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Outras-Gramaticas-Propagulo-xece3m

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A Propágulo é um espaço-revista autônomo de
pesquisa e mediação em arte contemporânea. Tem 
como iniciativas o periódico homônimo Propágulo, 
sobre artistas de/em Pernambuco, a zine trimes-
tral Desdobra e o podcast AFTA, sobre a cadeia 
produtiva nas artes visuais. Além disso, realiza o 
Clube de Leitura e Debate, espaço educativo online 
de caráter processual, experimental e flexível de 
aprendizado sobre questões que tangem as artes 
visuais. 
Este livro tem como organizadores Guilherme 
Moraes, Heitor Moreira, Nathália Sonatti e Rod 
Souza Leão.
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GUILHERME MORAES
É de Recife - PE (1998). Licenciado em Artes Visuais pela UFPE, é editor 
e curador-educador da Propágulo. Desenvolve pesquisas pautadas nas 
intersecções e tensionamentos existentes entre as áreas da educação, 
mediação cultural e curadoria, a partir das quais realiza ações como o 
Pequeno Grupo de Estudos em Curadoria Educativa, iniciativa autônoma 
de aprendizado e debate.
HEITOR MOREIRA
É de Recife - PE (1995). Graduando em design pela UFPE, atua enquanto 
designer editorial responsável pelo projeto gráfi co da revista Propágulo. 
Desenvolve pesquisas focadas na linguagem das publicações independentes 
e seus meios de circulação para além de desenvolver projetos paralelos 
dentro do campo do design.
NATHÁLIA SONATTI
É de Recife - PE (1998). É editora da revista Propágulo e co-fundadora 
da Lunette Games. Atualmente, está terminando o curso de Comunicação 
Social na UFPE, e atua de maneira transdisciplinar nas áreas de cultura, 
tecnologia, educação e comunicação.
ROD SOUZA LEÃO
É de Recife - PE (1997). Graduanda em Comunicação Social - Publicidade e 
Propaganda pela UFPE, desenvolve gestão de projetos, produção cultural e 
design digital dentro da Propágulo. Também elabora trabalhos e pesquisas 
pensando nos hibridismos entre áreas de produção de eventos e gestão 
cultural a partir de uma lógica independente, além de criar e executar 
identidades visuais para projetos de diferentes segmentos artísticos.
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PREFÁCIO
Ingenuidade a nossa pensar que, abrindo uma convocatória nacional 
online para uma edição especial da revista Propágulo, poderíamos repli-
car sua coreografia de periódico impresso transformando-a em um 
número especial seu. Livres das limitações das páginas físicas, lidamos 
com desafios outros onde fazer caber em algumas dezenas de folhas de 
papel não mais era uma questão. Como selecionar, então, entendendo 
que o suporte do qual desta vez partíamos tinha dimensões infinitas? 
Como pinto no lixo, nos esparramamos em juntar essas 22 presenças. 
Digo isso pois fora tentador encavalitar um sem-fim de artigos, ensaios, 
entrevistas e imagens em um calhamaço digital que, de tão extenso, 
mais pareceria um scroll infinito onde aguardariam cansados textos 
que nunca viriam a ser lidos devido à jornada que se imporia no folhear 
em PDF. Talvez céticos em relação ao que projetamos sobre a apreen-
são de quem entra em contato com conteúdos online em um momento 
de tanta profusão destes — e mais preocupados ainda com os novos 
desafios que se impõem quando nós, curadores, artistas, educadores e 
jornalistas, sequer pensamos em aprender com quem entra em contato 
com o que soltamos no mundo —, acreditamos no poder da contingên-
cia. Dessa forma, com um tanto de cuidado e responsabilidade, o pouco 
produzido pode crescer para dentro, adensar-se a partir da partilha 
seguida da escuta. 
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Nesse processo que teve início há pouco menos de um ano, no começo 
da pandemia do covid-19, buscamos exercitar a atenção para fagulhas 
que porventura brotassem entre os meandros de um um escrito e outro. 
Dessa tessitura, estabelecemos três núcleos, nomeados a partir de pala-
vras derivadas dos próprios materiais oferecidos. São eles: 1 - amizades/
coletividades/afetos; 2 - corpos/invenções/deslimites e 3 - arquivos/
ruídos/memórias. Para além disso, deslocamos um dos textos, “para 
sobreviver a distopias.”, de Rafael Amorim, para o início deste livro, 
por perceber nele uma importante contextualização desta — por que 
não — curadoria que a ele oferecemos. O título deste livro foi pescado 
do texto “Objetos de Prazer: é preciso não descuidar da linguagem”, 
escrito por Clara Simas, presente em sua terceira parte. A imagem de 
capa é assinada por JEAN, em registro de performance realizada por 
Oura Aura Nascimento, que para esta publicação é entrevistada por 
nós, agora 3 anos após o primeiro encontro que tivemos. 
Guilherme Moraes
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APROFUNDAMENTO
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da revista Propágulo.
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para sobreviver 
a distopias.
rafael amorim Padre Miguel - RJ
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texto de parede para uma exposição na curva 
dos dias seguintes. ou texto para ser lido em voz 
alta. escrita que se pretende expositiva, coletiva 
e acumulativa. um convite ao encontro para 
abraçar trabalhos e/ou projetos interessados 
em criar outro repertório de imagens refl exivas, 
resultantes e respondendo às estranhezas que 
assentam o presente. ao encontrar essa escrita, 
proponha algo. 
para sobreviver a distopias será preciso encontrar perguntas den-
tro de outras perguntas, jamais encerrando-as. questionar, por exem-
plo, como seria o futuro quando não narrado pela voz do autoritarismo 
secular. ou se ainda é possível falar em futuro. não seria a ideia de 
futuro, justamente, a chave que mantém girando as engrenagens dos 
regimes que sabotam os desejos daquilo que se faz desviante? como, 
então, falar através das muitas vozes esquecidas na nossa concepção 
de coletividade e assim instaurar outra palavra que dê conta daquilo
que antes a palavra futuro nos ofertava?
tão logo dois mil e vinte se aproximou do futuro e, não por acaso, nos 
revelou o despreparo do poder público para lidar com tudo o que não faz 
parte de seu projeto necropolítico. o cenário descortinado trazido por 
uma crise global revelou não só as cicatrizes mais profundas do campo 
social, como também embaralhou algumas de nossas noções individuais 
e coletivas. 
assim, para sobreviver a distopias se lança como reflexão a ser 
escrita no plural, às muitas mãos. é preciso propor, pois os caminhos 
percorridos até aqui estruturaram outras distopias disfarçadas diante de 
nós. por isso, para sobreviver às distopias atuais, talvez seja necessário 
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desfazer nossas próprias utopias, nossas antigas convenções. como uma 
espécie de chamamento a reorganizar o real, é preciso propor e repensar 
as imagens que atravessam os anos, duvidar dos nossos olhos e do nosso 
comprometimento com o futuro – essa palavra quebrada. 
este solo muito bem preparado, a falsear o sentimento de pertenci-
mento e comunhão, teve aporte diante dos regimes de ordem, progresso e 
fundamentalismo a todo custo. não fosse isso, talvez percebêssemos com 
mais rapidez quando os frequentes panelaços tornaram-se aplausos em 
homenagens ao período da ditadura brasileira em rede nacional, quando 
também ironizaram o número de mortos do mesmo período.essa marcha 
que nos delegou à distopia institucionalizada teve em base o sentencia-
mento de algo ou de alguém como o inimigo, como o outro. 
façamos presente nosso desejo coletivo pela reivindicação de outras 
imagens. para que, assim, a partir de nossos desejos em comum, possa-
mos desfazer milimetricamente as ideias de futuro. estejamos fi rmes, 
por exemplo, para reconhecermos nos detalhes daquele pano de fundo, 
as telas de rubens valentim. sim, elas estiveram lá, espectadoras silen-
ciosas da barbárie verbalizada por uma voz que contava com a certeza 
da impunidade. mas quem as reconheceu? em quais imaginários habitam 
mestres como rubens valentim; artista nordestino, expoente da gravura 
brasileira?
torna-se fundamental reivindicar outras linguagens, destituir as 
fi cções imperativas que pesam sobre nossos territórios sensíveis. de modo 
que o coletivo possa levantar algumas bandeiras e atear fogo às outras, 
duvidando de tudo o que foi escrito com letras maiúsculas e dando lugar 
à escrita da nossa própria história. seguimos desejando falar com nossas 
próprias palavras, reconstruir a escrita, entender que escrever também se 
faz com o corpo inteiro. 
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se agora então pudermos fazer um acordo, um pacto social vigente, 
que seja para que nossa produção de imagens vindouras desbanque os 
desastres causados pela hegemonia do conservadorismo que avança — cão 
raivoso — em nossa subjetividade. que nossos lugares de afeto se descolem
da ideia colonial para que, assim, possamos desnaturalizar padrões e 
destituir simbologias. 
como será olhar de outra maneira para tudo aquilo que nos constitui 
ou tudo aquilo que não foi capaz de nos constituir? para sobreviver a
distopias é uma proposta para imagens de corpos coletivos, a construir 
outros álbuns de família. às distopias, que seja entregue de volta tudo o 
que nos foi roubado, adulterado, ocultado, deslocado e manuseado.
destituídas, essas imagens abrirão espaço para que possamos
reaprender a ver e contar outras histórias, alargando outros repertórios 
imagéticos. uma vez alargados, que esses repertórios toquem à reconstru-
ção das redes que nos circundam e nos tornam sujeitos plurais. portanto,
caminhamos para desfazer as fi cções que nos impuseram as lógicas de 
mapeamento daquilo que é impossível de cartografar e delimitar.
para sobreviver a distopias é, sim, um lugar repleto de desejo que 
caminha no sentido contrário à univocidade dos corpos. um enunciado de-
sejoso por imagens capazes de abrir outros modos de existir. desejoso por 
natureza pelos gestos de um coletivo que vem aprendendo a dar forma às 
armadilhas no meio do caminho. assim, trata-se de um lugar que se move, 
que dispara perguntas, que apela a outros referenciais, que se reapropria 
e se reescreve. 
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AMIZADES 
COLETIVIDADES 
& AFETOS
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AMIZADES 
COLETIVIDADES COLETIVIDADES 
& AFETOS
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A Amizade como 
um exercício de 
imaginação
Larissa Souza São Paulo - SP
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Já faz um tempo que desejo escrever sobre coletivos de artistas. Acredito 
que não seja difícil perceber a presença de grupos na história da arte. No 
Brasil, temos modernistas, neoconcretos, tropicalistas, temos escolas, 
ateliês e residências articuladas por artistas e etc. Pense em um nome e 
logo você terá uma rede de outros que se relacionam, seja pelo tempo ou 
pelo afeto.
