre) que esses objetos e ações possuem na vida do habitante. É em sua esfera íntima que o habitar mostra seu espaço privado (DE CERTEAU, 2013), seu canto no mundo, permitindo que o sujeito possa afastar-se da realidade imposta pela dinâmica social e exerça, sem pressão, seus desejos e hábitos. Bachelard (2008) afirma que a casa é o espaço em que o indivíduo exerce suas preferências e hábitos sem sofrer nenhuma resistência ou estímulo social. Isso implica dizer que esse espaço é então o que permite, em uma visão filosófica, a total liberdade do ser, por ele encontrar dentro do habitat o conforto e a segurança suficientes para que nada seja temeroso ou lhe cause necessidade de defesa. É nesse aspecto então que a cabana, a concha e o ninho de Bachelard aparecem: é o acolhimento, o estado de absoluta segurança e sensação de pertencimento e identidade com a dinâmica percebida dentro do ambiente construído. Esses apontamentos se consolidam na medida em que a essencialidade do abrigo é considerada e, desta forma, a materialização do desejo mais íntimo do ser humano: estar no abrigo, na segurança, de poder ser ele mesmo sem interjeições de ameaças externas. Nesse sentido, aponta Lefebvre: Na vida cotidiana, setor privilegiado da prática, as necessidades tornam-se desejos. Elas tomam forma neles e de biológicos (quer dizer, animais e vitais) se modificam em humanos. Essa metamorfose se opera através de duras provas; aquelas do controle de si e do atraso, algumas vezes ilimitado, das 33 satisfações mais legítimas; aquelas das escolhas e das opções inevitáveis entre os objetos possíveis do desejo (LEFEBVRE, 1971, p. 1). A vitalidade que reveste a questão da moradia demonstra a imprescindibilidade de habitação para o indivíduo, considerando que desde os tempos mais remotos, a fixação ao solo para a prática das atividades diárias sempre foi uma constante na história da evolução social humana. Dessa maneira, a necessidade de que fala Lefebvre se reveste de uma essencialidade para a própria sobrevivência, aliada a uma prática cultural que cria determinismos sobre a forma como esse habitar deve ser concebido. É a casa ainda, uma multiplicidade de formas, que impõe ao observador uma visão ampla e agregadora de todas as formas que ela possa assumir e dos elementos variados que a compõem. A ciência deve abandonar as especialidades ao tratar da casa (LEFEBVRE, 2010), porque o habitat é um campo de observação complexo e variado. Ou como diz Jorge (2005, p. 247): como objeto, aliás, a casa presta-se a outras utilizações que se inscrevem em processos desenvolvendo-se noutras esferas. A casa é, sobretudo, uma espécie de narrativa reconstituída pelo discurso das suas formas. No emaranhado de relações pessoais que se encenam no ambiente da casa, a transformação da construção em expressão material dos desejos mais íntimos do ser humano revelam que a casa é o espaçoonde a arquitetura é o meio de externar a psiqué do indivíduo, onde as relações e hábitos cotidianos imprimem em cada canto uma complexa relação afetiva e social que faz com que o mero abrigo, o habitar se revele insuficiente para justificar a casa. Ela, pois, é espaço afetivo, local onde o coração está. É o lar. II.III Sobre o Desejo: desejo de quê? A forma, estrutura e a vida vivida e sonhada são nuances de uma mesma situação em que a casa toma o papel central de agregador de desejos e sentimentos, cujos acontecimentos externos não penetram com tanta interferência. Nessa casa, privada e fechada, o habitante é livre para exercer suas preferências, rejeitar os dissabores, constranger o outro e acolher o que lhe torna aprazível. É nessa gama subjetiva de sensações íntimas que o ambiente construído se torna palpável. As paredes enredam a construção de histórias por meio de seus objetos decorativos. A mobília narra as preferências dos moradores e sua disposição elenca o comportamento e a relação que o homem tem com o meio. Mais que isso, é por meio das 34 externalidades dos objetos que se compreende a linguagem presente em cada lar e a forma com que os sentimentos de vitalidade e necessidade do lar se transformam em desejo e refúgio. Ou, como afirma Bachelard: Esses valores de abrigo são tão simples, tão profundamente arraigados no inconsciente, que vamos encontrá-los mais facilmente por uma simples evocação do que por uma descrição minuciosa (BACHELARD, 2008, p.32). O desejo se perfaz como uma construção social de ter acesso às formas que melhor satisfaçam as suas necessidades. Partindo do pressuposto de que cada indivíduo invariavelmente traz consigo necessidades e ambições, conflitos e intimidades, essas características precisam, em algum momento, ser reveladas e manifestadas nas paisagens que o circundam. Nasce nesse ímpeto a relação visceral do habitante e da casa. É o fruto dessa relação revestida de vitalidade que o ambiente construído passa a ser, mormente sua distribuição espacial, o lócus onde a vida se desenvolverá, onde os conflitos serão apaziguados, onde o ninho receberá o corpo extenuado da vida social, onde a cabana abrigará contra o frio e o fogo. Mais que um centro de moradia, a casa natal é um centro de sonhos. Cada um de seus redutos foi um abrigo de devaneio. E o abrigo não raro particularizou o devaneio. Foi aí que adquirimos hábitos de devaneio particular. A casa, o quarto, o