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UNIVERSIDADE FEDERAL DO DIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE BIOCIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE ECOLOGIA PROGAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECOLOGIA PADRÕES DE OCORRÊNCIA E COEXISTÊNCIA DE MAMÍFEROS DE MÉDIO E GRANDE PORTE NA CAATINGA PAULO HENRIQUE DANTAS MARINHO NATAL 2020 i Paulo Henrique Dantas Marinho PADRÕES DE OCORRÊNCIA E COEXISTÊNCIA DE MAMÍFEROS DE MÉDIO E GRANDE PORTE NA CAATINGA Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Ecologia. Orientador: Eduardo Martins Venticinque Co-orientador: Carlos Roberto Fonseca NATAL 2020 ii iii iv À universdiade pública, que abre mentes e portas para o mundo e é capaz de transformar vidas como nenhuma outra instituição (Dedico) v “Quem não tiver debaixo dos pés da alma, a areia de sua terra, não resiste aos atritos da sua viagem na vida, acaba incolor, inodoro e insípido, parecido com todos.” Luís da Câmara Cascudo vi AGRADECIMENTOS Foram quatro longos, e ao mesmo tempo rápidos, anos, durante os quais, apesar dos percalços e desafios, realizei muito mais do que planejei e desejei, e por isso aproveito esse espaço para agradecer a todos que de alguma forma contribuíram para eu conseguir encerrar esse ciclo da melhor forma possível, mesmo em meio à uma pandemia e à desvalorização da pesquisa por parte de quem mais deveria apoiá-la, o atual governo brasileiro. Esta tese foi feita a várias mãos, umas mais privilegiadas e acostumadas a interagir com computadores e equipamentos tecnológicos, como as minhas, e outras, igualmente importantes, mas mais acostumadas a lidar com ferramentas de lida com a terra, muitas vezes injustiçadas e esquecidas por aqueles que deveriam valorizá-las. Por isso, eu começo meus agradecimentos pelos vários auxiliares de campo e amigos que encontrei pelos caminhos da Caatinga nordestina, e que me ensinaram grande parte do que acho que sei hoje sobre bicho, mato e gente do interior. Entre eles está o que mais tempo passou comigo nos campos, ouvindo minhas piadas sem graça e lamentos, seu João da Boa Vista, de Lajes do Cabugi, ou João Bernardino de Lima, para os que não tiveram a sorte de conhecê-lo melhor. Comigo desde os primeiros campos do mestrado até o último do doutorado, seu João, um dia espero conseguir lhe transmitir um terço da sua importância no meu trabalho, e na pessoa que sou hoje, por isso sou profundamente grato por ter lhe conhecido e por sua essencial ajuda e amizade. E com seu João, veio um combo de gente querida que me ajudou em momentos cruciais. Obrigado Joana Darc (Darquinha) pela sua amizade, cuidado e refeições deliciosas e revigorantes. Bem como, obrigado Jussara, Pedrinho, Joseane, Gabriel, seu Lourival e dona Dasdores, sempre amáveis e generosos, como é o povo bom do interior. Além de seu João, durante esses quatro anos, e antes deles, quando coletei parte dos dados apresentados aqui também no meu mestrado, contei com a importante ajuda de outros grandes vii homens e mulheres, a quem serei eternamente grato. Entre ele estão seu Chico Preto e Aldenora de Serrinha dos Pintos, Geílson e Geison de Felipe Guerra, Galego do Rela de Luís Gomes, seu Cícero de Ponta do Mel, Bala, Veio e seu Severino e família de Cerro Corá, Titico, Gilvan e Liélio de Martins, Alex, Suiane, Marlus, Renato, Rielson e o grande Iatagan de Mossoró e Baraúna, Rogério Santos, Paulo e Leomar Martins (Babá) de Curaçá, Neto e família do Boqueirão da Onça, entre vários outros e outras que certamente cometerei a injustiça de não citá-los por esquecimento. A todos vocês, meu muito obrigado! Agradeço à minha família, a base de tudo, de onde eu vim e quem me deu o suporte necessário para eu chegar até aqui. Sou grato à minha mãe e ao meu pai, Maria de Fátima Dantas e Francisco Marinho, que me proporcionaram algo que nunca tiveram durante sua juventude, quando estudar era um privilégio ainda maior do que é hoje. À minha mãe, sou mais grato ainda pela sua força e cuidado imensuráveis e por ser um exemplo de resiliência para seus filhos. À Izabel e ao Ricardo, meus irmãos, sou grato pelo companheirismo e aprendizado que me dão sendo quem são. Ao Ricardo, sou grato ainda por ter nos dado um motivo a mais para seguir e tentar melhorar esse mundo, Zé Arthur. Nessa reta final, contei com o carinho e suporte de uma pessoa muito especial sem a qual não teria chegado até aqui, pelo menos não tão são e confiante como (acho que) cheguei. Obrigado Virgínia Paixão por me aguentar, incentivar e me ensinar a ser uma pessoa melhor a cada dia, você me inspira e me faz querer evoluir sempre, te quiero mucho! Ao meu orientador, Dadão (vulgo Eduardo Venticinque), tenho que agradecer por tantos anos de parceria científica e ensinamentos de vida. Com seu jeitão leve e descontraído, mas super responsável e dedicado à mensagem que devemos passar nos trabalhos, e para além deles, você me ensinou muito. Sou grato pela oportunidade de ter sido seu orientando durante esse tempo, e por você ter acreditado em mim e no meu trabalho quando eu muitas vezes não acreditava mais... viii Ao meu co-orientador, Carlos R. Fonseca, que foi meu primeiro orientador acadêmico, durante meu TCC da graduação, sou muito grato pela oportunidade que me deu e por ter sido minha primeira referência acadêmica, me acompanhando desde lá até aqui com seus comentários e revisões cirúrgicos, colocados de uma forma sempre respeitosa e construtiva, um grande mestre! Aos dois, obrigado por me mostrar que existe vida, música e amizade na academia (e além dela) entre orientador e orientando! Agradeço imensamente a disponibilidade e valiosa contribuição dos membros da banca, Mauro Pichorim, Claudia Campos, Rodrigo Massara, Fabiana Rocha e Guilherme Lima (suplente, mas titular na competência). Vocês são exemplo e inspiração para minha atuação profissional. Espero que façamos ainda muitas outras parcerias pela ciência e conservação da biodiversidade! Aos meus amigos e parceiros da Biologia, da Ecologia, da Consultoria Ambiental, da Mastozoologia nordestina, do Programa Amigos da Onça, e da vida, sou grato pela amizade, companheirismo e aprendizado, sem os quais esses quatros anos teriam sido mais difíceis e menos divertidos: Felipe, Alan, Damião e Daniel, que além da amizade me ajudaram nos campos; João Paulo, Ivanice, Dellano, Érika, Sean e Laís, amigos mais malucos e melhores não há, seja de perto ou de longe, sempre lá; Renato, Annie e Paloma, amigos queridos desde a graduação, os quais cito para representar toda nossa turma Bio 2008.2 e tantos outros amigos que fiz durante a graduação; Paulo Fernandes, Talles, Adriana Almeida, Andressa Scabin, Nádia, Andressa Meirelles, Rafael Domingos, Maria Clara, Marina Antongiovanni, Janina Calado e Carolina Lisboa, amigos e colegas de profissão que a pós-graduação me deu e que levarei pra vida; Dyego, Raissa, Tony, Raul Sales e Bruno França, que me acompanharam nas consultorias nordeste a fora, afinal, não se vive só de bolsa; tantos amigos dos tempos de Traíras e do Colégio Equipe, que ficaram distantes mas continuam nos meus pensamentos; Thalita, a ix quem agradeço pelo apoio em boa parte desse período; Liana Sena, Mayara Beltrão, Hugo Fernandes, Lucas Silva e Robério Filho, que em sintonia temos avançado no conhecimento sobre os mamíferos do nordeste; Claudia Martins, Claudia Campos (novamente), Carolina Esteves e Maísa Ziviane, obrigado pela oportunidade de conhecer e contribuir para a conservação do Boqueirão da Onça; Dulce, Taís, Gustavo, Abhishek, Luis, Lucase Fany, amigos que fizeram minha estadia em Portugal bem mais “fixe”. A todos e todas, meu mais sincero obrigado! Aqui agradeço aos meus colegas de “laboratório”, por dividirem trabalho, angústias e alegrias. Eugênia e Juan, serei eternamente grato pela contribuição que vocês deram e dão para a Caatinga e pelo exemplo e inspiração que representam, obrigado pela amizade e suporte de sempre. À Virgínia, agradeço aqui pelas ajudas em campo, pela leitura dos meus textos e pelos conselhos visando o melhor pra mim, você é a melhor “colega de lab” que eu poderia desejar. Fernanda, obrigado pela parceria e pelo bom humor de sempre, espero que continue trabalhando com a Caatinga, mas sei que será exitosa em qualquer linha que escolher seguir. Ellen, obrigado pela sua sensibilidade e por me permitir te ajudar e de alguma forma conhecer mais sobre a Amazônia e sua biodiversidade, torço muito pelo seu sucesso. Nessa linha, estendo meus agradecimentos ao Duka, quem primeiro me mostrou a bicharada dessa belezura de bioma. À Patrícia Ribeiro, agradeço pela amizade e parceria importante desde o mestrado até os dias de hoje. À Maria Luiza Falcão e ao Raul Santos, alunos de iniciação científica e amigos, agradeço pela ajuda essencial que me deram e me dão, e pela paciência e confiança em continuar trabalhando com alguém tão ocupado e atrapalho quanto eu. Tenho orgulho dos profissionais que se tornaram e contem comigo para o que precisarem. Nas pessoas das professoras Ivoneide Ferreira e Elineí Araújo agradeço a todos os professores e professoras que me incentivaram e ensinaram que a educação é o bem mais x precioso que podemos almejar e utilizar para transformar vidas. Ivoneide, ainda no CERU em Traíras, que é de onde eu venho, incentivou como ninguém o início da minha caminhada para chegar até aqui. Elineí, já na UFRN, me apoiou nos momentos de maior fragilidade, até mesmo financeiramente, para que eu não desistisse dessa caminhada. Agradeço a todos que fazem o Programa de Pós-graduação em Ecologia e o Departamento de Ecologia da UFRN, entre professores e colegas discentes, por incentivarem