Mas por que escrever sobre isso? O que há de tão especial na reunião 
de pessoas que trabalham com artes? Aqui não pretendo falar sobre ideias 
românticas que permeiam nosso ofício, nem mesmo da precariedade 
econômica que acomete a nós, artistas independentes, e que muitas 
vezes demanda que nos organizemos, mas da amizade como exercício de 
imaginação.
Em “O amigo”, o fi lósofo italiano Giorgio Agamben observa que não 
se pode atribuir predicado à palavra “amigo” como se faz com “branco”, 
“duro” ou “quente”, pois a amizade não é uma qualidade ou propriedade 
de alguém. Nesse texto, o autor fala da pintura de Giovanni Serodine que 
representa o encontro de Pedro e Paulo a caminho do martírio. No quadro, 
os dois apóstolos estão com os rostos tão próximos que seria impossível 
se enxergarem, o que leva Agamben a questionar “o que é, na verdade, a 
amizade senão uma proximidade tal que não é possível representá-la 
nem fazer dela um conceito?”1
A escritora Helena Vieira, em uma fala sobre a imaginação como 
potência, descreve como afeto algo que “constitui um saber do corpo que 
não está no campo do simbólico que não pode ser representado no campo da 
linguagem”2. A amizade nesse sentido habita nosso campo dos afetos.
1 - AGAMBEN, Giorgio. O Amigo. In: Caderno n.10 – O amigo + Sobre crise, história e arte. Tradução 
de Bernardo Romagnoli Bethonico. Edições Chão de Feira. 
2 - A Imaginação como Potência. Mediação de Francis Vogner dos Reis. Bernardo Oliveira, Helena 
Vieira e Ivana Bentes. Universo Produção, 26 de janeiro 2020. Podcast. 
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Para começarmos a pensar sobre a relação entre amizade e artistas, 
Francisco Ortega, em seu texto “Por uma ética e uma política da amizade”, 
citando Sennett, indica que uma amizade voltada à interioridade “à pro-
cura de duração, precisão, segurança, é um caminho sem saída que conduz 
à autodestruição narcisista”. No que ele chama de ideologia da intimidade, 
procuramos em nossas amizades algo que nos preencha, impomos nossa 
intimidade e esperamos que a pessoa contribua com nossa jornada de au-
toconhecimento. Para Ortega, essa inclinação a adaptar o desconhecido 
para algo familiar demonstra medo da diferença e total falta de imagina-
ção, portanto, a amizade voltada à interioridade está fadada ao fracasso3. 
Deste modo, a amizade não deve estar no campo privado (da proprie-
dade, da segurança, da singularidade), mas sim no público (da imaginação, 
da pluralidade, da política). Apostar na exterioridade signifi ca apostar em 
uma vida aberta para a diferença, para o efêmero, para o estranho4. 
Ainda para Agamben, a amizade existe no con-sentir, o eu e o amigo 
são dois pólos de uma con-divisão, enquanto que, para Ortega, a amizade 
é um processo no qual os indivíduos estão aplicados em trabalhar sua 
invenção. Relacionando com o lugar de liberdade que, para Arendt, “não é 
nunca o interior de algum homem, nem sua vontade, nem seu pensamento 
ou sentimento, senão o espaço entre”5, é nesse espaço “entre” os indivíduos 
que habita a poética dos coletivos de arte. 
Romper com a fraternidade nas amizades demanda pensar a imagi-
nação sobre as relações. Para Ortega, é necessário pensar um nova política 
e uma nova ética da amizade. E isso se trata de elaborar uma política da 
imaginação que aponte para a criação de novas imagens e metáforas, mas 
3 - ORTEGA, Francisco. Por uma ética e uma política da amizade. In: Caderno n. 109. Edições Chão 
de Feira, 2020. Disponível para baixar gratuitamente no site da editora.
4 - Ortega, idem.
5 - ARENDT, Hannah. apud Ortega, 2020.
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sem substituir um imaginário por outro. Na mesma fala citada anterior-
mente, Vieira diz que “pensar a imaginação é pensar alguma coisa que ain-
da não está aqui. Se imaginar é uma saída ao que nos resta, signifi ca que 
ela não existe, signifi ca que não há saída a não ser aquela que nós vamos 
ter de inventar”. 
Imaginar uma amizade em relação às artes exige que deformemos o 
conjunto de imagens que compõem nossas relações, o que só será possível 
em encontro com a alteridade radical de si.6
A amizade entre artistas deve ser uma relação voltada para o exterior, 
uma relação que valoriza a distância, a impessoalidade, a teatralidade, 
a ação, a imaginação ao invés da autenticidade, da intimidade. Pensar 
novas formas de amizade refl ete diretamente em pensar novas formas de 
produção coletivas.
6 VIEIRA, Helena, 2020
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“Pixar é humano": 
escritas insurgentes 
na cidade
Filipe Gondim Recife - PE
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Fui criado em um bairro de grande tradição na pixação. É relatado que 
desde o fi nal da década de 80 e início da década de 90 existiam pixadores 
em Beberibe e nosarredores da Zona Norte do Recife (PE). Cresci onde 
o pixo era parte do cenário das avenidas, ruas, becos e vielas. A pixação 
surgiu, pelas bandas de cá, junto com o fenômeno das galeras periféricas 
— grupos de jovens que se uniam em torno de uma sigla, na maioria das 
vezes, representando uma abreviação dos seus bairros. Ocupavam os bai-
les funks da RMR. Os pixadores eram um tipo de propagadores dessas 
siglas pela cidade. No bairro de Beberibe, o comando mais expressivo e 
antigo é a ATM (Atacante Terroristas de Muros), em atuação até hoje. 
Não sou da primeira geração de pixadores, longe disso, comecei bem 
depois que os primeiros registros de pixação apareceram em Recife. Nes-
se ambiente suburbano, tive meu contato inicial admirando as escritas 
nos muros. Depois, colocando os primeiros nomes nas paredes. Com certe-
za essa foi a primeira experiência com o fazer artístico, de maneira mais 
consciente, mesmo ainda, nessa época, não me entendendo como artista. 
Com o passar do tempo, os limites territoriais do bairro foram fi cando res-
tritos, outros bairros foram fazendo parte das caminhadas. O pixo me fez 
conhecer a cidade e suas regiões. Ocupando cada vez mais territórios, da 
periferia até o centro da cidade, local hostil aos jovens periféricos. A vonta-
de de deixar o pixo em mais lugares expandiu os horizontes fazendo com 
que a cidade negada cotidianamente fosse ocupada. E mais, transformou 
caminhos que eram apenas passagem em paisagem. 
“PAREDE BRANCA, POVO MUDO” 
A pixação exercita o olhar e faz enxergar a cidade de uma outra 
maneira. Onde para alguns é apenas cinza e concreto, para os pixadores 
viram locais com possibilidade de intervenção, mudando, assim, nossa 
identifi cação com esses territórios. Rompendo nossos limites cartográfi -
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cos impostos socialmente. Ressignifi cando a urbe, suas esquinas, encru-
zilhadas e avenidas. Rompendo as amarras em uma atitude intrusiva, de 
penetrar os espaços proibidos pela sacra lei da propriedade privada.
As paredes riscadas são apenas parte de algo bem maior que existe 
por trás, no silêncio da ilegalidade imposta pelo Estado. Engana-se quem 
acha que a pixação começa e termina no ato de “vandalizar” muros. Ela 
existe em um amplo movimento, artérias e circuitos, que promove espa-
ços, encontros e relações de irmandade e, também, de competitividade. 
Esses espaços de atuação geram identidade e representatividade. E, 
nesse processo, cada pixador se olha enquanto parte de algo maior. Uma 
identifi cação pelo que faz. E, levando em conta toda a alienação gerida 
pelo capitalismo, identifi car-se como parte de algo é uma das razões do 
pixo, que, mesmo com toda repressão do Estado, não foi banido ou apa-
gado do cenário urbano. Lembro que sempre um amigo falava: — “quando 
estou pixando é o único momento em que me identifi co com o que faço”. 
Essa frase, por si só, revela o caráter desalienador do pixo, tanto no que 
diz respeito ao processo artístico, quanto ao processo de ocupação do 
espaço público, como meio de se reconhecer e se manter vivo na paisa-
gem desumanizadora das metrópoles. 
É lamentável que quando se levanta alguma discussão sobre pixação e 
arte, na maioria das vezes, os discursos se desdobram em um questionamen-
to que, por trás da problematização, esconde aspectos conservadores sobre 
concepção artística e de aspectos sociais. E esse questionamento sempre 
gira em torno de ser ou não uma expressão artística. Essa problematiza-
ção em torno de uma questão não deveria mais hegemonizar as discussões 
sobre a pixação no Brasil, já que essa expressão atua no ambiente urbano 
desde a década de 80, tempo histórico sufi ciente para se ter aprofundado 
estudos e análises sobre a temática. Também para escutar e acompanhar o 
desenvolvimento dessa expressão da arte urbana no cenário nacional. 
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É possível, levando em conta as especifi cidades de cada local, traçar 
escolas, estilos e traços característicos de um estado ou tempo histórico. 
Cada artista, dentro do seu período de atuação, desenvolve sua técnica, 
criando suas letras, que mostram seu caráter criativo e suas infl uências 
e transformações ao longo do tempo. O que, por muitos, é apontado como 
sujeira e rabiscos desordenados é, na verdade, um grande lastro de saberes 
e estilos desenvolvidos a partir de infl uências estéticas, desenvolvimento 
técnico, estudo individual e coletivo para chegar a um formato artístico 
para ser riscado nos muros. Só que, diferente de outras expressões e lin-
guagens artísticas, o pixo surge como uma ação de transgressão e ruptura 
ao processo histórico de silenciamento, de negação dos espaços públicos 
e dos espaços privados e de afi rmação artística e territorial de populações 
submetidas à marginalidade política, social e econômica. 
“O VERDADEIRO BANDIDO NÃO FOI PRA CADEIA. 
