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11 2 2 3 A Propágulo é um espaço-revista autônomo de pesquisa e mediação em arte contemporânea. Tem como iniciativas o periódico homônimo Propágulo, sobre artistas de/em Pernambuco, a zine trimes- tral Desdobra e o podcast AFTA, sobre a cadeia produtiva nas artes visuais. Além disso, realiza o Clube de Leitura e Debate, espaço educativo online de caráter processual, experimental e flexível de aprendizado sobre questões que tangem as artes visuais. Este livro tem como organizadores Guilherme Moraes, Heitor Moreira, Nathália Sonatti e Rod Souza Leão. 44 4 5 GUILHERME MORAES É de Recife - PE (1998). Licenciado em Artes Visuais pela UFPE, é editor e curador-educador da Propágulo. Desenvolve pesquisas pautadas nas intersecções e tensionamentos existentes entre as áreas da educação, mediação cultural e curadoria, a partir das quais realiza ações como o Pequeno Grupo de Estudos em Curadoria Educativa, iniciativa autônoma de aprendizado e debate. HEITOR MOREIRA É de Recife - PE (1995). Graduando em design pela UFPE, atua enquanto designer editorial responsável pelo projeto gráfi co da revista Propágulo. Desenvolve pesquisas focadas na linguagem das publicações independentes e seus meios de circulação para além de desenvolver projetos paralelos dentro do campo do design. NATHÁLIA SONATTI É de Recife - PE (1998). É editora da revista Propágulo e co-fundadora da Lunette Games. Atualmente, está terminando o curso de Comunicação Social na UFPE, e atua de maneira transdisciplinar nas áreas de cultura, tecnologia, educação e comunicação. ROD SOUZA LEÃO É de Recife - PE (1997). Graduanda em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela UFPE, desenvolve gestão de projetos, produção cultural e design digital dentro da Propágulo. Também elabora trabalhos e pesquisas pensando nos hibridismos entre áreas de produção de eventos e gestão cultural a partir de uma lógica independente, além de criar e executar identidades visuais para projetos de diferentes segmentos artísticos. 6 PREFÁCIO Ingenuidade a nossa pensar que, abrindo uma convocatória nacional online para uma edição especial da revista Propágulo, poderíamos repli- car sua coreografia de periódico impresso transformando-a em um número especial seu. Livres das limitações das páginas físicas, lidamos com desafios outros onde fazer caber em algumas dezenas de folhas de papel não mais era uma questão. Como selecionar, então, entendendo que o suporte do qual desta vez partíamos tinha dimensões infinitas? Como pinto no lixo, nos esparramamos em juntar essas 22 presenças. Digo isso pois fora tentador encavalitar um sem-fim de artigos, ensaios, entrevistas e imagens em um calhamaço digital que, de tão extenso, mais pareceria um scroll infinito onde aguardariam cansados textos que nunca viriam a ser lidos devido à jornada que se imporia no folhear em PDF. Talvez céticos em relação ao que projetamos sobre a apreen- são de quem entra em contato com conteúdos online em um momento de tanta profusão destes — e mais preocupados ainda com os novos desafios que se impõem quando nós, curadores, artistas, educadores e jornalistas, sequer pensamos em aprender com quem entra em contato com o que soltamos no mundo —, acreditamos no poder da contingên- cia. Dessa forma, com um tanto de cuidado e responsabilidade, o pouco produzido pode crescer para dentro, adensar-se a partir da partilha seguida da escuta. 6 7 Nesse processo que teve início há pouco menos de um ano, no começo da pandemia do covid-19, buscamos exercitar a atenção para fagulhas que porventura brotassem entre os meandros de um um escrito e outro. Dessa tessitura, estabelecemos três núcleos, nomeados a partir de pala- vras derivadas dos próprios materiais oferecidos. São eles: 1 - amizades/ coletividades/afetos; 2 - corpos/invenções/deslimites e 3 - arquivos/ ruídos/memórias. Para além disso, deslocamos um dos textos, “para sobreviver a distopias.”, de Rafael Amorim, para o início deste livro, por perceber nele uma importante contextualização desta — por que não — curadoria que a ele oferecemos. O título deste livro foi pescado do texto “Objetos de Prazer: é preciso não descuidar da linguagem”, escrito por Clara Simas, presente em sua terceira parte. A imagem de capa é assinada por JEAN, em registro de performance realizada por Oura Aura Nascimento, que para esta publicação é entrevistada por nós, agora 3 anos após o primeiro encontro que tivemos. Guilherme Moraes 88 8 99 10 Apoie a Propágulo Fazendo parte da Propágulo Assinatura você viabiliza a manutenção de todas as nossas ações e ainda recebe acesso a conteúdos exclusivos disponibilizados toda semana: AMIGOS PRÓXIMOS DO INSTAGRAM CLUBE DE LEITURA E DEBATE Acompanhe de perto nossa rotina de trabalho e saiba das novidades em primeira mão. Junte-se aos encontros de conversa, movidos a partir de textos e materiais selecionados, com nossa equipe, artistas, pesquisadores e interessados em arte. PODCAST AFTA Fique por dentro dos debates que atravessam a cadeia das artes visuais a partir de conversas mediadas por nossa equipe e convidados especiais. TEXTOS DE APROFUNDAMENTO SEU NOME NA REVISTA Tenha seu nome dentro das edições impressas da revista Propágulo. Mergulhe nas referências e processos que circundam nossas práticas e pesquisas. ARTE IMPRESSA Receba em casa uma obra de arte numerada e assinada por nossos artistas parceiros (em serigra� a, risogra� a, gravura, entre outras técnicas) a cada dois meses. Saiba mais no site catarse.me/propaguloassinatura→ 10 1111 12 para sobreviver a distopias. rafael amorim Padre Miguel - RJ 12 13 texto de parede para uma exposição na curva dos dias seguintes. ou texto para ser lido em voz alta. escrita que se pretende expositiva, coletiva e acumulativa. um convite ao encontro para abraçar trabalhos e/ou projetos interessados em criar outro repertório de imagens refl exivas, resultantes e respondendo às estranhezas que assentam o presente. ao encontrar essa escrita, proponha algo. para sobreviver a distopias será preciso encontrar perguntas den- tro de outras perguntas, jamais encerrando-as. questionar, por exem- plo, como seria o futuro quando não narrado pela voz do autoritarismo secular. ou se ainda é possível falar em futuro. não seria a ideia de futuro, justamente, a chave que mantém girando as engrenagens dos regimes que sabotam os desejos daquilo que se faz desviante? como, então, falar através das muitas vozes esquecidas na nossa concepção de coletividade e assim instaurar outra palavra que dê conta daquilo que antes a palavra futuro nos ofertava? tão logo dois mil e vinte se aproximou do futuro e, não por acaso, nos revelou o despreparo do poder público para lidar com tudo o que não faz parte de seu projeto necropolítico. o cenário descortinado trazido por uma crise global revelou não só as cicatrizes mais profundas do campo social, como também embaralhou algumas de nossas noções individuais e coletivas. assim, para sobreviver a distopias se lança como reflexão a ser escrita no plural, às muitas mãos. é preciso propor, pois os caminhos percorridos até aqui estruturaram outras distopias disfarçadas diante de nós. por isso, para sobreviver às distopias atuais, talvez seja necessário 14 desfazer nossas próprias utopias, nossas antigas convenções. como uma espécie de chamamento a reorganizar o real, é preciso propor e repensar as imagens que atravessam os anos, duvidar dos nossos olhos e do nosso comprometimento com o futuro – essa palavra quebrada. este solo muito bem preparado, a falsear o sentimento de pertenci- mento e comunhão, teve aporte diante dos regimes de ordem, progresso e fundamentalismo a todo custo. não fosse isso, talvez percebêssemos com mais rapidez quando os frequentes panelaços tornaram-se aplausos em homenagens ao período da ditadura brasileira em rede nacional, quando também ironizaram o número de mortos do mesmo período.essa marcha que nos delegou à distopia institucionalizada teve em base o sentencia- mento de algo ou de alguém como o inimigo, como o outro. façamos presente nosso desejo coletivo pela reivindicação de outras imagens. para que, assim, a partir de nossos desejos em comum, possa- mos desfazer milimetricamente as ideias de futuro. estejamos fi rmes, por exemplo, para reconhecermos nos detalhes daquele pano de fundo, as telas de rubens valentim. sim, elas estiveram lá, espectadoras silen- ciosas da barbárie verbalizada por uma voz que contava com a certeza da impunidade. mas quem as reconheceu? em quais imaginários habitam mestres como rubens valentim; artista nordestino, expoente da gravura brasileira? torna-se fundamental reivindicar outras linguagens, destituir as fi cções imperativas que pesam sobre nossos territórios sensíveis. de modo que o coletivo possa levantar algumas bandeiras e atear fogo às outras, duvidando de tudo o que foi escrito com letras maiúsculas e dando lugar à escrita da nossa própria história. seguimos desejando falar com nossas próprias palavras, reconstruir a escrita, entender que escrever também se faz com o corpo inteiro. 14 15 se agora então pudermos fazer um acordo, um pacto social vigente, que seja para que nossa produção de imagens vindouras desbanque os desastres causados pela hegemonia do conservadorismo que avança — cão raivoso — em nossa subjetividade. que nossos lugares de afeto se descolem da ideia colonial para que, assim, possamos desnaturalizar padrões e destituir simbologias. como será olhar de outra maneira para tudo aquilo que nos constitui ou tudo aquilo que não foi capaz de nos constituir? para sobreviver a distopias é uma proposta para imagens de corpos coletivos, a construir outros álbuns de família. às distopias, que seja entregue de volta tudo o que nos foi roubado, adulterado, ocultado, deslocado e manuseado. destituídas, essas imagens abrirão espaço para que possamos reaprender a ver e contar outras histórias, alargando outros repertórios imagéticos. uma vez alargados, que esses repertórios toquem à reconstru- ção das redes que nos circundam e nos tornam sujeitos plurais. portanto, caminhamos para desfazer as fi cções que nos impuseram as lógicas de mapeamento daquilo que é impossível de cartografar e delimitar. para sobreviver a distopias é, sim, um lugar repleto de desejo que caminha no sentido contrário à univocidade dos corpos. um enunciado de- sejoso por imagens capazes de abrir outros modos de existir. desejoso por natureza pelos gestos de um coletivo que vem aprendendo a dar forma às armadilhas no meio do caminho. assim, trata-se de um lugar que se move, que dispara perguntas, que apela a outros referenciais, que se reapropria e se reescreve. 