o crescimento profissional da forma mais humana possível, algo cada vez mais raro na academia. Agradeço especialmente aos queridos e queridas dona Marlene, Víctor, Dimas e Kionara, sempre disponíveis e sorridentes ao ajudar. Durante essa jornada, tive a oportunidade e felicidade de viver uma experiência na Universidade de Aveiro, em Portugal, a qual agradeço imensamente. Particularmente, agradeço ao meu supervisor durante o intercâmbio, Carlos Fonseca, pela oportunidade e receptividade, e a toda a equipe da Unidade de Vida Selvagem, onde aprendi muito e fiz bons amigos. Obrigado João Carvalho, Dário Hipólito, Rita Torres, Ana Figueiredo, Eduardo Ferreira, Joana Fernandes, Filipa Costa, Raquel Martins, Raquel Crespo e Victor Bandeira, pelas boas conversas durante o trabalho, os almoços e os finos, mas principalmente pelos campos e eventos que me permitiram conhecer a biodiversidade e as belas paisagens naturais de Portugal. Ao Pedro Sarmento, agradeço especialmente pelo suporte em um dos capítulos da tese e por me proporcionar uma das maiores experiências da minha vida, ver um lince ibérico em vida livre, e ainda com filhotes. Chorei nesse dia, e não era pra menos! Sou grato à Camile Lugarini pela confiança e oportunidade de colaborar com o Projeto Ararinha na Natureza, desenvolvido pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (CEMAVE/ICMBio) e financiado pela Vale através do Funbio. Sou grato ainda pela amizade e ajuda de Cristine Prates, Sueli Damasceno, Damilys Oliveira, Mércia Milena e Tatiane Alves, com as quais aprendi muito durante minha passagem pelo projeto! xi Agradeço à toda equipe do Parque Nacional da Furna Feia (ICMBio), nas pessoas do Leonardo, Lúcia, Suiane, Rielson e Iatagan (mais uma vez), pelo importante apoio e parceria durante o projeto que desenvolvi nesta importante unidade de conservação. Agradeço ao Gabriel Penido pela parceria em um dos capítulos deste trabalho; à Barbara Zimbres e Tadeu de Oliveira pela ajuda em análises e identificação de registros de felinos, respectivamente; e ao Aírton Galvão (Tito) pela amizade e ajuda nos campos do mestrado que subsidiaram um dos capítulos apresentados aqui. Para realizar esse trabalho, contei também com o suporte financeiro, gerencial e logístico de importantes parceiros, entre instituições e financiadores, a quem sou grato: The Mohamed bin Zayed Species Conservation Fund, Restaurante Camarões (através de Vitor Medeiros e família), Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, Wildlife Conservation Society – WSC Brasil, Tropical Forest Conservation Act (TFCA) e Fundo Brasileiro para a Biodiversidade. Ao Santander Universidades agradeço pela bolsa-auxílio para fazer o intercâmbio. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 / This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001. Sou grato a todos os moradores locais e proprietários de terras que me receberam e permitiram realizar esse trabalho nas suas propriedades e vizinhança. À Caatinga e aos seus moradores (gente, planta e bicho), sou grato por me fazer valorizar minhas origens e por dar mais sentido a minha existência nesse planeta. xii SUMÁRIO RESUMO ........................................................................................................................................ 11 ABSTRACT .................................................................................................................................... 13 INTRODUÇÃO GERAL ................................................................................................................ 15 Referências ...................................................................................................................................... 18 MAMÍFEROS DE MÉDIO E GRANDE PORTE DA CAATINGA DO RIO GRANDE DO NORTE, NORDESTE DO BRASIL ............................................................................................... 22 Resumo ............................................................................................................................................ 23 Abstract ........................................................................................................................................... 24 Introdução ....................................................................................................................................... 25 Material e métodos.......................................................................................................................... 27 Resultados ....................................................................................................................................... 32 Discussão ......................................................................................................................................... 39 Agradecimentos .............................................................................................................................. 49 Literatura citada ............................................................................................................................. 49 TEMPORAL NICHE OVERLAP AMONG MESOCARNIVORES IN A CAATINGA DRY FOREST .......................................................................................................................................... 61 Abstract ........................................................................................................................................... 63 Introduction ....................................................................................................................................64 Methods ........................................................................................................................................... 67 Results ............................................................................................................................................. 72 Discussion ........................................................................................................................................ 81 Acknowledgments ........................................................................................................................... 86 References ....................................................................................................................................... 86 Supplementary Material ................................................................................................................. 95 CO-OCCURRENCE PATTERNS BETWEEN OCELOT AND SYMPATRIC MESOCARNIVORES IN A BRAZILIAN DRY FOREST ......................................................... 102 Abstract ......................................................................................................................................... 104 Introduction .................................................................................................................................. 105 xiii Material and methods ................................................................................................................... 108 Results ........................................................................................................................................... 114 Discussion ...................................................................................................................................... 122 Acknowledgments ......................................................................................................................... 127 References ..................................................................................................................................... 128 Supplementary Material ............................................................................................................... 138 MULTI-SPECIES OCCUPANCY MODELLING REVEALS MAMMALS’ PREFERENCE FOR FORESTED HABITATS IN AN OVERGRAZED SEMIARID LANDSCAPE ................ 141 Highlights ...................................................................................................................................... 143 Abstract ......................................................................................................................................... 143 Introduction .................................................................................................................................. 144 Methods ......................................................................................................................................... 147 Results ........................................................................................................................................... 154 Discussion ...................................................................................................................................... 160 Acknowledgments ......................................................................................................................... 166 References ..................................................................................................................................... 167 Supplementary Material ............................................................................................................... 178 CONCLUSÕES GERAIS ............................................................................................................. 