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Aurora Gedra Ruiz Alvarez Nefatalin Gonçalves Neto (orgs.) Literatura Portuguesa e legado: Homenagem a Raquel de Sousa Ribeiro 1a Edição São Paulo Todas as Musas 2020 Editor: Flavio Felicio Botton Supervisão Editorial: Fernanda Verdasca Botton Diagramação: Studio Vintage Br Aurora Gedra Ruiz Alvarez © Nefatalin Gonçalves Neto © É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a prévia autorização do autor. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Kátia Aguilar CRB – 8/8898 Li775 Literatura portuguesa e legado: homenagem a Raquel de Sousa Ribeiro: teoria e prática/ Organização de: Aurora Gedra Ruiz Al- varez; Nefatalin Gonçalves Neto. São Paulo: Todas as Musas, 2020. 323p. Bibliografia ISBN 978-85-9583-079-0 1. Literatura portuguesa 2. Estudos literários 3. Raquel de Souza Ribeiro I. Alvarez, Aurora Gedra Ruiz II. Gonçalves Neto, Nefatalin. CDD 869.954 Catálogo Sistemático Literatura portuguesa 869.4; Estudos literários 801.954; Raquel de Souza Ribeiro 909.9. Literatura Portuguesa e legado: Homenagem a Raquel de Sousa Ribeiro Conselho Editorial Elaine Cristina Prado dos Santos (UPM) Marcio Ricardo Coelho Muniz (UFBA) Roberto Henrique Seidel (UNEB) Rogério Miguel Puga (Universidade Nova de Lisboa) Paola Poma (USP) SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Nefatalin Gonçalves Neto e Aurora Gedra Ruiz Alvarez ............ 7 Biobibliografia: Professora Raquel de Sousa Ribeiro Nefatalin Gonçalves Neto e Aurora Gedra Ruiz Alvarez ........... 11 Prefácio - A mestra é uma possibilidade é um alumbramento é uma poesia. Ou de como Camões beijou Saramago: sobre a responsabilidade de ensinar literatura Nefatalin Gonçalves Neto e Aurora Gedra Ruiz Alvarez ........... 15 A HOMENAGEADA POR SI ........................................................ 21 O Navegador e a Busca Raquel de Sousa Ribeiro ............................................................ 23 A Identidade n’A Caverna: Crise e Reconstrução Raquel de Sousa Ribeiro ............................................................ 37 Do Mito Sacrificial ao Mito Renovador Raquel de Sousa Ribeiro ............................................................. 51 PORQUE AS VOZES NÃO PODEM (NÃO DEVEM NEM CONSEGUEM) CALAR: HOMENAGENS ................................... 61 A Luta contra o Anjo: Uma Leitura do Poema O Anjo de Sophia de Mello Breyner Andresen Alexandre Bonafim Felizardo .................................................... 63 Gil Vicente no Ensino Público do Estado de São Paulo Aline Garcia ................................................................................ 79 O Conquistador: A Poética do Contraponto Aurora Gedra Ruiz Alvarez........................................................ 93 Diálogos Intertextuais em O Ano da Morte de Ricardo Reis Cátia Inês Negrão Berlini de Andrade .....................................107 O Romance Português Contemporâneo: Continuidade e Ruptura Diana Navas .............................................................................. 123 Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança e o Exercício da Intertextualidade Flavia Maria S. Corradin ..........................................................143 O Motim, de Miguel Franco, um Ciclo Sagrado de Renovação Flavio Felicio Botton .................................................................. 151 Com Licença, Eu sou Eça de Queirós Francisca Zuleide Duarte de Souza .......................................... 171 O Drama do Teatro de José Régio Francisco Maciel Silveira .......................................................... 181 A Cegueira em Duas Linguagens: Saramago e Meirelles Jean Paul D’Antony Costa Silva............................................... 189 Vozes Literárias pelos Animais: De Dostoiévski a Saramago Laerte Fernando Levai ............................................................. 207 Uma Pequena Homenagem para uma Grande Amiga Lênia Márcia Mongelli ............................................................. 235 O Menino, a Rua e o Registro de um Tempo em Convulsão: Ficção e História em José Rodrigues Miguéis Márcia Valéria Zamboni Gobbi ............................................... 245 A Construção do Intelectual na Correspondência entre Jorge de Sena e José Régio (1946-1969) Marcio Roberto Pereira ........................................................... 255 As Figurações do Fogo e das Vozes Sociais no Conto Marido de Lídia Jorge Murilo de Assis Macedo Gomes ............................................... 265 Orfeu n’as Intermitências de Saramago (Ou Contemporaneidade: Clássica a Todo Custo) Nefatalin Gonçalves Neto ......................................................... 281 Experiência do Sagrado na Poesia de José Saramago Sandra Aparecida Ferreira ...................................................... 301 Sobre Organizadores e Autores .................................................319 7 Apresentação Persistência. Mais que qualquer outro vocábulo em língua portu- guesa, este é o que melhor delineia o perfil acadêmico e humano da prof. Raquel de Sousa Ribeiro. E, apesar de parecer pesaroso ou negativo, ele esconde, em suas entrelinhas as qualidades daquela que por justiça re- cebe as láureas homenagens que prestamos. Expliquemo-nos. O nome da professora Raquel está ligado à persistente luta da USP e do Programa de Literatura Portuguesa (único com este foco direcionado no país até o momento) para assentar os estudos de literatura portuguesa como necessários à realidade das Letras brasileiras. Ora, este fato por si só já justificaria a importância do nome da professora Raquel dentro da área e, para além, de uma justa homenagem – pequena retribuição às mais variadas formas de aprendizado que o diálogo com a mestra nos proporcionou e tem proporcionado. Mas, como dito, a ideia de persistên- cia é o mote que nos acompanha, assim, em uma área de poucos estudi- osos – um campo profícuo de interesses, mas ainda pouco explorado no Brasil – o nome da professora Raquel se destaca pela dedicação ímpar, de forma a dignificar sua importância e, por meio dela, disseminar co- nhecimento e possibilidades interpretativas não apenas da realidade eu- ropeia mas principalmente da nossa. Sua atividade profissional, de longa data, sempre procurou ser cons- tante e zelosa, compreensiva e atuante, de modo a mostrar àqueles que com ela tiveram um diálogo prolongado, em especial seus alunos de Pós- Graduação, o privilégio não apenas de aprender mas, acima de tudo, de presenciar a maturação da ideia, seu desabrochar, sua construção e des- pojamento de qualquer vício ou receita pronta. Por sorte temos a possi- bilidade de vislumbrar essa qualidade primaz nos textos que abrem este volume; textos em que a maestria da professora se soma à argúcia e in- sistência da crítica para nos brindar com interpretações muito bem for- muladas e direcionadas sobre autores portugueses cujos textos refletem questões universais. Ora, se as gerações que se formaram na USP até meados de 2017 já foram agraciadas presencialmente com tais qualificativos, este livro tenta, também, por