16 AMIZADES COLETIVIDADES & AFETOS 16 AMIZADES COLETIVIDADES COLETIVIDADES & AFETOS 16 17 A Amizade como um exercício de imaginação Larissa Souza São Paulo - SP 18 Já faz um tempo que desejo escrever sobre coletivos de artistas. Acredito que não seja difícil perceber a presença de grupos na história da arte. No Brasil, temos modernistas, neoconcretos, tropicalistas, temos escolas, ateliês e residências articuladas por artistas e etc. Pense em um nome e logo você terá uma rede de outros que se relacionam, seja pelo tempo ou pelo afeto. Mas por que escrever sobre isso? O que há de tão especial na reunião de pessoas que trabalham com artes? Aqui não pretendo falar sobre ideias românticas que permeiam nosso ofício, nem mesmo da precariedade econômica que acomete a nós, artistas independentes, e que muitas vezes demanda que nos organizemos, mas da amizade como exercício de imaginação. Em “O amigo”, o fi lósofo italiano Giorgio Agamben observa que não se pode atribuir predicado à palavra “amigo” como se faz com “branco”, “duro” ou “quente”, pois a amizade não é uma qualidade ou propriedade de alguém. Nesse texto, o autor fala da pintura de Giovanni Serodine que representa o encontro de Pedro e Paulo a caminho do martírio. No quadro, os dois apóstolos estão com os rostos tão próximos que seria impossível se enxergarem, o que leva Agamben a questionar “o que é, na verdade, a amizade senão uma proximidade tal que não é possível representá-la nem fazer dela um conceito?”1 A escritora Helena Vieira, em uma fala sobre a imaginação como potência, descreve como afeto algo que “constitui um saber do corpo que não está no campo do simbólico que não pode ser representado no campo da linguagem”2. A amizade nesse sentido habita nosso campo dos afetos. 1 - AGAMBEN, Giorgio. O Amigo. In: Caderno n.10 – O amigo + Sobre crise, história e arte. Tradução de Bernardo Romagnoli Bethonico. Edições Chão de Feira. 2 - A Imaginação como Potência. Mediação de Francis Vogner dos Reis. Bernardo Oliveira, Helena Vieira e Ivana Bentes. Universo Produção, 26 de janeiro 2020. Podcast. 18 19 Para começarmos a pensar sobre a relação entre amizade e artistas, Francisco Ortega, em seu texto “Por uma ética e uma política da amizade”, citando Sennett, indica que uma amizade voltada à interioridade “à pro- cura de duração, precisão, segurança, é um caminho sem saída que conduz à autodestruição narcisista”. No que ele chama de ideologia da intimidade, procuramos em nossas amizades algo que nos preencha, impomos nossa intimidade e esperamos que a pessoa contribua com nossa jornada de au- toconhecimento. Para Ortega, essa inclinação a adaptar o desconhecido para algo familiar demonstra medo da diferença e total falta de imagina- ção, portanto, a amizade voltada à interioridade está fadada ao fracasso3. Deste modo, a amizade não deve estar no campo privado (da proprie- dade, da segurança, da singularidade), mas sim no público (da imaginação, da pluralidade, da política). Apostar na exterioridade signifi ca apostar em uma vida aberta para a diferença, para o efêmero, para o estranho4. Ainda para Agamben, a amizade existe no con-sentir, o eu e o amigo são dois pólos de uma con-divisão, enquanto que, para Ortega, a amizade é um processo no qual os indivíduos estão aplicados em trabalhar sua invenção. Relacionando com o lugar de liberdade que, para Arendt, “não é nunca o interior de algum homem, nem sua vontade, nem seu pensamento ou sentimento, senão o espaço entre”5, é nesse espaço “entre” os indivíduos que habita a poética dos coletivos de arte. Romper com a fraternidade nas amizades demanda pensar a imagi- nação sobre as relações. Para Ortega, é necessário pensar um nova política e uma nova ética da amizade. E isso se trata de elaborar uma política da imaginação que aponte para a criação de novas imagens e metáforas, mas 3 - ORTEGA, Francisco. Por uma ética e uma política da amizade. In: Caderno n. 109. Edições Chão de Feira, 2020. Disponível para baixar gratuitamente no site da editora. 4 - Ortega, idem. 5 - ARENDT, Hannah. apud Ortega, 2020. 20 sem substituir um imaginário por outro. Na mesma fala citada anterior- mente, Vieira diz que “pensar a imaginação é pensar alguma coisa que ain- da não está aqui. Se imaginar é uma saída ao que nos resta, signifi ca que ela não existe, signifi ca que não há saída a não ser aquela que nós vamos ter de inventar”. Imaginar uma amizade em relação às artes exige que deformemos o conjunto de imagens que compõem nossas relações, o que só será possível em encontro com a alteridade radical de si.6 A amizade entre artistas deve ser uma relação voltada para o exterior, uma relação que valoriza a distância, a impessoalidade, a teatralidade, a ação, a imaginação ao invés da autenticidade, da intimidade. Pensar novas formas de amizade refl ete diretamente em pensar novas formas de produção coletivas. 6 VIEIRA, Helena, 2020 20 21 “Pixar é humano": escritas insurgentes na cidade Filipe Gondim Recife - PE 22 Fui criado em um bairro de grande tradição na pixação. É relatado que desde o fi nal da década de 80 e início da década de 90 existiam pixadores em Beberibe e nosarredores da Zona Norte do Recife (PE). Cresci onde o pixo era parte do cenário das avenidas, ruas, becos e vielas. A pixação surgiu, pelas bandas de cá, junto com o fenômeno das galeras periféricas — grupos de jovens que se uniam em torno de uma sigla, na maioria das vezes, representando uma abreviação dos seus bairros. Ocupavam os bai- les funks da RMR. Os pixadores eram um tipo de propagadores dessas siglas pela cidade. No bairro de Beberibe, o comando mais expressivo e antigo é a ATM (Atacante Terroristas de Muros), em atuação até hoje. Não sou da primeira geração de pixadores, longe disso, comecei bem depois que os primeiros registros de pixação apareceram em Recife. Nes- se ambiente suburbano, tive meu contato inicial admirando as escritas nos muros. Depois, colocando os primeiros nomes nas paredes. Com certe- za essa foi a primeira experiência com o fazer artístico, de maneira mais consciente, mesmo ainda, nessa época, não me entendendo como artista. Com o passar do tempo, os limites territoriais do bairro foram fi cando res- tritos, outros bairros foram fazendo parte das caminhadas. O pixo me fez conhecer a cidade e suas regiões. Ocupando cada vez mais territórios, da periferia até o centro da cidade, local hostil aos jovens periféricos. A vonta- de de deixar o pixo em mais lugares expandiu os horizontes fazendo com que a cidade negada cotidianamente fosse ocupada. E mais, transformou caminhos que eram apenas passagem em paisagem. “PAREDE BRANCA, POVO MUDO” A pixação exercita o olhar e faz enxergar a cidade de uma outra maneira. Onde para alguns é apenas cinza e concreto, para os pixadores viram locais com possibilidade de intervenção, mudando, assim, nossa identifi cação com esses territórios. Rompendo nossos limites cartográfi - 22 23 cos impostos socialmente. Ressignifi cando a urbe, suas esquinas, encru- zilhadas e avenidas. Rompendo as amarras em uma atitude intrusiva, de penetrar os espaços proibidos pela sacra lei da propriedade privada. As paredes riscadas são apenas parte de algo bem maior que existe por trás, no silêncio da ilegalidade imposta pelo Estado. Engana-se quem acha que a pixação começa e termina no ato de “vandalizar” muros. Ela existe em um amplo movimento, artérias e circuitos, que promove espa- ços, encontros e relações de irmandade e, também, de competitividade. Esses espaços de atuação geram identidade e representatividade. E, nesse processo, cada pixador se olha enquanto parte de algo maior. Uma identifi cação pelo que faz. E, levando em conta toda a alienação gerida pelo capitalismo, identifi car-se como parte de algo é uma das razões do pixo, que, mesmo com toda repressão do Estado, não foi banido ou apa- gado do cenário urbano. Lembro que sempre um amigo falava: — “quando estou pixando é o único momento em que me identifi co com o que faço”. Essa frase, por si só, revela o caráter desalienador do pixo, tanto no que diz respeito ao processo artístico, quanto ao processo de ocupação do espaço público, como meio de se reconhecer e se manter vivo na paisa- gem desumanizadora das metrópoles. É lamentável que quando se levanta alguma discussão sobre pixação e arte, na maioria das vezes, os discursos se desdobram em um questionamen- to que, por trás da problematização, esconde aspectos conservadores sobre concepção artística e de aspectos sociais. E esse questionamento sempre gira em torno de ser ou não uma expressão artística. Essa problematiza- ção em torno de uma questão não deveria mais hegemonizar as discussões sobre a pixação no Brasil, já que essa expressão atua no ambiente urbano desde a década de 80, tempo histórico sufi ciente para se ter aprofundado estudos e análises sobre a temática. Também para escutar e acompanhar o desenvolvimento dessa expressão da arte urbana no cenário nacional. 