TÁ COMPRANDO AMAZÔNIA E DIZIMANDO ALDEIA” 
Existe uma escassez de materiais e registros históricos produzidos 
pelos próprios pixadores. Essa escassez se aprofunda quando se procu-
ram materiais das décadas passadas, onde o acesso a material audiovisu-
al era algo difícil, difi culdades essas impostas pelos limites econômicos e 
pela falta de políticas públicas de democratização da produção visual e 
audiovisual. O material que se tem ou é fruto de recortes de matérias de 
jornais da grande imprensa, com um linha editorial quase única de apoio 
à criminalização e à perseguição ao pixo, ou são estudos e documentários 
realizados por pesquisadores, que muitas vezes reproduzem, em algum 
nível, o discurso do sistema opressor. Existiram várias iniciativas de orga-
nização de zines ou vídeos produzidos pelo próprio segmento artístico, e 
esses materiais são de grande riqueza documental, mas, pelo grau de es-
trutura, se encontram dispersos e pulverizados. 
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Muito do que resistiu, enquanto memória, foi fruto da cultura oral, 
onde uma geração passa para outras suas experiências, técnicas e histó-
rias. Todo esse material discursivo circulando nos encontros, nos rolês... 
Houve uma melhoria no processo de documentação depois da massifi ca-
ção da internet e do fenômeno das redes sociais. Sabemos que parte da 
luta pela sobrevivência de uma cultura é sua luta pelo direito à memória. 
Apagar os muros com tinta, perseguir criminalmente e ignorar a existên-
cia da pixação é tudo parte do mesmo pacote de dominação e preservação 
das narrativas elitistas e higienizadoras para silenciar processos de trans-
gressão e de enfrentamento com a historiografi a “ofi cial”.
Diante disso, não é de se admirar que, durante toda existência da 
pixação, existiram ações judiciais para sua criminalização. Até 2008, o 
pixo era enquadrado no Artigo 63 do código penal como crime de depre-
dação ao patrimônio. No mesmo ano, é aprovada no Congresso Nacional 
a Lei 9605 (lei dos crimes ambientais), que traz no Artigo 65 a tipifi cação 
do pixo como crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultu-
ral. Além disso, ainda tem as leis e projetos de lei municipais e estaduais 
que fazem coro com a Lei 9605 e que, em alguns casos, chegam a ser 
mais duras. Todo esse aparato judicial esconde, por trás de um debate 
contra o pixo e a higienização das cidades, uma narrativa de perseguição 
às práticas culturais provenientes das periferias urbanas e da proteção 
à propriedade privada, buscando o esmagamento e o desaparecimento 
dos seus artistas, sendo a motivação delimitada por questão de classe 
e raça. São os pixadores, jovens das periferias urbanas, que sofrem per-
seguição judicial e, no silêncio da madrugada, violência policial, tortura 
psicológica e até mesmo, em alguns casos, assassinatos. Todos os pixa-
dores carregam o peso de histórias e relatos dessas violências por parte 
da força policial e do poder judiciário. 
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Sabemos que na cidade, no geral, dois projetos estão sempre em dis-
puta. De um lado, privatização dos espaços públicos, gentrifi cação, elitiza-
ção e criminalização da pobreza, da arte urbana e dos movimentos sociais. 
Processo esteencabeçado pelo capital especulativo e grandes construto-
ras e apoiado por muitos governos e suas forças de repressão armada, que 
se benefi ciam das gordas verbas e fi nanciamentos de campanhas eleito-
rais. De outro lado, um projeto de cidade popular, com democratização do 
acesso e ocupação de seus espaços; garantia do direito pleno à moradia, 
trabalho e lazer; fomento e incentivo ao diálogo artístico urbano e pre-
servação do patrimônio arquitetônico e histórico. Dentro desse espaço de 
fi ssuras sociais, a garantia do direito de expressão artística é uma luta 
importante para construção do projeto de uma cidade popular e inclusiva. 
“A PIXAÇÃO É A ARTE QUE DISCRIMINARAM”
O processo de apagamento e invisibilização do pixo se dá, também, 
em âmbitos relacionados à arte. Um aspecto disso são as narrativas nos 
manuais e livros didáticos do ensino da arte nas escolas e universidades. 
Quando muito, esses materiais falam é de grafi te e de outras expressões 
da arte urbana. E reforçam uma falsa dicotomia entre grafi te/arte urbana 
vs pixação, se apropriando de um discurso que é muito propagado pelo 
estado e, infelizmente, em alguns espaços artísticos, coloca as outras artes 
urbanas como uma alternativa higienizada e positiva, apontando a pixa-
ção como algo sujo e criminoso. Quando, na verdade, a origem do grafi te 
remete aos mesmos princípios do pixo, onde, na rua, os artistas intervêm 
no cenário urbano de forma não autorizada pelo estado e pelos proprietá-
rios dos imóveis, deixando suas escritas como forma de manifesto e afi r-
mação artística. 
Outra postura bastante negativa é dos espaços institucionalizados de 
arte, incluindo as galerias, as mostras, as revistas especializadas, que, ao 
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não incorporar a pixação como uma expressão artística contemporânea, 
agem reproduzindo uma das lógicas do discurso e práticas conservadoras, 
que apaga qualquer possibilidade de discussão sobre a temática. Alguns 
espaços e galerias, principalmente as relacionadas a arte urbana, agem 
com uma outra postura. Como exemplo, temos a exposição em homena-
gem ao pixador DI (em memória), sendo esse um dos principais pixadores 
de São Paulo da década de 90 e um dos precursores da modalidade de 
pixos nos prédios. A exposição ocorreu em 2016, na A7MA Galeria, em São 
Paulo. Essas iniciativas são muito importantes, diante do peso e da pre-
sença que a pixação tem no cenário contemporâneo nacional e do neces-
sário respeito que ela merece.
Contudo, longe de achar que o pixo precisa da legitimação do circuito 
de arte institucional e mercadológico para existir, pelo contrário. Talvez 
sua caminhada na contramão de todas essas institucionalidades seja 
parte da gênese do seu espírito libertário e do seu poder transgressor, 
justamente por conta de sua existência estar intrinsecamente ligada ao 
caráter “ilegal” da intervenção artística. Porém, uma coisa não precisa 
negar a outra, elas podem coexistir de maneira positiva e, ao incorporar 
nas suas programações, esses espaços, veículos e instituições ajudariam 
a desconstruir a propaganda ideológica criminalizante que recai sobre a 
pixação. 
No pixo existe uma pluralidade de vozes e de visões sobre as escritas 
urbanas e elas todas precisam ser escutadas e visibilizadas. Esse texto é 
um relato pessoal de algumas experiências, vivências e opiniões que tenho 
sobre a pixação dentro do contexto social e artístico. Tenho noção da 
importância do pixo na minha formação artística e humana, quanto ela foi 
decisiva na compreensão da arte em que eu acredito e que me impulsionou 
a transitar por outras expressões, como a fotografi a, a colagem, o lambe. 
Mas sempre entendendo a rua como um espaço de ocupação, resistência 
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e intervenção. Pelo direito ao espaço público e à democratização da arte. 
“Pixar é humano”, já falava DI, e é parte da necessidade de se expressar em 
meio ao ruidoso caos urbano e sensibilizar nossas ações, desobediências e 
transgressões na urbe.
CITAÇÕES: 
* A frase “Pixar é Humano” é de autoria do artista DI (SP), citado no texto;
** “O verdadeiro bandido não foi pra cadeia. Tá comprando amazônia, 
e dizimando aldeia” é um trecho da música Pixadores II, de autoria de 
Nocivo Shomon; 
*** “Parede branca, povo mudo” é uma frase de autoria desconhecida pixada 
diversas vezes nas paredes de diversos lugares do Brasil e do mundo; 
**** “Pixação é a arte que discriminaram” é trecho da música “Pixar é 
humano”, de Grilo 13. 
28 29
Notas sobre a 
palavra saudade
Agrippina R. Manhattan São Gonçalo - RJ
Lucas Alberto Rio de Janeiro - RJ
30
E quanto mais lembro do calor que foi
mais eu sinto frio.
 
Jaloo, Last Dance, 2015
Esse texto é um ensaio sobre ausência e presença. Em 2018, escrevi um 
projeto curatorial para o edital Sala de Projetos do Auroras (espaço artís-
tico localizado no bairro do Morumbi na cidade de São Paulo). O projeto 
se chamava O Frio e o Cruel e se tratava de uma exposição em dupla com 
Lucas Alberto, um grande artista que tenho o prazer de chamar de amiga. 
Esse foi um de muitos projetos dos quais fui recusada e que tiveram de en-
contrar outras maneiras para circular. Porém, ele e eu existimos indepen-
dente de onde estamos e, hoje, em 2020-2021 (editei e tentei editar muitas 
vezes esse texto), me permito voltar a ele e encontrar coisas que imaginei 
e que quero imaginar.
O tempo é uma força curiosa. Frequentemente gosto de revisitar al-
guns pensamentos ou projetos, especialmente aqueles não materializados, 
quando não sei para onde ir. Uma ideia ou um sentimento não fi cam estáti-
cos apenas porque não os estamos olhando. Eles germinam e enraizam a si 
próprios e crescem, muitas vezes a ponto de se tornarem irreconhecíveis. 
Tenho tentado esquecer o tempo como uma linearidade e pensar nele mais 
como um rio, mas, independente de sua forma, sua natureza permanece 
um mistério incontrolável.
Comecei a escrever esse texto dois dias após o enterro do meu pai em 
setembro de 2020. Foi inclusive o primeiro enterro no qual estive presen-
te. Estou terminando em abril de 2021, 8 meses após tal evento. Lembrar 
desse dia ou desse projeto que escrevi com Lucas reforça a percepção do 
tempo como um ciclo que se encerra enquanto continua. Tenho aprendido, 
nesse momento, que há diversas maneiras de se lidar com a morte. Con-
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versando com minha família durante o enterro, percebo como cada eu é 
um universo e, desafi ando o impossível, existe o encontro. Independente 
das diferenças etárias, religiosas e subjetivas, a morte é mistério que não 
se entende, mas se sente no corpo, na lágrima e no âmago. De alguma for-
ma nos aproxima e põe em perspectiva tudo o que não é o aqui e o agora.
Uma das pontes em que eu e Lucas nos encontramos é o nosso inte-
resse em ler certas experiências através da linguagem. Escrevi esse texto 
a partir de uma conexão que tivemos em 2018 quando trabalhamos juntas 
em Niterói. Lucas foi fundamental no meu desenvolvimento como artista 
pois compartilhamos muitas coisas, inclusive nossas diferenças. Para essa 
exposição, conversamos sobre como nossas duas pesquisas esbarravam 
com o medo de morrer e de que pessoas à nossa volta morressem. 
