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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS ALICE GABRIELLE AFFONSO CARVALHO A PRINCESA EMPODEROU: EXPERIMENTOS VISUAIS DE TÉCNICA MISTA SOBRE UMA TRANSCENDÊNCIA INTRANSFERÍVEL E COLETIVA NATAL 2021 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART Carvalho, Alice Gabrielle Affonso. A princesa empoderou : experimentos visuais de técnica mista sobre uma transcendência intransferível e coletiva / Alice Gabrielle Affonso Carvalho. - 2021. 103 f.: il. TCC (licenciatura) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Licenciatura em Artes Visuais, Natal, 2021. Orientador: Profª Drª Laís Guaraldo. 1. Mulheres. 2. Racismo. 3. Preconceitos e antipatias. 4. Criação (Literária, artística, etc.). 5. Artes visuais. I. Guaraldo, Laís. II. Título. RN/UF/BS-DEART CDU 7.01 Elaborado por Ively Barros Almeida - CRB-15/482 ALICE GABRIELLE AFFONSO CARVALHO A PRINCESA EMPODEROU – EXPERIMENTOS VISUAIS DE TÉCNICA MISTA SOBRE UMA TRANSCENDÊNCIA INTRANSFERÍVEL E COLETIVA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Licenciatura em Artes Visuais do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de licenciado em Artes Visuais. Orientação: Profª Dra. Laís Guaraldo. NATAL 2021 ALICE GABRIELLE AFFONSO CARVALHO A PRINCESA EMPODEROU – EXPERIMENTOS VISUAIS DE TÉCNICA MISTA SOBRE UMA TRANSCENDÊNCIA INTRANSFERÍVEL E COLETIVA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Licenciatura em Artes Visuais do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de licenciado em Artes Visuais. Orientação: Profª Dra. Laís Guaraldo. Natal, 22 de abril de 2021. BANCA EXAMINADORA ____________________________________ Profª Dra. Laís Guaraldo Orientadora/UFRN ____________________________________ Profª Me. Estrela Santos UFRN ____________________________________ Mariana do Vale Gomes Colégio das Artes – Universidade de Coimbra AGRADECIMENTOS Ser de Axé é algo que molda meus dias e me lembra de quem vem de lá. Trago no meu braço direito uma xilogravura do Oxê de Xangô, que me entrega a testa quente e o destemor. Trago no ventre a herança de Iyabá que nasceu comigo, ninguém tatuou, também sou filha de Iemanjá. Olho pra trás e vejo em minha ancestralidade de preta potiguar a Jurema e todos os Pajés, e eles também me sustentam em um outro lugar. Aprendi a ter muitas mães porque assim a gente tem muito mais do que se alimentar. Sou filha das mais velhas, das mais novas e das que ainda vão nascer. Sou mãe de todas elas também. As compreendo em fogo e mar. Aprendi a ser filha de Betânia, de Salete, de Joyce, de Nathaly, de Roberta, de Isis. Há também Margarida, Elina, Lindinalva, tantas tias. Existem as outras madres diaspóricas, de além-mar, que migraram e por isso aqui estou. Existem as que aqui já estavam, que foram invadidas, e por isso aqui estou. Penso também em Marianne, Clara, Giulia, Marcelle, Belinha. Posso falar de Larinha, de Priscilla, de Marcia, de Babi, de Carol, de Luci, de Anginha, de Luisa, de Bo, de Totó, de Eloh, de Elaine, de Isabela, de Lelê, todas elas. São muitas. As mulheres que me criaram me ensinaram que não preciso amar a todas, mas que não posso fugir do compromisso inarredável de ser coerente com a força que nos une, apesar de tudo. Ou graças a tudo. Agradeço a cada corpo mais retinto que blinda minha pele mais clara. Agradeço a cada preta que me convidou a maravilhosa-dolorosa cerimônia da autoaceitação. Agradeço a cada acadêmica tida como subalterna que teve a audácia de falar, pavimentar esse meu caminho, contrariando as estatísticas. Agradeço aos governos de esquerda do Brasil que possibilitaram à família Carvalho o direito de ter mais uma membra se formando em uma instituição federal. E o agradecimento mais importante vai para a professora Laís Guaraldo, por me fazer confiar em mim mesma. RESUMO A Princesa Empoderou consiste em uma série de experimentos visuais feitos com técnicas mistas (pintura, colagem, sobreposição, nanquim, stencil) e materiais reciclados, inspiradas na obra literária homônima A Princesa Empoderou (2018, Ed. Jovens Escribas), escrita pela autora deste projeto entre 2016 e 2017. O livro discute, através de crônicas e contos, as diferentes manifestações de opressão – dentro do contexto de uma sociedade racista, LGBTfóbica e machista – na vida de mulheres pertencentes a diversos grupos e classes sociais. Aqui, apresento de forma reflexiva e poética como se dá a união do conceito de empoderamento feminino – advindo das teorias feministas pós-modernas – no processo criativo das imagens, tendo como base as abordagens de filósofas, pesquisadoras e artistas negras como Joice Berth, Lélia Gonzalez, Angela Davis, Djamila Ribeiro, Patricia Hill Collins, Audre Lord, Grada Kilomba, Maya Angelou, Chimamanda Ngozi Adichie e Sojourner Truth. A Princesa Empoderou: Experimentos Visuais de Técnica Mista Sobre Uma Transcendência Intransferível e Coletiva nos entrega como reflexão o mistério da composição para o artista-pesquisador ao longo do jogo de erros e acertos num ateliê de pintura, compreendendo que o trabalho visual é a própria busca do que se quer enxergar e a sua conclusão após a criação da imagem é, unicamente, a certeza de jamais parar de procurar esse algo que se quer com tanta sede. Palavras-chave: Empoderamento feminino; Processo criativo; Técnica mista. ABSTRACT “The Princess Empowered” consists of a series of visual experiments made with mixed techniques (painting, collage, overlay, ink, stencil) and recycled materials, inspired by the homonymous literary work A Princesa Empoderou (2008), written by the author of this same project between the years 2016 and 2017. The book explores, in a series of chronicles and short stories, the different manifestations of oppression – within the context of a racist, LGBTphobic and sexist society – in the lives of women who belong to different groups and social classes. Here I present, in a reflexive and poetic way, how the concept of female empowerment comes together – arising from postmodern feminist theories – in the creative process of images, based on the approaches of black philosophers, researchers and artists such as Joice Berth, Lélia Gonzalez, Angela Davis, Djamila Ribeiro, Patricia Hill Collins, Audre Lord, Grada Kilomba, Maya Angelou, Chimamanda Ngozi Adichie and Sojourner Truth. “The Princess Empowered: Visual Experiments of Mixed Technique on a Non-Transferable and Collective Transcendence” gives us a reflection about the mystery of composition for the artist- researcher through a game of mistakes and successes in a painting studio. It also believes that the visual work is the search for what one wants to see and, at the end of the image’s creation process, the only possible resolution is the certainty of never stop searching for that something one really wants with all their heart. Keywords: Women's empowerment; Creative process; Mixed technique. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Raquete de badmintown utilizada como stencil para criação de camadas. .................................................................................................................21 Figura 2 – Hélice de ventilador utilizada como stencil para criação de volume/ camadas. ................................................................................................................. 22 Figura 3 – Paleta de pintura utilizada como stencil para criação de contornos/ camadas. ................................................................................................................. 23 Figura 4 – Ralador de legumes utilizado como stencil para criação de textura/ camadas. ................................................................................................................. 24 Figura 5 – Registro da primeira versão de Negro Rastro, após o primeiro dia de experimentos no Departamento de Artes. ................................................................ 30 Figura 6 – Negro Rastro, fotografia da obra ainda em fase inicial, após o primeiro dia de experimento. ....................................................................................................... 33 Figura 7 – Estúdio recém montado na minha casa. ................................................. 36 Figura 8 – Negro Rastro, em processo..................................................................... 37 Figura 9 – Registro das mãos após um dia de trabalho no ateliê. ............................ 39 Figura 10 – Negro Rastro num terceiro momento, pós experimento com camadas brancas para efeito de velatura. ............................................................................... 40 Figura 11 – Negro Rastro antes das aplicações mais escuras que cortam o quadrado em diagonal. ............................................................................................................ 44 Figura 12 – Negro Rastro antes da aplicação das camadas mais escuras que cortam o quadrado em diagonal. ......................................................................................... 45 Figura 13 – Negro Rastro em fase de experimento com retas mais duras e escuras. ................................................................................................................... 46 Figura 14 – Negro Rastro em fase de desenvolvimento, detalhe das linhas pretas e das camadas abaixo. ............................................................................................... 