24 É possível, levando em conta as especifi cidades de cada local, traçar escolas, estilos e traços característicos de um estado ou tempo histórico. Cada artista, dentro do seu período de atuação, desenvolve sua técnica, criando suas letras, que mostram seu caráter criativo e suas infl uências e transformações ao longo do tempo. O que, por muitos, é apontado como sujeira e rabiscos desordenados é, na verdade, um grande lastro de saberes e estilos desenvolvidos a partir de infl uências estéticas, desenvolvimento técnico, estudo individual e coletivo para chegar a um formato artístico para ser riscado nos muros. Só que, diferente de outras expressões e lin- guagens artísticas, o pixo surge como uma ação de transgressão e ruptura ao processo histórico de silenciamento, de negação dos espaços públicos e dos espaços privados e de afi rmação artística e territorial de populações submetidas à marginalidade política, social e econômica. “O VERDADEIRO BANDIDO NÃO FOI PRA CADEIA. TÁ COMPRANDO AMAZÔNIA E DIZIMANDO ALDEIA” Existe uma escassez de materiais e registros históricos produzidos pelos próprios pixadores. Essa escassez se aprofunda quando se procu- ram materiais das décadas passadas, onde o acesso a material audiovisu- al era algo difícil, difi culdades essas impostas pelos limites econômicos e pela falta de políticas públicas de democratização da produção visual e audiovisual. O material que se tem ou é fruto de recortes de matérias de jornais da grande imprensa, com um linha editorial quase única de apoio à criminalização e à perseguição ao pixo, ou são estudos e documentários realizados por pesquisadores, que muitas vezes reproduzem, em algum nível, o discurso do sistema opressor. Existiram várias iniciativas de orga- nização de zines ou vídeos produzidos pelo próprio segmento artístico, e esses materiais são de grande riqueza documental, mas, pelo grau de es- trutura, se encontram dispersos e pulverizados. 24 25 Muito do que resistiu, enquanto memória, foi fruto da cultura oral, onde uma geração passa para outras suas experiências, técnicas e histó- rias. Todo esse material discursivo circulando nos encontros, nos rolês... Houve uma melhoria no processo de documentação depois da massifi ca- ção da internet e do fenômeno das redes sociais. Sabemos que parte da luta pela sobrevivência de uma cultura é sua luta pelo direito à memória. Apagar os muros com tinta, perseguir criminalmente e ignorar a existên- cia da pixação é tudo parte do mesmo pacote de dominação e preservação das narrativas elitistas e higienizadoras para silenciar processos de trans- gressão e de enfrentamento com a historiografi a “ofi cial”. Diante disso, não é de se admirar que, durante toda existência da pixação, existiram ações judiciais para sua criminalização. Até 2008, o pixo era enquadrado no Artigo 63 do código penal como crime de depre- dação ao patrimônio. No mesmo ano, é aprovada no Congresso Nacional a Lei 9605 (lei dos crimes ambientais), que traz no Artigo 65 a tipifi cação do pixo como crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultu- ral. Além disso, ainda tem as leis e projetos de lei municipais e estaduais que fazem coro com a Lei 9605 e que, em alguns casos, chegam a ser mais duras. Todo esse aparato judicial esconde, por trás de um debate contra o pixo e a higienização das cidades, uma narrativa de perseguição às práticas culturais provenientes das periferias urbanas e da proteção à propriedade privada, buscando o esmagamento e o desaparecimento dos seus artistas, sendo a motivação delimitada por questão de classe e raça. São os pixadores, jovens das periferias urbanas, que sofrem per- seguição judicial e, no silêncio da madrugada, violência policial, tortura psicológica e até mesmo, em alguns casos, assassinatos. Todos os pixa- dores carregam o peso de histórias e relatos dessas violências por parte da força policial e do poder judiciário. 26 Sabemos que na cidade, no geral, dois projetos estão sempre em dis- puta. De um lado, privatização dos espaços públicos, gentrifi cação, elitiza- ção e criminalização da pobreza, da arte urbana e dos movimentos sociais. Processo esteencabeçado pelo capital especulativo e grandes construto- ras e apoiado por muitos governos e suas forças de repressão armada, que se benefi ciam das gordas verbas e fi nanciamentos de campanhas eleito- rais. De outro lado, um projeto de cidade popular, com democratização do acesso e ocupação de seus espaços; garantia do direito pleno à moradia, trabalho e lazer; fomento e incentivo ao diálogo artístico urbano e pre- servação do patrimônio arquitetônico e histórico. Dentro desse espaço de fi ssuras sociais, a garantia do direito de expressão artística é uma luta importante para construção do projeto de uma cidade popular e inclusiva. “A PIXAÇÃO É A ARTE QUE DISCRIMINARAM” O processo de apagamento e invisibilização do pixo se dá, também, em âmbitos relacionados à arte. Um aspecto disso são as narrativas nos manuais e livros didáticos do ensino da arte nas escolas e universidades. Quando muito, esses materiais falam é de grafi te e de outras expressões da arte urbana. E reforçam uma falsa dicotomia entre grafi te/arte urbana vs pixação, se apropriando de um discurso que é muito propagado pelo estado e, infelizmente, em alguns espaços artísticos, coloca as outras artes urbanas como uma alternativa higienizada e positiva, apontando a pixa- ção como algo sujo e criminoso. Quando, na verdade, a origem do grafi te remete aos mesmos princípios do pixo, onde, na rua, os artistas intervêm no cenário urbano de forma não autorizada pelo estado e pelos proprietá- rios dos imóveis, deixando suas escritas como forma de manifesto e afi r- mação artística. Outra postura bastante negativa é dos espaços institucionalizados de arte, incluindo as galerias, as mostras, as revistas especializadas, que, ao 26 27 não incorporar a pixação como uma expressão artística contemporânea, agem reproduzindo uma das lógicas do discurso e práticas conservadoras, que apaga qualquer possibilidade de discussão sobre a temática. Alguns espaços e galerias, principalmente as relacionadas a arte urbana, agem com uma outra postura. Como exemplo, temos a exposição em homena- gem ao pixador DI (em memória), sendo esse um dos principais pixadores de São Paulo da década de 90 e um dos precursores da modalidade de pixos nos prédios. A exposição ocorreu em 2016, na A7MA Galeria, em São Paulo. Essas iniciativas são muito importantes, diante do peso e da pre- sença que a pixação tem no cenário contemporâneo nacional e do neces- sário respeito que ela merece. Contudo, longe de achar que o pixo precisa da legitimação do circuito de arte institucional e mercadológico para existir, pelo contrário. Talvez sua caminhada na contramão de todas essas institucionalidades seja parte da gênese do seu espírito libertário e do seu poder transgressor, justamente por conta de sua existência estar intrinsecamente ligada ao caráter “ilegal” da intervenção artística. Porém, uma coisa não precisa negar a outra, elas podem coexistir de maneira positiva e, ao incorporar nas suas programações, esses espaços, veículos e instituições ajudariam a desconstruir a propaganda ideológica criminalizante que recai sobre a pixação. No pixo existe uma pluralidade de vozes e de visões sobre as escritas urbanas e elas todas precisam ser escutadas e visibilizadas. Esse texto é um relato pessoal de algumas experiências, vivências e opiniões que tenho sobre a pixação dentro do contexto social e artístico. Tenho noção da importância do pixo na minha formação artística e humana, quanto ela foi decisiva na compreensão da arte em que eu acredito e que me impulsionou a transitar por outras expressões, como a fotografi a, a colagem, o lambe. Mas sempre entendendo a rua como um espaço de ocupação, resistência 28 e intervenção. Pelo direito ao espaço público e à democratização da arte. “Pixar é humano”, já falava DI, e é parte da necessidade de se expressar em meio ao ruidoso caos urbano e sensibilizar nossas ações, desobediências e transgressões na urbe. CITAÇÕES: * A frase “Pixar é Humano” é de autoria do artista DI (SP), citado no texto; ** “O verdadeiro bandido não foi pra cadeia. Tá comprando amazônia, e dizimando aldeia” é um trecho da música Pixadores II, de autoria de Nocivo Shomon; *** “Parede branca, povo mudo” é uma frase de autoria desconhecida pixada diversas vezes nas paredes de diversos lugares do Brasil e do mundo; **** “Pixação é a arte que discriminaram” é trecho da música “Pixar é humano”, de Grilo 13. 28 29 Notas sobre a palavra saudade Agrippina R. Manhattan São Gonçalo - RJ Lucas Alberto Rio de Janeiro - RJ 30 E quanto mais lembro do calor que foi mais eu sinto frio. Jaloo, Last Dance, 2015 Esse texto é um ensaio sobre ausência e presença. Em 2018, escrevi um projeto curatorial para o edital Sala de Projetos do Auroras (espaço artís- tico localizado no bairro do Morumbi na cidade de São Paulo). O projeto se chamava O Frio e o Cruel e se tratava de uma exposição em dupla com Lucas Alberto, um grande artista que tenho o prazer de chamar de amiga. Esse foi um de muitos projetos dos quais fui recusada e que tiveram de en- contrar outras maneiras para circular. Porém, ele e eu existimos indepen- dente de onde estamos e, hoje, em 2020-2021 (editei e tentei editar muitas vezes esse texto), me permito voltar a ele e encontrar coisas que imaginei e que quero imaginar. O tempo é uma força curiosa. Frequentemente gosto de revisitar al- guns pensamentos ou projetos, especialmente aqueles não materializados, quando não sei para onde ir. Uma ideia ou um sentimento não fi cam estáti- cos apenas porque não os estamos olhando. Eles germinam e enraizam a si próprios e crescem, muitas vezes a ponto de se tornarem irreconhecíveis. Tenho tentado esquecer o tempo como uma linearidade e pensar nele mais como um rio, mas, independente de sua forma, sua natureza permanece um mistério incontrolável. Comecei a escrever esse texto dois dias após o enterro do meu pai em setembro de 2020. Foi inclusive o primeiro