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História do Brasil III RAQUEL SANT’ANA CARLOS HENRIQUE ASSUNÇÃO PAIVA 1ª Edição Brasília/DF - 2018 Autores Raquel Sant’Ana Carlos Henrique Assunção Paiva Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário Organização do Livro Didático........................................................................................................................................4 Introdução ..............................................................................................................................................................................6 Capítulo 1 A República “Velha” e a política das oligarquias .................................................................................................7 Capítulo 2 O golpe de 1930 e o primeiro governo de Getúlio Vargas .......................................................................... 24 Capítulo 3 O período de abertura e as tensões políticas de 1946 a 1964 .................................................................. 36 Capítulo 4 O Golpe empresarial-militar de 1964 e o governo ditatorial ..................................................................... 58 Capítulo 5 A “abertura” política e os projetos de democracia nos anos 1980 ............................................................ 68 Capítulo 6 A “Nova República” ..................................................................................................................................................... 76 Referências .......................................................................................................................................................................... 94 4 Organização do Livro Didático Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização do Livro Didático. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. Cuidado Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. Importante Indicado para ressaltar trechos importantes do texto. Observe a Lei Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem, a fonte primária sobre um determinado assunto. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. 5 ORGANIzAçãO DO LIVRO DIDátICO Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Posicionamento do autor Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. 6 Introdução Neste curso faremos uma reflexão a respeito do Brasil durante o período republicano, que se estende do final do século XIX até os dias de hoje. Procuraremos compreender as características políticas, econômicas e culturais do Brasil durante esse período, marcado por grandes mudanças em todo o mundo. Veremos as tensões das tentativas de construção nacional e de uma administração pública que se forma sobre os frágeis acordos entre elites locais e projetos nacionais divergentes. Mantida a desigualdade econômica estrutural herdada do Brasil escravista, o autoritarismo foi uma ferramenta acionada com frequência para solucionar os dilemas nacionais. Nosso objetivo é entender como essas contradições operaram e contribuiram para a construção do Brasil. Objetivos » Debater o processo de construção do Brasil enquanto república. » Compreender os arranjos políticos entre interesses das elites locais e projetos nacionais. » Relacionar a realidade cultural brasileira ao contexto de formação e dissolução de identidades nacionais em todo o mundo. » Refletir sobre os atores sociais que se forjaram nas disputas políticas que pautaram a República e suas formas de organização e atuação. » Analisar a relação entre autoritarismo e democracia ao longo do instável século XX. 7 Introdução Neste capítulo, passaremos em revista alguns dos principais elementos que caracterizam os primeiros tempos da experiência republicana à brasileira. Chamaremos atenção, em um primeiro momento, para aspectos gerais da vida social e cultural no País, bem como suas conexões com a vida política. A dimensão política, por sua vez, será alvo de maior investimento, uma vez que é por intermédio dela que se constroem os pactos e projetos políticos que, em boa medida, definem as bases daquele período. Foram essas mesmas bases que sofreram, a partir dos anos 1920, profundas críticas e forte oposição proveniente de uma sociedade em mutação. Objetivos » Conhecer os aspectos gerais da primeira República. » Perceber as transformações do Brasil na sua transição de Império para República. » Compreender as tensões entre os interesses das elites locais e o projeto nacional posto em curso pelo governo central sob o poder dos militares e, posteriormente, de paulistas e mineiros. Introdução A ideia de que esse imenso território colonizado pelos portugueses poderia se constituir em um único país não foi a das mais evidentes após a independência política, mas ela lentamente se tornou o sentido da ação de políticos e intelectuais que aqui residiam. Colocava-se, progressivamente, a questão da elevação da antiga colônia ao patamar das nações “civilizadas”, aos moldes europeus, é claro. Naquele contexto, o problema não residia apenas na ausência de uma estrutura de governo poderosa, racional e burocratizada, mas, também, na existência de uma sociedade repleta de 1 CAPÍTULO A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS 8 CAPÍTULO 1 • A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS indivíduos vistos como inaptos à vida civilizada, muitos dos quais submetidos à condição de escravos. Afinal, como uma sociedade considerada, por muitos, repleta de indivíduos classificados como racialmente inferiores poderia responder às demandas de um estado moderno aos moldes europeus? A República inaugurada, quase que subitamente, em 1889, não deixaria de enfrentar essas questões, seja pela montagem de um aparato de estado mais vigoroso, se comparado ao que existia até então; seja pelas mudanças sociais de que foi palco, como a crescente industrialização e crescimento das cidades e também a reviravolta no mundo das artes que se convencionou chamar de Semana de Arte Moderna. O historiador Boris Fausto (2006, p. 245) refere-se, em sua obra, ao momento da passagem do Brasil imperial para o país liberal e aristocrático da Primeira República como um “passeio”. Foi, de fato, um episódio impar, do ponto de vista de sua “calmaria”, se comparado ao conturbado e tenso período que ele inaugura. Para dar vazão aos diversos interesses que por muitas vezes caíam emdivergência, os políticos paulistas, sobretudo do Partido Republicano Paulista (PRP), e os políticos mineiros sustentaram o modelo liberal para o País. Ou seja, a modernização da qual falamos anteriormente passaria pelas mãos de grupos políticos muito restritos, concentrados no centro-sul do País. O conhecido liberalismo que esses grupos instituem, característico do período, não representou, contudo, a existência de um governo federal absolutamente inerte. Coube à União a cobrança de impostos de importação, o direito de criar bancos e emitir moedas, de organizar as Forças Armadas, de intervir, caso necessário, nas unidades da Federação a fim de se manter a ordem política e social. De acordo com o texto da Constituição Federal, de 1891, o Estado e a Igreja passaram a ser instituições autônomas e independentes, o que pode ser visto também como um dos exemplos mais óbvios da convicção laicizante do período. A urbanização também foi outro fenômeno importante, responsável por profundas mudanças sociais em algumas áreas do País. O maior crescimento urbano se deu na cidade de São Paulo, em parte pelo imenso contingente de imigrantes europeus que afluía para aquela região desde o final do século XIX. A capital do estado se transformou, no início do século XX, no maior centro financeiro do País, ligado à comercialização do café e responsável pelos principais empregos burocráticos privados e centro dos maiores bancos do País. A célebre frase do político gaúcho Silveira Martins, “o Brasil é o café, e o café é o preto” começa a perder gradual, mas um tanto ligeiramente, seu sentido na passagem do século XIX para o XX. A imigração e os recursos gerados com a produção e a comercialização do café mantêm relação direta com o processo de industrialização no Estado de São Paulo. O estrangeiro, segundo Fausto (2006), surge nas duas extremidades da atividade industrial, como proprietário e como operário. Em 1893, por exemplo, 70% da mão de obra na indústria paulista eram constituídas por imigrantes, enquanto, no Rio de Janeiro, no mesmo período, somente 39% eram estrangeiros. 