47 Figura 15 – Negro Rastro. Aplicação de camadas brancas para mais velaturas. ..... 48 Figura 16 – Também Negras Acadêmicas, ainda em estágio inicial. ........................ 51 Figura 17 – Conchavulva. ........................................................................................ 53 Figura 18 – Também Negras Acadêmicas, em fase inicial, aproximação da imagem das conchas. ............................................................................................................ 54 Figura 19 – Foto da capa do livro "A Princesa Empoderou" em 2019, no estande da Editora Jovens Escribas durante a FLIQ, Feira de Livros e Quadrinhos de Natal. ... 57 Figura 20 – Foto que deu origem a imagem da capa do livro A Princesa Empoderou. Pintura corporal e imagem por Luana Cavalcante. ................................................... 58 Figura 21 – Também Negras Acadêmicas, após o experimento com novas cores e novas formas de pintar. ............................................................................................ 59 Figura 22 – Também Negras Acadêmicas, corte de imagem com detalhes mais próximos. ................................................................................................................. 62 Figura 23 – Também Negras Acadêmicas após a colagem do recorte do cérebro e da figura da princesa. ................................................................................................... 63 Figura 24 – Também Negras Acadêmicas. Detalhes da colagem. ........................... 64 Figura 25 – Também Negras Acadêmicas após trabalho com as linhas pretas e brancas cruzando em diagonal o quadrado. ............................................................ 65 Figura 26 – Também Negras Acadêmicas justaposto a Negro Rastro, mostrando a continuidade dos traços que saem de uma obra para a outra. ................................. 66 Figura 27 – Terceira peça, após a primeira demão de tinta e alguns experimentos com palavras e splash. .................................................................................................... 69 Figura 28 – Mãos sujas de tinta durante o processo. ............................................... 72 Figura 29 – Nem Só Rosas São Bucetas, após primeiro dia de experimento. .......... 77 Figura 30 – Nem Só Rosas São Bucetas, após primeiro dia de experimento. .......... 78 Figura 31 – Nem Só Rosas são Bucetas, posicionado ao lado de Também Negras Acadêmicas. ............................................................................................................ 79 Figura 32 – Nem Só Rosas são Bucetas, após teste com retas diagonais mais escuras. ................................................................................................................... 80 Figura 33 – As três peças posicionadas juntas para ajustes. ................................... 81 Figura 34 – Nem Só Rosas são Bucetas, após mais uma etapa de experimentação com retas diagonais e estêncil preto. ....................................................................... 82 Figura 35 – Nem Só Rosas são Bucetas, após mais uma etapa de experimentação com retas diagonais e estêncil preto. ....................................................................... 83 Figura 36 – As três obras sobrepostas em sequência crescente. ............................ 84 Figura 37 – Trabalho sem título feito por aluno. ....................................................... 94 Figura 38 – Trabalho sem título feito por aluno. ....................................................... 95 Figura 39 – Trabalho sem título feito por aluno. ....................................................... 95 Figura 40 – Trabalho sem título feito por aluno. ....................................................... 96 Figura 41 – Trabalho sem título feito por aluno. ....................................................... 97 Figura 42 – Trabalho sem título feito por aluno. ....................................................... 98 Figura 43 – Trabalho sem título feito por aluno. ....................................................... 99 Figura 44 – Trabalho sem título feito por aluno. ..................................................... 100 Figura 45 – Trabalho sem título feito por aluno. ..................................................... 100 Figura 46 – Trabalho sem título feito por aluno. ..................................................... 101 Figura 47 – Galeria virtual ...................................................................................... 102 SUMÁRIO 1 VAZIO IMINENTE ................................................................................................. 11 1.1 Quem é a Princesa que aqui se faz sujeito? .............................................. 11 1.2 Que empoderamento é esse? ..................................................................... 13 1.3 Por que o título do projeto se modificou? ................................................. 15 1.4 O que comunica a linguagem plástica posta? ........................................... 16 1.5 Como apresento a arte visual através da linguagem verbal? ................... 17 2 UM TRÍPTICO EM MOVIMENTO E REPOUSO .................................................... 19 2.1 Primeira ........................................................................................................ 19 2.1.1 Negro Rastro ......................................................................................... 31 2.2 Segunda ........................................................................................................51 2.3 Terceira ......................................................................................................... 68 3 PREENCHIMENTO DISTANTE ............................................................................ 85 4 ANEXO: A REPRESENTATIVIDADE E A EXPERIÊNCIA PEDAGÓGICA NA ESCOLA ESTADUAL PROFª MARIA ILKA ............................................................ 87 4.1 O que foi visto dentro da sala de aula? ...................................................... 88 4.2 Como as aulas se estruturaram? ................................................................ 89 4.2.1 Aula 1 (11/11/2020) ................................................................................ 89 4.2.2 Aula 2 (18/11/2020) ................................................................................ 90 4.2.3 Aula 3 (26/11/2020) ................................................................................ 92 4.2.4. Aula 4 (02/12/2020) ............................................................................... 93 4.3 A Galeria Virtual ......................................................................................... 102 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 103 11 1 VAZIO IMINENTE A presente pesquisa – que se enquadra dentro da área de Criação em Artes Visuais, mas também com as extremidades do seu campo – surge aqui com um viés investigativo e de experimentação da linguagem visual, tendo como ponto de partida e livre inspiração o livro de crônicas A Princesa Empoderou (Ed. Jovens Escribas, 2018), obra pertencente a um outro segmento artístico que também faz parte do meu campo de atuação enquanto artista, feminista negra, ativista, escritora de obras infanto-juvenis e militante na área da arte educação. Sob o véu dessa criação visual, resguardo inúmeros questionamentos, todos sedimentados sobre o desejo de entender de quem falo quando construo imagens dessa persona que transcende normas sociais e se empodera. Mais do que conclusões e conceitos solidificados, esse trabalho que aqui se apresenta como Pesquisa Acadêmica encontra rumo nas dúvidas que, dentro de um ateliê de pintura, se mostram sempre muitas. Trata-se, portanto, da exposição de incertezas e escolhas de caminhos e não da certeza de um rumo certo, que invalida outros possíveis. 1.1 Quem é a Princesa que aqui se faz sujeito? Sempre achei que a Princesa sobre quem falava quando escrevi o livro acima citado já me era íntima, mas meu próprio reflexo no espelho negou essa crença tempos depois. Não há em mim realeza. Nunca tive cor de princesa, cabelo de princesa e muito menos uma infância com alegrias requintadas. Tudo sempre foi muito real. Por que, então, “Princesa”? Ocupar esse arquétipo1 é algo que não faz parte de uma realidade pessoal, mas assumo o eu-lírico – na crônica que dá título à obra literária – para dialogar com leitores que também cresceram em meio aos contos de fadas e têm essa narrativa arraigada no juízo, cristalizada. Atribuo a essa personagem que se empodera o arquétipo da Princesa porque a associação com bons costumes, limpeza e obediência condicionada surge quase 1 “Os arquétipos são conjuntos de “imagens primordiais” originadas de uma repetição progressiva de uma mesma experiência durante muitas gerações, armazenadas no inconsciente coletivo” (JUNG, 2000, p. 49). 