meio de ação, disseminar a sageza da mestra e suas formas de ensinar teorias da linguagem e da interpretação. Interpretação Aurora Gedra Ruiz Alvarez e Nefatalin Gonçalves Neto 8 esta guiada por uma tênue sutileza de percepções que, a todo custo, en- sina o interlocutor diversas perspectivas e suas compreensões, bem como a perceber suas limitações. Destarte, se a teoria trava, a preocupação se- gue em busca persistente de interpretar o texto sem encerrá-lo em um molde ou leitura exclusivo. Paciente, percuciente e rigorosa (caracterís-ticas de sua face persistente), a mestra nos demonstra que lidar com o texto literário exige responsabilidade e desconfiança: responsabilidade em não deixar o texto de lado para olhar só o contexto ou mesmo ques- tões apenas sociais que o engendram. E desconfiança porque os métodos são sempre parciais, mutiladores do verdadeiro guia de qualquer leitura, o texto. Essa persistência e envergadura, que marcariam não apenas sua trajetória, mas que implantou no programa de Literatura Portuguesa. O conjunto deste trabalho, que se estendeu por uma vida toda, cons- truiu um amplo currículo, cujas vertentes docência, pesquisa e extensão permitiram que a preocupação com a diversidade dos modos de interpre- tação se tornasse sua identidade, sinaliza para formas de generosidade e interlocução que mantêm em cultivo – postura que adquiriu concretude na recorrente disposição para trabalhar coletivamente, como constatam suas disciplinas ministradas com a colega de profissão, a professora Dra. Lílian Lopondo. Um trabalho – vivenciado por seus amigos e orientandos próximos, que dão testemunho nas páginas que seguirão – que jamais apagou a diferença ou a discordância, antes assume o desafio intelectual de apresentar pontos diferenciados com nitidez e respeito. Destarte, motivados por nosso carinho, somado a uma necessidade ética de reconhecimento nos levou a construir um livro que tentasse con- jugar essa persistência analítica ao lado do círculo afetivo que nossa mes- tra sempre exprimiu. Assim, à reflexão crítica se somaram textos afeti- vos, emotivos, “falas” que conjugam intuição crítica com limpidez do agradecimento. Dessa ação surgem contribuições que refletem, prisma- ticamente, a paixão que nossa homenageada perscrutou por uma vida. Por fim, a escolha do título foi uma discussão por querermos algo apropriado, capaz de sintetizar a amplitude de uma crítica e de uma ami- zade capaz de expressar respeito e reconhecimento amoroso. Cremos que a seleção acabou por privilegiar e revisitar o universo de opções da pro- fessora Raquel, forma de continuar a inquietude intelectual e tenacidade diárias constantes na homenageada. Cremos, por fim, ter expressado de forma direta a enorme relevância da atividade de nossa mestra no Apresentação 9 transcurso da história da Literatura Portuguesa não apenas na USP, como na área de forma geral, seja por suas contribuições quanto por meio de seus orientandos e participações em bancas, de forma a transformar o desafio em conhecimento, lutar contra a estreiteza de horizontes e fir- mar um legado marcado pela responsabilidade. Dessa forma, as únicas palavras que servem para encerrar esta apre- sentação são as de agradecimento àquela que, como plena professora, foi o escopo que nos ajudou a crescer e, em um movimento diferencial, mas complementar, fez com que toda a área crescesse junto. Esperamos que os textos que seguem consigam fazer o leitor ver a qualidade da mestra e sirvam, similarmente, para comprovar o quanto ela nos imantou de cons- ciência crítica. À professora Raquel nosso obrigado em forma de escrita- homenagem. Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE/USP) Aurora Gedra Ruiz Alvarez (UPM) Organizadores Aurora Gedra Ruiz Alvarez e Nefatalin Gonçalves Neto 10 11 Biobibliografia: Professora Raquel de Sousa Ribeiro Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE/USP) Aurora Gedra Ruiz Alvarez (UPM) A professora Raquel nasceu em São Paulo, e desde pequena demons- trou grande proximidade não apenas com o magistério, mas também com a literatura e suas atratividades. Com o tempo e a proximidade, pro- porcionadas por seus estudos iniciais, a leitura se tornou um hábito para a professora, o que a levou, em 1968, a procurar a graduação em Letras na USP, ainda quando o curso funcionava no Antigo prédio da Maria An- tônia. Após concluir Letras 1971, nossa pesquisadora logo inicia seu mes- trado em 1972, orientado pelo prof. Dr. Massaud Moisés. Nesse projeto, defendido em 1980 sob diversos aplausos, a jovem pesquisadora resolveu se debruçar sobre o escritor José Rodrigues Miguéis, à época aclamado em Portugal e hoje em maldoso esquecimento. Focada na questão do es- paço, nossa homenageada produziu um alentado estudo analisando o es- paço em seus contos. Tal empenho deu luz à O espaço edênico nos contos de José Rodrigues Miguéis, ainda inédito, mas disponível na biblioteca da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Junto com o início da escrita de sua dissertação, a professora Raquel leciona Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP), co- meçando sua carreira no espaço acadêmico, onde permanece até 2001 quando se aposenta e encerra suas atividades na Graduação. Esse perfil acadêmico que se soma ao caráter eminentemente pedagógico levam a professora-pesquisadora a dedicar-se fortemente a uma produção rigo- rosa e, ao mesmo tempo, elucidativa aos interessados em Literatura Por- tuguesa e em processo de análise literária como um todo. É sob este viés que vem a lume sua dissertação. Aurora Gedra Ruiz Alvarez e Nefatalin Gonçalves Neto 12 Referência imediata àqueles que estudam José Rodrigues Miguéis, a pesquisadora incansavelmente continua suas pesquisas e produz sua tese de doutorado, novamente sob orientação do prof. Dr. Massaud Moisés e defendida em 1988. Esta é um alentado estudo de 300 páginas, desta vez se debruçando sobre a questão espacial e sua relação com as personagens de Páscoa Feliz, novela de José Rodrigues Miguéis e inédito, mas tam- bém disponível na biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), com o título Pás- coa Feliz – espaço e personagem. Encerrada suas pesquisas para titulação, a prof. Raquel passa a dedi- car-se a pesquisas e produção de artigos que focam a questão do espaço, da personagem e do dialogismo entre texto e pintura nos autores portu- gueses contemporâneos, com especial direcionamento para os escritores José Rodrigues Miguéis, José Saramago, António Lobo Antunes e Lídia Jorge. Paralelo às pesquisas sobre a narrativa portuguesa contemporânea, a professora Raquel inicia seu trabalho de orientação na Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, onde orienta diversas dissertações e teses com o intuito de ampliar os diálogos entre Brasil e Portugal, bem como percuciente disseminação de leituras e análises exímias sobre José Sara- mago, Albano Martins, Mário de Sá-Carneiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Miguel Franco, Eça de Queirós, Miguel Torga, Luís de Ca- mões, Teolinda Gersão, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, Cesário