enterro no qual estive presen- te. Estou terminando em abril de 2021, 8 meses após tal evento. Lembrar desse dia ou desse projeto que escrevi com Lucas reforça a percepção do tempo como um ciclo que se encerra enquanto continua. Tenho aprendido, nesse momento, que há diversas maneiras de se lidar com a morte. Con- 30 31 versando com minha família durante o enterro, percebo como cada eu é um universo e, desafi ando o impossível, existe o encontro. Independente das diferenças etárias, religiosas e subjetivas, a morte é mistério que não se entende, mas se sente no corpo, na lágrima e no âmago. De alguma for- ma nos aproxima e põe em perspectiva tudo o que não é o aqui e o agora. Uma das pontes em que eu e Lucas nos encontramos é o nosso inte- resse em ler certas experiências através da linguagem. Escrevi esse texto a partir de uma conexão que tivemos em 2018 quando trabalhamos juntas em Niterói. Lucas foi fundamental no meu desenvolvimento como artista pois compartilhamos muitas coisas, inclusive nossas diferenças. Para essa exposição, conversamos sobre como nossas duas pesquisas esbarravam com o medo de morrer e de que pessoas à nossa volta morressem. Quando escrevi esse texto, já havia experienciado a morte de minha mãe, agora voltar a ele após a morte de meu pai me coloca de novo em con- tato com o medo. Nessa primeira experiência de trauma em 2008, quan- do estava com 11 anos, entendia a morte atrelada a um discurso teológico evangélico. Nascida e criada na igreja, para mim parecia que Deus esta- va me punindo por ser quem eu era e, nessa contradição, me mostrando que não é porque ele era meu pai que necessariamente deveria me amar. Crueldade, em uma das defi nições segundo o dicionário, signifi ca o prazer em fazer o mal. A ideia de mal que escolhi abordar aqui é também pelo dicionário defi nida enquanto: aquilo que machuca. Por muito tempo, após a perda da minha mãe, imaginei a morte como castigo ou maldade divi- na. Maspensar sobre o mal e bem é cair na minha criação evangélica e acreditar que o mundo pode se encaixar no binarismo, sintoma da igno- rância da normatividade. Arrogância minha pensar que consigo alcançar o incompreensível. Mas como artista sigo tentando. Agora, não sou mais evangélica e luto contra minha arrogância em julgar a fé da minha família, para encerrar em minha própria espiritualidade a pretensão de achar que entendo isso que sinto como deus. 32 No enterro, minha família me apresentou um louvor evangélico cha- mado Descansa, sobre pensar a morte como um repouso. Percebo como quando a fé se manifesta em música as emoções fl uem em outro vínculo de tempo. Como os louvores acalentam, me lembro da paz que senti ouvin- do EU NÃO VOU MORRER de Ventura Profana pela primeira vez. Quando Ventura nos convoca para nos armarmos com poderes espirituais e em face do vale da sombra da morte, aprendi com ela o poder de Deyze, e as- sim deixei morrer o deus que me queria ver sofrer e cair morta. Gostaria de poder dizer que não temo mal algum, mas seria mentira (ou um dese- jo?). Entendo hoje essas relações que vão para além do tempo e da lingua- gem como evidência desse campo que nos aproxima. No cemitério onde meus pais estão enterrados há uma faixa que diz: Saudade sim, Tristeza não. Saudade é uma das minhas palavras favoritas no português pois ela é intraduzível. Impossível transportar para qual- quer idioma o gesto de nomear esse sentimento, ainda que qualquer outro povo sinta saudade. Gosto de pensar que as relações se estabelecem em uma distância análoga à palavra e a seu signifi cado. Entre a saudade e a palavra existe um lugar que não se alcança, mas se sente. Nesse sentido, o que se pode extrair dessa conversa é a certeza de que as coisas existem para além de nós, ainda que nos afetem. Quando pensamos a exposição como uma conversa de nossas sauda- des, lembrei de um fi lme que fala de um livro que expõe como o desejo pode ser algo difícil de se lidar. Uma obra que cita um livro que cita uma peça. Cada passo de tradução se dá numa transformação. E eu, que amo mais os títulos que os livros, me encanto com a poesia que as imagens fazem e sinto a necessidade de fi gurar o que sinto nesse texto agora. Aceitar a complexidade das emoções como parte inevitável da experiência de estar viva tem me ensinado a ter coragem. Encaro a morte como um desejo de não esquecer e, por isso, intencio- no lembrar desse encontro que nunca aconteceu. Pelo desejo de tantos en- 32 33 contros com meu pai que não aconteceram. Recentemente, descobri que meu pai sabia que me chamo Agrippina. Talvez em algumas esferas esses encontros aconteceram e acontecem, ainda que a linguagem não dê conta. Paro por aqui enquanto dou conta. Compartilho o texto que escrevi e que Lucas escreveu na esperança e na certeza de não estar sozinha. Sobre o frio que sigo sentindo. Projeto 2018 O Frio e o Cruel Curadoria: Agrippina R. Manhattan Sangue e pele em simplicidade e víscera se colocam para dentro da Gale- ria. O espaço branco é infectado pelo vermelho do sangue e coberto pela nudez do celofane. Lucas Alberto macula o corpo que, ainda vestido, aparece nu. A trans- parência violenta do celofane expõe sem pudor o corpo do artista em toda sua fragilidade. O corpo em contrapartida responde ao celofane com a violência da vida. O celofane e o durex se desmancham com o movimento constante da respiração, ou com qualquer tentativa brusca de movimento. A roupa não se encaixa em um corpo vivo sem que seja destruída e nenhum corpo entra nela sem ser violentado. O perfume opera de modo semelhante. Sua fragilidade se dá pela de- licadeza do material. Frágil recipiente que contém o sangue. Pode quebrar em apenas um instante. Ele se origina da violência em extrair o sangue do corpo. Concomitantemente, a visceralidade do sangue infecta o vidro. O vidro contém o sangue ainda quente recém-saído do corpo. A roupa se protege em sua solidão, ela permanecerá intocada até o fi m da mostra, se- 34 guirá intacta, mas sem nunca abrigar um corpo, sua mais plena realização a mataria. O perfume pede para ser manipulado, ele encara seu destino tentando se manter vivo pelas mãos que o manuseiam. Ele seduz o espectador pois precisa dele. A comunhão só partilha a morte. Ambos coabitam o espaço expositivo, silenciosos e pacientes. São dois objetos destinados a perecer. No fi m da exposição, o perfume terá coagu- lado e a roupa será destruída ao ser usada pelo artista. O Frio espera a morte O Cruel pergunta: quem morre comigo? Comunhão, 2017 Perfume, 15 cm x 5cm x 8 cm - Vidro, água deionizada, álcool de cereais, propilglico, fi xador e sangue 34 35 Comunhão consiste em um perfume feito com meu sangue. Ele é e está na galeria à mercê de quem quiser usá-lo. Ele vem do meu incômodo enquanto artista e do desejo de explicitar os absurdos envolvendo trabalho e remuneração no campo das artes. Pensei enquanto jovem artista que ainda ganha quantias mínimas (quando ganho), pensei enquanto trabalhadora que deve pagar para trabalhar, pensei no meu pai. O desejo era me vender para quem quisesse usar. Quando mostrei o trabalho me veio a questão: era sangue travesti. Nunca serei uma artista, serei sempre a travesti. Pois é por ser Agrippina que me permito ser feliz. É como pago a dívida comigo mesma e lembro da minha dívida com o mundo. Nunca serei artista onde não puder ser travesti. É a promessa que me faço. O que era comunhão passou a ser lido como prostituição. Meu trabalho é lido antes de o verem só por quem eu sou. De certo modo, foi interessante que isto me puxasse de volta para o chão. Percebi nisso dois aspectos fundamentais do meu trabalho: a palavra e o outro. A palavra que me cerca e o outro que me decifra. Mas corpo e sua visceralidade (o sangue) jamais estão subjugados ao poder da palavra. Agrippina R. Manhattan 2018-2020 36 O Frágil e a Fúria A ideia é confeccionar a partir do meu corpo essa roupa com papel celofane e durex, vesti-la e mergulhar no mar em ressaca. Antes disso, essa roupa tentava se compor como uma peça de identidade, uma roupa que pretendesse desnudar. O material frágil rapidamente se partia ao vesti-la, me lembrando da resistência do corpo, da verdade, da imagem nua. Depois de alguns processos, o nome anterior “Finalmente você pode se apaixonar por mim” foi substituído para “O Frágil e a Fúria”. Lucas Alberto, 2018 O Frágil e a Fúria, 2017 - Vestimenta, Tamanho P. Papel celofane e Durex 36 37 Isto é arte cotidiana Ou pode vir a ser em 7 minutos. Dedé Santaklaus Belo Horizonte - MG Diulia Fialho Belo Horizonte - MG Efe Godoy Sete Lagoas - MG 38 Por força de um destino ou não, fomos sujeitades a esta modalidade de vida, na qual banhos de sol para alguns é privilégio. Aqui, na Rua Cristal, na Vila Cristal, às 15:17, “o sol tá rachano”. Talvez a energia solar alimente corpos cansades de tanto trabalho da mente. Algumas das vezes nem re- munerades. Escrever este texto a três cabeças é um encontro cotidiane de pen- samentos constantemente provocades por essa condição. Essa é a única opção para não enlouquecer em 2020? Uma garrafa térmica preta, um cinzeiro azul translúcido usado, um cacho de uvas roxas pela metade, 2 celulares, biscoito, isqueiro, e umas plantas num pote de vidro com água. Dentre os objetos ordinários, há vida. 3 seres humanes, com a boca seca, refl etem sobre morar no planeta água. Por hora, gritam esperando o auxílio emergencial ao som da reforma es- tridente do vizinho. Treinam passinhos na área comum entre as casas. Se o mundo tivesse acabado, eu não estaria aqui; diz Dedé Santaklaus. Efe comenta: Isso pode ser letra de música. Enquanto Diulia coloca mais um celular sobre a mesa pra coerência de continuidade com vídeo que fi lma prum documentário intitulado: “arte cotidiana”. Agora deveríamos discorrer sobre o que é arte cotidiana, mas inter- rompo por instantes, para ler as palavras até aqui escritas pro casalde amigues da vila que se juntam à nossa presença. Um silêncio toma conta da espera por uma voz que lê com empolgação. Todes escutam, agora so- mos 5. O texto fi nda, mas não acabou, isso é só o começo. Misturar vida com o fazer artístico é algo que permeia muitas vidas. Estamos falando de muitas gentes. Tem alguém fazendo arte agora sem perceber que está fazendo arte agora. Pode ser que daqui a 7 minutos ve- nha perceber que, anterior a esses 7 minutos, estava fazendo arte agora. 