12 que de imediato. É uma atribuição fácil, involuntária e inerente aos clichês: uma Princesa é o que as boas meninas devem ser. Questionar essas convenções é o primeiro passo para a emancipação do próprio arquétipo. Se o clichê reforça o estereótipo, a arte desmancha o hábito e o transforma. Lança luz sobre aspectos ocultos. Nesse trabalho teórico-prático, onde o texto também é imagem2 e as imagens por si só podem produzir tantos significados quanto uma explicação detalhada acerca da obra3, assumo o arquétipo que me foi negado já no ato do nascimento e me permito sê-la como sou. Parto para a integração da linguagem e da forma, buscando cumprir a função primordial dessa pesquisa: comunicar suas perguntas. Durante todo o desenvolvimento desta pesquisa, optei por priorizar a fluidez da leitura desse que é apenas um braço literário da obra, mesmo que respeitando em larga escala o uso convencional da norma ABNT. Acredito que empoderar-se é, também, questionar métodos acadêmicos que não nos cabem por inteiro – mas isso explicarei com mais nitidez nos subcapítulos a seguir, já que: O que eu preciso Faz sentir a papila do sentido É teoricamente fundamentado Antes mesmo da alfabetizagem Aqui conosco, o que é preciso Não cabe no lattes. 2 Citação à Mariana do Vale (2018, p. 15) e sua forma de escrita performativa em sua dissertação “Pele afora, pele adentro”: “Ainda que me proponha a cruzar os caminhos apontados em meu processo criativo com referenciais teóricos e artísticos, entendo que este texto pode também ser prática e obra”. 3 Citação à Lara Ovídio (2017, p. 33) em sua dissertação “Experimentos para um mundo sem futuro”: “Para fazer imagens, observo, coleciono, conto histórias, experimento, escrevo, apago, risco, uma e outra vez. Gosto quando as imagens parecem nem integrar o mesmo trabalho, mas que, de alguma forma, se conectam. Este texto experimenta essa mesma metodologia, e, por isso, é também imagem”. 13 1.2 Que empoderamento é esse? Abrir as entranhas do verbo “empoderar” e dissecá-lo com clareza e organização é tão complexo quanto óbvio4. Abrir a palavra ao meio é muito mais desvelar diversos outros questionamentos e espalhar significados pelo chão. É bem menos encontrar, de fato, uma resposta. Não busco respostas5, mas parto para um lugar mais distante, próximo à raiz da palavra, a fim de encontrar numa fonte mais subterrânea a luz de um possível significado, a fim de alinhavar esse pensamento que se faz colcha de retalhos. Para elucidar o termo e preparar a terra para esse “Empoderar” que aqui será plantado, me cerco da filósofa alemã Hannah Arendt e, sequencialmente, do filósofo francês Michel Foucault: [...] o poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em conjunto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que alguém está “no poder”, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome. (ARENDT, 2001, p. 36). Empoderar é retomar poder. É se rebelar contra a disciplina outorgada, também teorizada por Michel Foucault (1987, p. 117-118): [...] uma coação calculada, lentamente, percorre cada parte do corpo, tornando-se semelhante a algo que se fabrica, de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa, no automatismo dos hábitos. Na época clássica, se descobre o corpo como objeto e alvo de poder, ao corpo que se manipula, se modela, se treina, se obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. Enfim, torna-se um corpo dócil, que pode ser submetido, utilizado, transformado e aperfeiçoado. A escritora, arquiteta e urbanista brasileira Joice Berth (2020) nos convida a pensar o empoderamento de corpos de mulheres negras a partir das definições dadas pelos dois primeiros, solidificando que para ela o empoderar-se, em primeira pessoa do singular, só é possível a partir do coletivo: 4 Aqui me refiro à definição do termo que se popularizou através da discussão (e exploração) da mídia sobre o empoderamento (nesses casos, se referindo majoritariamente ao empoderamento feminino). 5 “Ou seja, estas perguntas não eram para ser respondidas, mas antes, gerar movimento, uma vez que não estamos apenas interessados no questionamento, na pergunta, mas também no desafio da procurae tudo que isso envolve” (IRWIN, 2013, p.16). 14 [...] quando assumimos que estamos dando poder, em verdade estamos falando na condução articulada de indivíduos e grupos por diversos estágios de autoafirmação, autovalorização, autorreconhecimento e autoconhecimento tanto de si mesmo quanto de suas mais variadas habilidades humanas, de sua história e, principalmente, de um entendimento quanto a sua posição social, política e, por sua vez, um estado psicológico perceptivo do que se passa ao redor. Seria estimular, em algum nível, a autoaceitação de características culturais e estéticas herdadas pela ancestralidade que lhe é inerente, para que possa, devidamente munido de informações e novas percepções críticas sobre si mesmo e sobre o mundo a sua volta, e ainda suas habilidades e características próprias, criar ou descobrir em si mesmo ferramentas ou poderes de atuação no meio em que vive e em prol da coletividade. (BERTH, 2020, p. 21) Esse poder pode ser Foucaultiano e, concomitantemente, Arendtiano e Berthiano, mas encontro sua completude mais nítida e pulsante para minha existência intransferível quando me aproximo da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (2009), que adensa a discussão em “Os Perigos da História Única”: [...] é impossível falar sobre única história sem falar sobre poder. Há uma palavra, uma palavra da tribo Igbo, que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder do mundo, e a palavra é “nkali”. É um substantivo que livremente se traduz: “ser maior do que o outro”. Como nossos mundos econômico e político, histórias também são definidas pelo princípio do “nkali”. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de outra pessoa, mas de fazê-la a história definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa, o jeito mais simples é contar sua história, e começar com “em segundo lugar”. Comece uma história com as flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história totalmente diferente. Comece a história com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do estado africano e você tem uma história totalmente diferente. Esse poder que não existe assim, sozinho, como uma entidade, mas que depende de uma inquestionabilidade6 coletiva para que seja exercido e se perpetue sempre pelas mãos de quem não tem uma existência questionável. O poder que aqui me refiro é detido pelo arquétipo oposto da Princesa que não sou: é branco, masculino, colonizador, heteronormativo, classe alta. Empoderar aqui, então, é questionar a não-autonomia do corpo, a colonização dos costumes e do pensamento coletivo por tudo que é visto, no mundo, como padrão. 6 Aqui me refiro à uma citação de Joice Berth (2019, online) no artigo “Empoderamento e os perigos do esvaziamento leviano de conceitos” à Ulrich Beck: “Onde ninguém fala sobre o poder é onde é inquestionável, e, em sua inquestionabilidade é, ao mesmo tempo, mais seguro e grande. Onde se fala sobre poder, começa a sua derrocada”. 15 É tomar o prumo do cavalo desembestado do destino pelas rédeas, para que outros vulneráveis também o possam fazer7. Falar sobre esse empoderamento feminino, tão necessário, coletivo e urgente, é difícil. Me soa aqui banal, como nunca antes visto. Não porque o empoderamento chegou para todas as mulheres – antes fosse! –, mas pelo esvaziamento da palavra. É banal porque, de fato, paira sobre nós um empoderamento que é seletivo. Esse “se empoderar” de agora tem cheiro de provador em loja de departamento, campanha publicitária e reposicionamento de marca8. Pretende-se evitar nesse trabalho, portanto, as abordagens que parecem falar sobre um feminino loiro, branco, colonizado, detentor de um plano de saúde caro e equilibrado sobre um salto alto. Um feminino que consome feminismo enlatado. Tomar de volta Algo tirado Antes mesmo que eu soubesse ser meu. 1.3 Por que o título do projeto se modificou? Esta pesquisa, antes intitulada “A Princesa Empoderou: Representações Visuais de Técnica Mista sobre uma Transcendência Feminina e Feminista”, se propunha a muitas coisas quando ainda era um projeto no papel, apartado da prática do ateliê de artista e de uma grande crise9 sanitária e política no Brasil durante o ano singular que foi 2020. Falava sobre um “feminino” e um “feminista” quando meu mundo era ideal, muito vago. Tão vago que, iminentemente, esvaziou-se. 7 Faço referência ao entendimento de que o empoderamento feminino, para ser um agente de transformação social eficiente, precisa ser lido como uma ação coletiva, elucidado por Djamila Ribeiro (2018, p. 135): “O termo ‘empoderamento’ muitas vezes é mal interpretado. Por vezes é entendido como algo individual ou a tomada de poder para se perpetuar opressões. Para o feminismo negro, possui um significado coletivo. Trata-se de empoderar a si e aos outros e colocar as mulheres como sujeitos ativos da mudança”. 8 “As narrativas de empoderamento que ganharam destaque nas falas das principais instituições e corporações internacionais de desenvolvimento, exaltando seu desejo de capacitar as mulheres a realizarem seu “potencial,” nos oferecem o empoderamento light, uma versão de empoderamento destituída de qualquer confrontação com as relações sociais e de poder subjacentes que produzem iniquidades sociais e materiais” (CORNWELL, 2018, p. 3). 9 Em decorrência da COVID-19, doença que alastrou uma pandemia mundial através do coronavírus. No Brasil, sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, o país experimentou do fel de uma terrível crise política e humanitária, uma vez que o governo federal dificultou – durante muitos meses – o acesso a vacinas, a ampla informação e a melhorias no sistema de saúde – que, por sua vez, enfrentou diversos colapsos desde o primeiro caso registrado em território brasileiro. 