Verde e Fernando Pessoa, sem esquecer de seu autor primeiro, José Ro- drigues Miguéis. O trajeto encetado pela pesquisadora nos emaranhados dessa aven- tura em processo culmina, ainda, em diversas publicações, das quais po- demos salientar algumas desse relevante conjunto de textos. No âmbito das publicações em livro, temos seis capítulos publicados, dos quais des- tacamos os artigos O Senhor Breton, o gravador e o espelho (In: Manifestações do outro Eu na Literatura), no qual realiza uma arguta análise da questão da duplicidade no livro O senhor Breton de Gonçalo Tavares; Bugsy: do duplo ao simulacro (In: Leituras do Duplo), em que analisa o filme Bugsy, dirigido por Barry Levinson, e suas relações com a questão da duplicidade; e Ensaio sobre a cegueira ou de Bru- egel a Seurat (In: Saramago segundo terceiros) que aproxima, Biobibliografia: Professora Raquel de Sousa Ribeiro 13 comparativamente, o romance citado de José Saramago com as pinturas de Brueghel e de Seurat. Para além dos artigos publicados em livro, que versam sobre escrito- res ou tópicos importantes da configuração literária, nossa homenageada também participou do projeto A literatura portuguesa em perspectiva, dirigida pelo professore orientador-amigo Massaud Moisés, em seu ter- ceiro volume que se debruça sobre o Romantismo e o Realismo. Neste projeto, que intenta fazer uma apresentação historiográfica da Literatura Portuguesa, a professora Raquel apresenta as seguintes entradas: Antô- nio Feliciano de Castilho (p. 52-55), Camilo Castelo Branco (p. 62-70), Outros prosadores (p. 70-75), João de Deus (p. 85-92), Outros poetas (p. 92-93) e Alexandre Herculano (p. 44-92). Ora, o projeto desbravador (afinal, apresenta pesquisadores brasileiros a comentar e a analisar tex- tos portugueses de forma profunda e, ao mesmo tempo, didática) rende frutos diversos, pois o manual permanece como referência para a maioria dos cursos de Literatura Portuguesa do Brasil. Para além de tais textos, as pesquisas da professora Raquel apresen- tam outros muitos frutos. O Lattes da pesquisadora apresenta sua parti- cipação em mais de 50 eventos em todo o país para divulgação de suas pesquisas, 8 artigos publicados ou em vias de publicação, 55 participa- ções em bancas de mestrado e doutorado, 13 orientações de mestrado, 10 orientações de doutorado e diversos eventos organizados. Os números, que apesar de altos não ignoram a responsabilidade e a profundidade de tais trabalhos, não ignoram também a participação da professora-pes- quisadora na Pós-Graduação. Além de oferecer diversas disciplinas sobre a questão do espaço na literatura (fruto de suas pesquisas iniciadas no Mestrado e continuadas no Doutorado), diversos foram os cursos sobre José Saramago e a contemporaneidade em Portugal (Criação e destrui- ção nos romances de José Saramago, O dialogismo nos romances de José Saramago etc.). Somado ao seu interesse pela literatura contempo- rânea portuguesa, diversos projetos se desenvolveram sob seu comando, como sua participação em grupos de estudos sobre a questão da duplici- dade, seus estudos sobre o pensamento de Mikhail Bakhtin, bem como a questão dos temas mais recorrentes na contemporaneidade portuguesa, explorados na disciplina O romance português pós-revolução dos cra- vos. Aurora Gedra Ruiz Alvarez e Nefatalin Gonçalves Neto 14 Nos últimos anos, nossa homenageada dedica-se a estudar a questão da Identidade e suas figurações no tempo e no espaço. O projeto, iniciado em 2014, envolveu 5 alunos em pesquisa de Pós-Graduação (1 mestrando e 4 doutorandos). Tal caminho contribuiu para o desempenho e análises desses pesquisadores, bem como permitiu o aparecimento de diversos trabalhos de alta qualidade e diversidade, o que tornou seu nome mais respeitável no universo acadêmico da área de letras. O curto caminho aqui percorrido serve para comprovar a grande qua- lidade de nossa homenageada e mais que isso, a importância de uma pro- fessora exemplar, cujas maiores qualidades são modéstia e simplicidade, somadas a um enorme senso de qualidade em pesquisa e responsabili- dade didática. Destarte, só nos resta, além de aprender e dialogar com o pensamento crítico da professora Raquel, render nosso reconhecimento por seu labor intelectual, senso ético e estético e sua disponibilidade em, por anos a fio, nos dedicar seu carinho, afeto e atenção. 15 Prefácio A mestra é uma possibilidade é um alumbramento é uma poesia. Ou de como Camões beijou Saramago: sobre a responsabilidade de ensinar literatura O verso que emulo no título foi escrito por Gertrude Stein em 1913, em seu famoso poema Sacred Emily1. O poema de Stein tem diversos significados, sendo que o mais famoso e literal é o de que as coisas são o que são. Seu verso tornou-se apreciado por sua singeleza pois, apesar de uma aparente simplicidade, a modernidade do texto não está na mostra da perda de sua ingenuidade, antes na sagacidade de tornar o simples em algo a ser observado e, daí, retirada sua qualidade, plenitude e plura- lismo; ou seja, o alumbramento não se dá por meio de uma descoberta genial de algo novo, mas da percepção de que o comum é cheio de quali- dade e de ricos detalhes. E é exatamente essa obviedade que liga o poema à professora homenageada. O carinho e simpatia sempre foram atrelados ao zelo para com o estético na professora Raquel; sua leitura sempre pre- zou pelo alumbramento, pela riqueza do detalhe, pela qualidade de cada mínimo conteúdo. A dimensão intelectual de seu trabalho como profes- sora, crítica e pesquisadora se (a)firma em um processo global-deta- lhista, espaço em que local e universal conversam, o todo é refletido nas micropossibilidades, e o cuidado com cada passo é a obsessão de um olhar que torna o anseio em compromisso analítico. Em outros termos, esse alumbramento se tornou marca de sua responsabilidade pedagógica como professora de Literatura. Dentro dessa perspectiva, a professora Raquel ensina, de forma per- cuciente, como Bocage encontra Lobo Antunes nos interstícios da 1 O poema citado é: “A rose/ is a rose/ is a rose”, cuja tradução mais conhecida é “Uma rosa/ é uma rosa/ é uma rosa”. Aurora Gedra Ruiz Alvarez e Nefatalin Gonçalves Neto 16 linguagem, de que forma o novo reverbera o antigo, em que momento e sentido Pe. António Vieira transforma a nossa leitura de Eça de Queirós ou como Luís Camões beija parodicamente José Saramago nas trilhas analíticas de leitura. É por meio desses encontros inusitados em forma de percepção do detalhe que o alumbramento pedagógico acontece. A li- teratura portuguesa se torna o caminho percorrido para que a abertura reflexiva se faça constante e minuciosa e, para além, contagie a cada um de seus discípulos e amigos. Exemplo originado em sala de aula se deu (e peço licença para contar de uma particularidade minha em favor de ilustrar como a plenitude dos ensinamentos da professora Raquel) por meio de um conselho dado em meu primeiro seminário apresentado na disciplina ministrada pela ho- menageada em 2008: nunca menospreze seu leitor, Nefatalin. Aceite que ele sabe muito, mas também que ele precisa ver que você não é