38 39 Por que será que agora quem fazia não sabia que estava fazendo arte agora? Ao longo de toda uma vida, todas as ações e elementos que se mani- festam cotidianamente explodem num desenvolvimento do fazer artístico. Ao longo de sua vida, isso sempre esteve rolando. Presente. A formação de sujeito dentro desse planeta induz a reduzir o ser a não artista, colocando esse sujeito artista num lugar diferente, inalcançável. E se mudássemos a chave para a construção de um conceito sobre SER e EXISTIR? Dentro do que você faz, na sua rotina, você identifi ca alguma ação que te torna artista? Não? Mesmo assim, é arte cotidiana. Estamos em constante processo. Cada estágio da vida apresenta desafi os importantes, primordiais para nosso desenvolvimento. Isso acon- tece independentemente da sua vontade. O meio infl uencia em quem você é de verdade? Os fatores biológicos, estruturais, sociais e históricos aju- dam muito a construir a sua narrativa, mas não a determinam... Precisamos sempre lembrar que estamos em constante movimento. A gente pode estar fazendo arte agora. Só sobrevivendo. Sem entender o que está de fato acontecendo. Então, a gente está fazendo arte agora. A arte pode ser cotidiana. Você está fazendo, e pode vir a fazer. Você não está pesquisando até que algo te leva a pesquisar. São lapsos de segundos que mudam tudo. Isso é arte cotidiana. E pode vir a ser. Este texto não segue regras ortográfi cas gramaticais atuais já que en- tendemos que a linguagem está viva e visamos a inclusão de gênero em cada palavra proferida. 40 3 pessoas que se interessam em expor ideias reais sobre aconteci- mentos no campo da arte/vida, dentro do campo multidisciplinar artístico atual. Diulia Fialho, Dedé Santaklaus e Efe Godoy são vizinhes e habitam a mesma vila. Vila Cristal. A concepção desse texto é resultado de um delírio coletivo de 3 artis- tas sob a condição de quarentena. 40 41 Pertencimento Jack Freire Petrolândia - PE 42 “Pertencimento” é uma série de registros dos indí- genas Pankararus em seu culto aos Encantados (entidades religiosas que cultuamos na nossa aldeia). As fotografi as mostram os indígenas dan- çando o Toré com os Encantados. No meu primeiro projeto fotográfi co sobre meu povo e seus costumes, tento captar de forma delicada a força e a energia dessa relação. 42 43 46 Anti-corpus Marina Soares Gravatá - PE Eduardo Romero Olinda - PE 46 47 Série em Fotograma — Revelação química em preto e branco. Realizada durante o período de quarentena con- tra o covid-19. As imagens fazem referência a orga- nismos do corpo humano, que ora são vistos como como protetores e ora como facilmente destrutíveis. 48 48 50 50 51 52 CORPOS INVENÇÕES DESLIMITES 52 CORPOS INVENÇÕES DESLIMITES 52 53 Peso Expandido Táticas Móveis em Arte Contemporânea Leo Bardo Caçapava - SP Curitiba - PR Matheus Henrique Curitiba - PR 54 Isto é um bunker. Uma barricada que se expande e se desmonta. Em cacos, como estão nossos corpos, refazem-se juntas. Um emaranhado de lógicas de criação que se encontram aqui, nesta barricada. A guerra interna é acidental, renova-se, explora novas cartografias debaixo do lodo do Atlântico, movendo entre estruturas arcaicas, novas tecnologias do corpo, novos naufrágios, o encontro de símbolos antigos com novas informações permeadas pela arte contemporânea. Atravessando a era da eterna dúvida, de olhos bem abertos no escuro, de olhos bem abertos para assimilar este atentado fracassado. 621 toneladas de cargas de laranja afundaram na Baía de Angra. Iso- cronicamente, a metralhadora é inventada. As tentativas de mediação entre os trabalhos de Peso Expandido n. 01 encaram a exposição como uma série de acontecimentos a ocuparem a Casa Selvática numa mis- celânea entre tecnologia, crença, identidade, hibridismo, multiplicidade, gambiarra, magia e intuição. Das perspectivas históricas deslocadas através dos trabalhos, pode- mos apontar práticas, conceitos, poéticas e materiais que, aproximados contextualmente, abordam a ética da precariedade infi ltrando nos jogos de poder suas novas possibilidades de existência, no que nomeamos rede- sign de símbolos do poder. Uma farsa, uma burla, uma forja - solo hay que mostrarse como. 54 55 PESO EXPANDIDO #2 Desta imagem que possuo do futuro e vejo tremelicar entorpecida, como uma ameaça- dora bomba verde e elétrica. Em sua palestra Precarious Life (Estocolmo, 2011), Butler empenha- se em elaborar um pensamento de uma nova ética, a qual ela chamará precariedade. A apreensão do mundo, segundo esta perspectiva, manifesta-se como potência no intuito de avolumar uma existência que se faz precária, na qual estão submetidas nossas subjetividades. As subjetividades cuirs ou transviadas, como argumenta Berenice Bento. Além da força epistemológica da palavra em si e toda a cosmologia que envolve o cenário, muito cara a essa plataforma, a precariedade ganha força como debate fi losófi co. A autora identifi ca precariedade como “o estremecimento de tudo o que é vivo, o êxtase da pele que ferve como brasa perante o toque do outro”. Peso Expandido nasce independente e auto-gerido. Rasuramos o fantasma do passado e escrevemos por cima dele. Na somatória entre o desenvolvimento do projeto até a realização das duas primeiras edições, somos 15 artistas envolvidos nesta plataforma — vindos dos mais diversos lugares do Brasil para avolumar as parcerias entre locais de criação emergentes, como a Casa Selvática e o PF espaço de performance art. A construção dessa plataforma enquanto mais uma experiência heterotópica propõe a partilha como atravessamento subversivo das narrativas de/em poder, prazer e controle, apresentando nesta edição os 56 deslimites técnicos, representativos, geopolíticos e culturais das obras como um manifesto imagético entre história e fi cção. O que temos, na realidade, são lugares de diferença com seus próprios discursos, ligados a heterotopias semelhantes entre si e inseridas na contemporaneidade como marcadores do anacronismo entre o passado, o presente e o futuro. A pressão da sola da tua bota sobre nossas cabeças, O intuito é que seu escalpo vire minha toalha de banho, retiro de ti os ossos da cabeça, um a um. Junto deles, sua capacidade de pensar com foco e precisão serão ofuscadas pela inserção de um nano chip chamado temor. É a identificação dos modos da constru- ção ficcional aos modos de uma leitura dos signos escritos na configuração de um lugar, um grupo, um muro, uma roupa, um rosto. É a assimilação das acelerações ou desacelerações da linguagem, de suas diferenças de potencial entre o insignificante e o supersignificante, às modalidades da viagem pela paisagem dos tra- ços significativos dispostos na topografia dos espaços, na fisiologia dos círculos sociais, na expressão silenciosa dos corpos. A “ficcionali- dade” própria da era estética se desdobra assim entre dois polos: entre a potência de significa- ção inerente às coisas mudas e a potencializa- ção dos discursos e dos níveis de significação.1 1 - RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política; tradução de Mônica Costa Netto. - São Paulo: EXO experimental org.; Ed.34, 2005. p. 55 56 57 Nossos corpos políticos não são uma metáfora. Somos criações tan- gíveis, bunker, barricada, máquinas de guerrear. Geradoras de imagens com potências de futuro, sem tradução simultânea, em um mundo em que as pessoas majoritariamentenão estão capazes de ler e/ou se relacionar dentro dos mecanismos de controle que regem as regras da diferença e, portanto, da convivência e da performatividade cotidiana de quem corta, desmancha e refaz estes cacos que chamamos de tempo de vida. Elektra, em seu enunciado, discursa diretamente da América Latina do ocidente. No século 21, o que realmente importa são os espaços — entendidos aqui como um posicionamento, um lugar de movimentação, onde podemos jogar com nossas imagens poliglotas. Um jogo sem prestação de contas. Aja coração - Fernanda Ricci - 2019 58 Alô, Aqui Fala Elektra - Patricia Cipriano - 2019 58 59 PESO EXPANDIDO #3 Há em todo uso da câmera uma agressão “implícita” (S. Sontag) A IMAGEM COMO BOMBA O aprofundamento na investigação do experimentalismo na arte con- temporânea nos levou a reconhecer os intercâmbios em realização com outros artistas e casas de cultura do país e da cidade de Curitiba como uma produção imprescindível e urgente de novas memórias, arquivos e realizações, a fi m de reforçar a cultura visual como pesquisa no ambívio de produções que consideramos urgentes nos campos da ação, do objeto e da tecnologia. Para tanto, criamos juntos a plataforma itinerante em artes visuais nomeada aqui como PESO EXPANDIDO - Táticas Móveis em Arte Contemporânea, que nasce deste exercício independente e auto-gerido de dois artistas testando limites técnicos, representativos, geopolíticos, cartográfi cos e culturais. Resgatam ao imaginário do contexto histórico atual com a ética da precariedade, numa tentativa de releitura das imagens do mundo através de suas proposições, subvertendo narrativas em contextos de poder, prazer e controle. A web como mecanismo de divulgação, circulação e alastramento dos trabalhos das artistas presentes nesta edição aparece como solução plural para uma livre distribuição de conteúdos artísticos, entendendo o ambiente virtual como um espaço de apreciação, criação, socialização e experimentação identitária. 