9 A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS • CAPÍTULO 1 Podemos dizer que nenhum outro Estado brasileiro esteve tão à vontade e preparado para viver sob o regime liberal republicano. Definitivamente, a escravidão, um dos pilares do Império, não era mais uma instituição fundamental aos paulistas. Não é de se estranhar, por exemplo, que, após o período dos militares na presidência, São Paulo tenha eleito três políticos para o Executivo federal. Desse modo, nas primeiras décadas do século XX, em suma, o Estado partilhou com Minas Gerais, que abrigava o maior eleitorado do País, a influência na política e na Administração nacional. Apesar das importantes mudanças que, como se disse, o período chamado República Velha (1889-1930) abriga, o fato é que a história humana não pode ser compreendida unicamente em termos de mudanças abruptas. Queremos dizer, com isso, que as origens das transformações que conformariam esse período histórico não devem ser compreendidas exclusivamente nos fatos que envolveram, naquele dia 15 de novembro de 1889, o brado de um general que teria posto fim à experiência monárquica e dado início à República no Brasil. O dia 15 de novembro, portanto, deve ser compreendido como o ponto culminante de um mal-estar crescente. Suas origens e razões podem ser situadas de diversas formas. Por exemplo, o impacto da Guerra do Paraguai (1864-1870) não pode ser desprezado nesse contexto. O conflito foi responsável por um mal-estar nos dirigentes e elites brasileiras visto que o País não apresentou condições mínimas – de estruturas técnicas e aparatos burocráticos – para organizar de maneira eficiente um exército que respondesse aos anseios políticos e bélicos da ocasião. A guerra, nesse sentido, representou um impulso a mais nos caminhos da organização do País e da nacionalidade e, por intermédio desse impulso, representou um território de insatisfação contra uma monarquia que parecia, cada vez mais, o símbolo do atraso. O grande problema de fundo residia, como dissemos, na imagem do País que, nesse momento, estava extremamente associada à escravidão negra, ao atraso social, econômico e político. O Brasil estava, segundo visão de muitos daquela época, sempre um passo atrás do que eram capazes de fazer europeus na política, na economia, na ciência e nas artes. O salto que precisava ser dado só podia ser em uma direção: rumo à República! Para refletir Simon Schwartzman, em São Paulo e o Estado Nacional, não identifica uma influência importante do estado na política nacional nas primeiras décadas do século XX. Para ele, São Paulo compensou a alijamento político com um importante crescimento e desenvolvimento econômico regional. 10 CAPÍTULO 1 • A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS A República Velha (1889-1930) A sociedade colonial brasileira, na passagem do século XVIII para o XIX, foi marcada por um intenso processo de dinamização produtiva. Fatores internos e externos contribuíram para as alterações das bases da dominação colonial portuguesa e para a consequente revitalização da estrutura produtiva colonial. Vejamos primeiro as variáveis exógenas. A Primeira República é o tempo da modernização. Modernizar não deve ser lido somente como uma alteração das antigas estruturas coloniais: modernização dos portos, estradas, ferrovias, fundação das instituições do recém-estado imperial independente, polícia, hospitais, escolas, faculdades etc. Junto às transformações, que aos contemporâneos pareciam abruptas, estão também mudanças sutis nos padrões de comportamento, que os intelectuais denominam de culturais. Ocorre, a partir desse período, um significativo avanço no processo de laicização e desenvolvimento do Estado no Brasil. A modernização é uma dinâmica que, de um lado, sustenta todo um aparato administrativo controlado burocraticamente pelas instituições do Estado e, de outro, convive com a existência de um controle oligárquico exercido por grupos locais, em vista dos interesses particulares ou regionais de longa data. Por isso, a modernização, na esfera da administração do Estado, ocorre em seus primeiros tempos de maneira mais significativa, paradoxalmente, como conclui Fernando Uricoechea (1978), no âmbito das províncias, onde toda a máquina administrativa do Estado esteve quase sempre a serviço dos interesses das elites locais, ao promover, muitas vezes, a legitimação do poder exercido pelo poderoso fazendeiro da região ou pela liderança local. Essa peculiaridade histórica aponta para o estreito vínculo entre as lideranças regionais e o surgimento e o fortalecimento do Estado no Brasil, desde os tempos do Império e mesmo após 1889, também com a República. Sob esse aspecto, a Res Pública, ou seja, a vigência da coisa pública era mais formal do que exatamente uma prática ou conduta típica das elites. Em termos práticos, significa dizer que uma das características mais elementares desse período é justamente a posse da coisa pública, leia-se recursos do Estado, por grupos e elites. Uma espécie de privatização da coisa pública, de modo que os recursos de todos fossem tratados tendo em vista somente o benefício de determinados grupos. A isso chamamos de patrimonialismo. Quem se beneficiava do patrimonialismo? Os que tinham mais posses e propriedades, é claro. Como a base da economia brasileira, desde o Império, era o café, esses grupos, não à-toa, eram os que mais se beneficiavam com os recursos públicos. Assim, podemos concluir que o Estado existia para servir essencialmente aos cafeicultores e aos grupos a eles ligados. Daí outro nome associado ao período: República Oligárquica. 11 A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS • CAPÍTULO 1 tabela 1. Principais produtos de exportação. Fonte: <http://mestresdahistoria.blogspot.com.br>. É nesse ambiente que a figura do bacharel, o homem de ciência, que dispõe de conhecimentostécnicos, ganha vulto em contraposição ao elemento do passado rural. O bacharel era um dos personagens da cidade em ascensão, o centro da vida urbana, signo da vida moderna. A guinada que promove a mudança da casa grande para o sobrado é, na perspectiva de Gilberto Freire (2002), a mudança que desenha o prestígio social do bacharel sobre o senhor de engenho, símbolo do arcaísmo colonial. Esse último, diga-se de passagem, considerado pouco instruído nas artes, na literatura e no raffinement da sociedade europeia, sobretudo a francesa. É de se supor que o parentesco entre esses dois segmentos sociais, o bacharel e o fazendeiro, era relativamente estreito. Não eram poucos os rapazes que frequentavam as faculdades nacionais e europeias que eram descendentes de velhos senhores de terras. O que começa a ocorrer é uma gradual mudança de perspectivas e comportamentos de uma geração para outra. A mudança se operava, contudo, de um jeito que fazia com que algumas coisas não se alterassem. Por exemplo, um padrão bastante geral no processo de ocupação dos cargos administrativos do Estado, como o observou Simon Schwartzman (1979), tinha a ver com o parentesco e as relações pessoais como as estruturas definidoras das chances de apropriação de cargos públicos e do poder no País. 12 CAPÍTULO 1 • A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS Tal padrão se estruturaria de tal modo na vida pública que se converteria em uma espécie de norma social e cultural. A República de Vargas, como veremos mais adiante, em parte, ensejaria esforços no sentido de contrariar tal tendência. Seu sucesso foi somente relativo. Mas não nos enganemos. Nem tudo eram rosas. O cientista político Renato Lessa (1999), estudioso sobre esse período, cunhou uma noção, chamada de entropia, que sugere que aquele momento é caracterizado por forte incerteza social e política, com um elevado grau de anarquia nas relações políticas, se comparado com o período anterior, que se buscava, em alguma medida, se contrapor. Afinal, a autoridade de um imperador, acima das autoridades locais, havia sido dissolvida. Em seu lugar, explodem forças políticas por todo o território nacional, todas, em maior ou menor grau, dispostas a fazer seus interesses frente às demais. Nesse sentido, várias manobras políticas foram postas em marcha. Em seu conjunto, foram capazes de permitir certo arranjo de poder e consenso mínimos para a administração do Estado. Em termos políticos, como podemos melhor definir aquele período? A República Velha: o federalismo e agenda política nacional A expansão do exército napoleônico pela Europa e o bloqueio continental imposto pelos franceses para prejudicar a economia britânica colocavam a família real portuguesa em uma situação política delicada no início do século XIX. Para Lessa (1999, pp. 73-75), como dissemos, não havia com a emergência da República, ainda no século XIX, uma ordem política previamente definida e organizada em bases sólidas que permitisse uma estabilidade uniforme. Nesse sentido, o grau de “improviso político”, cujos acordos circunstanciais eram fundamentais para o andamento dos projetos políticos considerados de relevância, era um ingrediente, em certo sentido, estrutural do sistema de governo. Isso não quer dizer que não havia conflitos, pelo contrário. Boa parte da tensão política do período girava em torno das relações entre o Legislativo e o Executivo federal, fenômeno político novo, visto que durante o Império o Poder Moderador situava-se hierarquicamente acima das divergências entre as outras esferas de poder e exercia, assim, alguma ação coercitiva sobre os demais e sobre os eventuais conflitos. Com o advento da República, tanto o Legislativo quanto o Executivo ganham fontes de legitimidade independentes, de acordo com os preceitos da Carta Constitucional de 1891. No entanto, segundo Lessa (1999, pp. 97- 98), as relações entre ambas as esferas políticas não foram estabelecidas pela Constituição recém-outorgada, mas, sugere o autor, de acordo com certas normas ocultas, “um pacto não escrito”, diz Lessa (1999, p. 97). 