de- sonesto. Apresente suas bases, referências, mas avance junto com elas por meio de seu pensamento, porque a crítica sobrevive pela soma entre criatividade e conhecimento da tradição. Alumbramento crítico aconte- cido no encontro entre meu anseio de ser um pesquisador sensato da obra de José Saramago e da calmaria e percuciência sábias de uma pro- fessora que há muito reconheceu na voz do Nobel português a emulação de versos clássicos, construções barrocas e reescrita histórica irônica, a lá romantismo. Saramago beijava Camões, reencarnava Vieira e era con- taminado por Herculano e Garrett nas palavras críticas da professora. A abertura reflexiva se fazia em forma simples e rica. Ora, esse diálogo singelo que direciona minhas reflexões até hoje serve para iluminar como sua singeleza e argúcia me impregnam. Eu era inexperiente, nascido em São Paulo, mas criado no interior, a pouco re- tornado à babel. E fui acolhido não apenas como aluno, mas como discí- pulo e amigo. Sua orientação não serviu somente para um seminário, mas para a vida. Contaminar-me por Gertrude Stein serve apenas para sintetizar a qualidade da mestra e professora, sua capacidade de leitora e amiga, inteligência e perspicácia gigantescas somadas ao gesto humilde de partilha de conhecimentos. Assim, se a poesia de Stein tem por objeto ela mesma, este texto-prefácio tem por objeto reconhecer, em primeiro passo, o quanto a professora Raquel se faz presente em minha atuação como professor, aluno, sujeito, amigo e cidadão e, em segundo, sua pre- sença nas reflexões a ela oferecidas na voz de cada autor aqui presente. Biobibliografia: Professora Raquel de Sousa Ribeiro 17 Em uma tentativa de não nos mantermos presos apenas a um pensa- mento, a primeira parte do livro reúne três artigos distintos da homena- geada que servem como base não só para constatarmos sua postura re- flexiva, mas também para iluminar o leitore àqueles que não tiveram a oportunidade de conhecer a professora Raquel pessoalmente. Há, nessa sequência, um primeiro artigo, que apresenta a leitura intertextual entre Os lusíadas e A jangada de pedra, no qual a professora Raquel expõe de que forma a aproximação de textos diferentes opõem ideias, mas com- plementam possibilidades; um segundo artigo que propõe examinar o romance A caverna, de José Saramago em relação à crise de identidade bem como o tratamento dado pelo autor à situação do mundo e do ho- mem contemporâneos; por fim, um terceiro artigo que perscruta a pre- sença da mitologia no romance O cais das merendas de Lídia Jorge. A segunda parte do livro, reunião de artigos diversos de amigos e ex- orientandos da professora Raquel, apresenta uma coleção de reflexões que se dividem em quatro eixos, todos portando, em sua estrutura, as diversas vias de leituras que já foram apontadas ou mesmo trabalhadas pela homenageada. O primeiro eixo, voltado para a poesia, apresenta, no primeiro artigo do livro, escrito pelo ex-orientando Alexandre Bona- fim Felizardo, reflete sobre o poema O anjo, de Sophia de Mello Brey- ner Andresen e sua relação com a poesia de Rainer Maria Rilke. Interes- sante que a leitura de Alexandre combina perfeitamente com os artigos de Sandra Aparecida Ferreira – e sua análise do livro Os poemas possíveis de José Saramago – e de Lênia Márcia de Medeiros Mon- gelli – sobre alguns poemas portugueses e um pequeno comentário so- bre um poema brasileiro como formas de homenagem à capacidade de leitura da homenageada. Os textos que versam sobre poesia curiosa- mente se dispõem em um tríduo que abre, está ao meio e fecha o livro, explorando como as possibilidades múltiplas de se ler poesia, tão bem trabalhadas em diversos momentos da carreira da professora Raquel. O segundo eixo, que reúne artigos sobre o universo do teatro portu- guês, apresenta quatro artigos de grande interesse, sendo dois deles so- bre teatrólogos modernos e dois sobre escritores de período de início do teatro em língua portuguesa. O primeiro, escrito pela pesquisadora Aline Cristina Garcia, analisa a recepção de Gil Vicente pelos alunos de uma escola do interior paulista, apresentando modos de trabalho com o texto dramatúrgico em sala de aula. Já o artigo de Flávia Corradin Aurora Gedra Ruiz Alvarez e Nefatalin Gonçalves Neto 18 versa sobre os processos intertextuais usados por António José da Silva para recriar, teatralmente, as aventuras de Dom Quixote e Sancho Pança. Quanto a Flávio Felício Botton, outro ex-orientando da homenage- ada, temos um artigo que apresenta as relações entre teatro e crítica so- cial por meio da análise de O motim de Miguel Franco. Por fim, temos o texto do professor Francisco Maciel da Silveira que versa sobre o te- atro de José Régio e suas formulações dramáticas. Impõe-se dar um des- taque especial ao artigo do professor Francisco por seu falecimento no dia 3 de junho deste 2019. A permanência de seu texto neste livro, para além da homenagem, serve para deflagrar a competência intelectual tanto de sua lavra quanto para testemunhar sua seriedade no processo exigente de se homenagear a professora Raquel. O terceiro eixo apresenta a maior reunião de artigos (sete no total) e versam sobre escritores que comumente foram alvo das pesquisas e aulas da professora Raquel. Dois são os artigos sobre o prêmio Nobel José Sa- ramago, o de Cátia Inês Negrão Berlini e o de Nefatalin Gonçalves Neto. O artigo de Cátia apresenta as relações intertextuais presentes no romance O ano da morte de Ricardo Reis; já o de Nefatalin trabalha a releitura mítica de Tirésias presente em Intermitências da morte. Em nova chave, os artigos de Aurora Gedra e Marcia Gobbi trabalham, respectivamente, com O conquistador de Almeida Faria e A escola do Paraíso de José Rodrigues Miguéis. O primeiro propõe uma leitura do romance de Almeida Faria e os diálogos que ele estabelece com as artes e a História, exemplificando como o “modus operandi em que o discurso de rutura” cria um “embate com a tradição, alimentado pela paródia”. Já o segundo visa a resgatar a leitura de Rodrigues Miguéis por meio da questão temporal. O texto de Francisca Zuleide Duarte, por seu turno, faz uma leitura, a iniciar por uma carta além-morte, de Eça de Queiroz. Em uma atitude de sistematização, o texto de Diana Navas perfaz um caminho amplo e analisa as marcas de rutura e continuidades no romance português pós-Revolução dos Cravos. A encerrar este eixo, temos o artigo de Laerte Levai, também um ex-orientando da profes- sora Raquel, que analisa a presença de animais em diversos autores mo- dernos, de forma a conglomerar um conjunto de reflexões presentes na vida acadêmica de sua ex-Orientadora. Por fim, o quarto e último eixo reúne três artigos, um sobre as relações intersemióticas entre literatura e cinema, um sobre a correspondência e Biobibliografia: Professora Raquel de Sousa Ribeiro 19 um sobre as vozes sociais no conto. O primeiro, de autoria de Jean Paul D’Antony Costa Silva procura, por meio de um arsenal teórico com- parar o filme Cegueira, com direção de Fernando Meirelles, com o livro Ensaio sobre a cegueira de José Saramago e mostrar a relação das duas obras