185 11 RESUMO 1 As florestas tropicais secas são ecossistemas ameaçados e pouco conhecidos onde a associação 2 entre o clima semiárido e a geralmente elevada degradação ambiental impõe desafios para a 3 persistência da fauna silvestre. Neste contexto, mamíferos de médio e grande porte (MMGP) 4 são especialmente afetados pelas perturbações antropogênicas, entre os quais os carnívoros são 5 intensamente perseguidos, prejudicando seu papel na estruturação das comunidades biológicas 6 através da predação e da competição intraguilda. Nesta tese, nós investigamos os padrões de 7 ocorrência e coexistência de MMGP em diferentes paisagens da Caatinga, a floresta tropical 8 seca brasileira, utilizando dados obtidos com armadilhamento fotográfico. Especificamente 9 nós: 1) realizamos o primeiro levantamento sistemático de MMGP do estado do Rio Grande do 10 Norte (RN) amostrando 10 áreas prioritárias para a conservação; 2) descrevemos os padrões 11 diários e sazonais de atividade e investigamos a sobreposição temporal entre mesocarnívoros, 12 e deles com suas presas potenciais, utilizando estatística circular e análises não paramétricas de 13 sobreposição de atividade; 3) investigamos os padrões de co-ocorrência espacial entre um 14 mesopredador dominante (Leopardus pardalis) e mesocarnívoros simpátricos, considerando a 15 sazonalidade e utilizando modelos de co-ocorrência condicional; e, finalmente, 4) testamos os 16 efeitos relativos de preditores ambientais e antropogênicos na ocupação de MMGP em uma 17 paisagem perturbada pela elevada densidade de gado e durante um período de seca extrema, 18 utilizando modelos Bayesianos de ocupação em uma abordagem multi-espécies. Como 19 resultados principais, nós encontramos 1) uma riqueza de 14 espécies de MMGP na Caatinga 20 do RN, o que representa 50% das espécies deste grupo registradas ao norte do Rio São 21 Francisco, incluindo espécies ameaçadas de extinção como um predador de topo (Puma 22 concolor). 2) Os mesocarnívoros foram principalmente noturnos ao longo das estações seca e 23 chuvosa, sobrepondo grande parte da sua atividade diária, mas segregando os picos de maior 24 atividade, o que pode representar um mecanismo de coexistência. Enquanto isso, Herpailurus 25 12 yagouaroundi foi diurno, evitando o encontro com seus competidores e sincronizando sua 26 atividade com presas potenciais. 3) Espacialmente, os demais mesocarnívoros usaram o habitat 27 independentemente da presença de L. pardalis, com exceção de H. yagouaroundi, que parece 28 preferir os mesmos locais que esse mesopredador dominante, provavelmente por apresentarem 29 melhores condições e recursos, enquanto a segregação temporal diminui os riscos de encontros 30 agressivos. 4) MMGP ocorreram principalmente em manchas de vegetação florestal, as quais 31 representam um habitat chave para a persistência desse grupo em uma paisagem degradada e 32 sob estiagem prolongada, onde muitas espécies apresentaram abundância extremamente baixa. 33 Por isso, esses ambientes devem ser protegidos para garantir a persistência de MMGP na 34 Caatinga. Nossos resultados reforçam a relevância de áreas e habitats prioritários para a 35 conservação de mamíferos na floresta tropical seca brasileira, além de elucidar as estratégias de 36 coexistência intraguilda que mantém a diversidade de mesocarnívoros neste ambiente 37 semiárido. 38 Palavras-chave: Distribuição de espécies; Espécies ameaçadas; Floresta tropical seca; 39 Interação interespecífica; Modelos de ocupação; Padrão de atividade; Semiárido. 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 13 Occurrence and coexistence’s patterns of medium to large-sized mammals in Caatinga 51 52 ABSTRACT 53 Dry tropical forests are threatened and little-known ecosystems where the association between 54 the semiarid climate and the generally high environmental degradation imposes challenges for 55 the persistence of wild fauna. In this context, medium to large-sized mammals (MLSM) are 56 especially affected by anthropogenic disturbances,among which, carnivores are intensely 57 persecuted, impairing their role in structuring biological communities through predation and 58 intraguild competition. In this thesis, we investigated the occurrence and coexistence patterns 59 of MLSM in different landscapes of the Caatinga, the Brazilian dry tropical forest, using camera 60 trapping data. Specifically, we 1) carried out the first systematic survey of MLSM in the Rio 61 Grande do Norte state (RN), sampling 10 priority areas for conservation; 2) we described the 62 daily and seasonal activity patterns and estimated the temporal overlap among mesocarnivores 63 using circular statistics and non-parametric analyzes of activity overlap; 3) we investigated the 64 patterns of spatial co-occurrence between a dominant mesopredator (Leopardus pardalis) and 65 sympatric mesocarnivores, considering seasonality and using conditional co-occurrence 66 models; and finally, 4) we tested the relative effects of environmental and anthropogenic 67 predictors on MLSM’s occupancy in a landscape disturbed by high cattle density and during a 68 period of extreme drought, using Bayesian occupancy models in a multi-species approach. As 69 main results, we found 1) a wealth of 14 MLSM’s species in the Caatinga of RN, which 70 represents 50% of the MLSM registered at the north of the São Francisco River, including 71 threatened species as a top predator (Puma concolor). 2) Mesocarnivores were mainly nocturnal 72 throughout the dry and rainy seasons, overlapping most of their daily activity, but segregating 73 the peaks of greater activity, which may represent a coexistence mechanism. Meanwhile, 74 Herpailurus yagouaroundi was diurnal, avoiding encounters with competitors and 75 14 synchronizing its activity with potential prey. 3) Spatially, the other mesocarnivores used the 76 habitat regardless L. pardalis’ presence, with the exception again of H. yagouaroundi, which 77 seems to prefer the same locations as this dominant mesopredator, probably because they have 78 better conditions and resources, while temporal segregation decreases the risk of aggressive 79 encounters. 4) MLSM occurred mainly in patches of forest vegetation, which represent a key 80 habitat for the persistence of this group in a degraded landscape under prolonged drought, and 81 where many species showed an extremely low abundance. Therefore, these environments must 82 be protected to guarantee MLSM’s persistence in Caatinga. Our results reinforce the relevance 83 of priority areas and habitats for mammals’ conservation in the Brazilian dry tropical forest, in 84 addition to elucidating the intraguild coexistence strategies that maintain the mesocarnivores 85 diversity in this semiarid environment. 86 Keywords: Activity pattern; Dry tropical forest; Interspecific interactions; Occupancy 87 models; Semiarid; Species distribution; Threatened species. 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 15 INTRODUÇÃO GERAL 99 Mamíferos terrestres de médio e grande porte (MMGP; e.g., > 1 kg, Chiarello et al., 2000) 100 desempenham importantes papeis ecológicos nas florestais tropicais (Bello et al., 2016), mas 101 estão entre os grupos mais afetados pelas pressões antropogênicas presentes nestes ambientes 102 (Benítez-Lopes et al., 2017). Do controle de herbívoros que estruturam a vegetação a dispersão 103 de sementes, a perda de espécies de MMGP pode afetar a estrutura e a capacidade de 104 regeneração dos ecossistemas (Bello et al., 2016; Ripple et al., 2014). Relativamente baixas 105 densidades e taxas reprodutivas tornam mais difícil para populações de espécies de MMGP se 106 recuperarem da caça intensa e da perda e degradação dos seus habitats (Chiarello et al., 2000; 107 Ripple et al., 2014), fazendo desse grupo um importante indicador de integridade biótica de um 108 ecossistema (Cheyne et al., 2016). 109 Entre os MMGP, os grandes carnívoros são especialmente ameaçados principalmente 110 pela perda de habitat, diminuição da disponibilidade de presas e perseguição humana decorrente 111 de conflitos pela predação de animais domésticos (Ripple et al., 2014). Por isso, as populações 112 de predadores de topo de cadeia têm declinado por todo o mundo, gerando, entre outros efeitos, 113 um aumento nas abundâncias de mesopredadores, uma vez que estes ficam liberados do 114 controle top-down (Ripple et al., 2014). Consequentemente, dentre outros efeitos, os 115 mesopredadores pressionam ainda mais suas presas e intensificam as interações intraguilda 116 (Croocks e Soulé, 1999; Jiménez et al., 2019), Neste contexto, espécies dominantes dessa guilda 117 (e.g., maiores) podem se tornar predadores de topo emergentes (Prugh et al., 2009). Desta 118 forma, é essencial investigar os padrões de ocorrência e coexistência de MMGP em 119 ecossistemas tropicais para entender melhor quais fatores determinam a diversidade de 120 mamíferos terrestres e garantem a persistência das comunidades desse grupo em paisagens onde 121 os impactos antropogênicos ameaçam significativamente a biodiversidade. 122 16 As florestas sazonalmente secas estão entre os ecossistemas tropicais menos conhecidos 123 e protegidos (Santos et al., 2011; Banda et al., 2016). A Caatinga brasileira consiste na maior 124 formação desse tipo de bioma na região Neotropical (Silva et al., 2017). Coberta por um 125 mosaico vegetacional que vai da formações mais arbustivas e abertas até florestas secas densas, 126 de acordo com o grau de aridez e degradação (Velloso et al., 2002; Silva e Souza, 2018), a 127 Caatinga é marcada por um clima semiárido, apresentando altas temperaturas, elevada 128 evapotranspiração e baixas precipitações concentradas em poucos meses do ano (Sampaio, 129 2010). Essa ecorregião já perdeu aproximadamente 50% da sua cobertura original 130 (Antongiovanni et al., 2018), e o restante se encontra sob elevados níveis de distúrbio 131 antropogênico crônico (Ribeiro et al., 2015). 