13 A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS • CAPÍTULO 1 Nas palavras do autor, os principais ingredientes políticos do período republicano constitucional foram: [a] opção federalista, com presidencialismo; atribuição dilatada do Legislativo, imprecisão nas relações políticas entre União e estados; maior concentração de tributos nos estados e asfixia política dos municípios. As forças Armadas foram declaradas obedientes... (LESSA, 1999, pp. 98-99) República não poderia ser também confundida com democracia. Os valores democráticos jamais estiveram em alta naquele período. A participação da grande maioria da população, por exemplo, era praticamente nula, para não dizer inexistente. Vale dizer, tudo de pleno acordo com os princípios oligárquicos da então sociedade brasileira, cujos efeitos ainda se fazem sentir em nossos dias. Isso não quer dizer que as pessoas, ou certos grupos, aceitavam o jogo político sem resistência. Muitos foram os conflitos naquele período. Sobre alguns deles trataremos mais adiante. Em termos políticos, a característica mais distintiva daquele período foi, sem dúvida, a existência de alguma coisa que poderíamos chamar de ultrafederalismo. Ou seja, a autoridade federal era bastante frágil frente à autoridade política das províncias (como se chamavam os estados federativos àquela época). Tal federalismo se consagrou e se legitimou na Constituição Republicana de 1891, que produziu orientações que colocaram diversas matérias como da competência das autoridades provinciais. Tal característica, contudo, não seria uniforme durante todo o período. Aos poucos, ao peso das circunstâncias, essa tendência descentralizadora seria revista e ajustada. Com o presidente Rodrigues Alves, a partir de 1904, por exemplo, ocorre o que Hochman (1998) considerou como as primeiras modificações na relação entre União e estados no âmbito da política de saúde pública no País durante a República. Tais modificações foram possíveis graças ao impacto negativo, na sociedade, das epidemias que assolavam as principais cidades do País, incluindo o próprio Distrito Federal. Inicia-se, a partir daí, um progressivo processo de alargamento da esfera de ação do governo federal no âmbito das políticas públicas, sem abalar seriamente, contudo, a estrutura oligárquica da sociedade. Em função do que já descrevemos, podemos concluir que o sistema político vigente atendia mais aos interesses de determinados grupos do que de outros. Quem eram, portanto, os que mais se beneficiavam? A resposta a essa pergunta remete aos atores que deflagraram o próprio movimento republicano. Lideranças de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul defendiam os ideais de uma República Federativa que assegurasse autonomia local. Não concordavam, contudo, com relação a alguns aspectos importantes dessa República. Os republicanos gaúchos, por exemplo, eram positivistas. Já mineiros e paulistas tinham uma formação mais liberal, se comparados aos gaúchos. Essa diferença de perspectiva sobre a forma republicana, entre outras coisas, ganharia contornos mais dramáticos ao final da República Velha. Não podemos esquecer que Getúlio Vargas era, antes de tudo, um gaúcho. 14 CAPÍTULO 1 • A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS Outro grupo muito importante na sustentação da República eram os militares. Esses eram também um grupo bastante heterogêneo. As Forças Armadas eram palco de disputas e rivalidades entre os integrantes do Exército e da Marinha. No interior do próprio Exército registramos as diferenças entre Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Em torno do primeiro reuniam-se, como regra, os antigos combatentes da Guerra do Paraguai. Eram militares com uma formação mais rudimentar, alheios ao positivismo que tomava os quadros da corporação. Em torno do Floriano reuniam-se jovens oficiais, positivistas, provenientes da Escola Militar.Estes tinham, por ideologia, uma perspectiva de progresso e modernização da sociedade. De tudo que se disse podemos concluir que a República Velha era mesmo uma espécie de barril de pólvora. O nível de consenso era frágil, uma vez que os desentendimentos intraelites eram recorrentes. Pior que isso era o altíssimo nível de alijamento político da grande maioria da população do poder. Lembremos, nessa linha, que o voto era censitário (dependia da renda) e masculino. Ingredientes essenciais para a crise e a derrocada do próprio sistema de poder ao final do período. A instabilidade política não deixava de ter também um fundo econômico. Nesse sentido, é bom lembrar que o advento da República se fez acompanhar por uma intensa especulação financeira conhecida pelo genérico nome de Encilhamento. Fausto (2006) nos diz que o nome pode ser referência ao local onde os cavalos de corrida sofrem os últimos retoques antes de disputarem os páreos. Encilhamento, portanto, seria sinônimo de jogatina e disputa. O fato é que desde o final do Império havia um excesso de meio circulante, isto é, de moedas na economia brasileira. Com isso, queremos dizer que havia mais moeda do que o compatível com a riqueza produzida. Tal tendência fora agravada pelas iniciativas do Ministério da Fazenda, sob a direção de Rui Barbosa. Com Barbosa, os bancos tiveram autorização para emitir moedas. Houve, assim, uma importante expansão do crédito, muitas empresas surgiram, parecia que o capitalismo brasileiro tomava vulto. Acontece que, pelo menos parte das empresas só existia no papel. Suas consequências imediatas foram, de um lado, o aumento da inflação; de outro, uma intensa especulação na bolsa de valores. No início de 1891 a crise se fez sentir. O valor da moeda brasileira, segundo cotação da libra esterlina, desabou. A crise econômica, além, é lógico, de vitimar os mais pobres, aumentava o clima de incerteza em torno dos destinos do País, ou seja, a crise econômica produzia uma crise política. Em meio à crise, Deodoro da Fonseca enxergou uma forma de fortalecer o executivo federal, ou seja, fortalecer a si próprio. Em novembro de 1891, o Presidente mandou fechar o Congresso sob o pretexto de que havia necessidade de uma nova Constituição. Não contou, contudo, com o apoio do seu vice-presidente, Floriano Peixoto, cujas orientações, como apontamos anteriormente, 15 A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS • CAPÍTULO 1 não condiziam com as suas. Ainda em novembro de 1891, Deodoro não suportaria as pressões e renunciaria à Presidência em favor de Floriano Peixoto. Floriano Peixoto, por sua vez, tinha o firme apoio de lideranças de São Paulo, abrigadas no tradicional Partido Republicano Paulista (PRP) e contava, também, com o apoio dos gaúchos do Partido Republicano Riograndense (PRR). O apoio do PRP ao governo de Floriano custaria caro. Ao final do governo, os paulistas poriam fim à experiência militar no Executivo federal durante a República Velha. Com a posse do civil paulista Prudente de Morais, eleito em março de 1894, os civis dominariam a política nacional. A saída da caserna da cena política nacional – até o surgimento de um novo fenômeno político em torno dos chamados tenentes, durante os anos 1920 – não produziu grandes mudanças na política brasileira, mas sobre a economia não se pode dizer o mesmo. Velhos problemas continuavam e até se radicalizavam. O problema da insubordinação das elites locais ainda estava colocado politicamente como a principal dificuldade do federalismo brasileiro. Às vezes tal insubordinação se apresentava de uma forma que, aos olhos dos republicanos, parecia mais grave, como foi a situação gerada por Canudos, em pleno sertão baiano. Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido pelo codinome Antônio Conselheiro, se instalara, por volta de 1893, em uma antiga fazenda abandonada, no Arraial de Canudos, interior da Bahia. Ele era, segundo palavras de Fausto (2006, p. 257), “um misto de sacerdote e chefe de jagunços”. Segundo dados do mesmo autor, no auge, Canudos chegou a reunir alguma coisa como 20 ou 30 mil pessoas. Sua liderança não tardaria a chamar a atenção da Igreja e dos chefes políticos locais. Diversas foram as tropas encaminhadas a Canudos para pôr fim à liderança de Conselheiro. As derrotadas se acumulavam, gerando grande constrangimento nos centros de poder republicano. Afinal, era um amontoado de jagunços que venciam as tropas do governo. Isso sugeria que estaríamos diante de um governo fraco e desorganizado. Canudos só seria barbaramente arruinado em agosto de 1897, depois de intenso um mês e meio de sangrenta luta. Não resta dúvida: o Brasil mostrava sua face de miséria, pobreza e abandono de sua gente. Uma economia que, por base, só servia aos interesses de poucos: as oligarquias. A instabilidade política parecia tão grave que se vivia a sensação de que a República desmoronaria. Novas possibilidades, sempre conservadoras, deveriam ser postas à mesa. A lógica oligárquica Há pouco tratamos sobre o que eram essas tais oligarquias. Falamos de líderes – no Nordeste do País chamados coronéis – que detinham poder econômico e político local. Não raro controlavam as forças policiais locais – daí o nome coronel. O poder dessas figuras advinha, como regra, da 16 CAPÍTULO 1 • A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS exportação de gêneros alimentícios, aquilo que chamaríamos hoje de commodities. À época, sem dúvida, o principal e mais importante deles era o café, mercadoria que encontrava boa acolhida nos Estados Unidos e Europa. Como já dissemos, dada a fragilidade do Executivo Federal, frente aos interesses das diversas lideranças regionais, o ambiente político era marcado por certa instabilidade. A chamada política Café com Leite, nesse sentido, precisa ser encarada como uma construção de viabilidade de governo engendrada pelos grupos mais hegemônicos politicamente. Ou seja, era uma aliança oligárquica. Em que consistiu? Foi um acordo, relativamente persistente, que permitiu o revezamento de presidentes paulistas e mineiros na Presidência da República. Esse acordo só seria parcialmente abalado em 1918, com a morte de Rodrigues Alves e a posse do paraibano Epitácio Pessoa que, por sua vez, teve que curvar-se aos interesses dos grupos políticos mais fortes. Em 1929, de maneira derradeira, o acordo seria novamente abalado, quando o Presidente paulista Washington Luis, ao invés de indicar um mineiro, indicou um conterrâneo seu, o também paulista Júlio Prestes. Esse fato foi central para a ruptura política entre paulistas e mineiros e o fim da Política Café com Leite. Suas consequências esbarram diretamente na Revolução de 1930. O Brasil e sua capital Naquela época, e assim foi até a inauguração de Brasília no início dos anos 1960, o Rio de Janeiro estava organizado em torno de duas esferas: uma esfera municipal e outra, muito mais ampla politicamente, é evidente, a Federal. O que nos chama mais a atenção é o Rio de Janeiro que se lança em todo o território federal. E nesse sentido, não se trata apenas do Rio de Janeiro capital da República, responsável pelas políticas e outras medidas de cunho nacional, mas, também, da cidade que era referência cultural para todo o País. Uma imagem está inevitavelmente ligada à outra, pois o Rio, centro político, estava visceralmente vinculado ao Rio da criação intelectual, e vice-versa. No final do século XIX e início do século XX o Rio era uma cidade bastante desorganizada e pouco urbanizada. Fazia lembrar, ainda que com algum exagero, a vila colonial fundada em meados do século XVI. A intervenção pública mais organizada só se daria no início do século XX, na administração de Rodrigues Alves, com todas as transformações urbanas levadas a cabo pelo então prefeito do Distrito Federal, Francisco Pereira Passos, e com o trabalho do jovem cientista Oswaldo Cruz, do Instituto de Manguinhos (BENCHIMOL, 1992; DAMAZIO, 1996, pp. 69-70). 