com questões contemporâneas. O segundo, escrito por Marcio Roberto Pereira analisa a troca de cartas entre Jorge de Sena e José Régio para mostrar como funciona a construção intelectual do então jo- vem poeta e o refinamento e autorreflexão do iniciador do Presencismo. Por fim, o artigo de Murilo de Assis Macedo Gomes, também ex- orientando da professora Raquel, analisa a questão das vozes sociais pre- sentes no conto O marido de Lídia Jorge, bem como seus símbolos e sig- nificados mais prementes. Em resumo, tais textos servem, para além de divulgar a área de Lite- ratura Portuguesa e suas pesquisas, como um olhar retrospectivo e ilu- minador sobre a trajetória existencial da professora Raquel de Sousa Ri- beiro; suas aulas e reflexões, frente ao atual momento político, marcado pela imensa intolerância, são como estímulos para aguçar a perspectiva crítica de raríssima amplitude. Podemos afirmar que esta homenagem nasce de um profundo reconhecimento por parte daqueles que tiveram a oportunidade e a satisfação de conviver com a homenageada. Essa ho- menagem se faz necessária como mínima devolutiva ao que, por mais de três décadas, a docente do Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da USP nos tem ensinado. Devolver a seus reconhecidos ta- lento e dedicação essa justa homenagem, apesar de pequena frente à sua grandeza, é inadiável. Aurora Gedra Ruiz Alvarez e Nefatalin Gonçalves Neto 20 21 A Homenageada Por Si Aurora Gedra Ruiz Alvarez e Nefatalin Gonçalves Neto 22 23 O Navegador e a Busca (Artigo publicado originalmente na Revista Todas as Letras, n. 2, 2000, p. 39-48) O mito e a literatura, ao longo de sua história, recorrem à imagem do navegador, do argonauta. Essa imagem aparece, inicialmente, no mito de Jasão, do "tosão de ouro" ou do "velocino de ouro", em seguida na litera- tura antiga (grega, Odisséia, de Homero, e, romana, Eneida, de Virgílio), em Portugal, no classicismo, com Os lusíadas, de Camões, e, recente- mente, em várias obras de diferentes autores, dentre elas, n'A jangada de pedra, de José Saramago. Essa imagem apresenta-se sempre como a busca de um novo homem, imagem obtida por meio de alguns recursos que sugerem uma “viagem iniciática”, mas sempre em conformidade com as condições, necessidades e aspirações da época em que cada obra é con- cebida. Além disso, cada uma aproxima-se da primeira, do protótipo e/ou da anterior, de valor reconhecido, e afasta-se dela atendendo às ne- cessidades de seu tempo, à economia da obra e à cosmovisão do seu au- tor. O homemque resiste a dificuldades de diversas ordens, ao sofri- mento, não é mais o mesmo, é outro, é novo: nova forma de pensar, sentir e viver. Na Antiguidade, o homem sensível e o homem racional, bem como o mito coexistem harmoniosamente, conforme Saraiva (1980, p. 121): nos “poemas homéricos... os próprios deuses são tidos como realidade, aju- dando ou dificultando, de maneira concreta, o caminho dos heróis”. A escrita dos ficcionistas, mitificadora, que confere verossimilhança ao inverossímil, ao irreal, cria uma realidade que coincide com aquela. Em Camões, a relação com o mito já se perdeu e a razão começa a ser cultivada de maneira intensa, ainda em íntima relação com o sensível, mas já iniciando um processo de afastamento e de subordinação deste por aquele. Só a escrita literária repõe esse caráter mitificador e mistifi- cador, verossimiliza o inverossímil. Este é um dos "centros" a serem al- cançados como aquele em que o antigo homem, do início do processo, da narrativa, dá lugar ao novo, à descendência desse novo homem. Raquel de Sousa Ribeiro 24 N’Os lusíadas (CAMÕES, 1980), a grande viagem empreendida pelos argonautas renascentistas, Gama e seus comandados, é cheia de dificul- dades a vencer como em toda "viagem iniciática". E, não obstante a ajuda de alguns deuses, como Júpiter, Vênus, o sofrimento não deixa de estar presente e de exigir muita força e perseverança dos navegadores persis- tentes em seu objetivo: guerras, doenças, ciladas, tempestades são alguns dos desafios que têm de enfrentar: Os ventos eram tais, que não puderam Mostrar mais força de ímpeto Cruel, Se pera derribar então vieram A fortíssima Torre de Babel. Nos altíssimos mares, que cresceram, A pequena grandura dum batel Mostra a possante nau, que move espanto, Vendo que se sustém nas ondas tanto. (VI, 74) A nau grande, em que vai Paulo da Gama, Quebrada leva o mastro pelo meio, Quase toda alagada; a gente chama Aquele que a salvar o mundo veio. Não menos gritos vãos ao ar derrama Toda a nau de Coelho, com receio, Conquanto teve o mestre tanto tento, Que primeiro amainou, que desse o vento. (VI, 75). Outro fator a ser enfrentado é a resistência do povo e dos familiares ao empreendimento, à separação cheia de riscos para os que partem. Te- mendo seu efeito no ânimo dos navegadores, o comandante exige que se mantenham distantes para que resistam à emoção, aos choros e lamentos dos que ficam, ao canto da sereia, e possam, assim, persistir no seu obje- tivo: Nós outros, sem a vista alevantarmos Nem a Mãe, nem a Esposa, neste estado, Por nos não magoarmos, ou mudarmos Do propósito firme começado, Determinei de assi nos embarcarmos, Sem o despedimento costumado, Que, posto que é de amor usança boa, A quem se aparta, ou fica, mais magoa (IV, 93). O Navegador e a Busca 25 Também o sujeito poético tem seu momento de lamentação: No mar, tanta tormenta e tanto dano, Tantas vezes a morte. apercebida; Na terra, tanta guerra, tanto engano, Tanta necessidade avorrecida! Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida, Que não se arme e se indigne o Céu sereno Contra um bicho da terra tão pequeno? (I, 106). A grandeza demonstrada por esses homens diante de dificuldades ex- tremas e, às vezes, fatais suscita a admiração até daquele que faz de tudo para impedir a consecução do objetivo, Baco: Vistes que, com grandíssima ousadia, Foram já cometer o Céu supremo; Vistes aquela insana fantasia De tentarem o mar com vela e remo; Vistes, e ainda vemos cada dia, Soberbas e insolências tais, que temo Que do Mar e do Céu, em poucos anos, Venham Deuses a ser, e nós humanos (VI, 29). Também os deuses que os auxiliam demonstram sua admiração: E, porque, como vistes, tem passados Na viagem tão ásperos perigos, Tantos climas e céus experimentados, Tanto furor de ventos inimigos, Que sejam, determino, agasalhados Nesta costa Africana como amigos, E, tendo guarnecida a lassa frota, Tornarão a seguir sua longa rota. Estas palavras Júpiter dezia, (I, 29,30). Depois de tantas dificuldades, os que sobreviveram e as venceram saem engrandecidos, diferentes, outros, e têm seu valor reconhecido e premiado na Ilha dos Amores e na visão, depois da experiência, da Má- quina do Mundo: Porém a Deusa Cípria, que ordenava Era, pera favor dos Lusitanos, Raquel de Sousa Ribeiro 26 Do Padre Eterno, e por bom gênio dada. Que sempre os guia já de longos anos, A glória por trabalhos alcançada. Satisfação de bem sofridos danos, Lhe andava já ordenando, e pretendia Despois de ter um pouco revolvido Na mente o largo mar que navegaram, Os trabalhos que pelo Deus nascido Nas Amphioneas