132 Entre as maiores ameaças para a biodiversidade da Caatinga estão a conversão da 133 vegetação em culturas agrícolas de ciclo curto, a extração de madeira para usos doméstico, 134 industrial e produção de carvão vegetal, a caça intensa e amplamente difundida, e a criação 135 extensiva de gado bovino, ovino e caprino, que somam mais de 10 milhões de cabeças (Leal et 136 al., 2005; Silva et al., 2017). Essas atividades são desenvolvidas por uma população humana de 137 mais de 28 milhões de habitantes distribuídos ao longo dos 735.000 km² dessa região semiárida 138 (Leal et al. 2005; Silva et al., 2017). As mudanças climáticas representam uma ameaça 139 adicional, uma vez que devem intensificar a escassez de chuvas na região (Seddon et al., 2016). 140 Além disso, a baixa cobertura de áreas integralmente protegidas, que somam menos de 2 % da 141 área da Caatinga (Fonseca et al., 2017), e o ainda escasso, embora crescente, conhecimento 142 sobre as espécies da região, dificultam a elaboração e implementação de estratégias eficientes 143 de conservação e manejo, bem como o avanço no entendimento dos seus padrões ecológicos. 144 Os mamíferos se destacam entre os grupos biológicos menos conhecidos na Caatinga. 145 Reconhecida por muito tempo como pobre em espécies e endemismos desse grupo faunístico 146 (Mares et al., 1981), só nos últimos anos têm surgido esforços significativos de pesquisas sobre 147 17 a ecologia de mamíferos na região, revelandouma riqueza de pelo menos 183 espécies, sendo 148 45 delas de MMGP (incluindo primatas) e 11 endêmicas (Carmignotto e Astúa, 2017). Entre os 149 estados brasileiros, o Rio Grande do Norte sempre foi apontado como uma grande lacuna de 150 conhecimento sobre o grupo (Feijó e Langguth, 2013), o que só nos últimos anos tem sido 151 revertido (Marinho et al., 2018; Vargas-Mena et al., 2018). Um aspecto da ecologia de MMGP152 que foi pouco investigado até aqui, é como mesocarnívoros coexistem em paisagens onde 153 predadores de topo como onças pardas (Puma concolor) e pintadas (Panthera onca) estão 154 extintos localmente ou funcionalmente, o que representa grande parte da floresta tropical seca 155 brasileira (Feijó e Langguth, 2013; Carmignotto e Astúa, 2017). Além disso, precisamos 156 entender melhor como MMGP lidam com a marcada sazonalidade de ambientes semiáridos 157 como a Caatinga (Stoner e Timm, 2011; Carmignotto e Astúa, 2017), e quais características da 158 paisagem beneficiam a persistência das espécies em um contexto de elevada degradação 159 antropogênica e estiagem prolongada, que tendem a se intensificar no futuro. 160 Para abordar estas temáticas, esta tese está dividida em quatro capítulos. No Capítulo 1 161 descrevemos a riqueza e composição de MMGP da Caatinga do Rio Grande do Norte, a partir 162 de um significativo esforço amostral que cobriu 10 áreas prioritárias para a conservação dessa 163 ecorregião no estado. A partir dos resultados do armadilhamento fotográfico, discutimos a 164 relevância das espécies registradas, as ausências preocupantes e a importância das áreas de 165 estudo para o conhecimento e conservação da biodiversidade local. Optamos por publicar esse 166 capítulo em português por entendemos que ele preenche uma lacuna sobre informações básicas 167 de ocorrência de mamíferos no estado, e que assim deve ser utilizado tanto para pequisa 168 cientídica quanto por técnicos de órgãos ambienatsi e tomadores de decisão. 169 Nos Capítulos 2 e 3 investigamos os mecanismos de coexistência de mesocarnívoros 170 através da análise de sobreposição dos eixos temporal e espacial do nicho das espécies, 171 respectivamente, em uma área prioritária para conservaçãoda Caatinga do Rio Grande do Norte 172 18 onde predadores de topo estão virtualmente ausentes, e onde a jaguatirica (Leopardus pardalis) 173 atua como mesocarnívoro dominante. Além disso, consideramos potenciais efeitos da 174 sazonalidade e de fatores como disponibilidade de presas e interferências antrópicas nesses 175 padrões espaço-temporais. 176 No Capítulo 4 testamos os efeitos relativos de preditores ambientais e antropogênicos na 177 ocupação de MMGP em uma paisagem da Caatinga de alta relevância para conservação, mas 178 que se encontra sob sobrepastejo no norte da Bahia. Neste trabalho tentamos identificar quais 179 mecanismos permitem a persistência das espécies em um ambiente perturbado durante um 180 período de seca extrema através de modelos Bayesianos de ocupação baseados em uma 181 abordagem multi-espécies. 182 Com os resultados desta tese, esperamos melhorar o entendimento sobre aspectos 183 ecológicos de MMGP em uma região semiárida sob forte interferência humana, de forma que 184 essas informações auxiliem na tomada de decisão e na elaboração e execução de estratégias de 185 conservação e manejo das espécies e paisagens da Caatinga. Além disso, esperamos que nossos 186 resultados estimulem o desenvolvimento de novas pesquisas que avancem nossa capacidade de 187 entendimento de como mamíferos lidam com ecossistemas semiáridos. 188 189 Referências 190 Antongiovanni M, Venticinque EM, Fonseca CR. 2018. Fragmentation patterns of the Caatinga 191 drylands. Landscape Ecology 33:1353-1367. 192 Banda RK, Delgado-Salinas A, Dexter KG et al. 2016. Plant diversity patterns in neotropical 193 dry forests and their conservation implications. Science 353:1383-1387. 194 Bello C, Galetti M, Pizo MA et al. 2015. Defaunation affects carbon storage in tropical forests. 195 Science Advances 1:e1501105. 196 19 Benítez-López A, Alkemade R, Schipper AM, Ingran DJ, Verweij PA, Eikeboom JAJ, 197 Huijbregts MAJ. 2017. The impact of hunting on tropical mammal and bird populations. 198 Science 356:180-183. 199 Carmignotto AP, Astúa D. 2017. Mammals of the Caatinga: diversity, ecology, biogeography, 200 and conservation. In: Silva MC, Leal IR, Tabarelli M (eds). Caatinga: The largest tropical 201 dry forest region in South America. Springer, Cham, pp. 211-254. 202 Cheyne SM, Sastramidjaja WJ, Muhalir, Rayadin Y, Macdonald DW. 2016. Mammalian 203 communities as indicators of disturbance across Indonesian Borneo. Global Ecology and 204 Conservation 7:157-173. 205 Chiarello AG. 2000. Density and population size of mammals in remnants of Brazilian Atlantic 206 Forest. Conservation Biology 14:1649-1657. 207 Fonseca CR, Antongiovanni M, Matsumoto M, Bernard E, Venticinque EM. 2017. 208 Conservation opportunities in the Caatinga. In: Silva MC, Leal IR, Tabarelli M (eds). 209 Caatinga: The largest tropical dry forest region in South America. Springer, Cham, pp. 429-210 443. 211 Jiménez J, Nuñez-Arjona JC, Mougeot F et al. 2019. Restoring apex predators can reduce 212 mesopredator abundances. Biological Conservation 238:108234. 213 Mares MA, Willig MR, Steilein KE, Lacher-Jr TE. 1981. The mammals of Northeastern Brazil: 214 a preliminary assessment. Annals of the Carnegie Museum 50:81-137. 215 Marinho PH, Bezerra D, Antongiovanni M, Fonseca CR, Venticinque EM. 2018. Mamíferos 216 de médio e grande porte da Caatinga do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil. 217 Mastozoología Neotropical 25:345-362. 218 Prugh LR, Stoner CJ, Epps CW, Bean WT, Ripple WJ, Laliberte AS, Bashares JS. 2009. The 219 rise of the mesopredator. Bioscience 59:779-791. 220 20 Ribeiro E, Arroyo-Rodríguez V, Santos BA, Tabarelli M, Leal IR. 2015. Chronic anthropogenic 221 disturbance drives the biological impoverishment of the Brazilian Caatinga vegetation. 222 Journal of Applied Ecology 52:611-620. 223 Ripple WJ, Estes JA, Beschta RL et al. 2014. Status and ecological effects of the world’s largest 224 carnivores status and ecological effects of the world’s largest carnivores. Science 225 343:1241484. 226 Sampaio EVSB. 2010. Características e potencialidades. In: Gariglio MA, Sampaio EVSB, 227 Cestaro LA, Kageyama PY (eds). Uso sustentável e conservação dos recursos florestais da 228 Caatinga. Serviço Florestal Brasileiro, Brasília, pp 29-48. 229 Santos JC, Leal IR, Almeida-Cortez JS, Fernandes GW, Tabarelli M. 2011. Caatinga: the 230 scientific negligence experienced by a dry tropical forest. Tropical Conservation Science 231 4:276-286. 232 Seddon AWR, Macias-Fauria M, Long PR, Benz D, Willis KJ. 2016. Sensitivity of global 233 terrestrial ecosystems to climate variability. Nature 531:229-232. 234 Silva AC, Souza AF. 2018. Aridity drives plant biogeographical sub regions in the Caatinga, 235 the largest tropical dry forest and woodland block in South America. Plos One 13:e0196130. 236 Silva JMC, Leal IR, Tabarelli M (eds). 2017. Caatinga: the largest tropical dry forest region in 237 South America. Springer, Cham. 238 Stoner K, Timm RM. 2011. Seasonally dry tropical forest mammals: Adaptations and seasonal 239 patterns. In: Dirzo R, Hillary S, Young S, Mooney HA, Ceballos G (eds). Seasonally dry 240 tropical forests: Ecology and conservation. Island Press, Washington. 241 Vargas-Mena JC, Alves-Pereira K, Barros MAS et al. 2018. Te bats of Rio Grande do Norte 242 state, northeastern Brazil. Biota Neotropica 18:e20170417. 243 21 Velloso AL, Sampaio E, Pareyn F (eds). 2002. Ecorregiões propostas para o bioma Caatinga. 244 Associação de Plantas do Nordeste/Instituto para Conservação Ambiental/The Nature 245 Conservancy do Brasil, Recife. 