17 A REPÚBLICA “VELHA”E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS • CAPÍTULO 1 A capital do País, assim, passaria por grandes transformações sociais, políticas e econômicas ao longo da Primeira República. Decerto que em proporção, o crescimento ocorrido no Rio de Janeiro não alcançou as taxas impressas pelos paulistas no mesmo período. Contudo, a cidade que surgira em plena mata atlântica usufruía, de quebra, de um valor simbólico bastante peculiar em relação às outras cidades. Simplesmente porque a capital da República era o cartão de visitas do País, o lugar onde figuravam as mais importantes e tradicionais famílias do País, além de artistas e intelectuais renomados (MOTTA, 2004). Figura 1. Construção da avenida Central no Rio de Janeiro, inspirada na reforma urbanística parisiense. Fonte: <http://brasil.estadao.com.br/blogs/estadao-rio/um-passeio-por-110-anos-da-avenida-rio-branco/.> O crescimento urbano tem, nesse sentido, relações estreitas com o processo de saneamento promovido pelas autoridades sanitárias do início do século, como Oswaldo Cruz. Seja por conta das obras de urbanização que provocaram profundas transformações na antiga cidade colonial de ruas estreitas e topografia tortuosa, seja pelo controle das epidemias que dizimavam as populações de toda a cidade, o período é conhecido pela historiografia como Belle Époque, tempo de profunda inspiração no modelo de crescimento urbano e modernização europeu, sobretudo francês (ver BENCHIMOL, 1992; NEEDELL, 1993; ROCHA; CARVALHO, 1995; DAMAZIO, 1996; CHALHOUB, 1996). Importante O Instituto Soroterápico de Manguinhos foi criado em 1899, no entanto, somente em dezembro de 1907, sob a gestão de Afonso Pena, ele foi transformado em Instituto de Patologia Experimental, regulamentado, no ano seguinte, com o nome de Instituto Oswaldo Cruz. O famoso Castelo do Mourisco, que se vê na Avenida Brasil, na altura de Manguinhos, foi ocupado em 1910, sendo efetivamente concluído somente em 1917 (BENCHIMOL; TEIXEIRA, 1993). 18 CAPÍTULO 1 • A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS A fórmula que promoveu certo equilíbrio político entre os estados e a União, chamada pelo Presidente Campos Sales de política dos estados, obteve bons resultados no País como um todo, e foi, também, diretamente responsável pelo processo de crescimento urbano apontado anteriormente. Com ela, o presidente se vinculava às forças políticas majoritárias de cada estado em troca de maior apoio e autonomia político-administrativa no plano federal. No Rio de Janeiro, tal fórmula de imediato tinha aplicação complicada, já que poderia colocar em risco a soberania do poder da União justamente em sua própria sede. A saída para o impasse fora viabilizada pelo Presidente Rodrigues Alves. Em dezembro de 1902, ele obteve do Parlamento a aprovação da Lei no 939, que alterou profundamente a organização política do Distrito Federal. Entre outras mudanças impulsionadas pela lei, cabia, agora, ao Presidente da República a indicação dos prefeitos e substitutos para a cidade. O Senado agora poderia apenas apreciar os vetos do prefeito. Para Américo Freire: Desde a criação do Distrito Federal e a aprovação da Lei Orgânica, esta fora a mais profunda intervenção produzida no sistema político-administrativo da cidade. Perderam força tanto os grupos políticos locais, que tinham por base o Conselho Municipal, como o Senado Federal, que reduziria em parte o seu poder de órgão supervisor da administração da capital federal. Foi, portanto, a Lei no 939 que criou a figura do prefeito/interventor federal. (FREIRE, 2000, p. 27) A “cidade maravilhosa” que nasce com o prefeito Francisco Pereira Passos, indicado pelo próprio Rodrigues Alves, começa, assim, a adquirir e a manipular conscientemente a imagem de porta-voz do País. Apesar de toda inquietação política, cedo as elites locais perceberam os ganhos do novo status social e político no cenário nacional. Além do mais, a política carioca diferenciava-se das demais exatamente por ser marcada historicamente pelo ideal de referência política e cultural ao resto do País. O Rio fora corte, ainda no Brasil-colônia; centro do Estado imperial e dos acontecimentos que resultaram na República para, finalmente, ser capital do Brasil republicano. A cidade fez da esfera do poder sua própria identidade cultural. Podemos concluir que essa longa tradição de relação com o poder, como centro das decisões políticas. A imagem que podemos vislumbrar para o Rio, em contraposição à realidade de sua vizinha e crescente cidade, São Paulo, é a da tradição. A força política dos cariocas fora sempre dimensionada pelo papel que a cidade executara no seu passado e vivo em seu presente, voltada não só para as suas mazelas e potencialidades, mas, também, pelo que foi dito, para os problemas do País como um todo. O Rio fora sempre mais que sua dimensão geográfica restringia, pois historicamente, desde muito cedo, a cidade colonial projetara suas influências políticas e culturais ao restante do Brasil. 19 A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS • CAPÍTULO 1 São Paulo, ao contrário, jamais vivera sob alguma percepção mais aguda do nacional, como os cariocas. Sua posição geográfica, estranha à experiência histórica lusa no nosso país, legou aos paulistas uma percepção bastante local de seu espaço e da sua experiência política. O que, somado ao processo de transformação abrupto nas formas de trabalho e organização da sociedade, a partir do final do século XIX, com a imigração, o crescimento urbano, o surgimento de uma burocracia estadual bem mais organizada, se comparada ao restante do País, sensivelmente produziu uma percepção geográfica, entre a elite paulista, diferenciada dos cariocas e dos demais brasileiros. Essa percepção carioca, por sua vez, tinha relação com a maneira também diferenciada de lidar com a máquina política e a burocracia no âmbito do Estado. Ao contrário de outras cidades e regiões do País, essa “intervenção” federal prematura na cidade, antes mesmo dos interventores de Vargas do pós-1930, não representou propriamente um desarranjo das elites locais, justamente porque essas não existiam senão em função da autoridade ligada à administração e à burocracia federal. Desse modo, o arranjo político que desembocava em tomada de decisões ou o desenvolvimento de projetos – como a própria remodelação da cidade –, só foi possível graças, num mesmo tempo, a uma federalização dos recursos do município, incluindo os simbólicos, e uma municipalização dos recursos da União. Nesse pacto, saíram ganhando, em alguma medida, as duas esferas do Rio de Janeiro. Segundo Motta (2004, p. 46), o Distrito Federal, como os outros estados da Federação, tinha três senadores e dez deputados representantes no Congresso Nacional e vinte sete intendentes na Câmara Municipal. O prefeito, vale lembrar, juntamente com o chefe de polícia, eram indicados pelo próprio presidente da República, ao passo que o Senado apreciava os vetos do prefeito. Assim, a esfera de ação política da municipalidade confundia-se, em alguma medida, com a federal. E nesse contexto, no dizer de Raimundo Faoro, que “raramente, uma ave solitária pousava nos bancos da Câmara, sem que, só e abandonada, fizesse verão”. (1953, p. 245) Essa autêntica fragmentação do campo político dos cariocas, dividido entre o Presidente da República, o prefeito, senadores, deputados e, finalmente, os intendentes; foi possível e, de alguma maneira, viável, graças ao alto grau de interação entre os atores sociais no comando da máquina político-administrativa. Essa interação, no dizer de Motta, era mais que política, pois tinha também uma dimensão cultural, alimentada pelas relações sociais intensas e pessoais daquele período: Atenção É curioso notar os nomes de alguns grandes jornais criados nas duas regiões. Enquanto a imprensa carioca faz menção ao nacional, com jornais como O País, quando não adere a pretensões mais universalizantes, como O Globo; São Paulo, por sua vez, quasesempre mais fechado em si, como sugerem os títulos dos jornais A Província de São Paulo, ou mesmo O Estado de São Paulo. 