Tebas se causaram, Já trazia de longe no sentido, Pera prémio de quanto mal passaram, Buscar-lhe algum deleite, algum descanso, No reino de cristal, líquido e manso; (IX, 18 e 19) Algum repouso, enfim, com que pudessem Refocilar a lassa humanidade Dos navegantes seus, com o interesse Do trabalho que incurta a breve idade. Parece-lhe razão que conta desse A seu filho, por cuja potestade Os Deuses faz descer ao vil terreno E os humanos subir ao Céu sereno. Isto bem revolvido, determina De ter-lhe aparelhada, lá no meio Das águas, algua insula divina, Ornada de esmaltado e verde arreio; Que muitas tem no reino que confina Da [mãe] primeira co terreno seio, Afora as que possue soberanas Pera dentro das portas Herculanas. Ali quer que as aquáticas donzelas Esperem os fortíssimos barões (Todas as que tem título de belas, Glória dos olhos, dor dos corações), (IX, 20, 21 e 22). Também o poeta com seu "engenho e arte" (1, 2) tenta empreendi- mento de riscos de grandeza semelhante, para além de ter enfrentado as dificuldades da experiência representada esteticamente, como também diz no poema ("braço às armas feito" (X, 155). Dentre eles, o de não ser seu canto digno dos feitos que se propõe celebrar, como diz na proposi- ção ("Cantando espalharei por toda parte, / Se a tanto me ajudar o enge- nho e arte." (1, 2)); outro o de não ser reconhecido ("No mais, Musa, no O Navegador e a Busca 27 mais, que a Lira tenho / Destemperada e a voz enrouquecida, / E não do canto, mas de ver que venho / Cantar a gente surda e endurecida" (X, 145)). Estes feitos, como toda a atividade prometéica, conforme A. Moles, têm também, como reverso da moeda, o aspecto negativo: Este mito assumiu tal importância que se tornou, na civilização moderna, o próprio mito da ciência: o mundo moderno é prometéico (Berger); o ho- mem não tem mais medo de suas próprias descobertas e achou o sentido mesmo de sua vida no seu poder sobre a natureza. Tornou-se banal de- nunciar o espírito prometéico na conquista da energia atômica e de redes- cobrir, nas reações do grande público ante as descobertas da física nu- clear, a ambiguidade entre medo e curiosidade, que deu sua forma trágica ao mito de Prometeu e regeu de modo tão especial um problema que, do ponto de vista estritamente científico, não é mais nem menos importante do que qualquer outro (1980, p. 250). A obra camoniana celebra os feitos que, segundo os historiadores, marcaram o início da modernidade, o início do domínio dos fenômenos da natureza. A fecundação e o nascimento do novo homem estão em Vênus, em Téthys, no amor, nas núpcias na "Ilha dos Amores", enfim, bem como na imagem da viagem, das naus penetrando as águas de que Vênus é deusa também, conforme Centeno (1981, p. 18): “Para os Antigos, como refere Faria e Sousa, Vénus é deusa no Céu, no Mar, na terra e no abismo”. Na “Ilha dos Amores” está uma espécie de centro, conforme a mesma estudiosa: A ilha é uma ‘insula divina’, surgida do ‘meio das águas’, como a própria Vénus (IX, 21). É um produto do Uno primordial, materializado dessa forma, porque a forma da ilha e a das águas é a que melhor indica a per- feição. A ilha é simbolicamenteum 'ponto de chegada', como o alto de um monte, e veremos que ainda dentro da ilha é ao alto de um monte que se sobe: “Tomando-o pela mão, o leva e guia / Pera o cume dum monte alto e divino” (IX,87) (Centeno, 1981, p.27). Na mesma Ilha também está a Máquina do Mundo. Nela também se dá a relação entre os homens engrandecidos e as ninfas, propiciando o surgimento de novos seres, a "progênie forte e bela" que deseja Vênus: Quero que haja no reino Neptunino Onde eu nasci, progénie forte e bela, (IX, 42) Raquel de Sousa Ribeiro 28 Opera-se também a troca de propriedades ou cria-se a ambiguidade que caracteriza a ficção e sua realidade: assim os “Deuses” descem “ao vil terreno” e os “homens” sobem “ao Céu sereno” (IX, 20) ou, ainda, se- gundo Baco, “que temo que do Mar e do Céu, em poucos anos, / Venham Deuses a ser, e nós humanos” (VI, 29) e, por último, segundo o eu poé- tico, os homens tornaram-se divinos devido ao esforço, à ação e à arte (“Por feitos imortais e soberanos, / O mundo cos varões que esforço e arte / Divinos os fizeram, sendo humanos”) e os deuses “Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte, / Eneias e Quirino e os dous Tebanos, / Ceres, Palas e Juno com Diana, / Todos foram de fraca carne humana” (IX, 91). Embaralham-se os limites entre realidade e irrealidade, entre realidade e mito, entre realidade e ficção. Para a experiência do homem primitivo o mito é realidade e para a experiência estética o ficcional é realidade. O tempo e a admiração das sucessivas gerações conferiram uma aura de verdade, conforme Benjamim e Jauss. Nos empreendimentos ficcionalizados nessa obra estão, entre outros feitos, mas no primeiro plano, as grandes navegações e descobrimentos dos portugueses que contribuíram para a nova ordem: a Segunda Revo- lução Comercial, as bases do capitalismo, da ciência, da tecnologia, da economia financeira, enfim, para o início da Idade Moderna e, portanto, da civilização ocidental que, àquela altura, dava início à valorização da razão como condição do domínio das forças hostis da natureza e da cons- trução de um mundo melhor e mais propício para a vida do homem. Era, portanto, um momento de grandes esperanças no futuro, de grandes be- nefícios para o homem europeu, e, entre eles, segundo se acreditava, a sua liberação dos afazeres menores para poder dedicar-se ao cultivo do espírito. O tempo mostrou, no entanto, que, ao lado dos benefícios, sur- giram também os aspectos negativos. Os malefícios, entre eles a aliena- ção e a reificação, são computados atualmente. É daqui que parte Saramago na sua Jangada de pedra. O seu ponto de partida é, portanto, a modernidade ou pós, a reificação e alienação, o racionalismo excessivo em que culminou aquele processo, o distancia- mento do sensível ainda harmonioso naquele. José Anaiço diz a Joaquim Sassa, em conversa antes de dormir, no quintal, acreditar que, ao contrário dos navegadores daqueles tempos, O Navegador e a Busca 29 que buscavam ilhas imaginárias, a jangada vai em busca de homens ima- ginários: (...) e José Anaiço murmurou, numa voz que enfim o sono quebrava, cada palavra à espera ou à procura da seguinte, Um dia que já lá vai, D. João o Segundo, nosso rei, perfeito de cognome e a meu ver humorista perfeito, deu a certo fidalgo uma ilha imaginária, diga-me você se sabe doutro país onde pudesse ter acontecido uma história como esta, E o fidalgo, que fez o fidalgo, foi-se ao mar à procura dela, gostaria bem que me dissessem como se pode encontrar uma ilha imaginária. A tanto não chega a minha ciência, mas esta outra ilha, a Ibérica, que era península e deixou de o ser, vejo-a eu como se, com humor igual, tivesse decidido meter-se ao mar à procura dos homens imaginários (SARAMAGO, 1988, p. 61). É a ficção, a escrita que verossimiliza o inverossímil que vai construir esses homens, esses novos homens e seus descendentes, numa recupera- ção do que existia antes, no protótipo, e que se perdeu com a civilização mais