Quando escrevi esse texto, já havia experienciado a morte de minha 
mãe, agora voltar a ele após a morte de meu pai me coloca de novo em con-
tato com o medo. Nessa primeira experiência de trauma em 2008, quan-
do estava com 11 anos, entendia a morte atrelada a um discurso teológico 
evangélico. Nascida e criada na igreja, para mim parecia que Deus esta-
va me punindo por ser quem eu era e, nessa contradição, me mostrando 
que não é porque ele era meu pai que necessariamente deveria me amar. 
Crueldade, em uma das defi nições segundo o dicionário, signifi ca o prazer
em fazer o mal. A ideia de mal que escolhi abordar aqui é também pelo 
dicionário defi nida enquanto: aquilo que machuca. Por muito tempo, após 
a perda da minha mãe, imaginei a morte como castigo ou maldade divi-
na. Maspensar sobre o mal e bem é cair na minha criação evangélica e 
acreditar que o mundo pode se encaixar no binarismo, sintoma da igno-
rância da normatividade. Arrogância minha pensar que consigo alcançar 
o incompreensível. Mas como artista sigo tentando. Agora, não sou mais 
evangélica e luto contra minha arrogância em julgar a fé da minha família, 
para encerrar em minha própria espiritualidade a pretensão de achar que 
entendo isso que sinto como deus.
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No enterro, minha família me apresentou um louvor evangélico cha-
mado Descansa, sobre pensar a morte como um repouso. Percebo como 
quando a fé se manifesta em música as emoções fl uem em outro vínculo 
de tempo. Como os louvores acalentam, me lembro da paz que senti ouvin-
do EU NÃO VOU MORRER de Ventura Profana pela primeira vez. Quando 
Ventura nos convoca para nos armarmos com poderes espirituais e em 
face do vale da sombra da morte, aprendi com ela o poder de Deyze, e as-
sim deixei morrer o deus que me queria ver sofrer e cair morta. Gostaria 
de poder dizer que não temo mal algum, mas seria mentira (ou um dese-
jo?). Entendo hoje essas relações que vão para além do tempo e da lingua-
gem como evidência desse campo que nos aproxima.
No cemitério onde meus pais estão enterrados há uma faixa que diz: 
Saudade sim, Tristeza não. Saudade é uma das minhas palavras favoritas 
no português pois ela é intraduzível. Impossível transportar para qual-
quer idioma o gesto de nomear esse sentimento, ainda que qualquer outro 
povo sinta saudade. Gosto de pensar que as relações se estabelecem em 
uma distância análoga à palavra e a seu signifi cado. Entre a saudade e a 
palavra existe um lugar que não se alcança, mas se sente. Nesse sentido, 
o que se pode extrair dessa conversa é a certeza de que as coisas existem 
para além de nós, ainda que nos afetem. 
Quando pensamos a exposição como uma conversa de nossas sauda-
des, lembrei de um fi lme que fala de um livro que expõe como o desejo pode 
ser algo difícil de se lidar. Uma obra que cita um livro que cita uma peça. 
Cada passo de tradução se dá numa transformação. E eu, que amo mais 
os títulos que os livros, me encanto com a poesia que as imagens fazem 
e sinto a necessidade de fi gurar o que sinto nesse texto agora. Aceitar a 
complexidade das emoções como parte inevitável da experiência de estar 
viva tem me ensinado a ter coragem.
Encaro a morte como um desejo de não esquecer e, por isso, intencio-
no lembrar desse encontro que nunca aconteceu. Pelo desejo de tantos en-
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contros com meu pai que não aconteceram. Recentemente, descobri que 
meu pai sabia que me chamo Agrippina. Talvez em algumas esferas esses 
encontros aconteceram e acontecem, ainda que a linguagem não dê conta. 
Paro por aqui enquanto dou conta. Compartilho o texto que escrevi e que 
Lucas escreveu na esperança e na certeza de não estar sozinha. Sobre o 
frio que sigo sentindo.
Projeto 2018
O Frio e o Cruel
Curadoria: Agrippina R. Manhattan
Sangue e pele em simplicidade e víscera se colocam para dentro da Gale-
ria. O espaço branco é infectado pelo vermelho do sangue e coberto pela 
nudez do celofane.
Lucas Alberto macula o corpo que, ainda vestido, aparece nu. A trans-
parência violenta do celofane expõe sem pudor o corpo do artista em toda 
sua fragilidade. O corpo em contrapartida responde ao celofane com a 
violência da vida. O celofane e o durex se desmancham com o movimento 
constante da respiração, ou com qualquer tentativa brusca de movimento. 
A roupa não se encaixa em um corpo vivo sem que seja destruída e nenhum 
corpo entra nela sem ser violentado.
O perfume opera de modo semelhante. Sua fragilidade se dá pela de-
licadeza do material. Frágil recipiente que contém o sangue. Pode quebrar 
em apenas um instante. Ele se origina da violência em extrair o sangue 
do corpo. Concomitantemente, a visceralidade do sangue infecta o vidro. 
O vidro contém o sangue ainda quente recém-saído do corpo. A roupa se 
protege em sua solidão, ela permanecerá intocada até o fi m da mostra, se-
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guirá intacta, mas sem nunca abrigar um corpo, sua mais plena realização 
a mataria. O perfume pede para ser manipulado, ele encara seu destino 
tentando se manter vivo pelas mãos que o manuseiam. 
Ele seduz o espectador pois precisa dele. A comunhão só partilha a morte.
Ambos coabitam o espaço expositivo, silenciosos e pacientes. São dois 
objetos destinados a perecer. No fi m da exposição, o perfume terá coagu-
lado e a roupa será destruída ao ser usada pelo artista.
O Frio espera a morte
O Cruel pergunta: quem morre comigo?
Comunhão, 2017
Perfume, 15 cm x 5cm x 8 cm - Vidro, água deionizada, 
álcool de cereais, propilglico, fi xador e sangue
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Comunhão consiste em um perfume feito com meu sangue. Ele é e 
está na galeria à mercê de quem quiser usá-lo. Ele vem do meu incômodo 
enquanto artista e do desejo de explicitar os absurdos envolvendo trabalho e 
remuneração no campo das artes. Pensei enquanto jovem artista que ainda 
ganha quantias mínimas (quando ganho), pensei enquanto trabalhadora 
que deve pagar para trabalhar, pensei no meu pai. O desejo era me vender 
para quem quisesse usar. Quando mostrei o trabalho me veio a questão: 
era sangue travesti. Nunca serei uma artista, serei sempre a travesti. Pois 
é por ser Agrippina que me permito ser feliz. É como pago a dívida comigo 
mesma e lembro da minha dívida com o mundo. Nunca serei artista onde 
não puder ser travesti. É a promessa que me faço.
O que era comunhão passou a ser lido como prostituição. Meu trabalho 
é lido antes de o verem só por quem eu sou. De certo modo, foi interessante 
que isto me puxasse de volta para o chão. Percebi nisso dois aspectos 
fundamentais do meu trabalho: a palavra e o outro. A palavra que me cerca 
e o outro que me decifra. Mas corpo e sua visceralidade (o sangue) jamais 
estão subjugados ao poder da palavra.
Agrippina R. Manhattan 2018-2020
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O Frágil e a Fúria
A ideia é confeccionar a partir do meu corpo essa roupa com papel 
celofane e durex, vesti-la e mergulhar no mar em ressaca. Antes disso, essa 
roupa tentava se compor como uma peça de identidade, uma roupa que 
pretendesse desnudar. O material frágil rapidamente se partia ao vesti-la, 
me lembrando da resistência do corpo, da verdade, da imagem nua. Depois 
de alguns processos, o nome anterior “Finalmente você pode se apaixonar 
por mim” foi substituído para “O Frágil e a Fúria”.
Lucas Alberto, 2018
O Frágil e a Fúria, 2017 - Vestimenta, Tamanho P. Papel celofane e Durex
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Isto é arte cotidiana 
Ou pode vir a ser 
em 7 minutos.
Dedé Santaklaus Belo Horizonte - MG
Diulia Fialho Belo Horizonte - MG
Efe Godoy Sete Lagoas - MG
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Por força de um destino ou não, fomos sujeitades a esta modalidade de 
vida, na qual banhos de sol para alguns é privilégio. Aqui, na Rua Cristal, 
na Vila Cristal, às 15:17, “o sol tá rachano”. Talvez a energia solar alimente 
corpos cansades de tanto trabalho da mente. Algumas das vezes nem re-
munerades.
Escrever este texto a três cabeças é um encontro cotidiane de pen-
samentos constantemente provocades por essa condição. Essa é a única 
opção para não enlouquecer em 2020?
Uma garrafa térmica preta, um cinzeiro azul translúcido usado, um 
cacho de uvas roxas pela metade, 2 celulares, biscoito, isqueiro, e umas 
plantas num pote de vidro com água. Dentre os objetos ordinários, há vida. 
3 seres humanes, com a boca seca, refl etem sobre morar no planeta água. 
Por hora, gritam esperando o auxílio emergencial ao som da reforma es-
tridente do vizinho. Treinam passinhos na área comum entre as casas. Se 
o mundo tivesse acabado, eu não estaria aqui; diz Dedé Santaklaus. Efe 
comenta: Isso pode ser letra de música. Enquanto Diulia coloca mais um 
celular sobre a mesa pra coerência de continuidade com vídeo que fi lma 
prum documentário intitulado: “arte cotidiana”.
Agora deveríamos discorrer sobre o que é arte cotidiana, mas inter-
rompo por instantes, para ler as palavras até aqui escritas pro casalde 
amigues da vila que se juntam à nossa presença. Um silêncio toma conta 
da espera por uma voz que lê com empolgação. Todes escutam, agora so-
mos 5. O texto fi nda, mas não acabou, isso é só o começo.
Misturar vida com o fazer artístico é algo que permeia muitas vidas. 
Estamos falando de muitas gentes. Tem alguém fazendo arte agora sem 
perceber que está fazendo arte agora. Pode ser que daqui a 7 minutos ve-
nha perceber que, anterior a esses 7 minutos, estava fazendo arte agora.
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Por que será que agora quem fazia não sabia que estava fazendo arte agora? 
Ao longo de toda uma vida, todas as ações e elementos que se mani-
festam cotidianamente explodem num desenvolvimento do fazer artístico. 
Ao longo de sua vida, isso sempre esteve rolando. Presente.