16 “Feminino e feminista” passou a me dizer pouco, já reproduzia um feminismo calcado em outro empoderamento, um individual e frágil, não o meu. Entendi que esse trabalho só poderia se chamar “A Princesa Empoderou: Experimentações Visuais de Técnica Mista sobre uma Transcendência Intransferível e Coletiva”. “Experimentações” porque entendo que “representações” poderiam soar como ilustrações de uma obra já posta, e não como imagens que suscitaram livremente do entendimento – e questionamento – dela. “Intransferível” porque sou eu quem tomo o prumo das rédeas do cavalo desembestado e aprendo sobre a desejada tomada de poder cavalgando sobre ele; porque é na solidão do processo de erros e acertos da construção visual que entendo o que quero mostrar. “Coletiva” porque jamais poderei transcender sozinha, porque entendo que questionar os poderes sobre mim exercidos é questionar o corpo violado de tantas outras antecessoras, outrora meus pares. Sobre o meu corpo de mulher preta, artista e pesquisadora, há uma necessidade de compreender esse empoderamento de gênero e raça10, racializado e feminino. 1.4 O que comunica a linguagem plástica posta? Nesse trabalho teórico-prático de Criação em Artes Visuais, manipulo a linguagem plástica e as palavras escritas para que as imagens em seus apelos falem sobre as princesas que nunca puderam ser Princesas. Falo sobre elas todas para que essa pesquisa também diga muito sobre mim, partindo de um olhar subjetivo para analisar nossa realidade coletiva. O que será conhecido como o “conceito visual” desse projeto nasce abraçado a uma experimentação incansável da linguagem plástica. Em sua feitura apago e refaço camadas, ora construindo-as, ora destruindo-as, numa dinâmica de 10 Fazendo alusão à um Feminismo Interseccional, plural, explicitado na obra de Carla Akotirene em “Interseccionalidade”, da coleção “FeminismosPlurais”, de 2019. 17 composição imagética que se assemelha e dialoga diretamente com o processo intransferível de empoderamento pessoal e elaboração da subjetividade. As superfícies de linóleo e algodão, sobre as quais derramo tinta e colo palavras, são rastros de uma jornada que parte do rompimento de padrões (estéticos e comportamentais) para o encontro de uma identidade (artística e pessoal), sendo elas – simultaneamente – metáfora e materialização. Cada uma das três peças brota de um jogo autoproposto de luz e contraste, exploração e esgotamento, falar e fazer, anotar e pintar, movimento e repouso, descarte e reaproveitamento. A verdadeira busca aqui não é dicotômica, mas é sedenta por diferentes perspectivas e possibilidades a fim de se afastar dos clichês que possam virar imagem. 1.5 Como apresento a arte visual através da linguagem verbal? Não uso as palavras apenas para uma tradução lógica do sentido das obras. Confio ao apreciador uma parcela de responsabilidade sobre o que é possível entender ou crer das imagens que se apresentam diante dos seus olhos. Nos capítulos e subcapítulos em que esse trabalho se desenvolve, faço uso do texto tanto como fio condutor de uma reconstituição das etapas criativas das obras, como também parte indissociável da composição de cada uma. No capítulo intitulado “Primeira”, falo sobre a aproximação com a primeira experimentação visual, meu encontro com o escuro, a apropriação dos materiais não- convencionais usados e sobre a busca do que eu gostaria de falar sem muito dizer. Disseco também o que considero falho no início do trajeto e todas as etapas diárias de construção imagética que me levaram a compor a primeira peça: “rastro”. Em “Segunda”, falo sobre o processo criativo, mas também sobre minha relação com a academia, sobre como as pressões pertinentes a esse momento de encerramento do ciclo acadêmico me geraram tensões que, por sua vez, contaminaram o ambiente do ateliê e impulsionaram a criação. Em “Terceira”, encerro a tríade dos capítulos que discorrem sobre a criação, trazendo reflexões sobre essa trilogia (ou tríptico) visual, sobre a dificuldade de realizar construções de técnica mista, da procura pela harmonia entre as camadas e o fechar-se de um ciclo. 18 Busco com a formatação do texto dessa pesquisa um rompimento parcial – e consciente – de algumas convenções e normas acadêmicas vigentes que, inevitavelmente, tornam asséptico e pragmático o que é poético e visceral. Encontro na escrita performativa e na a/r/tografia a forma mais adequada para juntar palavras para não somente compor o relatório de um trabalho teórico-prático, mas contar uma história que seja acessível e que acesse sentidos. Para tal construção textual recorro também às anotações acerca dos procedimentos plásticos adotados dentro do ateliê, recortes de trechos do livro A Princesa Empoderou e citações à referenciais teóricos que fundamentam, dialogam e atravessam o pensar deste fazer. Ao fim de tudo, proponho Preenchimento Distante como o capítulo conclusivo da pesquisa e extremo oposto desse Vazio Iminente, que introduz e impulsiona minha procura por perguntas. A ver. 19 2 UM TRÍPTICO EM MOVIMENTO E REPOUSO Há dentro dessa artista uma mulher que rasga-se e remenda-se11 simultaneamente numa procura aflita por algo ainda sem nome, com fome de algo nunca antes provado. Os primeiros passos de uma criação visual começam muito antes do movimento. Uma obra é gestada ainda na inércia aparente – porque toda ação começa em silêncio, com uma intenção. O desejo de caminhar já é seu ponto de partida. O repouso que precede a ação já é, em si, o momento inicial de todo processo. Não sei ao certo se a inquietação que motivou essa pesquisa era consciente ou se há um único questionamento, uma chave exata que ligou a ignição da minha criatividade e alavancou minha trajetória em direção ao objetivo desta pesquisa. Gosto de acreditar que uma miscelânea de fatores se combinou e me encurralou de frente para esse alvo abstrato que busco incessantemente durante o experimento. Enquanto linguagem plástica, o conjunto inacabado que surge desses jogos de tentativa e erro é para mim um tríptico: uma sequência de três imagens correlatas, que não carecem em sua disposição de ordem fixa, mas que dialogam, se movimentam, repousam e constroem juntas a completude do sentido da obra de acordo com o que quem a observa quiser. Por ser uma transcendência intransferível e coletiva, assim como o empoderamento que parte do micro para o macrossocial, os signos e significados em arte aqui também passam pela percepção única antes de abrangerem o contexto do todo. Aqui, construo imagens para descobrir o que quero ver, não exatamente para mostrar uma linguagem plástica planejada, sistematizada, definida na gestação do gesto. 2.1 Primeira Quando vislumbrei de longe a forma – ainda opaca – da intenção do experimento, busquei dentro do ateliê de pintura por materiais que dialogassem com a sombra desse pensamento enevoado. Pensei que, se o meu desejo era falar sobre 11 “Viver é um rasgar-se e remendar-se” (ROSA, 1986, p. 132). 20 reconstrução de símbolos (do arquétipo da princesa e de mim mesma), talvez também quisesse falar sobre ressignificar, desmanchar, reajustar e explorar outras faces e sentidos de objetos que fazem parte da minha lida enquanto artista visual. Era necessário encontrar uma forma de usar aparatos técnicos que, na prática, me remetesse ao que simboliza esse rasgar-se e remendar-se, essa figura que surge de escombros. Decidi então que nenhuma ferramenta seria comprada, tudo seria reutilizado: as superfícies que pinto são retalhos de linóleo e de outras telas; os pincéis, as tintas acrílicas e a óleo são sobras, compradas há quase dois anos para as disciplinas de pintura oferecidas pelo Departamento de Artes Visuais; uma raquete de badminton, uma hélice de ventilador e um ralador de verduras formam o conjunto de apetrechos usados como estêncil para compor traços, círculos e quadrados presentes em camadas das três peças. 21 Figura 1 – Raquete de badmintown utilizada como stencil para criação de camadas. Fonte: Acervo pessoal. 22 Figura 2 – Hélice de ventilador utilizada como stencil para criação de volume/camadas. Fonte: Acervo pessoal. 23 Figura 3 – Paleta de pintura utilizada como stencil para criação de contornos/camadas. Fonte: Acervo pessoal. 24 Figura 4 – Ralador de legumes utilizado como stencil para criação de textura/camadas. Fonte: Acervo pessoal. 