exacerbada. É, pois, a linguagem literária que dará realidade a essas figuras imaginárias que são as personagens e que fará que o leitor es- queça que são irreais e que se identifique com seus sucessos e insucessos. Nesse sentido, os protagonistas já se diferenciam do comum, são se- res especialmente sensíveis ao insólito, numa época de racionalismo ex- cessivo, e esse fato harmoniza-se com a já apontada função da ficção, ou seja, de verossimilizar o inverossímil, de dar cunho de verdade, de reali- dade ao irreal, ao imaginário, ao que não é, no sentido do acontecer, do concreto. Essa viagem de retorno, de resgate da sensibilidade perdida ou exces- sivamente atenuada, submersa pelo rumo intensamente racionalista to- mado pela civilização, coloca-se não só na ideia da viagem em busca dos homens imaginários, dos homens dotados do espírito de aventura, de ca- pacidade de sonhar, de homens em que o racional e o sensível, o sonho e a vida prática, a imaginação e a realidade concreta se encontrem em re- lação dialética, mas também no fato de a Península romper com a Eu- ropa, com todo o peso da tradição racionalista e se encaminhar para a África e a América Central, e entre elas parar, com riscos diferentes mas equivalentes aos que corriam as navegações do passado (cf. SARAMAGO, 1988, p. 16). A parada não parece ser casual, mas funcional, dentro do que estamos examinando, uma vez que nestes continentes (africano e americano), ou pelo menos na maior parte dos países que os compõem, Raquel de Sousa Ribeiro 30 as populações estão mais presas ao natural, e o progresso, a civilização mais sofisticada ainda não se faz sentir com tanta força. Também sugere a viagem em busca dos “homens imaginários” o fato de serem mobilizados os recursos tecnológicos mais sofisticados e de não conseguirem nem deter, nem explicar cientificamente a ruptura. A fenda geológica surge assim como um sorriso irônico da grande mãe natureza, como um gesto de rebeldia e de recusa dos excessos de civiliza- ção, de racionalismo, de reificação e de alienação das origens, da natu- reza humana ou exterior, que esses excessos significam. Ganham relevo, por outro lado, as explicações mágicas do insólito. Trata-se, pois, como em Eros e civilização, de Herbert Marcuse, de inocular Eros, vida, em Tânatos, ao que ficou reduzida a civilização na atualidade, alienação e reificação. Do ponto de vista do predomínio do racionalismo, esse afastamento pode ser visto como o perder-se do fio de Maria Guavaira: “Maria Guavaira não se chama Ariadne, com este fio não sairemos do labirinto, acaso com ele, conseguiremos enfim, perder-nos” (SARAMAGO, 1988, p. 222). Perder-se e não sair do labirinto, ir ao en- contro do ponto da bifurcação, da coexistência dos opostos, do ponto em que interagem dialeticamente, construir, portanto, o labirinto, preservar o segredo, o centro, é a proposta dessa viagem, vista por outro ângulo. A viagem das personagens na Península tem como primeira motiva- ção a ruptura e o medo de que o vagar errático da Península acabe em choque, em tragédia. Os ricos, os que têm recursos suficientes e os turis- tas fogem. Todos ou grande parte abandonam suas casas, seus empregos, sua vida estável e organizada. Lisboa fica deserta, e quando o "navegador solitário" desembarca é visto pela patrulha como “doido a fazer trejeitos de doido, ouviam-no pronunciar incoerências de doido” (SARAMAGO, 1988, p. 53), e, por isso, morto: absurdo provocado ou pela situação de pânico que tomou a todos ou pela alienação e reificação vigentes, uma vez que, para muitos, a ordem, ou o que supõem que seja, deve ser man- tida a qualquer preço. A outra razão da viagem, sempre interligada à da Península, é a do insólito experimentado, na mesma época, pelas principais personagens que se destacam pela sensibilidade mais aguçada, e que, em razão disso, passaram a se procurar ea tentar entender os diferentes insólitos expe- rimentados, incluindo a possível relação deles com a ruptura da Penín- sula. O Navegador e a Busca 31 É assim que, aos poucos, acabam reunidas e passando a ter uma vida comum, mais livre das normas da civilização e mais presa ao imediato, às circunstâncias, aproximando-se de modos de viver e pensar anteriores à civilização mais exacerbada ou pré-civilizacionais. Portanto, levadas pela inquietação geral, que é o fermento do diabo (“A raça dos inquietos, fermento do diabo, não se extingue facilmente, por mais que se afadiguem os augures em prognósticos” – SARAMAGO, 1988, p. 153), as personagens com experiências de insólito procuram-se. Joaquim Sassa, o discóbulo, sai do norte, de Afife ou A-Ver-o-Mar para encontrar Pedro Orce, no sul, o que sente a terra tremer. No meio do caminho fica sabendo do caso de José Anaiço, sempre acompanhado de uma revoada de estorninhos. Juntos vão ao encontro de Orce. Pedro, por sua vez, junta-se a eles para conhecer Lisboa. Na capital são procu- rados por Joana Carda, a que, inadvertidamente, riscou o chão com uma vara de negrilho, e o risco não se apagou mais. Para conhecer esse fenô- meno, o círculo, o centro, vão todos a Ereira, onde encontram o cão Cons- tante, Ardent ou ainda Cérbero que, no momento da ruptura, escolheu a Península, o “Inferno”, e não a imobilidade e segurança da França, sem os perigos que vai enfrentar a Ilha, em que a Península se transformou, na sua viagem errática. O cão Ardent com o seu fio azul na boca vai con- duzi-los até o norte, onde está Maria Guavaira, personagem que, já no início do romance, aparece desmanchando uma meia azul eternamente. O amor que já unira José Anaiço e Joana Carda une agora Joaquim Sassa e Maria Guavaira. Pedro Orce, mais velho, e Constante identifi- cam-se cada vez mais em razão da solidão daquele. Viajam todos para acompanhar Pedro de volta à sua terra, mas este objetivo sofre alterações em conformidade com as notícias que vão surgindo, no meio do caminho, sobre o rumo da Península/Ilha/Jangada. O carro, o Dois Cavalos mecânico, que os conduziu a maior parte do tempo, deu lugar, em casa de Maria Guavaira, a uma galera puxada por animais de verdade (SARAMAGO, 1988, p. 201). Também passam a fazer comércio ao sabor da necessidade de sobrevivência. Dormem ao léu, acendem fogueiras, reúnem-se em torno delas e contam histórias. Os modos de vida próprios da civilização, que é o ponto de partida dessas personagens, inicialmente com seus lugares de residência e empregos bem marcados, são substituídos por outros, mais primitivos, mais em consonância com uma vida nômade, com uma organização ditada pelas Raquel de Sousa Ribeiro 32 circunstâncias mais imediatas e pela solidariedade. Dessa maneira, a vi- agem errática da Jangada/Península reflete em seus habitantes e em toda a sua organização. A certa altura, as mulheres decidem integrar Pe- dro no amor, não obstante a divergência de seus maridos. Quando engra- vidam, a dúvida sobre a paternidade paira, apesar de Pedro ser já de certa idade. Gradativamente, portanto, vão adquirindo forma os homens ima- ginários procurados pela jangada, de acordo com a opinião de José Anaiço ou a "progênie forte e bela" de que fala Vênus, em Camões. Mas