A formação de sujeito dentro desse planeta induz a reduzir o ser a não 
artista, colocando esse sujeito artista num lugar diferente, inalcançável. E 
se mudássemos a chave para a construção de um conceito sobre SER e 
EXISTIR? Dentro do que você faz, na sua rotina, você identifi ca alguma 
ação que te torna artista? Não? Mesmo assim, é arte cotidiana.
Estamos em constante processo. Cada estágio da vida apresenta 
desafi os importantes, primordiais para nosso desenvolvimento. Isso acon-
tece independentemente da sua vontade. O meio infl uencia em quem você 
é de verdade? Os fatores biológicos, estruturais, sociais e históricos aju-
dam muito a construir a sua narrativa, mas não a determinam... Precisamos 
sempre lembrar que estamos em constante movimento.
A gente pode estar fazendo arte agora.
Só sobrevivendo.
Sem entender o que está de fato acontecendo.
Então, a gente está fazendo arte agora. A arte pode ser cotidiana. 
Você está fazendo, e pode vir a fazer. Você não está pesquisando 
até que algo te leva a pesquisar. São lapsos de segundos que 
mudam tudo.
Isso é arte cotidiana.
E pode vir a ser.
Este texto não segue regras ortográfi cas gramaticais atuais já que en-
tendemos que a linguagem está viva e visamos a inclusão de gênero em 
cada palavra proferida.
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3 pessoas que se interessam em expor ideias reais sobre aconteci-
mentos no campo da arte/vida, dentro do campo multidisciplinar artístico 
atual. Diulia Fialho, Dedé Santaklaus e Efe Godoy são vizinhes e habitam a 
mesma vila. Vila Cristal.
A concepção desse texto é resultado de um delírio coletivo de 3 artis-
tas sob a condição de quarentena.
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Pertencimento
Jack Freire Petrolândia - PE
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“Pertencimento” é uma série de registros dos indí-
genas Pankararus em seu culto aos Encantados 
(entidades religiosas que cultuamos na nossa
aldeia). As fotografi as mostram os indígenas dan-
çando o Toré com os Encantados. No meu primeiro 
projeto fotográfi co sobre meu povo e seus costumes, 
tento captar de forma delicada a força e a energia 
dessa relação.
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Anti-corpus
Marina Soares Gravatá - PE
Eduardo Romero Olinda - PE
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Série em Fotograma — Revelação química em 
preto e branco. 
Realizada durante o período de quarentena con-
tra o covid-19. As imagens fazem referência a orga-
nismos do corpo humano, que ora são vistos como 
como protetores e ora como facilmente destrutíveis.
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48
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CORPOS 
INVENÇÕES 
DESLIMITES
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CORPOS 
INVENÇÕES 
DESLIMITES
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Peso Expandido
Táticas Móveis em Arte 
Contemporânea
Leo Bardo Caçapava - SP Curitiba - PR
Matheus Henrique Curitiba - PR
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Isto é um bunker. Uma barricada que se expande e se desmonta. Em cacos, 
como estão nossos corpos, refazem-se juntas. Um emaranhado de lógicas 
de criação que se encontram aqui, nesta barricada. A guerra interna é 
acidental, renova-se, explora novas cartografias debaixo do lodo do 
Atlântico, movendo entre estruturas arcaicas, novas tecnologias do corpo, 
novos naufrágios, o encontro de símbolos antigos com novas informações 
permeadas pela arte contemporânea.
Atravessando a era da eterna dúvida, de olhos bem abertos no
escuro, de olhos bem abertos para assimilar este atentado fracassado. 
621 toneladas de cargas de laranja afundaram na Baía de Angra. Iso-
cronicamente, a metralhadora é inventada. As tentativas de mediação 
entre os trabalhos de Peso Expandido n. 01 encaram a exposição como 
uma série de acontecimentos a ocuparem a Casa Selvática numa mis-
celânea entre tecnologia, crença, identidade, hibridismo, multiplicidade, 
gambiarra, magia e intuição. 
Das perspectivas históricas deslocadas através dos trabalhos, pode-
mos apontar práticas, conceitos, poéticas e materiais que, aproximados 
contextualmente, abordam a ética da precariedade infi ltrando nos jogos 
de poder suas novas possibilidades de existência, no que nomeamos rede-
sign de símbolos do poder. Uma farsa, uma burla, uma forja - solo hay que 
mostrarse como.
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PESO EXPANDIDO #2
Desta imagem que possuo do futuro e vejo 
tremelicar entorpecida, como uma ameaça-
dora bomba verde e elétrica.
Em sua palestra Precarious Life (Estocolmo, 2011), Butler empenha-
se em elaborar um pensamento de uma nova ética, a qual ela chamará 
precariedade. A apreensão do mundo, segundo esta perspectiva, 
manifesta-se como potência no intuito de avolumar uma existência que 
se faz precária, na qual estão submetidas nossas subjetividades. As 
subjetividades cuirs ou transviadas, como argumenta Berenice Bento. 
Além da força epistemológica da palavra em si e toda a cosmologia que 
envolve o cenário, muito cara a essa plataforma, a precariedade ganha 
força como debate fi losófi co. A autora identifi ca precariedade como “o 
estremecimento de tudo o que é vivo, o êxtase da pele que ferve como 
brasa perante o toque do outro”. 
Peso Expandido nasce independente e auto-gerido. Rasuramos o 
fantasma do passado e escrevemos por cima dele. Na somatória entre o 
desenvolvimento do projeto até a realização das duas primeiras edições, 
somos 15 artistas envolvidos nesta plataforma — vindos dos mais diversos 
lugares do Brasil para avolumar as parcerias entre locais de criação 
emergentes, como a Casa Selvática e o PF espaço de performance art. 
A construção dessa plataforma enquanto mais uma experiência 
heterotópica propõe a partilha como atravessamento subversivo das 
narrativas de/em poder, prazer e controle, apresentando nesta edição os 
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deslimites técnicos, representativos, geopolíticos e culturais das obras 
como um manifesto imagético entre história e fi cção. O que temos, na 
realidade, são lugares de diferença com seus próprios discursos, ligados a 
heterotopias semelhantes entre si e inseridas na contemporaneidade como 
marcadores do anacronismo entre o passado, o presente e o futuro.
A pressão da sola da tua bota sobre nossas cabeças, 
O intuito é que seu escalpo vire minha toalha de banho, retiro de 
ti os ossos da cabeça, um a um. Junto deles, sua capacidade de pensar 
com foco e precisão serão ofuscadas pela inserção de um nano chip 
chamado temor.
É a identificação dos modos da constru-
ção ficcional aos modos de uma leitura dos 
signos escritos na configuração de um lugar, 
um grupo, um muro, uma roupa, um rosto. É a 
assimilação das acelerações ou desacelerações 
da linguagem, de suas diferenças de potencial 
entre o insignificante e o supersignificante, às 
modalidades da viagem pela paisagem dos tra-
ços significativos dispostos na topografia dos 
espaços, na fisiologia dos círculos sociais, na 
expressão silenciosa dos corpos. A “ficcionali-
dade” própria da era estética se desdobra assim 
entre dois polos: entre a potência de significa-
ção inerente às coisas mudas e a potencializa-
ção dos discursos e dos níveis de significação.1
1 - RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política; tradução de Mônica Costa Netto. - 
São Paulo: EXO experimental org.; Ed.34, 2005. p. 55
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Nossos corpos políticos não são uma metáfora. Somos criações tan-
gíveis, bunker, barricada, máquinas de guerrear. Geradoras de imagens 
com potências de futuro, sem tradução simultânea, em um mundo em que 
as pessoas majoritariamentenão estão capazes de ler e/ou se relacionar 
dentro dos mecanismos de controle que regem as regras da diferença e, 
portanto, da convivência e da performatividade cotidiana de quem corta, 
desmancha e refaz estes cacos que chamamos de tempo de vida. Elektra, 
em seu enunciado, discursa diretamente da América Latina do ocidente. No 
século 21, o que realmente importa são os espaços — entendidos aqui como 
um posicionamento, um lugar de movimentação, onde podemos jogar com 
nossas imagens poliglotas. Um jogo sem prestação de contas.
Aja coração - Fernanda Ricci - 2019
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Alô, Aqui Fala Elektra - Patricia Cipriano - 2019
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PESO EXPANDIDO #3
Há em todo uso da câmera 
uma agressão “implícita” 
(S. Sontag)
A IMAGEM COMO BOMBA
O aprofundamento na investigação do experimentalismo na arte con-
temporânea nos levou a reconhecer os intercâmbios em realização com 
outros artistas e casas de cultura do país e da cidade de Curitiba como 
uma produção imprescindível e urgente de novas memórias, arquivos e 
realizações, a fi m de reforçar a cultura visual como pesquisa no ambívio 
de produções que consideramos urgentes nos campos da ação, do objeto 
e da tecnologia.
Para tanto, criamos juntos a plataforma itinerante em artes visuais 
nomeada aqui como PESO EXPANDIDO - Táticas Móveis em Arte 
Contemporânea, que nasce deste exercício independente e auto-gerido 
de dois artistas testando limites técnicos, representativos, geopolíticos, 
cartográfi cos e culturais. Resgatam ao imaginário do contexto histórico 
atual com a ética da precariedade, numa tentativa de releitura das 
imagens do mundo através de suas proposições, subvertendo narrativas 
em contextos de poder, prazer e controle.
A web como mecanismo de divulgação, circulação e alastramento 
dos trabalhos das artistas presentes nesta edição aparece como solução 
plural para uma livre distribuição de conteúdos artísticos, entendendo o 
ambiente virtual como um espaço de apreciação, criação, socialização e 
experimentação identitária.
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CUANTO LE GUSTA?
O museu é o mundo? O que é caráter político? Negar o poder ou tomar o 
poder? Para pensarmos sobre tantas perguntas, é necessário contextu-
alizar e nomear uma série de fatores sociais e culturais que compõem a 
experiência de cada pessoa no ambiente em que vive e de quais condições, 
dentro do que chamamos de sociedade, ela dispõe para sobreviver.
O alargamento da presença e a simultaneidade da existência, a pos-
sibilidade de curar feridas de/em espaços adversos apresentam aqui os 
sintomas das profanações iconoclastas presentes nas obras ou contra-
postas a elas no uso exacerbado do idealismo das imagens hegemônicas, 
tornando-as fontes inesgotáveis de sentido histórico através da burla. 