60 CUANTO LE GUSTA? O museu é o mundo? O que é caráter político? Negar o poder ou tomar o poder? Para pensarmos sobre tantas perguntas, é necessário contextu- alizar e nomear uma série de fatores sociais e culturais que compõem a experiência de cada pessoa no ambiente em que vive e de quais condições, dentro do que chamamos de sociedade, ela dispõe para sobreviver. O alargamento da presença e a simultaneidade da existência, a pos- sibilidade de curar feridas de/em espaços adversos apresentam aqui os sintomas das profanações iconoclastas presentes nas obras ou contra- postas a elas no uso exacerbado do idealismo das imagens hegemônicas, tornando-as fontes inesgotáveis de sentido histórico através da burla. No momento em que uma civilização tem sua sensibilidade pautada pelo estado iminente de guerra, tomam lugar as tecnologias da autonomia, as práticas do conhecimento construídas a partir do próprio processo cria- tivo, no esmagador limiar entre vida e vídeo. Aqui nós apresentamos o mapa do nosso bunker, dado a partir do enfrentamento das imagens ou as imagens como bombas. Soilse coirpe - Semy Monastier - 2020 60 61 Se jesus cristo morresse nos dias de hoje com ética, em toda coroa ao invés de espinhos, passaria uma corrente elétrica - Yuri Tripodi - 2019 62 PESO EXPANDIDO #4 TÁTICAS MÓVEIS EM ARTE CONTEMPORÂNEA UMA FACA, UM INVENTÁRIO, O MISTÉRIO No momento em que a civilização tem sua sensibilidade pautada pelo esta- do iminente de guerra tomam lugar as tecnologias da autonomia, as práti- cas do conhecimento construídas a partir do próprio processo criativo, no esmagador limiar entre vida e criação. Com o intuito de borrar fronteiras, existimos através das fendas que a experiência da arte proporciona. Fron- teira ou linha de fuga? O que a voz quer dizer? Peso Expandido 4 pensa abordagens experimentais para a poesia e a arte, manifestadas no limiar entre som e ação. A relação da cidade na utopia punk dos trópicos com a arte e a relação da voz como memória delineia a poesia espacial recém pousada neste chão que ainda treme. Podemos entender as experiências sonoras aqui propostas como fantasmagorias sobre o silêncio, sendo esse último, na maioria das vezes, sentido a partir do som que escapa do exterior, ao barulho da cidade, um carro se distanciando, um latido ao longe ou uma ave dando início ao dia. Essa construção de silêncio atua em nossos corpos colocando a noção de tempo adotada pela modernidade em conformidade com o espaço, expondo sua íntima ligação no que diz respeito aos ruídos, às pessoas e às coisas. A atitude instalativa através do pensamento criativo funciona em nossa proposta curatorial através do desejo, unir o som e o objeto numa ação posta à mesa. Um prato de frutas, um livro, uma faca, um inventário, o mistério entre o som e a arquitetura, a transa do som com o espaço entre nós. 62 63 Terra. Rocha. Concha. A materialidade daquilo que tem sido visto em Peso Expandido age diretamente no sintoma do que chamamos a imagem como bomba, partindo de uma investigação não binarista e fragmentada, pensando a vida in progress e a tentativa bakuniana de entender a estrutura da razão: a liberdade. Inventariar signifi ca somente escolher, reco- lher, nomear, numerar, classifi car e deixar à dispo- sição. Esta concepção do inventário como gesto burocrático pressupõe, no entanto, o seu oposto: outra escritura, superior, na qual a elaboração depende de algo além dessa simples reunião de ele- mentos. O inventário, portanto, sob essa concepção, excluiria o procedimento que poderia definir algo como artístico. (PIMENTEL, Leandro. O inventário como tática: a fotografi a e a poética das coleções. FAPERJ, 2014. 272 p.). Na cozinha experimental da Bauhaus tupiniquim, sobre as ruínas de todas as igrejas e estados, escrevemos. Um prego que nunca antes esteve ali, agora está. Um corpo que nunca antes esteve ali, agora está. Entre memória e escombro, o fantasma que aparece para emaranhar os sentidos é, também, um campo magnético onde percorrem projéteis sônicos que deixam suas bases de pouso com o propósito de incitar sinapses nervosas em sua cabeça. Registros fotográ� cos Francine Neves - Síncrona fotografi as - Marcos Guiraud 64 Possíveis pássaros ao longe - Mariana Barros - 2020 Jam Apocalíptica - Jo Mistinguett - performance art - 2020 64 65 Entrevista com Oura Aura Nascimento Guilherme Moraes Recife - PE Oura Aura Nascimento Recife - PE 66 66 67 Entrevistada para a Propágulo N° 11, Oura Aura Nascimento vem colabo- rando intensamente com o Coletivo ao longo de sua atuação. Integrante assídua do Clube de Leitura e Debate da Propágulo, foi também uma das curadoras da quarta edição da revista. Enquanto corpo sensível e que há muito se reconhece em meio a uma mescla de vida, obra e ritual, em seu trabalho pesquisa performance, videoarte, fotografi a e instalação. Esta conversa é resultado de mensagens de texto enviadas por Gui- lherme Moraes e respostas em áudios compartilhadas pela artista ao longo de quatro meses entre o fi m do ano de 2020 e o início de 2021. Guilherme Moraes - Em meados de 2017, quando começamos a dar início aos processos de concepção da revista Propágulo N° 1, você foi a primei- ra pessoa que entrevistamos. Lembro de ter sido uma conversa relativa- mente curta, mas surpreendente, no CAC/UFPE (Centro de Artes e Co- municação da Universidade Federal de Pernambuco). Eu acompanhava Nathália Sonatti, que te fez algumas perguntas, e, a partir delas, escreveu a entrevista que abre a nossa edição impressa. Gostaria de começar perguntando: como foi esse encontro para você? Oura Aura - Eu sempre penso que a minha memória não é um arquivo que consigo acessar tão facilmente. Acesso algumas coisas que de alguma forma fi cam, mas são poucas, pouquíssimas. Vou tentar elabo- rar a partir dos dados que ainda me restam: quando paro para pensar nisso, lembro diretamente do fato de queeu não me entendia, não me identifi cava enquanto artista e, de alguma forma, tinha até um certo desdém por essa identidade, porque tinha a ideia do artista a partir de outros padrões. Eu fazia o que fazia da vida, como o próprio texto de Nath traz, eu só vivia. Quando me vi diante da possibilidade de estar 1 - Participaram deste ciclo: Abraã o Sednaref, Oura Aura Nascimento, George Teles, Guilhermina Velicastelo, Lucie Salgado, Luiza Branco, Magris, Marcela Dias, Má rio Bros, Nathê Ferreira, Sofi a Carvalho, TheFurmiga e Risco! Grupo Experimental de Desenho (Bruna Rafaella Ferrer, Demé trio Al- buquerque, Heitor Dutra, Valeria Rey Soto e Vi Brasil). 68 contribuindo para uma revista de arte, lembro que me sentia contra- ditória diante desse primeiro contato. Quando a gente se conheceu, tudo começou a mudar, a coisa começou realmente a acontecer para além das minhas projeções e foi quando tu começou a contar o que pretendia ser a Propágulo, que ainda não existia de forma conclusiva. Tudo começou a mudar. Comecei a querer participar, a querer me ati- var de maneiras a conseguir falar, a conseguir trazer para as palavras — outra coisa que eu tenho forte em minha memória é que as palavras não eram um lugar em que eu me sentia confortável. Quando a gente se encontrou fi nalmente para a entrevista foi interessante, porque eu tinha muito medo daquele momento. Sentia incômodo em ter me com- prometido a falar, entende? E acabou sendo muito interessante con- seguir me escutar, percebendo o interesse de Nath em tudo o que eu estava trazendo. O meu fazer não era algo que facilmente se colocava e se reconhecia enquanto um fazer artístico mesmo. Eu tentava dei- xar isso claro. GM - Na entrevista, você contou que desde criança sentia uma agonia por querer se transformar, querer mudar sua imagem. A partir disso, con- tou que sua aparência, sua casca, como você constantemente se referia a quem era por fora, sempre se metamorfoseou muito, embora ainda não entendesse o que era. Nas suas palavras, a adolescência te fez entender que poderia se transformar, ser alguém a mais do que sempre foi, mais que humana até. Como você se relaciona hoje com esses pontos? O que a ideia de mudança signi� ca atualmente? OA - Desculpa [em demorar a te responder], eu entrei em um buraco profundo nas últimas semanas. Quando tu me mandou essa pergun- ta, já pensei em alguns textos que tinha escrito durante esta quaren- tena. Realmente textos sobre escrever para não morrer ou para me matar. Escrevendo, tomei consciência de que tinha passado da minha própria expectativa de vida. Eu lembro que tinha uma crença, 68 69 na época em que dei a primeira entrevista para a Propágulo, de que eu iria morrer antes dos 20. Acreditava que ia morrer aos 19, porque eu não conseguia projetar vida para mim além daquele período. E, por isso, acreditava que tinha que transmutar com tanta intensidade, como se eu tivesse que aproveitar toda oportunidade de experiência em um curto período de tempo por não visualizar um futuro para mim. Foi com a chegada dos 20 que percebi que eu queria ficar velha de corpo, sabe? E tudo isso fala sobre como estou lidando com a mudança hoje em dia. Antes, eu sentia que tinha que experimen- tar o máximo de mudanças possíveis nesse corpo, mas chegou o momento em que eu desafiei meu próprio princípio de transmu- tação. Eu não morri por escolha minha. Eu não me deixei morrer. Posso te ler esse texto, por mais que eu não acredite que ele seja uma resposta para a pergunta, tem muita coisa que pode te situar sobre como é que eu tô me sentindo agora, porque eu não tenho transmutado tanto o meu corpo. Nesse texto, tem um momento em que eu falo: “Hoje, aos 23 anos, eu continuo desejando a morte. Hoje, aos 23 anos, eu continuo dese- jando a vida. Hoje, aos 23 anos, eu percebo que não sei mais morrer. E, hoje, aos 23 anos, eu percebo que não sei mais viver. Confi o na decisão pela não-morte, mas agora eu desconheço a vida.” Eu tenho enfrentado uma maneira estranha de lidar com o fl uxo para trans- mutar, sabe? Se eu tô sabendo morrer eu não tô sabendo perceber isso, entende? Descobri, há 3 anos, que eu tenho que inventar a vida agora, porque o meu movimento “natural” é de morte. E agora não preciso mais me inclinar a produzir morte, eu agora preciso me esforçar para produzir vida, e isso é mil vezes mais complicado. Eu vou ler os textos pra tu. 70 Tem uma coisa anotada aqui em cima, eu me perguntando “Eu quero ser um corpo que está apodrecendo ou um frame de luz, a luz que o anima?”