246 247 248 249 250 251 252 253 254 255 256 257 258 259 260 261 262 263 264 265 266 267 268 269 22 Capítulo 1 270 271 MAMÍFEROS DE MÉDIO E GRANDE PORTE DA CAATINGA DO RIO GRANDE 272 DO NORTE, NORDESTE DO BRASIL 273 274 275 276 277 Capítulo publicado na revista Mastozoología Neotropical (https://www.sarem.org.ar/wp-278 content/uploads/2019/01/SAREM_MastNeotrop_25-2_08_Marinho.pdf).279 23 Mamíferos de médio e grande porte da Caatinga do Rio Grande do Norte, 280 nordeste do Brasil 281 282 Paulo H. Marinho¹, Daniel Bezerra¹, Marina Antongiovanni¹, Carlos R. Fonseca¹ e 283 Eduardo M. Venticinque¹ 284 285 ¹Programa de Pós-graduação em Ecologia, Departamento de Ecologia, Centro de Biociências, 286 Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Lagoa Nova, Natal, RN, Brasil 287 288 Resumo. Mamíferos de médio e grande porte são especialmente afetados pela caça e perda de 289 habitat, ao mesmo tempo que desempenham importantes funções no ecossistema. O 290 conhecimento sobre esse grupo na Caatinga, a floresta tropical sazonalmente seca do nordeste 291 do Brasil, contudo, ainda é escasso. Neste trabalho realizamos o primeiro levantamento 292 sistemático de mamíferos de médio e grande porte no estado do Rio Grande do Norte, através 293 de armadilhamento fotográfico em 188 pontos distribuídos em 10 áreas prioritárias para a 294 conservação da biodiversidade da Caatinga. Com um esforço amostral de 7271 câmeras-dias, 295 obtivemos 1607 registros de 14 espécies nativas, distribuídas em seis ordens e 10 famílias: oito 296 espécies da ordem Carnivora, duas espécies da ordem Cingulata, e uma espécie para cada uma 297 das demais ordens (Artiodactyla, Didelphimorphia, Pilosa e Primates). A riqueza encontrada 298 representa 31% das 45 espécies de mamíferos de médio e grande porte que ocorrem na 299 Caatinga, e 50% das espécies deste grupo registradas no domínio da Caatinga ao norte do Rio 300 São Francisco, ampliando significativamente o conhecimento sobre o grupo na região. Entre as 301 espécies registradas estão três felinos ameaçados de extinção, incluindo um grande predador de 302 topo (Leopardus tigrinus, Herpailurus yagouaroundi e Puma concolor). O baixo número de 303 registros de algumas espécies e a ausência de outras indicam o estado crítico da mastofauna do 304 24 estado e sugerem a importância e urgência do estabelecimento de novas unidades de 305 conservação na Caatinga do Rio Grande do Norte. 306 Palavras chave: Armadilha fotográfica. Conservação da Biodiversidade. Espécies ameaçadas. 307 Floresta sazonalmente tropical seca. Riqueza de espécies. 308 309 Abstract. Medium to large-sized mammals are the most affected by habitat loss and hunting, 310 while at the same time playing important roles in the ecosystem. The knowledge about this 311 group in the Caatinga, the dry tropical forest of northeastern Brazil, however, is still scarce. In 312 this study, we carried out the first systematic survey of medium to large-sized mammals in the 313 Rio Grande do Norte state, with camera traps installed in 188 points distributed in 10 priority 314 areas for the conservation of the Caatinga biodiversity. With a sampling effort of 7271 camera-315 days, we obtained 1607 records of 14 native medium to large-sized mammals, distributed in six 316 orders and 10 families: eight species of the order Carnivora, two species of the order Cingulata, 317 and one species for each of the other orders (Artiodactyla, Didelphimorphia, Pilosa e Primates). 318 The richness recorded represents a third of the 45 large and medium-sized mammal species 319 found in the Caatinga, and half of the large and medium-sized mammal species recorded in 320 northern Caatinga dominium, significantly increasing the knowledge about the group in the 321 region. Among the recorded species are three threatened felids, including a large top predator 322 (Leopardus tigrinus, Herpailurus yagouaroundi, and Puma concolor). The low number of 323 records of some species and the absence of others indicate the critical status of the mammal 324 fauna in the state and highlight the importance and urgency of the creation of new protected 325 areas in the Caatinga of the Rio Grande do Norte. 326 Key words: Biodiversity conservation. Camera trap. Seasonally dry tropical forest. Species 327 richness. Threatened species. 328 329 25 Introdução 330 O conhecimento regional sobre a presença e distribuição das espécies é essencial para 331 planejar e avaliar estratégias de conservação da biodiversidade (Tobler et al. 2008). Esse tipo 332 de informação ajuda a definir a distribuição espacial das espécies, monitorar a diversidade ao 333 longo do espaço e do tempo e avaliar o impacto de atividades humanas sobre as espécies 334 vulneráveis (Tobler et al. 2008; Cheyne et al. 2016; Rosas-Ribeiro et al. 2017). Mamíferos de 335 médio e grande porte (> 1 kg; e.g. Chiarello 1999) são especialmente afetados por ameaças 336 como a caça e a perda e fragmentação dos seus habitats, uma vez que apresentam baixas 337 densidade e fecundidade, e geralmente elevados requerimentos tróficos e de área de vida 338 (Chiarello 1999; Cardillo et al. 2005; Peres 2001). Ao mesmo tempo, esses grandes vertebrados 339 são responsáveis por importantes funções e serviços ecossistêmicos, como o controle de 340 populações de herbívoros, a modulação do ciclo de nutrientes através do consumo da biomassa 341 vegetal e a dispersão de sementes grandes (Chiarello 1999; Terborgh et al. 2001; Cardillo et al. 342 2005; Galetti & Dirzo 2013; Sobral et al. 2017). Além disto, muitas vezes mamíferos de médio 343 e grande porte, devido a questões éticas, estéticas e culturais, são importantes espécies guarda-344 chuva ou bandeira em ações de conservação (Linnell et al. 2000). 345 As florestas tropicais secas abrigam uma relevante diversidade de mamíferos e estão entre 346 os ecossistemas tropicais mais ameaçados e pouco protegidos do mundo (Banda et al. 2016). A 347 Caatinga, localizada no nordeste do Brasil, é a maior floreta tropical seca das Américas (Banda 348 et al. 2016) e já foi considerada uma das 37 grandes regiões selvagens do planeta (Mittermeier 349 et al. 2002). Apesar do déficit histórico de estudos (Santos et al. 2011), uma revisão recente 350 evidencia que a Caatinga abriga uma elevada diversidade de animais e plantas (Silva et al. 351 2017a). Por outro lado, 45,5% da sua cobertura vegetal original já foi perdida (MMA 2016a) e 352 áreas integralmente protegidas cobrem menos de 2% do seu território (Fonseca et al. 2017). 353 Além disso, os fragmentos de Caatinga remanescentes, embora relativamente conectados 354 26 (Antongiovanni et al. 2018), encontram-se sob forte distúrbio antrópico crônico, resultado de 355 atividades como a criação extensiva de rebanhos, a retirada de madeira e a caça ilegal (Alves et 356 al. 2016; Marinho et al. 2016; Ribeiro et al. 2015), todas amplamente praticadas por uma 357 população humana de 28.6 milhões de habitantes (Silva et al. 2017b). E todas essas ameaças 358 devem ser agravadas pela intensificação na aridez da região resultante das mudanças climáticas 359 (Seddon et al. 2016). 360 A Caatinga abriga 183 espécies de mamíferos, sendo 11 delas endêmicas e 45 de médio e 361 grande porte (Carmignotto & Astúa 2017). Embora o número de inventários e investigações 362 ecológicas tenha crescido nos últimos anos, especialmente com a disseminação de técnicas 363 como o armadilhamento fotográfico (e.g. Dias & Bocchiglieri 2016; Delciellos 2016; Astete et 364 al. 2017), uma grande porção desse bioma brasileiro permanece desconhecida ou subamostrada 365 (Santos et al. 2011; Albuquerque et al. 2012). Ao comportamento elusivo, hábitos noturnos e 366 baixas densidades, que contribuem para o desconhecimento dos mamíferos na região, soma-se 367 o historicamente baixo investimento em pesquisa (Santos et a. 2011) e a visão inicial 368 equivocada de que a mastofauna da Caatinga seria depauperada (Mares et al. 1981). 369 No estado do Rio Grande do Norte, extremo nordeste do Brasil e limite da distribuição de 370 muitas espécies, a lacuna de conhecimento sobre mamíferos é ainda mais evidente (Brito et al. 371 2009; Feijó & Langguth 2013), indo de marsupiais (Melo& Sponchiado 2012) até médios e 372 grandes mamíferos (Feijó & Langguth 2013). A lacuna para quirópteros era igualmente grande 373 até levantamentos recentes (e.g. Vargas-Mena et al. 2018). Diferente dos estados vizinhos, o 374 Rio Grande do Norte não foi visitado por expedições históricas, que realizadas a partir do século 375 XVII impulsionaram o conhecimento sobre mamíferos no restante do nordeste do Brasil (Feijó 376 & Langguth 2013). Para mamíferos de médio e grande porte os trabalhos no estado são 377 relativamente recentes e representados basicamente por inventários paleontológicos (Araújo-378 Júnior & Porpino 2011), atualizações de distribuição e primeiros registros de ocorrência 379 27 (Ferreira et al. 2009; Dantas et al. 2016; Marinho et al. 2017; Rosas-Ribeiro et al. 2017). Ainda 380 mais escassos são os trabalhos sobre a ecologia de espécies, até o momento focados restritos a 381 Sapajus libidinosus (Ferreira et al. 2010; Emidio & Ferreira 2012) e Leopardus tigrinus 382 (Marinho et al. 2018a; b). 383 A melhoria do conhecimento biológico em áreas prioritárias para a conservação é uma ação 384 relevante para fortalecer a aptidão dessas áreas em conservar a biodiversidade (Silva et al. 385 2004), sobretudo em uma região com baixa cobertura de unidades de conservação como a 386 Caatinga. Neste contexto, o objetivo deste estudo foi caracterizar a composição e riqueza de 387 mamíferos de médio e grande porte da Caatinga do estado do Rio Grande do Norte, Brasil, 388 através de armadilhamento fotográfico em 10 áreas prioritárias para a conservação da 389 biodiversidade do bioma. Com este trabalho esperamos (i) preencher a lacuna existente no 390 estado de registros de mamíferos de médio e grande porte, (ii) caracterizar a qualidade relativa 391 das 10 áreas prioritárias em termos de mamíferos de médio e grande porte e (iii) fornecer 392 subsídios para a criação de novas unidades de conservação no Rio Grande do Norte. 