No momento em que uma civilização tem sua sensibilidade pautada pelo 
estado iminente de guerra, tomam lugar as tecnologias da autonomia, as 
práticas do conhecimento construídas a partir do próprio processo cria-
tivo, no esmagador limiar entre vida e vídeo. Aqui nós apresentamos o 
mapa do nosso bunker, dado a partir do enfrentamento das imagens ou 
as imagens como bombas.
Soilse coirpe - Semy Monastier - 2020
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Se jesus cristo morresse nos dias de hoje com ética, em toda coroa ao invés de espinhos, passaria 
uma corrente elétrica - Yuri Tripodi - 2019
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PESO EXPANDIDO #4
TÁTICAS MÓVEIS EM ARTE CONTEMPORÂNEA
UMA FACA, UM INVENTÁRIO, O MISTÉRIO
No momento em que a civilização tem sua sensibilidade pautada pelo esta-
do iminente de guerra tomam lugar as tecnologias da autonomia, as práti-
cas do conhecimento construídas a partir do próprio processo criativo, no 
esmagador limiar entre vida e criação. Com o intuito de borrar fronteiras, 
existimos através das fendas que a experiência da arte proporciona. Fron-
teira ou linha de fuga? O que a voz quer dizer? Peso Expandido 4 pensa 
abordagens experimentais para a poesia e a arte, manifestadas no limiar 
entre som e ação. A relação da cidade na utopia punk dos trópicos com 
a arte e a relação da voz como memória delineia a poesia espacial recém 
pousada neste chão que ainda treme. 
Podemos entender as experiências sonoras aqui propostas como 
fantasmagorias sobre o silêncio, sendo esse último, na maioria das vezes, 
sentido a partir do som que escapa do exterior, ao barulho da cidade, um 
carro se distanciando, um latido ao longe ou uma ave dando início ao dia. 
Essa construção de silêncio atua em nossos corpos colocando a noção de 
tempo adotada pela modernidade em conformidade com o espaço, expondo 
sua íntima ligação no que diz respeito aos ruídos, às pessoas e às coisas.
A atitude instalativa através do pensamento criativo funciona 
em nossa proposta curatorial através do desejo, unir o som e o objeto 
numa ação posta à mesa. Um prato de frutas, um livro, uma faca, um 
inventário, o mistério entre o som e a arquitetura, a transa do som com 
o espaço entre nós.
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Terra. Rocha. Concha. A materialidade daquilo que tem sido visto em 
Peso Expandido age diretamente no sintoma do que chamamos a imagem 
como bomba, partindo de uma investigação não binarista e fragmentada, 
pensando a vida in progress e a tentativa bakuniana de entender a 
estrutura da razão: a liberdade.
Inventariar signifi ca somente escolher, reco-
lher, nomear, numerar, classifi car e deixar à dispo-
sição. Esta concepção do inventário como gesto 
burocrático pressupõe, no entanto, o seu oposto: 
outra escritura, superior, na qual a elaboração
depende de algo além dessa simples reunião de ele-
mentos. O inventário, portanto, sob essa concepção, 
excluiria o procedimento que poderia definir algo 
como artístico. (PIMENTEL, Leandro. O inventário 
como tática: a fotografi a e a poética das coleções. 
FAPERJ, 2014. 272 p.).
Na cozinha experimental da Bauhaus tupiniquim, sobre as ruínas de 
todas as igrejas e estados, escrevemos. Um prego que nunca antes esteve 
ali, agora está. Um corpo que nunca antes esteve ali, agora está. Entre 
memória e escombro, o fantasma que aparece para emaranhar os sentidos 
é, também, um campo magnético onde percorrem projéteis sônicos que 
deixam suas bases de pouso com o propósito de incitar sinapses nervosas 
em sua cabeça.
Registros fotográ� cos
Francine Neves - Síncrona fotografi as - Marcos Guiraud
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 Possíveis pássaros ao longe - Mariana Barros - 2020
 Jam Apocalíptica - Jo Mistinguett - performance art - 2020
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Entrevista com
Oura Aura 
Nascimento
Guilherme Moraes Recife - PE
Oura Aura Nascimento Recife - PE
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Entrevistada para a Propágulo N° 11, Oura Aura Nascimento vem colabo-
rando intensamente com o Coletivo ao longo de sua atuação. Integrante 
assídua do Clube de Leitura e Debate da Propágulo, foi também uma das 
curadoras da quarta edição da revista. Enquanto corpo sensível e que 
há muito se reconhece em meio a uma mescla de vida, obra e ritual, em 
seu trabalho pesquisa performance, videoarte, fotografi a e instalação. 
Esta conversa é resultado de mensagens de texto enviadas por Gui-
lherme Moraes e respostas em áudios compartilhadas pela artista ao 
longo de quatro meses entre o fi m do ano de 2020 e o início de 2021. 
Guilherme Moraes - Em meados de 2017, quando começamos a dar início 
aos processos de concepção da revista Propágulo N° 1, você foi a primei-
ra pessoa que entrevistamos. Lembro de ter sido uma conversa relativa-
mente curta, mas surpreendente, no CAC/UFPE (Centro de Artes e Co-
municação da Universidade Federal de Pernambuco). Eu acompanhava 
Nathália Sonatti, que te fez algumas perguntas, e, a partir delas, escreveu 
a entrevista que abre a nossa edição impressa. Gostaria de começar 
perguntando: como foi esse encontro para você?
Oura Aura - Eu sempre penso que a minha memória não é um arquivo 
que consigo acessar tão facilmente. Acesso algumas coisas que de 
alguma forma fi cam, mas são poucas, pouquíssimas. Vou tentar elabo-
rar a partir dos dados que ainda me restam: quando paro para pensar 
nisso, lembro diretamente do fato de queeu não me entendia, não me 
identifi cava enquanto artista e, de alguma forma, tinha até um certo 
desdém por essa identidade, porque tinha a ideia do artista a partir de 
outros padrões. Eu fazia o que fazia da vida, como o próprio texto de 
Nath traz, eu só vivia. Quando me vi diante da possibilidade de estar 
1 - Participaram deste ciclo: Abraã o Sednaref, Oura Aura Nascimento, George Teles, Guilhermina 
Velicastelo, Lucie Salgado, Luiza Branco, Magris, Marcela Dias, Má rio Bros, Nathê Ferreira, Sofi a 
Carvalho, TheFurmiga e Risco! Grupo Experimental de Desenho (Bruna Rafaella Ferrer, Demé trio Al-
buquerque, Heitor Dutra, Valeria Rey Soto e Vi Brasil). 
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contribuindo para uma revista de arte, lembro que me sentia contra-
ditória diante desse primeiro contato. Quando a gente se conheceu, 
tudo começou a mudar, a coisa começou realmente a acontecer para 
além das minhas projeções e foi quando tu começou a contar o que 
pretendia ser a Propágulo, que ainda não existia de forma conclusiva. 
Tudo começou a mudar. Comecei a querer participar, a querer me ati-
var de maneiras a conseguir falar, a conseguir trazer para as palavras 
— outra coisa que eu tenho forte em minha memória é que as palavras 
não eram um lugar em que eu me sentia confortável. Quando a gente 
se encontrou fi nalmente para a entrevista foi interessante, porque eu 
tinha muito medo daquele momento. Sentia incômodo em ter me com-
prometido a falar, entende? E acabou sendo muito interessante con-
seguir me escutar, percebendo o interesse de Nath em tudo o que eu 
estava trazendo. O meu fazer não era algo que facilmente se colocava 
e se reconhecia enquanto um fazer artístico mesmo. Eu tentava dei-
xar isso claro.
GM - Na entrevista, você contou que desde criança sentia uma agonia por 
querer se transformar, querer mudar sua imagem. A partir disso, con-
tou que sua aparência, sua casca, como você constantemente se referia a 
quem era por fora, sempre se metamorfoseou muito, embora ainda não 
entendesse o que era. Nas suas palavras, a adolescência te fez entender 
que poderia se transformar, ser alguém a mais do que sempre foi, mais 
que humana até. Como você se relaciona hoje com esses pontos? O que a 
ideia de mudança signi� ca atualmente?
OA - Desculpa [em demorar a te responder], eu entrei em um buraco 
profundo nas últimas semanas. Quando tu me mandou essa pergun-
ta, já pensei em alguns textos que tinha escrito durante esta quaren-
tena. Realmente textos sobre escrever para não morrer ou para me 
matar. Escrevendo, tomei consciência de que tinha passado da minha 
própria expectativa de vida. Eu lembro que tinha uma crença, 
68 69
na época em que dei a primeira entrevista para a Propágulo, de que 
eu iria morrer antes dos 20. Acreditava que ia morrer aos 19, porque 
eu não conseguia projetar vida para mim além daquele período. E, 
por isso, acreditava que tinha que transmutar com tanta intensidade, 
como se eu tivesse que aproveitar toda oportunidade de experiência 
em um curto período de tempo por não visualizar um futuro para mim. 
Foi com a chegada dos 20 que percebi que eu queria ficar velha 
de corpo, sabe? E tudo isso fala sobre como estou lidando com a 
mudança hoje em dia. Antes, eu sentia que tinha que experimen-
tar o máximo de mudanças possíveis nesse corpo, mas chegou o 
momento em que eu desafiei meu próprio princípio de transmu-
tação. Eu não morri por escolha minha. Eu não me deixei morrer. 
Posso te ler esse texto, por mais que eu não acredite que ele seja 
uma resposta para a pergunta, tem muita coisa que pode te situar 
sobre como é que eu tô me sentindo agora, porque eu não tenho 
transmutado tanto o meu corpo. 
Nesse texto, tem um momento em que eu falo: “Hoje, aos 23 anos, 
eu continuo desejando a morte. Hoje, aos 23 anos, eu continuo dese-
jando a vida. Hoje, aos 23 anos, eu percebo que não sei mais morrer. 
E, hoje, aos 23 anos, eu percebo que não sei mais viver. Confi o na 
decisão pela não-morte, mas agora eu desconheço a vida.” Eu tenho 
enfrentado uma maneira estranha de lidar com o fl uxo para trans-
mutar, sabe? Se eu tô sabendo morrer eu não tô sabendo perceber 
isso, entende?
Descobri, há 3 anos, que eu tenho que inventar a vida agora, porque 
o meu movimento “natural” é de morte. E agora não preciso mais me 
inclinar a produzir morte, eu agora preciso me esforçar para produzir 
vida, e isso é mil vezes mais complicado. Eu vou ler os textos pra tu.