. Tava me questionando nessa época sobre a morbidez do corpo. Um dia desses eu me deparei com uma frase que era “O corpo sabe mais sobre a morbidez do que a consciência”. E eu confi o muito nisso. [lendo o texto] “Eu já havia morrido antes, no outro corpo. Decidi modifi car o rumo químico que este corpo estava tomando por impo- sição natural. Agia em reação de enfrentamento. Sabia que não era a solução para o meu problema fundamental. Não sei se fugia do meu problema ou se eu só estava produzindo mais um experimento (mental, social, pessoal, corpóreo, material...) na intenção de tirar conhecimento dos sentidos de viver num corpo que morre. Talvez eu tentasse produzir outro tipo de morte, que não fosse a morte da testosterona. Eu sempre soube que não encontraria a mim mesma mudando a forma do meu corpo, eu só não pretendia me perder fazendo isso. Venho me perdendo. Não me reconheço e isso nada tem a ver com a forma do meu corpo. Não reconheço a voz dentro de mim. Não reconheço o sentido, o rumo, o rumo, que é a única coisa que me fez acreditar em verdade. [...] Eu estou derretendo com a nocividade das doenças que adquiro no mundo. Um corpo que tinha os planos de morrer, aos 20 anos decidiu viver até fi car velha de corpo. Aos 20 já era velha de mente e o seu espírito já não era seu. Era eterno. Já havia nascido velha. Um corpo que tinha como norte a recente morte e percebeu que essa morte era mais uma de todas as que trouxeram até o tempo desta percepção. Como viver além da expectativa de vida? Sim, quando internalizei que eu não vou mor- rer, que eu vou viver, eu contradisse não somente o mundo, como a mim mesma. Aos 19 eu comecei a confabular maneiras de viver sem fi car no tempo da morte jovem. Hoje, aos 23, eu continuo desejando 70 71 a morte. Hoje, aos 23, eu continuo desejando a vida. Hoje, aos 23, eu percebo que não sei mais morrer. E, hoje, aos 23 anos, eu percebo que não sei mais viver. Confi o na decisão pela não-morte, mas agora eu desconheço a vida.” GM - Em “Uma noite sem lua”, Castiel Vitorino2 diz: “E se eu abando- nasse todos vocês? Talvez a escolha seja a de viver a completude do híbrido e não mais o binarismo da polarização. E se eu abandonasse tudo, tudo isso? E se eu abandonasse a linearidade e assumisse a encru- zilhada? Já não me importaria em pensar em quantos anos eu tenho ou poderia ter, porque os que já tive nunca acabaram.” Gostaria de saber um pouco mais sobre essa ideia de já ter nascido velha, de ter um espírito eterno. Em nossa primeira entrevista, você disse: “Quando eu vejo algum elemento que eu me apaixone, eu sinto a necessidade de me fundir a ele. Não é colocar em mim e usar como adorno. Eu sinto vontade de ser. Ser. Isso é uma grande frustração, mas o que me move também.” Talvez a gente esteja conversando sobre um turvamento entre vida e morte, né? Sobre um encontro entre efemeridade e perenidade (algo que Daniel Lie3, artista com quem estamos trabalhando em uma nova 2 - Castiel Vitorino Brasileiro (ES - 1996) é artista visual, macumbeira e psicóloga (CRP 06/162518) formada em Universidade Federal do Espirito Santo. Atualmente mestranda no programa de Psicolo- gia Clínica da PUC-SP sob orientação da Profa. Dra. Suely Rolnik. Vive a macumbaria como um jeito de corpo necessário para que a fuga e o descanso aconteçam. Dribla, incorpora e mergulha em sua ontologia Bantu, assumindo a cura como um momento perecívelde liberdade. 3 - Daniel Lie é artista indonesiane-pernambucane, transgênere, nasceu em São Paulo e atualmente vive um processo nômade. Em seu trabalho o tempo é o pilar central de sua refl exão. Desde a memó- ria mais antiga e afetiva - trazendo histórias familiares e pessoais - até o tempo das coisas no mundo; o período de uma vida, e a duração dos estados dos elementos. Em sua pesquisa, o olhar é voltado para tensões e tentativas de quebrar binaridades entre ciência e religião, ancestralidade e presente, morte e vida. 72 edição da Propágulo, também investiga muito profundamente). Falo isso em diversos âmbitos, desde uma problematização da crença de um corpo individual, único, mas que na verdade é um grande conjunto de organismos, de colônias, que é o corpo humano, esse corpo que “morre” e apodrece em mais vida, esse corpo que não termina mais em si, que se edita e se complementa à sua medida. Talvez estejamos vendo, sim, um derretimento, e talvez a fusão com o que te apaixone seja uma tomada de consciência de uma presença que é muito maior que o tempo. Talvez você não esteja se perdendo, apenas se espalhando… OA - Esse impulso de fusão é o mesmo impulso de retorno. Para mim seria um magnetismo de contração. Pensando em escalas univer- sais mesmo, na expansão do Universo, acho que o impulso é sempre de se retornar. Essa questão da fusão está comigo desde o começo, né? A coisa do tornar-se o outro se aplica em várias fases do meu trabalho, da minha vida, por exemplo quando eu tinha a necessidade de me fundir a uma peça de roupa, a um sapato ou enfi m, era o que me fazia criar essas peças. Na época que eu performava em fes- tas, eu criava um novo corpo para criar potência. Eu sempre acre- ditei muito na potência que se cria quando as imagens que habitam minha mente tomam forma no meu corpo. Isso acontecia muito no começo, quando eu me montava, me vestia a partir de roupas, tintas e plantas. Tudo isso foi se modifi cando, mas eu percebo que o prin- cípio permanece. Esse é o mesmo princípio que me faz me enterrar, me tornar terra, quando por exemplo no trabalho com Flora Negri4 em 2018 em que eu trazia terra para o meu corpo por querer estar coberta dela. No momento em que produzimos isso, encontrei, pelas vias da montagem no meu corpo, a possibilidade de trazer essa terra para cobrir a minha pele. 4 - Flora Negri (PB/PE - 1995) é fotógrafa nascida em João Pessoa e crescida em Recife. Atualmente vive e trabalha em São Paulo - SP. É uma das entrevistadas da Propágulo N° 3. 72 Tentativas de Retorno - 2020 Fotos por JEAN 74 Já em Tentativas de Retorno5, em 2020, eu já tenho o meu corpo alte- rado pela transição hormonal. É uma outra alteração que faço nesse corpo para poder vivê-lo, para poder tornar a minha imagem mate- rial, torná-la física. Neste trabalho a minha intenção foi me cobrir de terra completamente, não mais produzir uma imagem específi ca. Eu não queria que fosse tão visual, sabe? Eu não queria que tivesse um apelo visual tão forte, queria que fosse sobre o ato de cavar um buraco e me enterrar, e foi o que tentei deixar explícito dessa vez: um ato. Talvez o ato de fusão, de retorno, fi casse mais explícito nesse trabalho ao invés da beleza. Era o que eu fazia, sempre produzia fotografi as das montações que eu fazia no meu corpo, e elas sempre tiveram muita potência imagética mesmo e, muitas vezes, eu sen- tia que para a minha demanda elas não me satisfaziam. O problema que eu via era que as fotografi as carregavam um aspecto às vezes belo demais, sendo que a beleza estética não era tanto o meu ponto. Em Tentativas de Retorno eu pego o gesto e repito ele. É um outro corpo que está fazendo essa ação agora, é um corpo que transicio- nou e essa transição só foi possível por conta das quebras que a arte possibilitou na minha vida. Ou seja, esse corpo transicionado a partir do hormônio só existe por ter transicionado a partir das ima- gens, eu permiti que essas imagens tomassem forma no meu corpo e me ensinassem que meu corpo é potente para que eu viva nele. “O corpo sabe mais sobre a morbidez do que a consciência” — Acredito que isso me norteia muito. O meu corpo tem um saber muito maior do que eu consigo compreender. 5 - Imagens de JEAN e montagem de vídeo por Tiago Lima. Esteve presente no Festival MARSHA! ENTRA NA SALA, realizado pela Coletividade sociocultural de produção artistico-pedagógica, afetiva e política composta por pessoas trans e travestis: MARSHA!, primeiro festival LGBT online produzido por pessoas trans, em parceria com o CCSP. Também compôs a exposição virtual Inquietudes-vagalumes, realizada pelo MAMAM e a Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria de Exposição, formando o núcleo Corpo- -Continente, com curadoria de Davi Castillo, Guilherme Moraes, Letícia Barbosa e Rafaela Barros, junta- mente com trabalhos de Brígida Baltar, Bruno Vilela, Carl Guimarães, Gabriela Holanda, Génova Alvarado, Guita Charifker, Janaine Toledo, Lula Cardozo Ayres, Maíra Ortins, Regina de Paula e Zila Mars. 74 75 Esse princípio de fusão, que você pontua, realmente segue em mim, no meu trabalho, quando eu produzo as fotografi as com animais vivos ou mortos nos meus olhos. Eu intuitivamente fazia aquilo pela beleza do encontro com um outro corpo, pela materialidade dos corpos juntos. Enxergo o resquício, o remanescente, aquilo que por algum motivo não apodrece, que consegue resistir ao tempo, como precioso, como se eu estivesse usando jóias, peças preciosas. Eu tava em um curso sobre o Vestível Enquanto Obra6 e, por acaso, tinham muitas pessoas de joa- lheria. Conversando com uma das participantes do grupo, eu entendi que o que venho fazendo, e aí a gente consegue linkar, Gui, com o que conversávamos naquela primeira entrevista: a potência da moda, do corpo e do vestível para mim e como faço uso do vestível para me fundir aos símbolos que me tocam e me afetam. Eu concluí que estava vestindo jóias preciosas para mim. É isso o que eu faço — pensando elas enquanto amuleto e não enquanto adorno. O que eu faço nas séries de fotografi a é criar exercícios em que eu enfrento o medo dos animais: quando vivos, um exercício para lidar com o medo de infecções, de contaminações, de situações de risco, e, quando mortos, um exercício de enfrentamento do medo da própria morte. Utilizo-os no meu corpo para me fundir às suas potências a partir do momento em que perco o medo deles. É sempre nesse movimento de fusão e retorno. GM - Nesses meses � quei com uma questão na cabeça, que você me trouxe nesta entrevista: a de que a identidade de artista não te servia no princípio. Sei que a primeira vez em que você colocou seu corpo enquanto obra em um espaço institucionalizado de arte foi conosco, na exposição de lançamento da Propágulo N° 1, na Galeria Aquário Oiticica do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM). Você pode- ria contar um pouco sobre como foi essa experiência? De certa forma, você já performava para o público, em festas. Mas sei que o espaço, as pessoas e a hora do dia eram bem diferentes. 