20 CAPÍTULO 1 • A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS No Rio, localizavam-se as instituições formais encarregadas da instrução intelectual e social da elite brasileira. Pelo Colégio Pedro II passaram os filhos dos grandes latifundiários provincianos, dos políticos, dos magnatas do comércio. Nomes como os de Paulo de Frontin, Washington Luiz, Rodrigues Alves, Antônio Prado, entre outros. No Rio, situavam-se os clubes sociais, como o Club dos Diários e o Jockey Club, pontos de encontro de Rui Barbosa, Pereira Passos, Pinheiro Machado, barão do Rio Branco, que aí se reuniam para jogar, almoçar, e, sobretudo, trocar ideias. A passagem pelos bancos do Pedro II, pelos salões dos Diários e do Jockey Club, pelo Teatro da Ópera, era condição necessária para o ingresso no fechado clube da elite política brasileira. (MOTTA, 2004, p. 49) É importante lembrar também que não existia nenhum movimento político organizado que firmasse os interesses políticos cariocas em contraposição aos “nacionais”. O frágil Partido Republicano Federalista jamais conseguiu produzir uma identidade regional forte, dissociada da imagem de vitrine do País ou símbolo da nacionalidade, que desfrutava a região. Certamente, como mostrou o trabalho de Motta (2004), as populações do Rio não se encontravam apáticas ou destituídas de alguma sintonia com relação aos debates e aos interesses políticos negociados entre as elites. Por meio de sindicatos, associações e manifestações, muitas vezes violentas, a população se manifestou perante o que consideravam um desacordo frente a seus interesses, embora em muitos conflitos não possamos identificar alguma noção de identidade local entre os manifestantes. O fato é que essa dimensão extremamente pessoalizada das relações políticas começa a ser ligeiramente abalada, sem, contudo, ser jamais eliminada, com a montagem de todo o aparato técnico-burocrático elaborado por Vargas e seus técnicos, cujo coração é justamente o Palácio do Catete, em pleno Distrito Federal. A expressão Era, em referência ao período Vargas, portanto, não deve ser usada apenas com relação à longa duração que foi aquele período, mas, também, em função das profundas transformações ensejadas pelo político gaúcho na capital federal e em todo o País. Os ventos dos anos 1920 A experiência da República Velha não veio ao chão, súbita e simplesmente quando, no início de novembro de 1930, um político gaúcho rumou, com tropas aliadas, para a capital da República, o Sugestão de estudo Sobre o Poder Legislativo no Rio de Janeiro, ver excelente publicação ilustrada elaborada pelo Núcleo de Memória Política Carioca e Fluminense, Palácio Tiradentes: lugar de memória do parlamento brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, [2001]. 21 A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS • CAPÍTULO 1 Rio de Janeiro. Sua decadência foi gradual e pode ser percebida nas profundas mudanças sociais, econômicas e políticas que tomam vulto a partir dos anos 1920. Não foram poucas. Um primeiro indicativo de mudança era social, cultural, mas, sobretudo, política. Durante os anos 1910, cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo avançaram sensivelmente em um processo de industrialização, especialmente na área têxtil. A industrialização, como um processo econômico, repercutia imediatamente em um processo social, com a emergência de um ator que seria fundamental na história do Brasil até os dias de hoje: os operários. Uma classe operária, cada vez mais organizada, pleiteava por salários justos e melhores condições de trabalho. Muitos dos quais eram europeus, recém-chegados das lutas em seus países de origem. Traziam na mala, aos olhos das elites nacionais, perigosas ideias: eram anarquistas e marxistas. No vocabulário desses trabalhadores figurava a ideia de luta de classes, de exploração e de conflito social. Não à toa se organizavam, pois logo perceberam que a luta política poderia ser menos ingrata caso estivessem bem organizados e solidários. Nessa linha de pensamento, por exemplo, em 1917 seremos testemunhas daquela que ficou na história como a primeira greve operária do País, realizada em São Paulo, onde o processo de industrialização foi tanto mais avassalador quanto a entrada de estrangeiros fora mais intensa. Greves como essa, que logo se intensificariam, tornaram o ambiente político ainda mais instável. Parecia cada vez mais claro que as velhas formas e receitas da República Oligárquica não dariam conta de uma sociedade em mutação. Como parte do mesmo contexto, em 1922, na cidade de Niterói, seria fundado o Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Partido que seria protagonista de importantes lutas políticas na história do Brasil a partir de então. Outro ator político fundamental para compreendermos o ambiente de críticas e a derrocada da Primeira República é o “tenente”. Trata-se de uma jovem oficialidade das Forças Armadas, gente bastante politizada que entendia que o Estado central brasileiro deveria ser fortalecido em contraposição às elites oligárquicas locais. A chamada Revolta do Forte de Copacabana, também de 1922, dá uma ideia do ambiente de extremismo político da época. As consequências do tenentismo foram as mais diversas, como eram diversos os posicionamentos de seus diversos atores. Muitos iriam, mais adiante, apoiar o governo Vargas; outros, mais radicais, iriam apoiar e configurar a chamada Coluna Prestes. Alguns se converteriam ao credo comunista; outros ao fascismo de base integralista. A despeito da diferente coloração política, ao que tudo indica, todos acreditavam na presença de um Estado vigoroso e forte e, eventualmente, de perfil autoritário na sua relação com a sociedade. Não à toa, alguns deles, como Ernesto Geisel, Eduardo Gomes, Castelo Branco, Médici, Juraci Magalhães e outros, teriam um papel a cumprir no golpe de 1964, evento que abre as portas para uma ditadura militar no Brasil. Os anos 1920, nesse sentido, mais do que gerar um ambiente político instável, foram capazes de gerar atores sociais e políticos que teriam papel duradouro na história política brasileira a partir 22 CAPÍTULO 1 • A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS de então. O movimento operário, sobretudo organizado, seria decisivo nos arranjos políticos do governo Vargas, por exemplo. Vargas, ao criar o trabalhismo e todo um aparato de controle dos trabalhadores sindicalizados, soube, como ninguém, tirar proveito dessa diversa e crescente classe social. Os tenentes, por sua vez, constituíram uma igualmente diversificada casta militar. Um tipo de militar que tinha “projetos” para o Brasil. Essa formação missionária do Exército brasileiro certamente encontra suas raízes no positivismo, mas dele soube se diferenciar, ao incorporar outras ideologias e crenças políticas, fruto dos confrontos e disputas da sociedade brasileira dos anos 1920. No campo das artes, em certo sentido, como síntese das mudanças sociais em andamento e, ao mesmo tempo, apontando para as mudanças desejadas, ocorria em São Paulo a chamada Semana de Arte Moderna. Mais uma vez no fatídico ano de 1922. Em fevereiro desse ano, jovens como Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos, Di Cavalcanti e outros que compunham uma vanguarda do modernismo, nas dependências do Teatro Municipal de São Paulo organizaram um evento que passava em revisão das experiências estéticas da cultura nacional. Figura 2. Cartaz da Semana de Arte Moderna. Fonte: <http://portalarquitetonico.com.br/semanade22/>. Na poesia, na música, nas artes plásticas, na arquitetura e na literatura, eles apontavam para uma diferente forma de expressar e representar o Brasil. Eram jovens cultos, muitos dos quais com boa experiência nas salas europeias, traziam em suas bagagens o cubismo, o expressionismo e outros movimentos de vanguardado Velho Continente. 23 A REPÚBLICA “VELHA” E A POLÍtICA DAS OLIGARQUIAS • CAPÍTULO 1 Figura 3. Programa da Semana de Arte Moderna. Fonte: <http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/os-90-anos-da-semana-de-arte-moderna>. Souberam tirar deles a base de criação de um movimento original que, de forma contundente, colocava em pauta o Brasil e sua gente. O prestígio que o movimento tem em nossos dias em nada coincide com a recepção que teve naquele momento. A imprensa e os críticos não perdoaram, logo qualificaram os artistas como débeis e subversores da verdadeira arte. Aquela experiência, diante de sua originalidade e potência de suas ideias, transcendeu ao contexto dos anos 1920. A ideia de uma “antropofagia”, tão cara aos modernistas, contaminaria outras experiências em outros momentos. Os tropicalistas e a Bossa Nova, com a influência e a mistura de ritmos, não nos deixam mentir. Sintetizando Os anos 1920 foram capazes de produzir um conjunto de atores e forças que, ao que tudo indica, não sustentavam mais a ordem política e social dominante. Esses atores, e seus movimentos, apontavam para outro sentido, ainda que sob a perspectiva de distintos projetos. Alguns inspiravam-se na democracia liberal à americana; outros aproximavam-se mais de modelos estatistas centralizadores e, em alguns casos, antidemocráticos. Em termos de espectro político, ao final desse período, a longeva oposição entre comunistas versus integralistas já bem se delineava. O fato é que a insatisfação era generalizada, seja nos ambientes mais populares, seja nos salões que habitavam parte daquelas elites. A insatisfação culminaria na construção de uma renovada aliança que, por intermédio da força, colocaria fim à chamada República Oligárquica. Esse é o assunto de nosso próximo capítulo. 