70
Tem uma coisa anotada aqui em cima, eu me perguntando “Eu quero 
ser um corpo que está apodrecendo ou um frame de luz, a luz que 
o anima?”. Tava me questionando nessa época sobre a morbidez do 
corpo. Um dia desses eu me deparei com uma frase que era “O corpo 
sabe mais sobre a morbidez do que a consciência”. E eu confi o muito 
nisso. 
[lendo o texto] “Eu já havia morrido antes, no outro corpo. Decidi 
modifi car o rumo químico que este corpo estava tomando por impo-
sição natural. Agia em reação de enfrentamento. Sabia que não era 
a solução para o meu problema fundamental. Não sei se fugia do 
meu problema ou se eu só estava produzindo mais um experimento 
(mental, social, pessoal, corpóreo, material...) na intenção de tirar 
conhecimento dos sentidos de viver num corpo que morre. Talvez 
eu tentasse produzir outro tipo de morte, que não fosse a morte da 
testosterona. Eu sempre soube que não encontraria a mim mesma 
mudando a forma do meu corpo, eu só não pretendia me perder 
fazendo isso. Venho me perdendo. Não me reconheço e isso nada 
tem a ver com a forma do meu corpo. Não reconheço a voz dentro 
de mim. Não reconheço o sentido, o rumo, o rumo, que é a única coisa 
que me fez acreditar em verdade. [...] Eu estou derretendo com a 
nocividade das doenças que adquiro no mundo. Um corpo que tinha 
os planos de morrer, aos 20 anos decidiu viver até fi car velha de 
corpo. Aos 20 já era velha de mente e o seu espírito já não era seu. 
Era eterno. Já havia nascido velha. Um corpo que tinha como norte 
a recente morte e percebeu que essa morte era mais uma de todas 
as que trouxeram até o tempo desta percepção. Como viver além da 
expectativa de vida? Sim, quando internalizei que eu não vou mor-
rer, que eu vou viver, eu contradisse não somente o mundo, como a 
mim mesma. Aos 19 eu comecei a confabular maneiras de viver sem 
fi car no tempo da morte jovem. Hoje, aos 23, eu continuo desejando 
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a morte. Hoje, aos 23, eu continuo desejando a vida. Hoje, aos 23, eu 
percebo que não sei mais morrer. E, hoje, aos 23 anos, eu percebo 
que não sei mais viver. Confi o na decisão pela não-morte, mas agora 
eu desconheço a vida.”
GM - Em “Uma noite sem lua”, Castiel Vitorino2 diz: “E se eu abando-
nasse todos vocês? Talvez a escolha seja a de viver a completude do 
híbrido e não mais o binarismo da polarização. E se eu abandonasse 
tudo, tudo isso? E se eu abandonasse a linearidade e assumisse a encru-
zilhada? Já não me importaria em pensar em quantos anos eu tenho 
ou poderia ter, porque os que já tive nunca acabaram.” 
Gostaria de saber um pouco mais sobre essa ideia de já ter nascido 
velha, de ter um espírito eterno. Em nossa primeira entrevista, você 
disse: “Quando eu vejo algum elemento que eu me apaixone, eu sinto 
a necessidade de me fundir a ele. Não é colocar em mim e usar como 
adorno. Eu sinto vontade de ser. Ser. Isso é uma grande frustração, mas 
o que me move também.” 
Talvez a gente esteja conversando sobre um turvamento entre vida e 
morte, né? Sobre um encontro entre efemeridade e perenidade (algo 
que Daniel Lie3, artista com quem estamos trabalhando em uma nova 
2 - Castiel Vitorino Brasileiro (ES - 1996) é artista visual, macumbeira e psicóloga (CRP 06/162518) 
formada em Universidade Federal do Espirito Santo. Atualmente mestranda no programa de Psicolo-
gia Clínica da PUC-SP sob orientação da Profa. Dra. Suely Rolnik. Vive a macumbaria como um jeito 
de corpo necessário para que a fuga e o descanso aconteçam. Dribla, incorpora e mergulha em sua 
ontologia Bantu, assumindo a cura como um momento perecívelde liberdade.
3 - Daniel Lie é artista indonesiane-pernambucane, transgênere, nasceu em São Paulo e atualmente 
vive um processo nômade. Em seu trabalho o tempo é o pilar central de sua refl exão. Desde a memó-
ria mais antiga e afetiva - trazendo histórias familiares e pessoais - até o tempo das coisas no mundo; 
o período de uma vida, e a duração dos estados dos elementos. Em sua pesquisa, o olhar é voltado 
para tensões e tentativas de quebrar binaridades entre ciência e religião, ancestralidade e presente, 
morte e vida.
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edição da Propágulo, também investiga muito profundamente). Falo 
isso em diversos âmbitos, desde uma problematização da crença de um 
corpo individual, único, mas que na verdade é um grande conjunto de 
organismos, de colônias, que é o corpo humano, esse corpo que “morre” 
e apodrece em mais vida, esse corpo que não termina mais em si, que se 
edita e se complementa à sua medida. Talvez estejamos vendo, sim, um 
derretimento, e talvez a fusão com o que te apaixone seja uma tomada 
de consciência de uma presença que é muito maior que o tempo. Talvez 
você não esteja se perdendo, apenas se espalhando…
OA - Esse impulso de fusão é o mesmo impulso de retorno. Para mim 
seria um magnetismo de contração. Pensando em escalas univer-
sais mesmo, na expansão do Universo, acho que o impulso é sempre 
de se retornar. Essa questão da fusão está comigo desde o começo, 
né? A coisa do tornar-se o outro se aplica em várias fases do meu 
trabalho, da minha vida, por exemplo quando eu tinha a necessidade 
de me fundir a uma peça de roupa, a um sapato ou enfi m, era o que 
me fazia criar essas peças. Na época que eu performava em fes-
tas, eu criava um novo corpo para criar potência. Eu sempre acre-
ditei muito na potência que se cria quando as imagens que habitam 
minha mente tomam forma no meu corpo. Isso acontecia muito no 
começo, quando eu me montava, me vestia a partir de roupas, tintas 
e plantas. Tudo isso foi se modifi cando, mas eu percebo que o prin-
cípio permanece. Esse é o mesmo princípio que me faz me enterrar, 
me tornar terra, quando por exemplo no trabalho com Flora Negri4
em 2018 em que eu trazia terra para o meu corpo por querer estar 
coberta dela. No momento em que produzimos isso, encontrei, pelas 
vias da montagem no meu corpo, a possibilidade de trazer essa terra 
para cobrir a minha pele. 
4 - Flora Negri (PB/PE - 1995) é fotógrafa nascida em João Pessoa e crescida em Recife. Atualmente 
vive e trabalha em São Paulo - SP. É uma das entrevistadas da Propágulo N° 3.
72
Tentativas de Retorno - 2020
Fotos por JEAN
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Já em Tentativas de Retorno5, em 2020, eu já tenho o meu corpo alte-
rado pela transição hormonal. É uma outra alteração que faço nesse 
corpo para poder vivê-lo, para poder tornar a minha imagem mate-
rial, torná-la física. Neste trabalho a minha intenção foi me cobrir 
de terra completamente, não mais produzir uma imagem específi ca. 
Eu não queria que fosse tão visual, sabe? Eu não queria que tivesse 
um apelo visual tão forte, queria que fosse sobre o ato de cavar um 
buraco e me enterrar, e foi o que tentei deixar explícito dessa vez: 
um ato. Talvez o ato de fusão, de retorno, fi casse mais explícito nesse 
trabalho ao invés da beleza. Era o que eu fazia, sempre produzia 
fotografi as das montações que eu fazia no meu corpo, e elas sempre 
tiveram muita potência imagética mesmo e, muitas vezes, eu sen-
tia que para a minha demanda elas não me satisfaziam. O problema 
que eu via era que as fotografi as carregavam um aspecto às vezes 
belo demais, sendo que a beleza estética não era tanto o meu ponto. 
Em Tentativas de Retorno eu pego o gesto e repito ele. É um outro 
corpo que está fazendo essa ação agora, é um corpo que transicio-
nou e essa transição só foi possível por conta das quebras que a 
arte possibilitou na minha vida. Ou seja, esse corpo transicionado a 
partir do hormônio só existe por ter transicionado a partir das ima-
gens, eu permiti que essas imagens tomassem forma no meu corpo 
e me ensinassem que meu corpo é potente para que eu viva nele. “O 
corpo sabe mais sobre a morbidez do que a consciência” — Acredito 
que isso me norteia muito. O meu corpo tem um saber muito maior 
do que eu consigo compreender.
5 - Imagens de JEAN e montagem de vídeo por Tiago Lima. Esteve presente no Festival MARSHA! ENTRA 
NA SALA, realizado pela Coletividade sociocultural de produção artistico-pedagógica, afetiva e política 
composta por pessoas trans e travestis: MARSHA!, primeiro festival LGBT online produzido por pessoas 
trans, em parceria com o CCSP. Também compôs a exposição virtual Inquietudes-vagalumes, realizada 
pelo MAMAM e a Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria de Exposição, formando o núcleo Corpo-
-Continente, com curadoria de Davi Castillo, Guilherme Moraes, Letícia Barbosa e Rafaela Barros, junta-
mente com trabalhos de Brígida Baltar, Bruno Vilela, Carl Guimarães, Gabriela Holanda, Génova Alvarado, 
Guita Charifker, Janaine Toledo, Lula Cardozo Ayres, Maíra Ortins, Regina de Paula e Zila Mars.
74 75
Esse princípio de fusão, que você pontua, realmente segue em mim, no 
meu trabalho, quando eu produzo as fotografi as com animais vivos ou 
mortos nos meus olhos. Eu intuitivamente fazia aquilo pela beleza do 
encontro com um outro corpo, pela materialidade dos corpos juntos. 
Enxergo o resquício, o remanescente, aquilo que por algum motivo não 
apodrece, que consegue resistir ao tempo, como precioso, como se eu 
estivesse usando jóias, peças preciosas. Eu tava em um curso sobre o 
Vestível Enquanto Obra6 e, por acaso, tinham muitas pessoas de joa-
lheria. Conversando com uma das participantes do grupo, eu entendi 
que o que venho fazendo, e aí a gente consegue linkar, Gui, com o que 
conversávamos naquela primeira entrevista: a potência da moda, do 
corpo e do vestível para mim e como faço uso do vestível para me 
fundir aos símbolos que me tocam e me afetam. Eu concluí que estava 
vestindo jóias preciosas para mim. É isso o que eu faço — pensando elas 
enquanto amuleto e não enquanto adorno. O que eu faço nas séries de 
fotografi a é criar exercícios em que eu enfrento o medo dos animais: 
quando vivos, um exercício para lidar com o medo de infecções, de 
contaminações, de situações de risco, e, quando mortos, um exercício 
de enfrentamento do medo da própria morte. Utilizo-os no meu corpo 
para me fundir às suas potências a partir do momento em que perco 
o medo deles. É sempre nesse movimento de fusão e retorno. 