25 Para elaborar os pigmentos utilizados nesse experimento, fiz uso de tubos de cores primárias (magenta, amarelo e azul) e cores resultantes de pequenas misturas delas (vermelho, verde musgo, amarelo cádmio, violeta), sendo elas aditivas (quando, somadas, resultam em branco) e subtrativas (quando, somadas, resultam na cor preta). Olhando hoje para o processo, percebo a beleza num fazer artístico sincero, que passa pelas vivências intransferíveis e toda subjetividade de uma vida sem pudor, permitindo que os aspectos plásticos surjam como um bocejo, como um espreguiçar: quase inconscientemente, mas suscitados por uma necessidade – o sono e o despertar – que também é desejo. Assim sentindo, preto e branco se avolumam ao longo da série de três imagens, sufocando um pouco o colorido que é base para essas composições, o azul céu que também compõe o fundo dessa tela de palavras. Entre as mais diversas interpretações, posso ler que esse sufoco surge refletindo também minha própria trajetória no curso de Licenciatura em Artes Visuais, de fato marcada por instantes de alívio e profunda falta de ar. Para compor a narrativa deste capítulo que traz em seu escopo o desabrochar da primeira obra deste projeto, precisorememorar o que veio antes da chegada ao Departamento de Artes, mas que elucida elementos e escolhas de sentidos da Alice de hoje. Espontaneamente e sem pesar nos fatos, como quem boceja com sono ou se espreguiça para afastá-lo. 26 Pra um corpo marcado aos 10, 17 é muito pouco, 27 Ser abusada sexualmente e psicologicamente infere no indivíduo um sentimento de desejo de sobrevivência instintivo, uma sede de sobreviver à memória e ao que ainda transporta ao lugar onde tudo aconteceu. Ainda hoje lembro da cor âmbar da luz do quarto, da cor das paredes, do desenho que estampava meu pijama. Algo tirado de dentro de mim ficou – e ainda está por aqui, sendo educado, domado, compreendido, ressignificado. Minha alucinação, por muito tempo, foi sobreviver aos dias em que a materialização do pensamento era mais palpável que o chão sob meus pés. Seguindo esse instinto, encontrei na arte a redenção da culpa que nunca foi minha. O teatro me ofereceu colo materno, o violão foi um ninar nas noites em que a casa cheia de parentes era vazia de afago e as palavras escritas em um perfil privado no tumblr12 davam vazão à denúncia engolida. Em cada expressão artística que jorravam dessas feridas, pulsava um auto- remendo. Hoje, anos depois, me aproximo de Márcio Seligmann-Silva para costurar conceitualmente o porquê da relação de intimidade catártica entre a arte e a dor que trago aqui em primeira: [...] a arte, como que liberada das amarras do classicismo, pôde retomar o seu papel de ritual (sacrificial): de espaço de cruzamento das fronteiras e concomitante re-estabelecimento dos limites; local de teste e abalo das ideias que ajudam a manter a sociedade coesa. A arte surge como “espaço marginal” – ou seja, de apagamento/trancamento das margens – onde tanto aquilo que é posto “de lado”, “para baixo”, na sociedade voltada para a produtividade, pode se manifestar “livremente”, como também, ao fazê-lo, volta-se contra esse recalque que sustenta a vida social cotidiana. Daí a relação íntima entre apresentação – e não mais re-presentação – da dor (trágica) e da ironia (romântica) corrosiva e auto reflexiva. (SELIGMANN- SILVA, 2003, p. 32) Aqui falo sobre solidão, sobre a sombra de algo que me foi roubado e que sempre andou comigo deixando rastros. Discorro também sobre a metamorfose da minha relação com a arte: o que era curativo tornou-se ganha-pão com o passar dos anos num movimento cadenciado, lento, imperceptível, a partir dos 15 anos de idade. A vida me encaminhou naturalmente para o Departamento de Artes. 12 Tumblr é uma plataforma de blogging que permite aos usuários publicarem textos, imagens, vídeo, links, citações, áudio e "diálogos". A maioria dos posts feitos no Tumblr são textos curtos, mas a plataforma não chega a ser um sistema de microblog, estando em uma categoria intermediária entre os blogs de formato convencional Wordpress ou Blogger e o microblog Twitter. https://pt.wikipedia.org/wiki/Plataforma https://pt.wikipedia.org/wiki/Blog https://pt.wikipedia.org/wiki/Texto https://pt.wikipedia.org/wiki/Imagens https://pt.wikipedia.org/wiki/V%C3%ADdeo https://pt.wikipedia.org/wiki/Links https://pt.wikipedia.org/wiki/Cita%C3%A7%C3%B5es https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81udio https://pt.wikipedia.org/wiki/Microblogging https://pt.wikipedia.org/wiki/Wordpress https://pt.wikipedia.org/wiki/Blogger https://pt.wikipedia.org/wiki/Twitter 28 Ainda perdida e duvidando da minha própria capacidade intelectual dentro de uma Academia, entre indecisões e contratempos acerca de qual curso escolheria, a Licenciatura em Artes Visuais foi uma luz no fim do túnel. Inicialmente, cursar Licenciatura em Teatro era o caminho mais óbvio – mas a obviedade e as saídas mais fáceis não faziam mais parte dessa jornada. Tomei coragem para aprender a repensar as minhas dores através da composição de imagens. Os tombos que existiram nesse caminhar Acadêmico, impulsionados pelos esbarrões e exaustões físicas devido a um cotidiano onde eram intercalados estudo, trabalho e dedicação inarredável à cura através da arte, me aproximaram inevitavelmente à resiliência necessária para existir nesse mundo habitando um corpo negro. Negro e feminino. Maya Angelou (1978), em seu famosíssimo poema “Ainda assim, eu me levanto”, soa em minha marcha compassada, expressiva, elucidando aqui o inefável. Angelou foi a primeira lamparina acesa para a composição de “Negro Rastro”, que disseco no porvir através de imagens e transcrições de textos escritos no meu diário gráfico, peça fundamental para análise técnica e semiótica das criações visuais e da linguagem plástica posta. Hoje de pé, ensaio o início da minha primeira composição observando os rastros deixados no chão em cada queda. 29 Acima de um passado que está enraizado na dor Eu me levanto Eu sou como um oceano negro, vasto e irrequieto Indo e vindo contra as marés, eu me levanto Deixando para trás noites de terror e medo Eu me levanto Em uma madrugada que é maravilhosamente clara Eu me levanto Trazendo os dons que meus ancestrais me deram Eu sou o sonho e a esperança dos escravizados Eu me levanto Eu me levanto Eu me levanto. (ANGELOU, 1978) 30 Figura 5 – Registro da primeira versão de Negro Rastro, após o primeiro dia de experimentos no Departamento de Artes. Fonte: Acervo pessoal. 31 2.1.1 Negro Rastro “O primeiro prazo dado pela professora Laís se aproxima e ainda busco fôlego para impulsionar meu corpo para cima. Sob o peso dos meus poucos 23 anos, sob o peso da responsabilidade de me recompor e chacoalhar a sujeira varrida para debaixo do tapete, sob o peso de ser honesta e falar sobre o que me trouxe até aqui, meus braços tremem”. Em 6 de março de 2020 escrevi esse trecho, o primeiro texto no meu caderno/diário de artista reservado exclusivamente para esse processo. O que não consta na nota acima é que há também sobre esse corpo uma pressão causada pela autossabotagem, por me desacreditar enquanto artista plástica – acreditando que me colocar publicamente como tal seria uma farsa, já que venho do teatro, da performance, da fisicalidade, já que tudo que realizei profissionalmente – a literatura, o cinema, a música – nasceu em função deste corpo que atua, quase como uma necessidade fisiológica. “A expressão plástica me é acessível enquanto multiartista?” Esse questionamento me abriu as portas do processo. Sem resposta, como que ouvindo a voz ecoar numa gruta, reverberando ad infinitum a pergunta, retirei da moldura uma velha tela de algodão pintada por um artista que não conheço e pendurada em uma das paredes do meu quarto, virei-a do avesso e a cobri com tinta azul. Azul cor de céu. Lembro da sensação libertadora de encarar a fronteira entre vandalizar o trabalho de um colega e ressignificar uma obra já posta, já que tudo se transforma, já que a minha proposta – desde sempre – foi aproveitar o que estava ao alcance das minhas mãos. Lembro que, antes de passar a tinta azul sobre o verso, a figura estampada na tela era a de um violeiro. Um homem violeiro. Um homem, violeiro, branco, pintado por outro homem, artista plástico, branco. Paro, penso, rememoro quem veio antes: 32 Uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra. Uma mulher branca diz que ela é uma mulher. Um homem branco diz que é uma pessoa. (KILOMBA, 2012) 33 O topo da pirâmide sempre pinta o topo da pirâmide, Grada Kilomba (2012) já me falou sobre isso. Em meu lugar de base invisibilizada, entendo que no meu quarto aquela imagem não mais cabia porque nela não havia reflexo ou reflexão sobre sua razão de ali estar.Sobre ela, portanto, mais uma demão. Figura 6 – Negro Rastro, fotografia da obra ainda em fase inicial, após o primeiro dia de experimento. Fonte: Acervo pessoal. 34 Sempre que me sinto acuada Volto pro útero da minha mãe Sempre que me sinto violada Sempre que alguém ultrapassa minhas fronteiras Volto pro lugar abissal do útero de Betânia Tem muito de mim ainda ali Há muito dela andando pelo mundo dentro de mim Sempre que dói, volto pro útero da minha mãe Entendo que ela é parte desse rastro que fica Vejo seu medo de pele clara no negro rastro que deixo Ela sabe que o perigo é maior Sempre que me sinto ameaçada volto pro útero dela Não me protejo, mas Em casa a dor é melhor. 