24 Introdução Neste capítulo, estudaremos o período que se inicia com o golpe de Estado de 1930 que levou Getúlio Vargas ao poder até sua saída, com o fim do chamado Estado Novo, a ditadura que o presidente comandou de 1937 a 1945. Veremos as condições em que Vargas construiu a articulação de forças políticas que o sustentou e os projetos de Brasil que implementou, com especial destaque para a construção do aparelho administrativo estatal e da nova inserção política e econômica do Brasil no cenário mundial. Objetivos Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de: » Compreender o processo de mudanças que teve origem no Golpe de 1930. » Analisar as tensões entre a tradição aristocrática, rural e patrimonialista e os projetos industrialistas e modernizadores da economia. » Refletir sobre o papel do Estado nas mudanças ocorridas no período e no modelo político e jurídico que orienta as disputas políticas no Brasil. Linhas gerais do período Vargas O primeiro ano de ditadura, 1931, foi um ano de rigorosa economia, cortes nas despesas, redução de vencimentos, a começar pelo presidente da República, suspensão de obras etc. Esse golpe inicial em todos os abusos e despesas adiáveis precisaria pelo menos de três anos para alcançar os seus resultados, e teríamos o almejado equilíbrio orçamentário, apesar das dificuldades externas criadas pela crise econômica. Para isso, seriam necessários três anos de ditadura, fazendo administração e alheados da clientela política e dos partidos. Infelizmente não foi possível... (Diário de Vargas, 21/8/1935) 2 CAPÍTULO O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS 25 O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS • CAPÍTULO 2 A chegada e instalação do político gaúcho Getúlio Vargas à capital federal, no final de 1930, mudaria decididamente a trajetória política, social e econômica do País. O fragmento acima, retirado do diário do então presidente da República, dá uma boa ideia do que foi sua experiência e intenções no poder. Vargas realça seus esforços no sentido de produzir maior controle sobre a economia. Tal tendência se contextualiza no forte antiliberalismo que se espalhou, entre outras coisas, em resposta à crise de 1929, que aparecia como prova inconteste do fracasso do liberalismo. Essa tendência não só tomou corações e mentes nacionais, mas que, também, encontrava grande respaldo internacional com as experiências fascistas, comunistas e, de algum modo, no próprio governo do Presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt que, por intermédio do seu New Deal, lograva maior interferência do Estado na economia dos Estados Unidos da América. Em resumo, havia, em termos nacionais e internacionais, uma generalizada crença de que o mercado não poderia ser deixado fora do controle do Estado. Figura 4. Getúlio Vargas e sua comitiva em Itararé, São Paulo. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Itarar%C3%A9#/media/File:Revolu%C3%A7%C3%A3o_de_1930.jpg>. No mesmo fragmento retirado do seu diário, Vargas nos chama, ainda, a atenção, para seu projeto de “Estado forte” e ditatorial. Isto é, em suas palavras, para a necessidade de concentrar poder no âmbito do Executivo federal em contraposição a outros grupos e formas de representação política, como os partidos. Vê-se logo que sua avaliação a esse respeito foi negativa. Não nos deixemos, no entanto, iludir com as palavras de Vargas. Seu projeto de Estado e sociedade, em boa medida, se realizou. Muitas foram as mudanças impressas pelas mãos do seu governo, em seus cerca de 15 anos ininterruptos de gestão. Mudanças sociais e econômicas que tomavam vulto naquele contexto, conforme já sinalizamos no capítulo anterior, foram habilmente aproveitadas pelo presidente. Sua relação com a crescente classe operária é bom exemplo disso. 26 CAPÍTULO 2 • O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS Um governo tão longo, e por um período repleto de mudanças importantes, não poderia ser uniforme no tempo. A historiografia clássica costuma dividir a experiência de governo de Getúlio Vargas em quatro grandes etapas. A primeira se dá com sua ascensão ao poder, em 1930, e segue até 1934. A Carta Constitucional vigente na Primeira República seria abolida, instala-se, então, um “Governo Provisório”. Uma nova Constituição, que fora estopim para uma revolução em São Paulo, inaugura sua segunda fase no poder, o “Período Constitucional”. A emergência do “Estado Novo”, em 1937, colocaria fim à fase constitucional e se estenderia até o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Vargas só retornaria para o poder novamente no início dos anos 1950, agora eleito. Essa quarta fase seria interrompida pelo dramático desfecho de seu suicídio, em agosto de 1954. Um período fundamental para que possamos melhor compreender o Brasil contemporâneo, bem como alguns de seus desafios para o futuro. A “Revolução” de 1930 O golpe de Estado que ficou conhecido como “revolução” de 1930 veio a público em 3 de novembro nos estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Não é coincidência que as lideranças desses estados se voltassem contra o governo federal. Neles, residiam os grupos, mais bem organizados, que se sentiam traídos e alijados por um governo federal aparelhado em torno dos interesses dos paulistas. O Nordeste, a partir da Paraíba, viria atrás, e no dia seguinte deslancharia sua ofensiva, sob o comando de Juarez Távora. No final de outubro, uma junta militar, composta pelos generais Mena Barreto, Tasso Fragoso e outros, depôs o presidente Washington Luis, em uma inútil tentativa de reter a macha revolucionária (FAUSTO, 2006, p. 325). A chegada de Vargas ao Rio de Janeiro, com cerca de 3 mil soldados, deixava claro que as mudanças eram irreversíveis. No dia 3 de novembro de 1930, o gaúcho assumia a Presidência da República do Brasil. A ascensão ao poder de Getúlio Vargas decorreu de um profundo e gradual desgaste das instituições políticas – e da própria política – da Primeira República, que já não conseguiam responder com eficiência a um quadro social, em muitos sentidos, cada vez mais complexo na sociedade brasileira. O exílio do presidente WashingtonLuís, quase que imediatamente se fez acompanhar pelo surgimento do Governo Provisório, em 3 de novembro de 1930, e que se prolongou até 16 de julho de 1934, quando, finalmente, o País teve nova Carta Constitucional. Sugestão de estudo Sobre a decadência do chamado estado oligárquico não só no Brasil, mas, também, como um fenômeno mais ou menos uniforme em toda a América Latina, é interessante o trabalho de Octávio Ianni, A formação do Estado populista na América Latina (Série Fundamentos, no 37). São Paulo: Ática, 1989. 27 O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS • CAPÍTULO 2 De imediato ocorreu uma sequência de importantes mudanças administrativas levadas a cabo pelo novo presidente. A começar pela nomeação dos interventores nos governos estaduais. Boa parte deles era oriunda do movimento tenentista, um dos ingredientes responsáveis pela crise da República oligárquica das primeiras décadas do século XX. Nomes hoje famosos como os de João Alberto, Juraci Magalhães, Juarez Távora tomaram imediatamente conta das máquinas político-administrativas locais, com exceção do governador Olegário Maciel, primo de Gustavo Capanema, que permaneceu no poder em Minas Gerais com o consentimento de Vargas. Nas palavras do presidente, sob o calor dos acontecimentos da revolução: Começam as tentativas para a organização do Ministério. Alguns nomes eu já trazia fixados, outros foram sendo sugeridos depois. A mentalidade criada pela Revolução não admitia mais o emprego dos velhos processos, do critério puramente político. (Diário de Getúlio Vargas, 1/11/1930, p. 21) É o contexto da dissolução dos Legislativos federal, estaduais e municipais, a ocorrência de uma sequência de importantes mudanças político-administrativas nos ministérios, bem como a criação de novas pastas. Todo esse turbilhão de mudanças deu uma nova cara ao Executivo federal, com a implementação de uma máquina administrativa renovada nos governos, seja qual fosse o nível de ação. Sobre a natureza e a eficiência ou não de todas essas mudanças operadas na estrutura do Estado brasileiro não parece ser suficiente encerrar todo o processo como um simples caminhar rumo à centralização política. Como vimos anteriormente, toda a mudança era alimentada por transformações estruturais que se operavam na sociedade brasileira pelo menos desde o século XIX, alterações que iam do franco crescimento populacional até a lenta diversificação da economia do País dos anos 1920, aliada ao surgimento de novos modos de vida. Nesse sentido, não é possível reduzir o processo de mudança a um balé sincrônico de acontecimentos mais recentes, pois ele tem raízes numa dinâmica de construção da nacionalidade que tomava vulto, sobretudo, a partir da segunda metade do século XIX, quando políticos e intelectuais se debruçaram sobre temas então considerados estritamente nacionais. Isto tudo ia desde o âmbito racial, bandeira de uma época, até formas de organização política mais apropriadas às características de um jovem país situado na América Latina. Historicamente, nossas elites, intelectuais e políticas, juntamente com o suporte, por vezes teórico, dos estrangeiros, elaboraram um modelo de pensamento difícil de ser abandonado ainda em nossos dias. Trata-se, de uma percepção que aponta para a impossibilidade das coisas que deram certo em outros cantos, funcionarem adequadamente entre nós, aqui nos trópicos. As explicações para essa perspectiva gravitaram desde aquelas mais ortodoxas, ligadas ao discurso racial, até as mais modernas, que imputam à cultura um peso quase sobrenatural. Nesse quadro, não foram poucas vezes que se atentou que a nossa especificidade exigia soluções originais, em sintonia justamente com nossa especificidade, há muito identificada e insistentemente descrita pelos intelectuais. 