6 - O Vestível como Obra e a Performatividade do Vestir, com Larissa Camnev, realizado pelo Lux Espaço de Arte. 76 OA - Aquela performance foi montada visando a ideia de entre- gar um corpo com uma estética alterada e isso em si já gerar con- templação nas pessoas. Era um momento em que eu decidia que o gesto de me vestir, de me tornar, de vir a ser, o devir, aconteceria no espaço-tempo da performance. O roteiro que eu tinha planejado era vestir uma segunda pele, transparente, e pré-bordar, pré-produ- zir um mecanismo que me permitisse puxar as suas linhas e ir me costurando. Ou seja, na ponta dessas linhas tinham folhas, cascas de semente que, quando terminassem de ser costuradas, me tornariam um corpo coberto por penas, sabe? O que eu pretendia fazer era me vestir, me proteger, me tornar um devir-pássaro ou um devir-planta. Mas, no momento em que eu me direcionei ao Museu, a peça mudou completamentede forma, se enganchou toda, se estabeleceu uma outra ordem naquela roupa, nos princípios do mistério mesmo. Eu só fui. Entrei no Aquário e, de repente, entendi que não era mais sobre um roteiro. Aquela performance foi bem expansiva para mim, mental- mente e espiritualmente. Estive presente por uma hora ou um pouco mais, mas eu não percebi que esse tempo passou. Entrei no Aquário com uma frequência corporal muito diferente e lembro que, assim que entendi que o meu roteiro havia se desmanchado, entrei nessa frequência de brecha, de vazio, de abismo, que pode ser lido enquanto portal. A partir do momento em que se abre um buraco, as possibili- dades também se abrem com ele. O que aconteceu foi que o meu corpo me permitiu me relacionar com os corpos remanescentes que eu tinha juntado para levar para o MAMAM — muitas das coisas que eu levei para compor o ambiente já estavam comigo no meu quarto durante todo o processo de costura da peça original, eu fui juntando e colocando no quarto coisas que eu nem pretendia usar na performance, mas, assim que a peça se engre- nhou toda, eu me apeguei completamente a esses elementos que esta- 76 77 vam comigo durante o processo de costura e os levei para o Museu. Ainda que pela primeira vez eu tivesse parado para fazer um roteiro, esse roteiro não seguiu. Foi bem desestruturante pensar integrar uma revista de artes visu- ais. Ao mesmo tempo que fazia todo o sentido, eu não acreditava na identidade de artista, nessa função social do artista, eu não me via exercendo ela. Eu sabia que eu produzia arte, sabia que se entendia o que eu fazia enquanto arte, mas eu não pretendia ser artista por entender que o que eu fazia era apenas vida, trabalhos para produzir sentido diante da vida. O trabalho que fi z naquela época era de trans- mutação do meu corpo, do meu ser, e que foi entendido e compre- endido enquanto trabalho artístico, e o meu medo era que esse meu processo fosse capturado, monetizado, deturpado e sugado. Esse era o meu pavor. Era um processo de encantamento e toda camada de legitimação que se dava parecia vir para usurpar essa potência que eu criava. E foi com isso em mente que comecei a caminhar para o entendimento de quais eram os espaços que eu poderia ocupar. GM - Essa questão é curiosa pois quase se dá enquanto paradoxo: não querer ser assimilada pelo sistema de arte e ao mesmo tempo deixar-se ser. Como você se relaciona com isso atualmente? OA - Eu uso muito o Instagram para produzir arte. Eu tenho esse pro- cesso que é muito mais íntimo e tudo mais, mas eu tô sempre com- partilhando ele no Instagram. Então eu tô constantemente sendo capturada pelo sistema de consumo de imagem. Não só o sistema de consumo de arte, mas de imagem no geral. Essas dinâmicas de poder que o capital econômico exerce sobre a minha imagem acon- tecem para além do meu controle. Pensando em uma imagem de um peixe sendo pescado pelo anzol do mercado de arte, penso que 78 sou um peixe que lança um outro anzol de volta, sabe? Meu traba- lho tem partido da ideia de entrelaçar esses dois anzóis. Ser alçada, mas não ter nenhum anzol que rasgue a minha carne — é o que eu tento fazer, não digo que consigo. É a partir dessa imagem que eu tento trabalhar. Eu pesco o anzol do mercado para tentar ir até a superfície e pegar o que o mercado de arte tem para me oferecer. Isso me faz pensar muito na estrutura do trabalho que eu fi z na Garrido Galeria, que surgiu justamente enquanto adaptação para os espaços de legitimação de arte [pelo capital]. Inicialmente, o traba- lho essencialmente funcionou para me colocar diante do espaço de arte me protegendo, protegendo a minha subjetividade. Aconteceu da seguinte maneira: eu fui convidada a sair do meu espaço de gale- ria virtual, que é o meu Instagram, e ocupar um espaço de galeria de arte, e começo a refl etir sobre as problemáticas de um corpo que é e se propõe a ser a própria obra e, diante disso, começo a desenvolver estratégias para ocupar o espaço dessa galeria física. Me refi ro também ao cubo branco, aos espaços de legitimação den- tro de um sistema menos estruturado, no sentido da recepção, para artistas do corpo, da performance. Penso: se estou em uma exposi- ção que tem 14 artistas e 12 deles são pintores ou fotógrafos, eu me vejo diante de uma situação em que eu sou uma minoria e, de algu- ma forma, uma cota. Como posso habitar esse espaço — que tenta me capturar e me acolher (dentro de milhões de aspas) — evitando ser violentada? Penso diretamente na tela, em como eu posso ser mais uma tela na parede, já que eu estou numa exposição com mais 13 artistas, desses 12 partindo da bidimensionalidade, e outra per- former, penso em como também ocupar uma parede. Partindo de uma tela, decidi que queria ter meu corpo conectado a ela. Olhando agora, enxergo não só ele como um processo de adaptação de meu trabalho ao espaço, mas também um processo de refl exão sobre 78 79 meu trabalho em si, toda a minha obra, pensando que sou um corpo sem identidade, que se propõe a ter seu rosto apagado e refl etir o rosto dos outros, o outro espaço, e esse corpo está em um processo criativo. O trabalho envolveu produzir imagens a partir do smartphone, sem- pre refl etindo a minha identidade ou a ausência dela, me relacionando com a tecnologia, para mim representada através dos conectores, que são os cipós (penso tecnologia como algo primitivo mesmo). O contexto em que a obra acontece é interessante: um espaço de gale- ria marca uma temporalidade, um caminho, que me tira do virtual, me leva para um espaço de mercado de arte, e, quando chego nesse mercado de arte, estou me defendendo. Estou com armadura, mas presa a uma parede, estou sendo capturada e assimilada, ao mesmo tempo em que estou com o meu smartphone capturando o público através da transmissão ao vivo. Normalmente eu me sinto invadida e objetifi cada quando estou performando em espaços institucionais de arte, algo do qual não sei como fugir. E não fugi disso. Nesse trabalho me aproprio dessa questão e passo a objetifi car também o público. E acontece essa imagem: eu fi lmando as pessoas me fi l- mando. Eu captando, a partir do espelho no meu rosto, as pessoas que estão presentes no espaço e as pessoas que me assistem no ambiente virtual [em formato de live do Instagram]. GM - Entre 2018 e 2019 você foi uma das curadoras convidadas para a elaboração da Propágulo N°4, juntamente a mim, Ariana Nuala7 e 7 - Ariana Nuala (1993) é educadora, pesquisadora e curadora. Formada em Licenciatura em Artes Vi- suais pela UFPE, foi coordenadora do Educativo no Museu Murillo La Greca. É assistente de curadoria do Instituto Ofi cina Francisco Brennand. Coordena a Plataforma e Residência Práticas Desviantes, é integrante e curadora dos coletivos CARNI (Coletivo de Arte Negra e Indígena) e do Trovoa. Partici- pou como residente do Valongo Festival e foi curadora da mostra Estratégias para o Contorno no XI ÚNICO pelo SESC PE. Foi co-curadora da Propágulo N°3, curadora da Propágulo N°4. Tentativas de Retorno - 2020 Fotos por JEAN 81 Bros8. Estivemos em um processo extenso de concepção de um impresso e uma exposição com diversas outras pessoas de áreas que se atravessa- vam constantemente. Como foi estar nesse processo? OA - Desde o convite, fazer parte da Propágulo N°4 se mostrou enquanto um grande desafio. Naquele momento eu já me enten- dia artista, mas estava me propondo a ter uma outra função, que, ainda que eu especulasse sobre o que fosse, não tinha familiari- dade prática. Isso me apavorava, mas também me instigava. E a experiência aconteceu de uma maneira tão natural... Trabalhar contigo, Ariana e Mário [Bros] fez com que o processo todo se desenrolasse assim. Eu aprendi, na prática, coisas que já pensava enquanto artista que reflete sobre seu processo sozinha, através dessa coletividade. Quando encontro vocês para pensar o processo de outros colegas artistas, pensar espaço, pensar discurso, as várias
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