35 Mais difícil do que voltar a escrever, é voltar a pintar. O verbo sempre me foi mais próximo do que a imagem, mas o curso de Artes Visuais me instigou uma aproximação com a ilustração, através do desenho – e ilustrar me parece, ainda e sempre, conectado demais ao verbo. Para esse processo-pesquisa eu precisaria, sobretudo, me apartar do verbo para permitir que imagens suscitassem dele sem que a obviedade tomasse conta de seu significado, criando uma ponte entre palavra e imagem na formação do sentido da obra, de modo que as importâncias aqui fossem equivalentes. A abstração me foi um caminho naturalmente encontrado. Organizei um espaço seguro dentro da minha casa, que denominei de Estúdio. Nesse estúdio pude me cercar da minha própria presença, sem outros olhares que enfrentaria no ateliê do Departamento de Artes – lugar inicialmente pensado para a produção. Essa escolha foi fundamental para o processo como um todo nesse movimento de abrir as entranhas do verbo e mergulhar em acontecimentos passados que deixaram marcas latentes nesse meu presente. Nas primeiras experimentações com a tela, entre a minha casa e as últimas idas ao Departamento de Artes ainda em um 2020 pré-pandêmico, o vermelho apareceu como um splash sobre o fundo azul-céu, nesse movimento de algo que foi atirado sobre. Sob essa perspectiva, discorri no diário processual: [...] sempre fui dada a delicadeza e ao excessivo cuidado na hora de dispor tinta sobre tela, mas instintivamente, dentro do contexto de falar sobre algo que foi arrancado – ou arremessado para fora – deixei que a gestualidade e a agitação tomassem conta por inteiro desde o princípio. E faz sentido, ainda que não seja, de pronto, tão inteligível. 36 Figura 7 – Estúdio recém montado na minha casa. Fonte: Acervo pessoal. 37 Figura 8 – Negro Rastro, em processo. Fonte: Acervo pessoal. O jogo plástico foi se estabelecendo intuitivamente como uma dinâmica incansável de sobreposições, sempre sobre o vermelho que foi derramado. Acredito que, desde o momento em que entendi o que passei na infância – o abuso, o trauma –, percebi que minha mente de criança-culpada-pelo-que-não-tem- culpa sempre recorreu a esse poderoso recurso de sobrepor véus em cima do ocorrido – para que seja cada vez mais complexo de ser mexido, mais difícil. Algum tempo depois, ainda sobre Negro Rastro, concluí em meu diário processual: [...] para me conectar com o sentido do que escrevi em A Princesa Empoderou, não preciso necessariamente conceber visualmente uma obra que seja suporte para a palavra ou que traga cores ao que ela quer comunicar. Agora é mais nítido pra mim que a busca da pesquisa/processo é pelo ponto de encontro da sensação que o texto e a imagem me causam, cada um a sua maneira. 38 Fugir da voz interior que precisa empurrar para fora certos dedos na goela É como criar escudos sobre a consciência, amortecendo o impacto abrupto trazido pela lucidez. 39 Figura 9 – Registro das mãos após um dia de trabalho no ateliê. Fonte: Acervo pessoal. 40 Durante a lida diária da construção imagética, consegui perceber que o movimento de desvelar segredos e compartimentos pessoais criptografados e íntimos me fizeram partir para a técnica de velatura13 sobre a tela. Inconscientemente – ou instintivamente – associei essa escolha plástica aos recursos de autodefesa que adotei desde o ocorrido. Falei tanto sobre “desvelar” que a própria obra me trouxe a necessidade de compor véus, para que quem a olhe me acompanhe nessa jornada com a verve lúgubre que me contaminava em sua feitura. A palavra me instiga a construção. A imagem aproxima o outro da minha dor – ou talvez do sentido dela. Figura 10 – Negro Rastro num terceiro momento, pós experimento com camadas brancas para efeito de velatura. Fonte: Acervo pessoal. 13 “Processo que consiste na aplicação de uma fina camada de tinta ou verniz transparente sobre uma pintura já finalizada, permitindo que a tinta aplicada anteriormente continue visível e que a luz incidente seja refletida pela superfície coberta e modificada, em sua tonalidade, pela própria velatura. A velatura pode receber uma pequena quantidade de pigmento” (ITAÚ CULTURAL, 2021, online). 41 Agora tínhamos na placa a ser pintada um azul em dois graus diferentes de tonalidade, vermelho jogado a esmo e uma espécie de estêncil feito com o ralador de verduras. Os furos pretos que esse estêncil improvisado incutia na imagem me remetia a algo da urbe – como um piso de metal ou de ferro – e ao solado de botina, de sapato, algo pesado. O branco são manchas, não respiro. O branco aqui, compassado com o preto que surge naturalmente demarcando espaços, entre ritmo a estrutura visual posta – ou, pelo menos, era a intenção presente no processo. 42 O verbo é um lugar no presente onde a imagem pode morar. 43 A literatura me foi a primeira válvula de escape para atenuação do machucado. Dentro do estúdio montado em casa, versos feitos em 2017 ecoaram na minha cabeça. Negro Rastro me lembrou do dia em que compreendi que fui abusada na infância e do que sentia até esse dia: [...] era como se eu tivesse uma tampa de garrafa plástica atravessada no meio da minha garganta, um fecho opaco que me impedia de dar o goto, uma coisa que estava ali, tão incorporada ao respirar e ao deglutir, que parecia já ser eu. Não era. Não sou o que me aconteceu. Esse embolo quase asfixiante foi o que me fizeram, um momento, mas não pode me definir por completo. “Opaco”. Outra vez a palavra me instigou um impulso de ação plástica. Assim como as sobreposições precisariam aparecer para tornarem mais palpáveis a sensação de camadas – tanto de significados como também de coisas que precisei desenterrar para ser sincera sobre a tela –, era preciso ter incursões visuais de fragmentos opacos na imagem. Algo que não chapasse a obra contrapondo a camada quase translúcida, mas que coexistisse com essa camada cristalina, como uma grade que não se fecha por inteiro, mas que não te liberta de fato. O preto em si poderia me trazer facilmente essa ideia de asfixia e sufoco antes dita, mas não disposto de qualquer maneira. Pensando assim, experimentei na composição preenchimentos com retas escuras na parte mais externa da superfície pintada, sem medo de borrar ou de dar a impressão de puído, pisado, surrado. 44 Figura 11 – Negro Rastro antes das aplicações mais escuras que cortam o quadrado em diagonal. Fonte: Acervo pessoal. 45 Figura 12 – Negro Rastro antes da aplicação das camadas mais escuras que cortam o quadrado em diagonal. Fonte: Acervo pessoal. 46 Figura 13 – Negro Rastro em fase de experimento com retas mais duras e escuras. Fonte: Acervo pessoal. 47 Figura 14 – Negro Rastro em fase de desenvolvimento,detalhe das linhas pretas e das camadas abaixo. Fonte: Acervo pessoal. 48 Hoje, estando eu em movimento de retirada desse processo e de entrega dos resultados, percebo que o entendimento da necessidade do branco serviria para fazer uma espécie de contrapeso (em diversas instâncias) na narrativa construída. Figura 15 – Negro Rastro. Aplicação de camadas brancas para mais velaturas. Fonte: Acervo pessoal. 49 Percebo também que, ao longo desse processo, foi quase impossível trabalhar sobre uma única obra por vez. Sempre que intuía que estava no caminho certo para a finalização da composição, minha mente me transportava para segunda ou terceira, as duas outras obras que completam esse tríptico. Sob essas condições, compreendi com mais entusiasmo que esse era o caminho natural do processo: simultaneidade. A Alice, a artista de hoje, a pessoa que já foi menina encurralada em tantos outros momentos, não possui processos mentais – sejam eles de cura ou simples questões do dia-a-dia – que se desencadeiam de maneira ordenada. Não só a Alice artista de hoje, mas acredito que uma das condições do existir humano seja realmente essa capacidade de tocar a vida em frente enquanto a vida vai acontecendo. Mesmo que os traumas sejam alguns e, não necessariamente, estejam eles correlatos, a Alice que decide sarar através da arte é uma só – e isso implica em viver momentos de múltiplos desvelamentos e momentos de desvelamento nenhum. Assim como em meu ateliê, pauso momentaneamente aqui nosso diálogo exclusivo sobre primeira e parto para suas sequências, a fim de trazer no intercalar de assuntos e temas que dialogam, uma completude posterior. 50 Pro que se quer ainda não há nome Há vida na vida que se semeia simultaneamente Falo de mim e falo de muitas outras Se quando limpo outras feridas curo a mim mesma somente Para me compreender como pelas beiradas Como quem lambe o caldo do cerne Como quem quer chegar perto do magma 51 2.2 Segunda No primeiro contato dentro do estúdio com essa composição, eu já havia concebido mentalmente, de maneira bem definida, que a obra seria construída sob o argumento forte de ser uma conexão com a primeira das três imagens (Negro Rastro) e que, simultaneamente, criasse uma ponte para a terceira, ainda a ser gerada. Todavia, quando nos adentramos num processo alcunhando finalidades para algo que ainda nem nasceu, as chances de haver confusão e retrabalho são muito maiores. Após o primeiro dia de trabalho, a segunda peça não fazia o menor sentido na minha cabeça, mesmo seguindo uma certa “cartilha” semelhante ao que havia sido feito na obra anterior. Figura 16 – Também Negras Acadêmicas, ainda em estágio inicial. Fonte: Acervo pessoal. 52 Para ser precisa no que acho que quero dizer, solto a palavra para correr sem rumo, como um boomerang, como um cachorro que vive comigo há muito, como um corte que tem seu tempo para juntar a pele partida. Tem que deixar juntar, tem que deixar voltar, tem que deixar latir. 53 Após passar a tinta azul usada na primeira obra sobre a superfície de linóleo, eu sabia que nesse trabalho seria mais fácil trabalhar com colagem, também para trazer à tona as ideias das camadas. Abri o meu diário processual e encontrei um desenho de concha, propositalmente justaposto de maneira a criar uma dualidade visual, remetendo também a uma vulva. Figura 17 – Conchavulva. Fonte: Acervo pessoal. 