28 CAPÍTULO 2 • O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS É nesse quadro que a gestão Vargas volta-se para o “problema da organização”. A chamada crise dos anos 1920 contextualiza-se em uma percepção, por parte de alguns segmentos intelectuais, de que o atraso brasileiro com relação às demais nações modernas e desenvolvidas poderia ser traduzido simplesmente pela ausência de uma estrutura político-administrativa que tivesse a capacidade de afastar definitivamente o elemento contaminador dos atos políticos. A saída, começou-se a pregar na época, estava na técnica, uma técnica cuja utopia e política residiria no fato de se pretender ser justamente apolítica. De acordo com perspectiva de Ângela de Castro Gomes: é a partir dos anos 20 que tem início um processo de crítica à definição dos critérios de acesso aos postos-chaves do aparelho de estado e aos valores necessários ao desempenho das funções governamentais. Durante o período imperial e mesmo durante a Primeira República, os homens públicos brasileiros eram “os políticos”, ou seja, eram oriundos do “mundo político”, quer porque fossem eles mesmos os inauguradores de uma “chefia” municipal, estadual ou federal, quer porque fossem filhos e/ou herdeiros de “famílias políticas”. (CASTRO GOMES, 1994, p. 3) Assim, nas palavras de Luis Simões Lopes, o homem que primeiro chegou à frente do Conselho Federal do Serviço Público, criado em 1936, depois do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), de 1938 até 1945, comandou boa parte das reformas administrativas do pós-1930: A situação da administração pública brasileira era então [até 1930] das mais lamentáveis, pois fora submetida, durante largos anos, a um regime eminentemente político, em que a escolha para os cargos públicos se fazia sob pressão dos políticos que apoiavam o governo. (Depoimento de Luis Simões Lopes, 1986, pp. 39/41) É o início da construção de uma oposição ainda muito viva em nosso imaginário, segundo a qual há uma benéfica neutralidade no campo da técnica e, por outro lado, uma espécie de desvirtuamento constante ou mesmo em potencial no campo da política. No final das contas, na esfera política não poderíamos conceber eficiência, pois ela seria um jogo em que a pauta dos interesses recairia invariavelmente nas vontades particulares e privadas, em oposição aos nacionais. A partir desse contexto, por exemplo, Lawrence Graham (1968) parte em seu trabalho de uma constatação de valor ao considerar que, apesar de todo o investimento rumo a uma reforma institucional e administrativa, emprestada, segundo ele, do modelo norte-americano, pouco impacto estabeleceu em matéria de economia e eficiência nas rotinas das decisões governamentais no nosso país. Sua hipótese central de trabalho é que há uma importante discrepância entre as medidas estabelecidas no plano administrativo e as realidades existentes, constituídas a partir da movimentação dos atores sociais. Mas, enfim, nesses termos, o que de fato podemos sinalizar como experiências importantes durante a gestão Vargas? 29 O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS • CAPÍTULO 2 A agenda de trabalho do governo Vargas Conforme já sinalizamos, não resta dúvida de que a maior tarefa a que Vargas se impôs, e a qual deixará seu maior legado, seja o fortalecimento do Estado brasileiro. Quando nos referimos a esse processo entenda-se que o político gaúcho deu passos decisivos rumo ao fortalecimento político-administrativo da máquina estatal, sobretudo aquela organizada em torno das atividades da União. Nesse sentido, Beatriz Wahrlich (1983) diz que as ideias acerca da necessidade de uma reforma administrativa que atualizasse o funcionamento do Estado brasileiro já aparecem claramente na plataforma da Aliança Liberal, sob o título “o problema do funcionalismo”. A tônica da Aliança, como se poderia confirmar posteriormente, estava na necessidade de colocar o Presidente da República no centro das decisões governamentais, como o principal baluarte na coordenação das políticas públicas em todo o território nacional. A partir desse pressuposto elementar, lança-se foco sobre departamentos,instituições e comissões que arregimentavam o aparelho do Estado. Agora, segundo os porta-vozes dos novos tempos, devia-se criar toda uma estrutura político-administrativa que desse voz às intenções levantadas como bandeira pela Aliança que viabilizou o golpe de estado, sobretudo a necessidade de centralização política. Pelo Decreto no 19.398, de 11 de novembro de 1930, ainda sob o calor do ímpeto revolucionário de agosto, instituiu-se que somente ao Presidente da República cabiam nomeações e demissões de funcionários do Estado. Nesse mesmo mês ficou determinado que o Governo Provisório passaria por algumas transformações ministeriais. Percebe-se que, imediatamente a partir dos tumultuados dias da revolução, toda a estrutura administrativa do Executivo federal sofreu um reordenamento importante. Isso sem considerarmos o impacto nos Legislativos federal, estaduais e municipais que foram dissolvidos com só um golpe de caneta. Por isso, nas palavras de Wahrlich: Ao findar-se o ano de 1930 estavam delineadas, portanto, as principais preocupações de Getúlio Vargas no tocante à reforma administrativa, nos primeiros atos de seu governo: de um lado, fortalecer a organização administrativa federal, partindo do setor social; de outro, introduzir medidas de racionalização administrativa, visando à obtenção de maior economia e eficiência. (WHARLICH, 1983, p. 11) Outro aspecto fundamental do período Vargas tem a ver com a cooptação e controle dos trabalhadores urbanos por intermédio da criação de uma legislação e todo um aparato de organização dos trabalhadores. Os sindicatos e os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) foram peças importantes na relação do governo com uma classe trabalhadora que, desde os anos 1920, organizava-se como uma força política quase sempre resistente aos governos instalados. 30 CAPÍTULO 2 • O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS Figura 5. Concentração de comemoração do dia do trabalho no campo do Vasco da Gama, Rio de Janeiro. Fonte: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos37-45/DireitosSociaistrabalhistas>. Ao introduzir mecanismos de proteção social aos trabalhadores sindicalizados, que crescentemente somavam-se com mecanismos de comunicação e propaganda do regime, Vargas aproximou-se dos trabalhadores e conformou as bases do que se convencionou chamar trabalhismo. A criação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no final de sua gestão, em 1945, conformava em termos político-eleitorais, uma tradição cuja origem remonta aos primeiros tempos do governo Vargas. O fortalecimento e melhor organização da classe trabalhadora, por outro lado, mantinha relação com o fortalecimento da indústria naquele período. A indústria, sobretudo de base, faria parte da agenda governamental sem que os interesses de agroexportadores fossem totalmente deixados de lado. O café, por exemplo, continuaria a ter relevância na economia brasileira, pelo menos até os anos 1950. Elementos para um contexto Na perspectiva de Fernando Uricoechea (1978), o conflito entre o poder local, nas mãos de poderosos proprietários de terras, e o poder federal começa a ser favorável a esses últimos não somente em razão exclusivamente do avanço do processo de centralização política promovido pela União, mas à medida que se avançava gradualmente na burocratização da administração do Estado. Isso porque, nesse ponto de vista, a substância da burocracia seria quase que 31 O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS • CAPÍTULO 2 exclusivamente o jogo político que imprimiu uma movimentação de peças de acordo com os interesses dos poderosos, sempre ávidos por mais poder. No capítulo anterior referimos que os anos 1920 foi palco de profundas mudanças sociais e econômicas na sociedade brasileira. Essas mudanças continuaram vigorosas durante o período Vargas. E são visíveis, como já sinalizamos, no fenômeno da intensa industrialização e no crescimento das cidades, bem como no fortalecimento do operariado como um grupo social mais organizado e expressivo no quadro político nacional. Uma mudança, contudo, é praticamente consenso na historiografia sobre o período: as transformações pelas quais passou o Estado brasileiro. No centro do processo de mudança do aparelho de Estado brasileiro encontramos, de forma vigorosa, naquela época, o fenômeno da burocratização. Por trás desse processo, como dissemos, encontramos uma crescente transformação na sociedade: novos atores e novas classes sociais. Não há uma fartura de dados inteiramente confiáveis sobre o processo de burocratização, nesse ponto de vista, no Brasil. Mário Wagner Vieira da Cunha (1963), Juarez Brandão Lopes (1971) e Edmundo Campos (1978) apresentam alguns dados que são esclarecedores nesse sentido. Segundo o último, em 1920, havia no País cerca de 37.644 indivíduos que ocupavam cargos e desempenhavam funções administrativas na indústria. Até 1950 ocorre um formidável salto, há no País nesse momento cerca de 215 mil pessoas ligadas a atividades administrativas; 7,7% da população brasileira na ativa. Se acrescentássemos a esses números as pessoas que ocupavam cargos burocráticos no Estado obteríamos um aumento importante. Basta observar os dados que o próprio autor traz. Em 1920, o funcionalismo federal era constituído por 65.533 indivíduos. Em 1965, temos 381.202 pessoas. Isso sem considerar as administrações estaduais e municipais e os militares (PAIVA, 2009). Juarez Brandão Lopes aborda o fenômeno da burocratização sob a ótica do que ele denomina a emergência de uma sociedade de massas no País. O autor coloca a burocracia dependente da industrialização e urbanização, além da emergência de uma classe média urbana. Em razão disso é que a modernização se localiza, em sua visão, quase que inteiramente no centro-sul do País, acentuadamente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Segundo ele, “tudo está a indicar a alta concentração de estabelecimentos de elevado grau de racionalização (e burocratização) no centro-sul, abarcando parcela considerável do operariado da região e do valor da transformação industrial nela realizada” (1971, p. 99). Na visão do autor, essa mudança social é gradual, pois não se opera uma transformação abrupta e radical de um modelo patrimonialista para um burocrático. Nas suas palavras: continuam, em boa medida, as práticas patrimonialistas (a de “cuidar” de seus operários, a administração “particularista” de pessoal etc.), mas, misturadas, 32 CAPÍTULO 2 • O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS agora com tentativas de intensificação do ritmo de trabalho, preocupação esporádica de substituir por mão de obra mais barata (mulheres e menores) a mais cara (homens adultos), de aumentar aluguéis das casas da fábrica etc. Tais reações, por parte dos empregadores representam, todavia, quebra das relações tradicionais de trabalho e aumento de tensão entre operários e mestres. [...]