sótão onde ficamos sozinhos dão os quadros de um devaneio interminável; de um devaneio que só a poesia, em uma obra, poderia concluir realizar (BACHELARD, 2008, p. 34). O sonho, a expectativa, o secreto e o revelado, as impressões, os traumas, as celebrações e o cotidiano engendram a poesia da vida humana, que se reveste na forma de uma casa. De crianças a adultos, a imagem da casa é a realização da pessoa como um sonhador que precisa de um abrigo para desenvolver suas vontades e construir um mundo de quereres. Assim, a recorrência do morador à sua casa é o retorno necessário ao seu próprio encontro, alheio às perturbações exteriores, para que em seu devaneio possa estabelecer o sonho livre e alimentar os seus desejos. Nossos habitats sucessivos jamais desaparecem totalmente, nós os deixamos sem deixá-los, pois eles habitam, por sua vez, invisíveis e presentes, nas nossas memórias e nos nossos sonhos. Eles viajam conosco. No centro desses 35 sonhos aparece muitas vezes a cozinha, aquele “compartimento quente” onde a família se reúne, teatro de operação das “artes de fazer” e da mais necessária entre elas, “a arte de nutrir” (DE CERTEAU, 2013, p. 207). “A minha casa é um depósito de memórias e expectativas” (JORGE, 2005, p. 243). Com essa afirmação, atribui-se ao papel da casa não somente o lugar do abrigo, mas, em adição a esse elemento, ela passa a ser também o lugar dos devaneios, dos sonhos, dos conflitos e das utopias. A casa, como um depósito, está ligada umbilicalmente à necessidade não só de proteção, mas também de desenvolvimento das expectativas e de que seja essencialmente a autorrepresentação de quem lá habita. Ela serve, como afirma Jorge (2005), como uma representatividade ao exterior de quem está dentro dela, e a memória serve de aparato para que a história vivida dentro da casa e a história do morador não se percam no tempo ou, como afirma Michel de Certeau (2013) “habitar é narrativizar. Fomentar ou restaurar esta narratividade é, portanto também uma tarefa de restauração. É preciso despertar as histórias que dormem nas ruas que jazem de vez em quando num simples nome, dobradas neste dedal como as sedas da feiticeira”. Estabelecendo um diálogo entre o pensamento de Jorge (2005) e Roberto DaMatta (1997), no qual ambos tratam da relação entre o interior e o exterior da casa, a casa e a rua são duas categorias sociológicas e não estão dissociadas. A casa precisa da rua e vice-versa. Nessa conversa, perceber que a casa é construída simbolicamente pelo morador, significa que ela também exterioriza seu morador. Numa análise da linguagem da casa na rua, percebe-se que cada casa assume um papel individualizado, que no seu exterior (fachadas) ela se apresenta de inúmeras maneiras, diferenciando uma das outras. A rua é então a união das diferenças, dos conjuntos formados por inúmeras construções que sofreram modificações (ou não), pelos seus moradores. E por que elas necessariamente não seguem um padrão? Por que cada casa se apresenta de uma maneira? Pelo pensamento de Jorge (2005), a casa revela as expectativas e memórias de seus habitantes e isso a torna única, não somente para quem lá mora, mas também sendo um traço distintivo no espaço público. Esse espaço público, aqui tomado como a categoria de análise da rua (DAMATTA, 1997), incorpora a casa como um ponto de referência, fazendo com que o espaço percebido (LEFEBVRE, 2006) incorpore a casa como um elemento essencial para o coletivo. Assim, o interior da casa se revela no exterior da rua, por meio da linguagem do espaço e em constante movimento e mudança, assim como a vida o é ou, como afirma De Certeau 36 (2013, p. 207), “só uma língua morta não sofre modificações, só a ausência de qualquer residente respeita a ordem imóvel das coisas”. A referência que a casa tem no contexto social também assume grande relevância para o habitante, quando ela se torna um centro de atração dentro do espaço coletivo. É a partir da casa espacialmente localizada que o morador se situa na rua, traçando a partir dela seu percurso, tratando o exterior como espaço estranho ao seu ninho e de acordo com a distância e distanciamento da sua casa. Ela é, portanto, seu centro gravitacional dentro de uma rotina estabelecida a partir dela. Ela é, pois, ponto de partida e também de chegada. É de lá que se sai todos os dias para as práticas das atividades cotidianas, mas é para lá que se volta ao término dos afazeres. Parto sempre de minha casa para, depois, a ela regressar A minha casa constitui o centro a partir do qual traço os eixos das minhas deslocações quotidianas A partir daí oriento-me no espaço. O estar mais longe ou mais perto de minha casa é um primeiro dado, por vezes essencial, da minha orientação genérica no espaço, é como se a localização da minha casa constituísse um pólo atrativo no mapa das minhas deslocações (JORGE, 2005, p. 243). A casa se torna o centro do morador, sua referência interna e externa, a partir de um cenário privado e público. É na casa que se mescla a vida privada com a vida pública. O abrigo convertido em casa e a casa como elemento constitutivo da rua, do bairro, da cidade, da vida do outro. Na externalidade da casa, em suas fachadas é que acontece a percepção do homem estranho da rua (DAMATTA, 1997) sobre quem a habita. Essas impressões entoam a intimidade de um