54 Experimentei scanear o desenho feito em nanquim, fazer algumas correções no Adobe Illustrator e imprimir em papel manteiga, trazendo transparência para o fundo que antes era branco devido a própria folha em que desenhei. Organizei as três conchas – sempre trabalhando com essa ideia de 3 coisas, instigada pelo conceito do tríptico – e colei-as sobre a plataforma azul. O primeiro resultado foi este: Figura 18 – Também Negras Acadêmicas, em fase inicial, aproximação da imagem das conchas. Fonte: Acervo pessoal. Diferente da superfície de algodão da tela reutilizada e pintada em Negro Rastro, essa superfície de linóleo precisa ser trabalhada com muita paciência para que as velaturas – ou a ideia de que elas existem na obra – apareçam, e isso eu compreendi quando percebi que o tempo de trabalho sobre essa obra foi o triplo necessário para a primeira. Em contrapartida, o tempo necessário para a secagem de uma demão de tinta é infinitamente mais rápido, o que me permitia sempre recomeçar. 55 Quando algo dava muito errado, eu passava o azul por cima outra vez e seguia tentando, e tentando, e tentando, e tentando. No diário processual, um comentário foi a síntese desses momentos de aprendizado e da própria queda – engraçada – do cavalo: Entrei em estúdio buscando resultados, acreditando já ter hackeado meu próprio sistema, dei de cara com um sistema novo que não faço a menor ideia pra onde vai. Socorro! Parei, respirei, pensei: o que quero dizer a essa imagem e através dela? Sobre o que meu corpo sente necessidade de falar agora? O que tem retido minha atenção quando falo de mulheres racializadas? Qual seria, cronologicamente, o próximo passo para a minha tomada de consciência? De que forma posso abordar transversalmente outra frente de empoderamento? Qual outra transcendência meu corpo agora sente que precisa? 56 O que eu quero não cabe no lattes Mas faço questão de poder também o querer. 57 Também Negras Acadêmicas foi um nome que surgiu naturalmente ao longo do processo após uma conversa com a minha orientadora. Para além do desejo de compor, de criar pontes entre as obras e trazer organicidade e fluidez ao olhar que passearia sobre esse tríptico, encontrei esse “o quê?”, motivada pelas minhas próprias dificuldades dentro do âmbito acadêmico. Dentro do estúdio, o desejo de falar sobre os entraves foi se manifestando a partir das perguntas antes feitas e isso reverberou na linguagem plástica e nas minhas escolhas. Recomecei, a partir desse novo olhar, a pavimentar outra vez o linóleo, agora recorrendo a outras cores, esquecendo um pouco do vermelho. Fui me orientando, de certa forma, pela paleta de cores da capa do meu livro – que, por sua vez, é uma foto feita por Luana Cavalcante no projeto “O Ser de Luana”, onde ela pinta indumentárias sobre corpos de mulheres e fotografa o resultado. Figura 19 – Foto da capa do livro "A Princesa Empoderou" em 2019, no estande da Editora Jovens Escribas durante a FLIQ, Feira de Livros e Quadrinhos de Natal. Fonte: Acervo pessoal. 58 Figura 20 – Foto que deu origem a imagem da capa do livro A Princesa Empoderou. Pintura corporal e imagem por Luana Cavalcante. Fonte: Acervo pessoal. O roxo e o amarelo foram surgindo em splashs e em pinceladas mais largas e gestuais, todas feitas sobre essa base azul-céu – que hoje vejo, com muita ironia, essa neutralidade pacífica como alicerce plástico de toda essa discussão. 59 Figura 21 – Também Negras Acadêmicas, após o experimento com novas cores e novas formas de pintar. Fonte: Acervo pessoal. Avancei em direção ao roxo como uma evolução do vermelho antes posto, trazendo uma possibilidade de leitura da cura, do rastro de sangue que – na obra seguinte – se transforma em uma casquinha até ser somente uma cicatriz. Entendi que as cores, quando bem pensadas, criam uma narrativa que constrói o sentido das obras de forma individual e apartada, potencializando a ideia geral do empoderamento quando o tríptico se junta. 60Se no Negro Rastro busco discorrer sobre o abuso e a vulnerabilidade de meninas pretas e seus corpos, em Também Negras Acadêmicas escolho falar sobre o desejo de valorizar e visibilizar o pensamento crítico produzido por meus pares no ambiente acadêmico. Esse silenciamento de saberes que é uma violência mais velada, que exige maturidade para ser identificada, mas que está ali. Não jorra vermelho sangue como o corpo imediatamente invadido em sua intimidade, mas é profundo, é uma extensão disso tudo. Antes de voltar às ações, preciso falar junto a Joice Berth (2020). Preciso trazer novamente aqui que Empoderamento é esse que tateio enquanto pinto e que enxergo – como um fecho de luz distante no meio da mata fechada – quando me coloco submersa nesse processo criativo: [...] o empoderamento como teoria está estritamente ligado ao trabalho social de desenvolvimento estratégico e recuperação consciente das potencialidades de indivíduos vitimados pelos sistemas de opressão, e visa principalmente a libertação social de todo um grupo, a partir de um processo amplo e em diversas frentes de atuação, incluindo a emancipação intelectual. (BERTH, 2020, p. 46) Ter acesso a uma instituição pública de ensino superior e poder desenvolver habilidades técnico-artísticas com mestres e doutores do mais alto escalão da branquitude acadêmica é o sonho de qualquer jovem de 17 anos que possua um zilhão de sonhos nos bolsos e muita vontade de descobrir o que é ser artista. Aos 24 anos e desde 2014 dentro do Departamento de Artes, descobri que essa busca nunca acaba, mas que se torna menos complexa quando a gente olha para um quadro docente e se sente acolhido porque a vista vislumbra semelhantes. É uma fissura no peito do pensamento crítico contemporâneo olhar para o Departamento de Artes da UFRN e constatar que os pares são poucos. Felizmente existem alguns poucos docentes aliados. A ver. 61 O que eu quero não cabe no lattes, mas preciso ter o direito de construir uma carreira acadêmica e de ser respeitada pelo meu livre pensar. Preciso ser consumida como referencial teórico. Preciso que minha intelectualidade seja leva a sério não só por meus pares, mas por toda branquitude acadêmica que dita como e o que vale a pena ser consumido e referenciado. 62 Aproveitei também para explorar as texturas que a raquete poderia me trazer, associada ao ralador de verduras e as camadas de branco, para a velatura. O preto seguiu pelas bordas, mais tímido, esperando uma outra oportunidade de semi- enclausurar o miolo da peça. Num momento seguinte, percebi também uma quase silhueta humana e experimentei reforçá-la com os pontos pretos na parte superior central. Esse foi o resultado: Figura 22 – Também Negras Acadêmicas, corte de imagem com detalhes mais próximos. Fonte: Acervo pessoal. 63 Acredito que a formação intelectual é um processo de colagem. Colagem de conhecimentos. Nem tudo que consumo absorvo, mas o que absorvo se mistura a outros saberes, dá liga, forma caldo, pigmenta de um jeito novo o pensamento. Assim pensando, recolhi várias edições de revistas e jornais que estavam aqui em casa e comecei a folhear. Não sabia ao certo o que buscava, mas sabendo o que queria dizer, acreditei que a imagem iria me achar. E ela me achou. Recortei de uma revista velha e sem capa – e, por isso, fica impossível aqui referenciá-la – um cérebro feito com páginas de livros. Destaquei também uma silhueta da princesa Diana não pela obviedade da relação com este trabalho, mas pela cor vermelha do verso. Figura 23 – Também Negras Acadêmicas após a colagem do recorte do cérebro e da figura da princesa. Fonte: Acervo pessoal. 64 Figura 24 – Também Negras Acadêmicas. Detalhes da colagem. Fonte: Acervo pessoal. 65 Após a aplicação dos recortes sobre o linóleo e sua secagem, coloquei a segunda peça próxima a primeira e constatei que poderia trazer a dureza do preto e do branco para as bordas, dando continuidade às linhas diagonais que apareceram na outra obra. Figura 25 – Também Negras Acadêmicas após trabalho com as linhas pretas e brancas cruzando em diagonal o quadrado. Fonte: Acervo pessoal. 66 Figura 26 – Também Negras Acadêmicas justaposto a Negro Rastro, mostrando a continuidade dos traços que saem de uma obra para a outra. Fonte: Acervo pessoal. Quando percebi que o encaixe entre as duas peças era possível de diferentes formas, decidi não mais me demorar, partindo para a terceira busca. 