. Os laços de obrigação e lealdade se quebraram. Um processo acumulativo e circular implanta-se e o comportamento e as relações afastam-se cada vez mais dos padrões patrimonialistas. O processo é irreversível e a sua resultante é a gradual desapropriação dos vínculos patrimonialistas. (LOPES, 1971, pp. 191-192) O surgimento da noção de que a sociedade deveria ser regida por um sistema objetivo de normas diferentes daquelas que orientam a vida dos indivíduos na esfera de suas vidas privadas provocou, quando em sua aplicação, transformações importantes na relação entre sujeitos sociais e o Estado. É nesse contexto, por exemplo, que surgem novos padrões de trabalho e ações administrativas, mais especializados, tecnicamente racionalizados: a criação do concurso público para o ingresso no funcionalismo de carreira do Estado, em 1934; a fundação do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), em 1938; a constituição de um estatuto para os funcionários públicos, em 1939, entre outras. Essas transformações que fincam raízesno século XIX têm, também, a ver com transformações em escala global. É durante a Primeira República que um acontecimento de impacto, como foi a Primeira Guerra Mundial, provoca importantes mudanças na forma como os atores sociais, políticos e intelectuais apreendem a realidade social de seu tempo. O conflito de escala mundial gerou na maioria dos países do globo uma profunda incerteza quanto à possibilidade de superação do atraso social via liberalismo, o que ficaria realmente óbvio a partir dos anos 1930 (HOBSBAWM, 1995, 29-219). Surge, então, a bandeira do Estado como uma espécie de entidade organizada e preparada para intervir numa realidade, no mínimo, potencialmente caótica. E tudo isso provoca certa decadência na influência das elites oligárquicas tradicionais, o que contribuiu para o fim do chamado Estado Oligárquico. A partir de 1930, sobretudo após a instauração do Estado Novo, em 1937, toda essa estrutura imposta “pelo alto” (Ver CASTRO SANTOS, 1993), no correr dos tempos dos barões do café, sofre uma crise em suas velhas formas de organização política e social. Daí em diante, as decisões relativas às políticas de Estado passam a depender, mais do que na década de 1920, de negociações com a burocracia central do governo. O que era gestado no microcosmo local, passa a ser objeto e resultado de uma conjunção muito mais complexa de fatores e atores sociais. É chegada a Era da Burocracia de Vargas. O governo Vargas É difícil tratar todo o período que Getúlio Vargas permaneceu no poder como uma simples sequência de gestões. Foi mais, pois ao longo desses cerca de quinze anos ininterruptos no poder, 33 O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS • CAPÍTULO 2 o presidente teve que enfrentar diferentes desafios, que implicaram respostas distintas em forma e conteúdo: ora em sintonia, ora em conflito com a ordem social e política tradicional brasileira. Além disso, não é fácil tratá-lo como “mais um presidente”, pois suas ações significaram, muitas vezes, uma nova rotina de funcionamento tanto da política como das instituições e da Administração Pública no País. Isso sem considerarmos as implicações sociais e econômicas dessas profundas mudanças operadas, sobretudo nesses primeiros períodos (o Governo Provisório, 1930-1934; o Período Constitucional, 1934-1937 e o Estado Novo, 1937-1945). Tal como discutimos anteriormente, o governo provisório caracterizou-se por profundas mudanças na agenda e na forma como o Estado passou a se organizar e a interagir com a sociedade. Em termos genéricos, Vargas tinha o apoio das elites gaúchas, mineiras e do Nordeste do País. Mas não se podia dizer o mesmo de São Paulo. Os paulistas se sentiam os principais prejudicados com as mudanças operadas pela Revolução de 1930. Em 1932, em meio a uma terrível guerra civil, manifestaram sua insatisfação com o governo federal. Ainda que o governo tenha vencido o conflito, Vargas achou por bem atender à principal reivindicação de São Paulo. No ano seguinte iniciavam-se os trabalhos em torno de uma nova Constituição, que viria a público em 1934. Uma Constituição com características liberais que previa eleições para presidente e, assim, instituía a ordem democrática. No final das contas, os anos 1934 e 1935, como se sabe, constituíram um período, embora curto, bastante conturbado. Muitas manifestações pró e contra o fascismo, greves de operários, bancários e funcionários públicos. O governo tentou, no início de 1935, que o Congresso votasse uma Lei de Segurança Nacional, o que gerou a resistência de diversos setores da sociedade brasileira. A radicalização, no entanto, acabou por ganhar força graças à falsa tentativa de golpe comunista, conhecida como Plano Cohen, o que provocou um forte aumento da repressão do governo aos adversários políticos, como a Aliança Nacional Libertadora, fundada em março de 1935 e fechada, a mando de Vargas, em julho do mesmo ano. Dessa forma, caía por terra um dos redutos da esquerda no País, que conjugava sob um mesmo teto jovens tenentes e comunistas. Sendo assim, os acontecimentos de 1935 foram mesmo decisivos para o desfecho político do período, com a instauração do Estado Novo, em 1937, quando há uma verdadeira institucionalização da violência, da tortura e da perseguição política. Instaurou-se, no dizer de Boris Fausto, um verdadeiro “estado de guerra” (2000, p. 361), com a decretação do estado de sítio não só nas zonas de conflito, como queriam alguns parlamentares, mas para todo o País. Isso sem considerar a criação de instituições voltadas inteiramente à repressão, como a Comissão de Repressão ao Comunismo, fundada em 1936. O resultado é que o período é fortemente marcado pela politização da sociedade e a repressão do Estado. As eleições previstas pela Carta Constitucional de 1934 jamais se realizaram. Valendo-se do radicalismo político e dos conflitos entre comunistas e integralistas, Vargas deu o golpe que pôs 34 CAPÍTULO 2 • O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS fim à Constituição que apoiara anos antes. Inicia-se, assim, o período mais duro de seu governo: o Estado Novo. Figura 6. Propaganda do Governo Vargas. Fonte: <http://www.infoescola.com/brasil-republicano/estado-novo/>. O Estado Novo caracteriza-se, como dissemos, pelo endurecimento do regime. Inspirado nas experiências fascistas europeias, Vargas desenvolve um sistema de propaganda em torno de sua figura. O regime e a nação se personificariam em torno da sua pessoa. A imprensa, sobretudo os jornais, passaria a ser alvo de censura, dissidentes e opositores seriam perseguidos. Apesar da inspiração fascista, não podemos tipificar o período como uma experiência fascista aos moldes europeus. De acordo com o trabalho de Edson Nunes, A gramática política do Brasil, há quatro padrões (em suas palavras, gramáticas) que estruturam as relações entre o Estado e a sociedade no Brasil. São eles: o clientelismo, o corporativismo, o insulamento burocrático e o universalismo de procedimentos. O primeiro vem, segundo ele, de longa data, e faz parte de um certo modus vivendi sul-americano. Os três seguintes nasceriam sob o governo de Getúlio Vargas, que sem fazer escolhas refletidas sobre um ou outro modelo, os obriga a uma convivência mútua, mas, muitas vezes, tensa. Assim, todo o elemento tradicional, depositado no primeiro dos padrões, seria ainda um componente estruturante no quadro da cultura brasileira, muito vivo nos seguintes. Desse modo, em sua perspectiva, a modernização não abandonaria o velho tempero do nepotismo, do patrimonialismo, das relações de pessoa a pessoa. 35 O GOLPE DE 1930 E O PRIMEIRO GOVERNO DE GEtÚLIO VARGAS • CAPÍTULO 2 Desse modo, Vargas, mesmo durante o período autoritário, conjugaria principalmente duas dessas quatro gramáticas idealizadas por Nunes, pois é com o clientelismo e com o corporativismo que o Presidente da República organiza as relações sociais ao manter razoavelmente domesticadas as velhas e tradicionais oligarquias regionais. Não que as outras gramáticas não estivessem ali presentes, sob um verniz qualquer, mas, sim, que se fizeram mais atuantes somente no início dos anos 1950, quando a relação Estado e sociedade no País ganha novo contorno institucional, evidentemente distinto daquele dos anos 1930. No contexto do Estado Novo, a criação do Dasp, o executor e símbolo da centralização política varguista, se deu em 30 de julho de 1938, pelo Decreto-Lei no 579, com base no artigo 67 da Constituição de 1937. A ideia de um aparelho de estado forte, centralizado e técnico, torna-se a missão institucional do novo organismo. Seu legado para a Administração Pública brasileira seria longo. O fim da primeira era Vargas, em 1945, não promove a diminuição do papel da burocracia na gerência do Estado e da sociedade. Mesmo com a democratização, ainda prevalece o modelo burocrático e o centralismo na Administração Pública. Segundo Diniz (2000), o período após Vargas preserva ainda
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