393 394 Material e métodos 395 Área de estudo 396 Nossa área de estudo compreende a Caatinga do estado do Rio Grande do Norte (Fig. 1, 397 Tabela 1), sendo que as amostragens foram realizadas em 10 paisagens disjuntas consideradas 398 áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade do bioma tanto em nível estadual 399 (https://brasil.wcs.org/pt-br/Lugares-naturais/Projeto-Caatinga.aspx) quanto em nível nacional 400 (MMA, 2016b; Tabela 1). Todas as áreas estudadas são formadas basicamente por 401 propriedades privadas e não possuem proteção legal, com exceção de Dunas Rosado, que 402 recentemente se tornou uma Área de Proteção Ambiental (APA) estadual (IDEMA 2018) 403 (Tabela 1). 404 https://brasil.wcs.org/pt-br/Lugares-naturais/Projeto-Caatinga.aspx 28 405 406 Fig. 1. Localização das 10 áreas prioritárias para a conservação da Caatinga do Rio Grande do Norte, 407 nordeste do Brasil, onde foram realizados levantamentos de mamíferos de médio e grande porte (para 408 mais informações sobre as áreas acessar: https://brasil.wcs.org/pt-br/Lugares-naturais/Projeto-409 Caatinga.aspx). Embora Martins e Serrinha dos Pintos componham uma mesma área prioritária, estas 410 áreas foram amostradas de forma independente. 411 412 Mais de 90% do território do Rio Grande do Norte está inserido no domínio da Caatinga 413 (IDEMA 2014). O clima da região é quente e semiárido, com chuvas irregulares e concentradas 414 em poucos meses do ano (e.g. fevereiro a maio), com médias pluviométricas entre 400 e 800 415 mm (Ab’Sáber 1974; Velloso et al. 2002). A vegetação da Caatinga é um mosaico de formações 416 arbustivas, manchas arbóreas e florestas secas (Santos et al. 2011) que variam de acordo com o 417 relevo, solo, clima local e nível de antropização (Velloso et al. 2002). Entre as nossas áreas de 418 estudo, três (Felipe Guerra, Dunas do Rosado e Caiçara do Norte) se encontram em altitudes 419 baixas (média de 20 a 75 m acima do nível do mar) (Tabela 1), onde predomina uma vegetação 420 mais baixa e espaçada, embora existam manchas arbóreas em solos mais ricos e com menos 421 29 pressão antrópica. Já as demais áreas cobrem principalmente ambientes elevados e inclinados 422 (e.g. serras e encostas, respectivamente) (médias entre 250 e 480 metros de altitude) (Tabela 423 1), onde predominam as formações vegetais densas e arbóreas, mas também manchas arbustivas 424 nas áreas mais baixas e pressionadas. Semelhante ao que acontece com o restante do bioma, 425 45% da cobertura original da Caatinga no estado já foi modificada por atividades como 426 agricultura, pecuária e corte de lenha para uso doméstico e industrial (IDEMA 2014). 427 Fruticultura irrigada, exploração de calcário para produção de gesso e expansão de usinas 428 eólicas e solares são vetores adicionais de perda de cobertura vegetal na região (obs. pessoal). 429 430 431 432 433 434 435 436 437 438 439 30 Tabela 1. Esforço amostral empregado para levantar a composição e riqueza de mamíferos de médio e grande porte em 10 áreas prioritárias para a conservação da Caatinga do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil. A área amostral foi medida a partir do mínimo polígono convexo dos pontos amostrais em cada área e somados para todo o estudo. São apresentados os códigos dos polígonos prioritários que cobrem totalmente ou parcialmente as áreas de estudo, de acordo com lei federal (MMA 2016b). Unidade de conservação (UC). DP: desvio padrão.Para mais informações sobre as áreas acessar: https://brasil.wcs.org/pt-br/Lugares- naturais/Projeto-Caatinga.aspx (Projeto Caatinga Potiguar – Cartograma). Localidade Elevação média (DP) Período Nº pontos Esforço (câmeras-dias) Área (km²) Coordenadas principais Área prioritária / UC Serra de Santana 401,89 (199,50) 05 Mai - 18 Jun 19 703 13452.0 6°10’ e 6°0’S; 36°50’ e 36°35’W CA045 / Não Lajes 355,9 (101,09) 26 Mai - 06 Jul 20 793 20184.5 5°57’ e 5°43’S, 36°5’ e 36°17’W CA078 / Não Cerro Corá 468,05 (83,25) 01 Jun - 08 Jul 19 654 7476.6 6°13’ e 6°2’S; 36°15’ e 36°22’W CA096 / Não Martins 303,2 (83,48) 22 Jun - 30 Jul 20 742 6074.1 6°0’ e 5°4’S; 37°50’ e 38°0’W CA045 / Não Serrinha dos Pintos 345,42 (68,25) 28 Jun - 05 Ago 20 740 4035.1 6°15’ e 6°5’S; 37°50’ e 38°00’W CA063 / Não Felipe Guerra 75,25 (18,57) 09 Jul - 16 Ago 20 736 30116.7 5°38’ e 5°23’S; 37°30’ e 37°43’W CA078 / Não Caiçara do Norte 20,13 (9,34) 19 Jul - 22 Set 15 845 7497.4 5°13’ e 5°5’S; 36°1’ e 36°10W CA102 / Não Luis Gomes 482,23 (95,69) 02 Ago - 23 Set 17 846 2976.5 6°25’ e 6°20’S; 38°19’ e 38°26’W CA088 / Não Dunas do Rosado 62,26 (33,81) 08 Ago - 04 Set 19 499 5979.0 5°1’ e 5°8’S; 36°48’ e 36°55’W CA087 / Sim Coronel Ezequiel 351,684 (67,25) 18 Ago - 25 Set 19 713 7439.5 6º28’ e 6°15’S; 36°5’ e 36°14’W CA088 / Não Amostragem total 05 Mai - 25 Set 188 7271 105231 https://brasil.wcs.org/pt-br/Lugares-naturais/Projeto-Caatinga.aspx https://brasil.wcs.org/pt-br/Lugares-naturais/Projeto-Caatinga.aspx 31 Levantamento de dados De maio a setembro de 2014, na transição entre as estações chuvosa e seca, 20 armadilhas fotográficas (Bushnell® Trophy Cam ™) foram instaladas em cada uma das 10 áreas prioritárias, permanecendo ativas 24 h por dia durante um a dois meses (média de 38 dias) (Tabela 1). Essas câmeras acionadas por calor e movimento foram posicionadas a 30-40 cm do solo e programadas para registrar a data e hora de cada registro fotográfico, com intervalos mínimos de cinco minutos entre dois disparos consecutivos. Nós estabelecemos uma distância mínima de um km entre câmeras de forma a minimizar a dependência espacial entre os pontos amostrais, exceto em locais que as dificuldades de acesso não permitiram esta padronização. No geral,as câmeras foram posicionadas a uma distância média de 1,6 km (0,8 – 3 km) uma da outra, ao longo de trilhas feitas por pessoas ou de animais de criação, estradas abandonadas e leito de rios intermitentes. Nenhuma isca foi utilizada para atrair os animais. O banco de imagens foi triado com auxílio do programa Camera Base v.1.6 (Tobler 2007). A nomenclatura e taxonomia das espécies seguiu Kitchener et al. (2017) para os felinos e Carmignotto e Astúa (2017) para as demais espécies. O estado de conservação global e nacional das espécies está de acordo com a IUCN (2017) e o MMA (2014), respectivamente. Análise dos dados A suficiência amostral foi investigada através de uma curva de acumulação de espécies (randomizada 1000 vezes) agrupando os dados de todas as áreas. A riqueza de espécies estimada para a Caatinga do Rio Grande do Norte foi obtida através do estimador Jackknife de primeira ordem, considerado ideal para dados de médios e grandes mamíferos a partir de armadilhas fotográficas (Tobler et al. 2008). Todas as análises foram realizadas usando o programa livre EstimateS 9.1.0 (Colwell 2013). Nas análises, para uma determinada espécie em um mesmo ponto, consideramos apenas registros consecutivos com intervalos maiores do que uma hora para minimizar problemas de dependência temporal. Apresentamos o índice de 32 abundância relativa (uma estimativa do sucesso de detecção) para cada espécie registrada, calculado como a razão entre o número de registros independentes (registros da mesma espécie no mesmo local com mais de uma hora) e o esforço amostral total (em câmeras-dias) multiplicado por 100 (Rovero et al. 2014). Embora esse índice deva ser interpretado com cautela por sofrer influência de fatores ambientais e espécie-específicos que dificultam generalizações (ver Sollman et al. 2013), ele pode servir como parâmetro populacional inicial para estudar espécies (Rovero et al. 2014) em um contexto de escassez de informação. Resultados Um total de 14 espécies de mamíferos silvestres de médio e grande porte foi registrado na Caatinga do estado do Rio Grande do Norte (Fig. 2, Tabela 2), sendo que o número médio de espécies por área foi 8,2 (DP = 1,23), variando de seis a 10 (Tabela 2). No total, 1607 registros independentes foram obtidos a partir de um esforço de 7.271 câmera-dias distribuído em 188 pontos amostrais (12 equipamentos apresentaram problemas ou foram roubados) que cobriram uma área total de 1052 km² (Tabela 1). As 14 espécies pertencem a seis ordens e 10 famílias, sendo a ordem Carnivora a mais representativa, com oito espécies (57% do total), seguida pela ordem Cingulata com duas espécies, e as demais ordens apresentaram uma espécie cada. Dentre as famílias, Felidae foi a que apresentou o maior número de espécies, com quatro ao todo (28% do total). Entre as espécies registradas, três (21%) estão sob algum nível de ameaça (nacional ou global), sendo todos felinos (Tabela 2). 