67 Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulher a subir numa carruagem, é preciso carrega-las quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cedem o melhor lugar! Eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para o meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros, e homem nenhum conseguiu me superar! Eu não sou uma mulher? Consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e aguentei as chicotadas! Não sou eu uma mulher? Pari cinco filhos, e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu. E não sou eu uma mulher? (TRUTH, 1851) 68 2.3 Terceira O início do meu processo com Também Negras Acadêmicas me ensinou que adentrar o estúdio de criação visual com muitas delimitações e justificativas para o que ainda vai nascer pode tolher o fluxo natural do ímpeto criativo e, inevitavelmente, lhe obrigar a trabalhar um tanto a mais do que o esperado. Por causa dessa vivência, acordei numa manhã de maio de 2020 determinada a não ter nada na cabeça além do desejo de estabelecer um diálogo coerente e honesto com o que já vinha sendo feito, sem muito me preocupar com uma centena de justificativas para o que iria acontecer. A arte sempre encontra sua forma de mostrar o caminho enquanto ele acontece diante dos seus olhos. Há muita força na organicidade, e o jovem artista precisa estar constantemente aprendendo e reaprendendo isso. Sem muito pensar, desenrolei mais uma placa de linóleo, estendi-a sobre o chão do ateliê e a cortei nas mesmas medidas das peças anteriores. Misturei as tintas, despejei sobre ela uma generosa quantidade de tinta azul-céu, me desconectei do mundo exterior e me ative apenas ao gesto. Pinceladas para cima, pinceladas para baixo, pinceladas horizontais, diagonais, espirais. Explorei o gesto, estava focada na ação. Após a primeira demão, mergulhei um pincel mais fino bem fundo em uma tigela com tinta preta, levantei-o e o deixei pingar sobre esse azul. 69 Figura 27 – Terceira peça, após a primeira demão de tinta e alguns experimentos com palavras e splash. Fonte: Acervo pessoal. Nas duas primeiras obras, a palavra “não” surgiu naturalmente, como pode ser visto nas fotografias do acervo pessoal que ilustram as fases iniciais de cada uma. Escrevi três vezes, preservando o formato mais reto das letras. Usei um pouco de tinta a óleo vermelha para manchar a peça e, também, entender se a cor se repetiria ali para fechar o ciclo. 70 Comecei a observar meus pensamentos enquanto compunha a terceira parte do tríptico e percebi que ainda estava completamente conectada às peças anteriores, ao que vinha sendo discutido internamente e às respectivas expressões de cada gesto explorado das composições. Mesmo que houvesse iniciado o processo sem determinações extremadas acerca do caminho a ser percorrido, ficou nítido que dessa vez a sensação era de vazio e medo da redundância, acreditando que tudo que poderia ser discutido já havia sido dito. Parei, respirei e repeti o exercíciode incitar no meu íntimo perguntas norteadoras: o que ainda tem me movido a fazer o que eu faço? O que ainda me faz levantar sobre essa Negro Rasto? O que me mantém ainda querendo superar o silenciamento intelectual?! Não vislumbrei nenhuma resposta. No oco, o eco das perguntas me entregava que talvez o meu processo estivesse no limbo do vazio que era iminente, o mesmo esvaziamento que tira o significado do verbo “empoderar”. O melhor a fazer, naquele momento, era diminuir a velocidade da produção, me cobrar menos acerca da entrega de um resultado que completasse o tríptico e buscar digerir o próprio aprendizado dos últimos dias em seu tempo. 71 O repouso e o distanciamento organizam melhor as percepções do olhar. 72 Figura 28 – Mãos sujas de tinta durante o processo. Fonte: Acervo pessoal. 73 Enquanto folheava páginas de revistas aleatórias em busca de imagens que me auxiliassem a compor Também Negras Acadêmicas, lembro de notar – logo após decidir buscar por fotos de mulheres ou meninas negras – que simplesmente não havia nenhuma foto ou ilustração que cumprisse esse critério mínimo. Lembro também de alargar esse ponto de crivo e procurar apenas por fotos de mulheres que não fossem brancas. Duas imagens foram encontradas – uma delas era uma mulher indígena, numa ilustração clichê onde ela usa um cocar. A escassez da existência de imagens que, dentro da minha percepção de mulher preta, são muito comuns no meu entorno, me fez encontrar a motivação da composição freada em algo que já faz parte do meu existir e do que é um bastião em meus projetos artísticos: a representatividade14 e como ela impacta no imaginário de pessoas tidas como desimportantes para os padrões estéticos eurocêntricos. Resgato Joice Berth (2020) mas uma vez, ainda em seu livro “Empoderamento”: [...] temos então, nesse campo [da estética e do empoderamento], um elemento importante nos processos de dominação de grupos historicamente oprimidos, pois, uma vez que se criam padrões estéticos pautados pela hierarquização das raças ou do gênero, concomitantemente criamos dois grupos: o que é aceito e o que não é aceito e, portanto, deve ser excluído para garantir a prevalência do que é socialmente desejado. (BERTH, 2020, p. 70) A partir de Joice pude voltar meu olhar para minha adolescência e para o fato de ser a menina preterida dos meninos na sala, para o cabelo tantas vezes alisado a troco de queimaduras químicas no couro-cabeludo. Por ter a pele mais clara, fruto de um forte histórico de miscigenação forçada do nosso país, aprendi a odiar tudo que não era fenotipicamente alinhado a branquitude. Sobre esse ponto específico, me aproximo de Lélia Gonzalez para elucidar, com sua infinita força e sabedoria de preta mais velha, o que sinto: [...] o racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter os negros e os índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. Veiculada pelos meios de comunicação de massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a 14 Aqui, para nós, tem o peso positivo de ser um espaço ocupado por indivíduos pertencentes a grupos que são socialmente oprimidos nas diferentes formas de mídia e arte (obras audiovisuais, na música, nas artes plásticas, nos noticiários). A representatividade aqui citada e popularmente discutida no momento presente quebra estereótipos negativos de grupos oprimidos e invisibilizados, reconstruindo imaginários na subjetividade das pessoas que podem contemplar a esse espaço sendo ocupado. 74 crença de que as classificações e os valores do Ocidente branco são os únicos e verdadeiros universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca demonstra sua eficácia pelos efeitos do estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial que produz o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue” como se diz no Brasil) é internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura. (GONZALEZ, 1988, p. 73) No início da vida adulta, quando já me entendia afetivamente e sexualmente atraída também por mulheres, comecei a perceber um outro tipo de opressão sobre meu corpo: a hiperssexualização. Nesse momento, mesmo convivendo quase que exclusivamente com artistas, pesquisadores e pessoas que em teoria eram “mente aberta”, foi possível perceber sob algumas camadas de velatura mais uma possibilidade de subalternização. Djamila Ribeiro nos fala sobre a hiperssexualização do corpo da mulher negra a partir do arquétipo da Globeleza, elucidando um tanto mais esse discurso que se misturará com a terceira obra: [...] A mulher negra exposta como Globeleza segue, inclusive, um padrão de seleção estética próxima ao feito pelos senhores de engenho ao escolher as mulheres escravizadas que queriam perto de si. As consideradas “bonitas” eram escolhidas para trabalhar na casa-grande. Da mesma forma, eram selecionadas as futuras vítimas de assédio, intimidação e estupro. Mulheres negras eram submetidas ao jugo “dos donos”. Era comum que as escravas de pele mais clara, com traços próximos ao que a branquitude propaga como belo, assumissem os postos da casa-grande. Seus corpos não eram vistos como propriedade delas, prestavam apenas para ser explorados em trabalhos servis exaustivos, além de serem depósitos de abuso sexual, humilhação, vexação e violência emocional constantes. (RIBEIRO, 2018, p. 141) O campo de desvalorização estética de corpos não-brancos sempre vai mais longe, padronizando inclusive qual a cor mais bonita para a genitália feminina. Claro que não são as mais escuras. Encontrei o ponto de estabelecimento para esse diálogo e voltei ao ateliê, aonde reviraria decerto preterimentos passados e presentes para a construção da terceira peça. 75 Nem só rosas são bucetas. 76 Sem saber ao certo quais recursos plásticos dialogariam com o que eu gostaria que fizesse sentido junto ao meu discurso de empoderamento estético, comecei a revirar aleatoriamente retalhos de coisas que haviam sido descartadas das obras anteriores e peças antes pintadas por mim. Encontrei a Conchavulva, desenho em nanquim utilizado e descartado no início da segunda peça. Achei também um recorte de uma rosa, pintada em 2017 num exercício da disciplina de Pintura II. Fiz uso novamente do jogo de sobreposições com auxílio da raquete de badmintown, do ralador de verduras, da hélice de ventilador e da paleta de mistura de tintas. Na sequência, coloquei sobre a superfície de linóleo a rosa, a Conchavulva – agora pintada de verde musgo – e uma foto aleatória da cantora Iza, achada num encarte de um jornal local. 77 Figura 29 – Nem Só Rosas São Bucetas, após primeiro dia de experimento. Fonte: Acervo pessoal. O resultado foi pavoroso, mas ao menos existia ali um norte mínimo para novas tentativas dentro desse jogo constante de erros e acertos. 78 Figura 30 – Nem Só Rosas São Bucetas, após primeiro dia de experimento. Fonte: Acervo pessoal. Algo de muito estranho parecia não fazer o menor sentido dentro dessa composição, mas meu olhar ainda estava muito próximo da obra para perceber. Supus que fossem as curvas da concha que agora me era uma folha. Supus ser a paleta demasiado clara. Supus ser o acabamento da rosa, feito às pressas já que agora o meu tempo para conclusão disso seria menor. Decidi adicionar o preto aos poucos, para sentir seu impacto dentro daquilo que me parecia um Frankstein plástico. 79 Figura 31 – Nem Só Rosas são Bucetas, posicionado ao lado de
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