GM - Nesses meses � quei com uma questão na cabeça, que você me 
trouxe nesta entrevista: a de que a identidade de artista não te servia 
no princípio. Sei que a primeira vez em que você colocou seu corpo 
enquanto obra em um espaço institucionalizado de arte foi conosco, na 
exposição de lançamento da Propágulo N° 1, na Galeria Aquário Oiticica 
do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (MAMAM). Você pode-
ria contar um pouco sobre como foi essa experiência? De certa forma, 
você já performava para o público, em festas. Mas sei que o espaço, as 
pessoas e a hora do dia eram bem diferentes.
6 - O Vestível como Obra e a Performatividade do Vestir, com Larissa Camnev, realizado pelo Lux Espaço de Arte.
76
OA - Aquela performance foi montada visando a ideia de entre-
gar um corpo com uma estética alterada e isso em si já gerar con-
templação nas pessoas. Era um momento em que eu decidia que o 
gesto de me vestir, de me tornar, de vir a ser, o devir, aconteceria 
no espaço-tempo da performance. O roteiro que eu tinha planejado 
era vestir uma segunda pele, transparente, e pré-bordar, pré-produ-
zir um mecanismo que me permitisse puxar as suas linhas e ir me 
costurando. Ou seja, na ponta dessas linhas tinham folhas, cascas de 
semente que, quando terminassem de ser costuradas, me tornariam 
um corpo coberto por penas, sabe? O que eu pretendia fazer era me 
vestir, me proteger, me tornar um devir-pássaro ou um devir-planta. 
Mas, no momento em que eu me direcionei ao Museu, a peça mudou 
completamentede forma, se enganchou toda, se estabeleceu uma 
outra ordem naquela roupa, nos princípios do mistério mesmo. Eu só 
fui. Entrei no Aquário e, de repente, entendi que não era mais sobre 
um roteiro. Aquela performance foi bem expansiva para mim, mental-
mente e espiritualmente. Estive presente por uma hora ou um pouco 
mais, mas eu não percebi que esse tempo passou. Entrei no Aquário 
com uma frequência corporal muito diferente e lembro que, assim 
que entendi que o meu roteiro havia se desmanchado, entrei nessa 
frequência de brecha, de vazio, de abismo, que pode ser lido enquanto 
portal. A partir do momento em que se abre um buraco, as possibili-
dades também se abrem com ele. 
O que aconteceu foi que o meu corpo me permitiu me relacionar com 
os corpos remanescentes que eu tinha juntado para levar para o 
MAMAM — muitas das coisas que eu levei para compor o ambiente já 
estavam comigo no meu quarto durante todo o processo de costura 
da peça original, eu fui juntando e colocando no quarto coisas que eu 
nem pretendia usar na performance, mas, assim que a peça se engre-
nhou toda, eu me apeguei completamente a esses elementos que esta-
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vam comigo durante o processo de costura e os levei para o Museu. 
Ainda que pela primeira vez eu tivesse parado para fazer um roteiro, 
esse roteiro não seguiu. 
Foi bem desestruturante pensar integrar uma revista de artes visu-
ais. Ao mesmo tempo que fazia todo o sentido, eu não acreditava na 
identidade de artista, nessa função social do artista, eu não me via 
exercendo ela. Eu sabia que eu produzia arte, sabia que se entendia 
o que eu fazia enquanto arte, mas eu não pretendia ser artista por 
entender que o que eu fazia era apenas vida, trabalhos para produzir 
sentido diante da vida. O trabalho que fi z naquela época era de trans-
mutação do meu corpo, do meu ser, e que foi entendido e compre-
endido enquanto trabalho artístico, e o meu medo era que esse meu 
processo fosse capturado, monetizado, deturpado e sugado. Esse era 
o meu pavor. Era um processo de encantamento e toda camada de 
legitimação que se dava parecia vir para usurpar essa potência que 
eu criava. E foi com isso em mente que comecei a caminhar para o 
entendimento de quais eram os espaços que eu poderia ocupar. 
GM - Essa questão é curiosa pois quase se dá enquanto paradoxo: não 
querer ser assimilada pelo sistema de arte e ao mesmo tempo deixar-se 
ser. Como você se relaciona com isso atualmente?
OA - Eu uso muito o Instagram para produzir arte. Eu tenho esse pro-
cesso que é muito mais íntimo e tudo mais, mas eu tô sempre com-
partilhando ele no Instagram. Então eu tô constantemente sendo 
capturada pelo sistema de consumo de imagem. Não só o sistema 
de consumo de arte, mas de imagem no geral. Essas dinâmicas de 
poder que o capital econômico exerce sobre a minha imagem acon-
tecem para além do meu controle. Pensando em uma imagem de 
um peixe sendo pescado pelo anzol do mercado de arte, penso que 
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sou um peixe que lança um outro anzol de volta, sabe? Meu traba-
lho tem partido da ideia de entrelaçar esses dois anzóis. Ser alçada, 
mas não ter nenhum anzol que rasgue a minha carne — é o que eu 
tento fazer, não digo que consigo. É a partir dessa imagem que eu 
tento trabalhar. Eu pesco o anzol do mercado para tentar ir até a 
superfície e pegar o que o mercado de arte tem para me oferecer. 
Isso me faz pensar muito na estrutura do trabalho que eu fi z na 
Garrido Galeria, que surgiu justamente enquanto adaptação para os 
espaços de legitimação de arte [pelo capital]. Inicialmente, o traba-
lho essencialmente funcionou para me colocar diante do espaço de 
arte me protegendo, protegendo a minha subjetividade. Aconteceu 
da seguinte maneira: eu fui convidada a sair do meu espaço de gale-
ria virtual, que é o meu Instagram, e ocupar um espaço de galeria de 
arte, e começo a refl etir sobre as problemáticas de um corpo que é e 
se propõe a ser a própria obra e, diante disso, começo a desenvolver 
estratégias para ocupar o espaço dessa galeria física. 
Me refi ro também ao cubo branco, aos espaços de legitimação den-
tro de um sistema menos estruturado, no sentido da recepção, para 
artistas do corpo, da performance. Penso: se estou em uma exposi-
ção que tem 14 artistas e 12 deles são pintores ou fotógrafos, eu me 
vejo diante de uma situação em que eu sou uma minoria e, de algu-
ma forma, uma cota. Como posso habitar esse espaço — que tenta 
me capturar e me acolher (dentro de milhões de aspas) — evitando 
ser violentada? Penso diretamente na tela, em como eu posso ser 
mais uma tela na parede, já que eu estou numa exposição com mais 
13 artistas, desses 12 partindo da bidimensionalidade, e outra per-
former, penso em como também ocupar uma parede. Partindo de 
uma tela, decidi que queria ter meu corpo conectado a ela. Olhando 
agora, enxergo não só ele como um processo de adaptação de meu 
trabalho ao espaço, mas também um processo de refl exão sobre 
78 79
meu trabalho em si, toda a minha obra, pensando que sou um corpo 
sem identidade, que se propõe a ter seu rosto apagado e refl etir o 
rosto dos outros, o outro espaço, e esse corpo está em um processo 
criativo.
O trabalho envolveu produzir imagens a partir do smartphone, sem-
pre refl etindo a minha identidade ou a ausência dela, me relacionando 
com a tecnologia, para mim representada através dos conectores, 
que são os cipós (penso tecnologia como algo primitivo mesmo). O 
contexto em que a obra acontece é interessante: um espaço de gale-
ria marca uma temporalidade, um caminho, que me tira do virtual, 
me leva para um espaço de mercado de arte, e, quando chego nesse 
mercado de arte, estou me defendendo. Estou com armadura, mas 
presa a uma parede, estou sendo capturada e assimilada, ao mesmo 
tempo em que estou com o meu smartphone capturando o público 
através da transmissão ao vivo. Normalmente eu me sinto invadida 
e objetifi cada quando estou performando em espaços institucionais 
de arte, algo do qual não sei como fugir. E não fugi disso. Nesse 
trabalho me aproprio dessa questão e passo a objetifi car também 
o público. E acontece essa imagem: eu fi lmando as pessoas me fi l-
mando. Eu captando, a partir do espelho no meu rosto, as pessoas 
que estão presentes no espaço e as pessoas que me assistem no 
ambiente virtual [em formato de live do Instagram].
GM - Entre 2018 e 2019 você foi uma das curadoras convidadas para 
a elaboração da Propágulo N°4, juntamente a mim, Ariana Nuala7 e 
7 - Ariana Nuala (1993) é educadora, pesquisadora e curadora. Formada em Licenciatura em Artes Vi-
suais pela UFPE, foi coordenadora do Educativo no Museu Murillo La Greca. É assistente de curadoria 
do Instituto Ofi cina Francisco Brennand. Coordena a Plataforma e Residência Práticas Desviantes, é 
integrante e curadora dos coletivos CARNI (Coletivo de Arte Negra e Indígena) e do Trovoa. Partici-
pou como residente do Valongo Festival e foi curadora da mostra Estratégias para o Contorno no XI 
ÚNICO pelo SESC PE. Foi co-curadora da Propágulo N°3, curadora da Propágulo N°4.
Tentativas de Retorno - 2020
Fotos por JEAN
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Bros8. Estivemos em um processo extenso de concepção de um impresso 
e uma exposição com diversas outras pessoas de áreas que se atravessa-
vam constantemente. Como foi estar nesse processo?
OA - Desde o convite, fazer parte da Propágulo N°4 se mostrou 
enquanto um grande desafio. Naquele momento eu já me enten-
dia artista, mas estava me propondo a ter uma outra função, que, 
ainda que eu especulasse sobre o que fosse, não tinha familiari-
dade prática. Isso me apavorava, mas também me instigava. E a 
experiência aconteceu de uma maneira tão natural... Trabalhar 
contigo, Ariana e Mário [Bros] fez com que o processo todo se 
desenrolasse assim. Eu aprendi, na prática, coisas que já pensava 
enquanto artista que reflete sobre seu processo sozinha, através 
dessa coletividade. 
Quando encontro vocês para pensar o processo de outros colegas 
artistas, pensar espaço, pensar discurso, as várias

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