33 Fig. 2. Mamíferos de médio e grande porte registrados através de armadilhamento frotográfico em 10 áreas prioritárias para a conservação da Caatinga do Rio Grande do Norte, extremo 34 nordeste do Brasil; (a) Cerdocyon thous, (b) Procyon cancrivorus, (c) Conepatus amazonicus, (d) Galictis cuja, (e) Leopardus tigrinus, (f) Leopardus pardalis, (g) Herpailurus yagouaroundi, (h) Puma concolor, (i) Mazama gouazoubira, (j) Tamandua tetradactyla, (k) Euphractus sexcinctus, (l) Dasypus novemcinctus, (m) Sapajus libidinosus e (n) Didelphis albiventris. Além dos mamíferos silvestres, registramos sete espécies de mamíferos domésticos ou asselvajados (caso de algumas populações de Equus asinus) nas nossas áreas estudo: vaca (Bos taurus, 469 registros), cabra (Capra hircus, 440), burro (E. asinus, 74), ovelha (Ovis aries, 65), cavalo (Equus caballus, 25), cão (Canis lupus familiaris, 39) e gato-doméstico (Felis catus, 12). Esses registros (1124) representam 41% de todos os registros de médios e grandes mamíferos (considerando silvestres e domésticos). Obtivemos ainda 83 registros de pessoas, algumas acompanhadas por cães e com apetrechos utilizados em atividades de caça. A curva de acumulação de espécies para o Rio Grande do Norte, ou seja, considerando todas as amostras conjuntamente, apresentou uma tendência à estabilização com pouco mais da metade das unidades amostrais (Fig. 3A). Contudo, o estimador de riqueza Jacknife de primeira ordem indicou que cerca de duas espécies ainda poderiam ser registradas com um maior esforço amostral (Fig. 3A). Isto é mais evidente para as áreas com maior riqueza como Lajes e Serrinha dos Pintos, com exceção de áreas como Martins, Caiçara do Norte e Dunas do Rosado, as curvas das demais áreas permanecem crescentes (Fig. 3B). As espécies com o maior número de registros e consequentemente maiores índices de abundância relativa foram Cerdocyon thous, D. albiventris, Mazama gouazoubira e L. tigrinus (respectivamente, Fig. 4, Tabela 2). Por outro lado, Puma concolor e Galictis cuja foram registrados uma única vez cada, exibindo assim os menores índices de abundância relativas, 35 seguidos por Leopardus pardalis e H. yagouaroundi (Fig. 4, Tabela 2). C. thous, D. albiventris, L. tigrinus e Euphractus sexcinctus foram registrados em todas as 10 áreas (Tabela 2). No presente trabalho não consideramos registros de Callithrix jacchus como mamífero de médio porte, enquanto que D. albiventris foi incluído neste grupo por seu maior tamanho (500-2700 g) e hábito escansorial (Paglia et al. 2012) que facilita sua detecção por armadilhamento fotográfico. 36 Tabela 2. Mamíferos de médio e grande porte registrados em 10 áreas prioritárias para a conservação da Caatinga do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil. N – número de registros. Dieta ou grupo funcional de acordo com Paglia et al., 2012: Ca – Carnívoro, Fr – Frugívoro, Hb – Herbívoro pastador, In – Insetívoro, Myr – Mirmecófago, On – Onívoro. Estado de conservação segundo a IUCN (2017) ou MMA (2014): LC (pouco preocupante), VU (vulnerável), EN (em perigo), NC (não consta na lista). Os símbolos para as áreas amostradas são: Serra de Santana (SS), Lajes (LA), Cerro Corá (CC), Martins (MA), Serrinha dos Pintos (SP), Felipe Guerra (FG), Caiçara do Norte (CN), Luís Gomes (LG), Dunas do Rosado (DR), Coronel Ezequiel (CE). Para mais informações sobre as áreas acessar: https://brasil.wcs.org/pt-br/Lugares-naturais/Projeto-Caatinga.aspx. Táxon Nome comum Áreas prioritárias N Dieta IUCN/ MMA SS LA CC MA SP FG CN LG DR CE ORDEM CETARTIODACTYLA Família Cervidae Mazama gouazoubira (G, Fischer [von Waldheim], 1814) Veado-catingueiro X X X X X X X X 176 Fr/Hb LC/NC ORDEM CARNIVORA Família Canidae Cerdocyon thous (Linnaeus, 1766) Cachorro-do-mato X X X X X X X X X X 693 In/On LC/NC Família Felidae Leopardus tigrinus (Thomas, 1904) Gato-do-mato- pintado X X X X X X X X X X 157 Ca VU/EN Leopardus pardalis (Linnaeus, 1758) Jaguatirica X 4 Ca LC/NC Herpailurus yagouaroundi (É, Geoffroy Saint-Hilare, 1803) Gato-mourisco X X X 7 Ca LC/VU Puma concolor (Linnaeus, 1771) Onça-parda X 1 Ca LC/VU Família Procyonidae https://brasil.wcs.org/pt-br/Lugares-naturais/Projeto-Caatinga.aspx 37 Procyon cancrivorus (G,[Baron] Cuvier, 1798) Mão-pelada X X X X X X X X 29 Fr/On LC/NC Família Mephitidae Conepatus amazonicus (Lichtenstein, 1838) Jaritataca X X X X X X 20 In/On LC/NC Família Mustelidae Galictis cuja (Molina, 1782) Furão X 1 Ca LC/NC ORDEM CINGULATA Família Dasypodidae Dasypus novemcinctus Linnaeus, 1758 Tatu-galinha X X X X X 22 In/On LC/NC Euphractus sexcinctus (Linnaeus, 1758) Tatu-peba X X X X X X X XX X 90 In/On LC/NC ORDEM PILOSA Família Myrmecophagidae Tamandua tetradactyla (Linnaeus, 1758) Tamanduá-mirim X X X X X 10 Myr LC/NC ORDEM PRIMATES Família Cebidae Sapajus libidinosus (Spix, 1823) Macaco-prego X X X X 38 Fr/On LC/NC ORDEM DIDELPHIMORPHIA Família Didelphidae Didelphis albiventris (Lund, 1840) Gambá-de-orelha- branca X X X X X X X X X X 359 Fr/On LC/NC 38 Fig. 3: Curva de acumulação de espécies observada (linha preta) com intervalo de confiança de 95% (linhas tracejadas cinzas) e curva de riqueza estimada por Jacknife 1 (círculos pretos) para a comunidade de mamíferos de médio e grande porte de 10 áreas prioritárias da Caatinga do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil (A); também são apresentadas individualmente as curvas aleatorizadas de acumulação de espécies para cada uma das 10 áreas prioritárias para a conservação estudadas (B). 39 Fig. 4: Índice de abundância relativa (ou sucesso de captura) das 14 espécies de mamíferos de médio e grande porte registrados em 10 áreas prioritárias para a conservação da Caatinga do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil. Fonte das ilustrações: De Angelo et al. 2008. Discussão As 14 espécies de mamíferos silvestres de médio e grande porte registradas neste trabalho compreendem cerca de um terço das 45 espécies que ocorrem em toda Caatinga (Carmignotto & Astúa 2017), e metade das 28 espécies registradas na Caatinga dos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Ceará (Feijó & Langguth 2013). É preciso ressaltar, contudo, que Carmignotto e Astúa (2017) incluem espécies com ocorrência atual bastante restrita no bioma como Panthera onca e Tapirus terrestris; enquanto Feijó e Langguth (2013) abrangem espécies restritas a brejos de altitude como Coendou baturitensis e Nasua nasua. Nossos resultados são fruto de um dos maiores investimentos em armadilhamento fotográfico já realizados até o 40 momento na Caatinga, tanto em termos de esforço quanto em abrangência espacial (Tabela 3). Além disto, este trabalho contribui para diminuir a lacuna de dados mastozoológicos existente no Rio Grande do Norte, evidenciada por Feijó e Langguth (2013). Inventários de mamíferos realizados em outros estados registraram de cinco a 25 espécies de médios e grandes mamíferos (ver Tabela 3), com as maiores riquezas geralmente registradas em ambientes mésicos como brejos de altitude e melhor protegidos como unidades de conservação (Tabela 3). Contudo, diferenças no esforço amostral, abrangência espacial e métodos de levantamento também devem ser considerados. Além disso, variações na riqueza e composição entre as áreas amostradas neste estudo devem ser consideradas. 41 Tabela 3. Riqueza de mamíferos de médio e grande porte registrados em levantamentos em áreas de Caatinga (clima semiárido), brejos de altitude (ambientes mésicos relacionados a florestas tropicais úmidas) e outras formações associadas dentro do domínio da Caatinga, com seus respectivos métodos empregados (armadilhamento fotográfico - af; armadilhas de queda ou captura viva - aq; busca ativa por espécimes e vestígios aleatória ou através de transectos - ba; entrevistas - en; espécimes de coleção ou museu - ec; parcelas de pegadas - pp; registros oportunistas – ro). Para o método armadilhamento fotográfico é apresentado (entre parênteses) o respectivo esforço amostral em câmeras-dias. Levantamentos realizados em Unidades de Conservação estão indicados na coluna (UC). Não consideramos registros de Callithrix jacchus, enquanto Didelphis albiventris foi avaliado como mamífero de médio e grande porte. Dias et al. (2014) é focado somente em carnívoros. Estado Local, município (s) Ambiente UC Riqueza Métodos e esforço Referência Ceará PARNA de Ubajara, Ubajara Brejo de altitude Sim 19 ba, en Guedes et al. (2000) Ceará, Pernambuco e Paraíba RPPN Serra das Almas (CE), RPPN Maurício Dantas (PE), Parque Estadual Pedra da Boca (PB), vários municípios Caatinga Sim 13 aq, en, op Cruz et al. (2005) Bahia PARNA da Chapada Diamantina e arredores, vários municípios Formações de Caatinga, Cerrado e Floresta Atlântica Sim 25 aq, ec, en, op Pereira & Geise (2009) Sergipe Fazenda São Pedro, Porto da Folha Caatinga stricto sensu Não 5 ba, ni Freitas et al. (2011) Sergipe, Alagoas e Bahia 14 locais amostrais, vários municípios Caatinga stricto sensu Não 5 aq, bc, en Bezerra et al. (2014) Sergipe Serra dos Macacos, Tobias Barreto Caatinga stricto sensu Não 7 ap, ba, en Dias et al. (2014) Alagoas Serra do Mamão, Traipu Brejo de altitude Não 18 aq, ba Silva & Palmeira (2014) Ceará Maciço de Baturité, vários municípios Brejo de altitude Não 18 ec, aq, ro, en Fernandes-Ferreira et al. (2015) 42 Sergipe e Bahia Serra da Guia, Poço Redondo (SE) e Pedro Alexandre (BA) Caatinga stricto sensu Não 8 Ba Rocha et al. (2015) Paraíba Serra de Santana, vários municípios Caatinga stricto sensu Não 11 af (475), aq, ba Campos et al. (2016) Piauí e Pernambuco Ouricuri (CE) e São João do Piauí (PI) Caatinga stricto sensu Não 13 af (721), aq, ba Delciellos (2016) Sergipe MONA Grota do Angico, Poço Redondo e Canindé do São Francisco Caatinga stricto sensu Sim 12 af (2.912), pp Dias & Bocchiglieri (2016) Ceará e Piauí RPPN Serra das Almas, Crateús (CE) e Buriti dos Montes (PI) Caatinga stricto sensu Sim 17 af (3.600), aq, ba, ro Dias et al. (2017) Bahia Serra de Santana, Senhor do Bonfim e Jaguarari Caatinga stricto sensu Não 13 ba, en Pereira & Peixoto (2017) Rio Grande do Norte 10 áreas prioritárias, vários municípios Caatinga stricto sensu Sim (1 área), Não (9 áreas) 14 af (7.221) Este estudo 43 Três dos felinos registrados (L. tigrinus, H. yagouaroundi e P. concolor) encontram-1 se ameaçados de extinção, nacionalmente ou globalmente (Tabela 2), e são alvos de 2 Planos de Ação Nacionais para a Conservação das Espécies Ameaçadas de Extinção 3 (ICMBIO 2017). Como principais ameaças para essas espécies estão a perda de habitat, 4 a perseguição resultante de conflitos com criadores, os atropelamentos e a transmissão de 5 doenças por carnívoros domésticos (Azevedo et al. 2013; Almeida et al. 2013; Oliveira 6 et al. 2013). Aqui optamos por seguir a última classificação dos felinos do mundo 7 (Kitchener et al. 2017) considerando sua relevância taxonômica e de conservação. 8 Contudo, pesquisas recentes sugerem que as populações de L. tigrinus das regiões 9 nordeste, parte do norte e Brasil central constituem uma espécie distinta e endêmica do 10 país, nomeada de Leopardus emiliae (Nascimento & Feijó 2017; Ruiz-García et al. 2017). 11 No caso de L. pardalis, embora tenha saído da lista nacional de espécies ameaçadas, a 12 espécie é classificada como Vulnerável no estado da Bahia (Cassano et al. 2017) e pode 13 se encontrar em estado semelhante em outros estados do nordeste do país (Feijó & 14 Langguth 2013; Marinho et al. 2017). De forma geral, trabalhos que abordam aspectos da 15 ecologia e conservação desses felinos na Caatinga têm surgido apenas nos últimos anos 16 e ainda são muito insipientes (Marinho et al. 2018a; b; Astete et al. 2017; Penido et al. 17 2017), especialmente se considerado o seu importante papel de predadores na 18 estruturação e regulação das comunidades biológicas. 19 Na Caatinga, P. concolor se encontra em estado mais crítico que o nacional, 20 classificada como Em Perigo (Azevedo et al. 2013), o que é reforçado pelo nosso único 21 registro desse predador de topo de cadeia em Luís Gomes. Nessa região a vegetação 22 arbórea é predominante e cobre serras íngremes e de difícil acesso que podem alcançar 23 até 800 m de altitude, podendo fornecer presas e refúgios que favorecem a persistência24 da espécie. Contudo, a caça dessas presas potenciais e o desmatamento para agricultura 25 44 são comuns na região, e por isso devem ser mitigados juntamente com os abates por 26 conflitos com criadores. O registro mais próximo e mais recente de P. concolor está a 27 aproximadamente 75 km, no estado da Paraíba (Campos et al. 2016), também em uma 28 área de altitude elevada. Na região entre Lajes e Cerro Corá, uma das mais relevantes em 29 termos de habitat e disponibilidade de presas, moradores locais relatam a presença recente 30 da espécie, contudo as evidências mais concretas são de animais abatidos há mais de 20 31 anos (P.H. Marinho obs. pessoal; Pichorim et al. 2014) (Fig. 5A). O avançado declínio 32 de predadores de topo como P. concolor implica em desequilíbrios ecológicos ainda 33 desconhecidos na Caatinga, como um possível aumento na abundância de 34 mesopredadores (Crooks & Soulé 1999), que no presente estudo representaram 50% das 35 espécies e 56% de todos os registros de mamíferos silvestres. 36 37 38 45 Fig. 5. Registros de ameaças para mamíferos de médio e grande porte na Caatinga do Rio Grande 39 do Norte. Pele de Puma concolor abatido há mais de 20 anos na região de Lajes (A) e espécies 40 silvestres criadas como animais domésticos: Herpailurus yagouaroundi (B), Leopardus tigrinus 41 (C), Mazama gouazoubira (D) e Sapajus libidinosus (E). Fotos: P.H. Marinho (A e C), D. Bezerra 42 (B, D e E). 43 44 Entre os mamíferos com maior índice de abundância relativa e detectados em todas 45 as áreas estudadas estão espécies generalistas de hábitat. C. thous e D. albiventris são 46 espécies amplamente distribuídas, onívoras e tolerantes a perturbações antrópicas 47 (Aléssio et al. 2005; Beisiegel et al. 2013), estando entre as mais registradas em outros 48 estudos na Caatinga (e.g. Delciellos 2016; Dias & Bocchiglieri 2016; Dias et al. 2017). 49 E. sexcinctus também foi registrado em todas as 10 áreas e embora seja bastante caçada, 50 essa espécie de hábitos onívoros parece ser abundante e amplamente presente na Caatinga 51 (Feijó & Langgtuh 2013; Alves te al. 2016). Por sua vez, como sugerem nossos 52 resultados, L. tigrinus parece ser o felino mais abundante e amplamente presente em boa 53 parte da Caatinga (Feijó & Langguth, 2013), embora sua presença seja mais esperada em 54 áreas florestadas e com menor interferência antrópica (Marinho et al. 2018a). Outra 55 espécie que merece destaque é M. gouazoubira, não registrado somente em duas áreas 56 (Tabela 2). Embora esse cervídeo seja considerado relativamente tolerante a ambientes 57 perturbados (Duarte et al. 2012), a grande pressão de caça tem levado M. gouazoubira ao 58 declínio ou mesmo à extinção local em áreas mais perturbadas da Caatinga (Bezerra et al. 59 2014). 60 Nossa detecção, contudo, é imperfeita e a ausência de registros de algumas espécies 61 em determinadas áreas estudadas pode não representar a realidade, da mesma forma a 62 abundância relativa também deve ser interpretada com cautela (ver Sollmann et al. 2013). 63 Galictis cuja, por exemplo, se locomove rapidamente e prefere ambientes ripários, o que 64 46 diminui suas chances de detecção (Magioli et al. 2014). No caso de H. yagouaroundi e L. 65 pardalis, embora não tenhamos registrado, provavelmente devido às suas baixas 66 densidades populacionais, esses dois felinos também ocorrem em Serra de Santana e 67 Lajes (Pichorim et al. 2014; Marinho et al. 2017; PH Marinho dados não publicados). 68 Todas as espécies encontradas são de ampla distribuição no Brasil, não endêmicas e 69 registradas para estados próximos como Paraíba e Ceará (e.g. Feijó & Langguth 2013), 70 de forma que sua ocorrência do Rio Grande do Norte já era esperada (e.g. Oliveira 2004; 71 Ferreira et al. 2009; Marinho et al. 2017), embora não documentada formalmente na 72 maioria dos casos. Contudo, algumas espécies com ocorrência confirmada para a 73 Caatinga do estado não foram registradas aqui. Sylvilagus brasilensis ocorre em uma área 74 a aproximadamente 35 km a sudeste de Caiçara do Norte (Dantas et al. 2016). Já Lontra 75 longicaudis, espécie semi-aquática, ocorre na faixa de transição da Caatinga com a 76 Floresta Atlântica (Rosas-Ribeiro al. 2017), região não amostrada neste trabalho. Por fim, 77 embora não tenha sido foco do presente estudo pelo seu menor porte (< 1 kg), Kerodon 78 rupestris merece nota por estar em estado Vulnerável no Brasil (MMA 2014) e ser 79 endêmico da Caatinga. Encontramos vestígios da presença desse roedor em afloramentos 80 rochosos de quase todas as áreas, com exceção de Dunas do Rosado e Caiçara do Norte, 81 onde essas formações são raras. 82 Nossos resultados revelam, por outro lado, o relativo grau de empobrecimento da 83 mastofauna do extremo nordeste da Caatinga. Entre as espécies com distribuição prevista 84 para o estado segundo os mapas de distribuição da IUCN (2017) e registros em estados 85 vizinhos (Feijó & Langguth 2013; Feijó et al. 2015), Dasyprocta prymnolopha, Pecari 86 tajacu e Tolypeutes tricinctus, por exemplo, não foram registrados neste estudo, mesmo 87 com o nosso significativo esforço amostral e abrangência espacial. Embora existam 88 relatos sobre a presença dessas espécies na Caatinga do estado, baseados principalmente 89 47 em entrevistas e registros fósseis (Oliveira 2004; Ferreira et al. 2009; Araújo-Júnior & 90 Porpino 2011; Lucena & Freire 2012; Barboza et al. 2016), não obtivemos vestígios ou 91 mesmo informações seguras com os moradores locais da sua presença nas nossas áreas 92 de estudo (P.H. Marinho, dados não publicados). Relatos históricos sobre a extinção local 93 dessas espécies há mais de 50 anos em algumas regiões do estado citam a caça intensa 94 como principal causa (Faria 1961). Contudo, não podemos descartar a presença dessas 95 espécies na Caatinga do Rio Grande do Norte, uma vez que elas podem ocorrer em locais 96 mais bem protegidos e de difícil acesso, mas provavelmente em densidades extremamente 97 baixas e em declínio populacional, o que compromete a efetividade das funções 98 ecológicas desempenhadas por delas (Galetti & Dirzo 2013). 99 Entre as principais ameaças para os mamíferos de médio e grande porte da Caatinga 100 estão aquelas globalmente comuns ao grupo como a caça e a perda e degradação dos 101 habitats (Alves et al. 2016; Feijó & Langguth 2013). A degradação da vegetação da 102 Caatinga para fins domésticos e industriais associada à pecuária extensiva compromete a 103 conservação e regeneração dos habitats. O grande número de animais domésticos 104 registrados por nós reforça a gravidade desse problema mesmo em áreas prioritárias para 105 a conservação. Da mesma forma, a caça vem promovendo o declínio de médios e grandes 106 mamíferos no bioma há séculos (Faria 1961; Fernandes-Ferreira 2014), seja para fins de 107 alimentação ou por conflitos com predadores (Alves et al. 2016; Barboza et al. 2016) 108 (Fig. 5A). A caça está muito presente na Caatinga do Rio Grande do Norte, vide nossos 109 registros fotográficos e a grande quantidade de vestígios de caça encontrados durante as 110 amostragens. Além disso, a criação de animais silvestres como domésticos é 111 relativamente comum na região (Fernandes-Ferreira et al. 2015; Alves te al. 2016; 112 Delciellos 2016) e atinge espécies como H. yagouaroundi, L. tigrinus, M. gouazoubira e 113 S. libidinosus (Pichorim et al. 2014; P.H. Marinho obs. pessoal) (Fig. 5). Adicionalmente, 114 48 obras de infraestrutura e estradas elevam o grau de perda e fragmentação dos habitats da 115 Caatinga (Silva et al. 2017b). No Rio Grande do Norte parques eólicos e linhas de 116 transmissão de energia, por exemplo, tem se multiplicado nos últimos anos, com os seus 117 impactos sobre a fauna sendo geralmente subestimados (Bernard et al. 2014).
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