aqui, também, a viagem em que são buscados é igualmente o processo de sua fecundação e gestação na vida da história e na da escrita com que ela é contada. Os novos seres em gestação e os seus pais, já diferentes do que eram antes e dos demais, passam a ser configurados pelo metafórico mis- turado com o referencial representado na obra. E nesse ponto também lembram a "progênie" da Ilha dos Amores, resultante do encontro dos navegantes com as ninfas, bem como a troca de suas propriedades reais e irreais. O verossímil e o inverossímil, o real (ainda que representado tam- bém) e o irreal, a razão e a sensibilidade conjugam-se na gestação dos novos seres, dos filhos dessa navegação, dessa viagem iniciática, de busca não mais de terras, mas de homens dotados de sensibilidade, de imagi- nação para inocular vida aos seres alienados, reificados da civilização no estágio em que se encontra e, assim, garantir não só a sobrevivência do homem, do humano, mas também da terra que habita e que anda destru- indo, na sua sede de cada vez mais ter poder e domínio sobre ela, sobre a natureza em geral. Se Pedro Orce não for o pai biológico, é o pai “espiritual”. É nele que se encontram, mais intensamente, os valores da terra, da pedra, da água e do fogo, do infernal, além de ser o outro, o estrangeiro, o espanhol e o mais velho. Além do nome Pedro, que remete a pedra, as suas terras de origem e de vida, Orce e Venta Micena são também pedregosas e quentes, e com- paradas ao inferno, em razão dessas características. Por outro lado, quando na casa de Maria Guavaira, próximo a ela, encontra uma embar- cação de pedra que, segundo a lenda contada pela anfitriã, teria trans- portado em tempos imemoriais santos. Pedro, ao descobrir a embarca- ção, ou o que se lhe afigura como tal, naquele momento, senta-se nela com seu cão Constante (SARAMAGO, 1988, p. 183-5, 190-5), sugerindo O Navegador e a Busca 33 a imagem de Caronte e do cão Cérbero, o primeiro que transportava em sua barca “as sombras dos mortos para além do Estige e do Aqueronte” e o outro que “guardava a entrada dos Infernos e do palácio de Plutão”, “deitado em um antro, à margem do Estige” (COMMELIN, 1967, p. 199- 200). As mulheres, portanto, estão grávidas de seus companheiros e, nesse sentido, está sugerida a relação monogâmica, o que os aproxima das nor- mas da civilização. Por outro lado, temos também o negado por ela e re- presentado na simbologia do inferno, do fogo, da pedra, da terra e da água, do imaginário implicados na figura de Pedro Orce que, pelo menos, paira como pai “espiritual” e quebra o caráter, à primeira vista, monogâ- mico. Reforçando essas imagens ou essas conotações, surgem ainda ou- tras ligadas à Península/Jangada de pedra. No meio das águas do oceano e, em razão disso, comparada a um feto no líquido amniótico, a Península penetra as águas e por isso é responsabilizada pela fertilização de todas as mulheres que engravidaram: Tendo tudo isto acontecido, dizendo o tal português poeta que a península é uma criança que viajando se formou e agora se revolve no mar para nas- cer, como se estivesse no interior de um útero aquático, que motivos ha- veria para espantar-nos de que os humanos úteros das mulheres ocupas- sem, acaso as fecundou a grande pedra que desce para o sul, sabemos nós lá se são realmente filhas dos homens estas novas crianças, ou se é seu pai o gigantesco talha-mar que vai empurrando as ondas à sua frente, pene- trando-as, águas murmurantes, o sopro e o suspiro dos ventos (SARA- MAGO, 1988, p. 304-6). A água também faz parte do ser de Pedro Orce num jogo entre o me- tafórico e o real, ambos representados na obra. Inicialmente a metáfora da nuvem surge para caracterizar as sobrancelhas brancas: “depois ilu- minam-se-lhe os olhos de céu azul e nuvens brancas” (SARAMAGO, 1988, p. 79). Bem depois surgem refletidas nos seus olhos: (...) tinha uma dor muito grande se era essa a expressão do seu rosto, abria muito os olhos e fitava o céu, as nuvens que passavam, para vê-las não precisavam Maria Guavaira e Joana Carda de olhar para cima, vogavam lentamente nos olhos de Pedro Orce como as luzes das ruas do Porto ti- nham deslizado nos olhos do cão (SARAMAGO, 1988, p. 313-4). Raquel de Sousa Ribeiro 34 Quando Pedro morre, a nuvem não só está dentro dos seus olhos como está escura: “Pedro Orce está morto, dentro dos seus olhos só ficou uma nuvem escura, nada mais” (SARAMAGO, 1988, p. 316). E essa mesma nuvem escura sai do plano metafórico e transforma-se em água, para propiciar o florescimento da vara de negrilhode Joana Carda ali cravada, fato que, de outra maneira, seria impossível naquele terreno pedregoso: (...) é só uma vara que perdeu a virtude que tinha, mas pode ainda ter esta simples serventia, ser relógio de sol num deserto calcinado, talvez árvore renascida, se um pau seco, espetado no chão, é capaz de milagres, criar raízes, libertar dos olhos de Pedro Orce a nuvem escura, amanhã choverá sobre estes campos ... A vara de negrilho está verde, talvez floresça no ano que vem (SARAMAGO, 1988, p. 317). Assim, não só as personagens, depois da experiência da ruptura e da viagem da e na Península são outros, completamente diferentes do que eram antes, mais sensíveis, mais solidários, mas também os seus filhos que estão para nascer serão a continuidade dessa experiência que faz o jogo do real e do irreal no seu imaginário como ocorre, aliás, de maneira geral, com toda a ficção, que verossimiliza o irreal e faz que o leitor o viva como real. Realiza-se, portanto, por um lado, a mesma troca de proprie- dades e, de outro, o movimento inverso em relação a Os lusíadas, de Ca- mões. Nesse último sentido, dá-se o retorno às origens, ao momento da coexistência da razão e da emoção, da sensibilidade, do tempo em que a sensibilidade ainda não tinha sido submersa pela razão, pela reificação e pela alienação decorrentes do seu uso intensificado. Ambas as obras, pelo que foi exposto, apresentam movimentos inversos e, com eles, compõem a figura do quiasmo. Por outro lado, todos esses navegantes ou argonautas se assemelham na busca do novo, do desejável, porque é a busca daquilo que não pos- suem no momento: são os mesmos, nesse sentido. Mas são outros, na medida em que se diferenciam uns dos outros em decorrência da época e das características de cada obra, bem como da arte de cada autor: esta- mos diante da desconstrução e reconstrução da imagem. O Navegador e a Busca 35 REFERÊNCIAS CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. Ed. organizada por Emanuel Paulo Ra- mos. Porto: Porto Editora, 1980. CENTENO, Yvette K. O cântico da água em Os lusíadas. In: CENTENO, Yvette K.; GODINHO, Helder; RECKERT, Stephen. A viagem de “Os lusíadas”: símbolo e mito. Lisboa: Arcádia, 1981. COMMELIN, P. Nova mitologia grega e romana. Trad. Thomaz Lopes. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1967. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Ja- neiro: Zahar, 1972. MOLES, A. A criação científica. São Paulo: Perspectiva, 1980. SARAIVA, António José. Luis de Camões: estudo e antologia. Lisboa: Bertrand, 1980. SARAMAGO, José. A jangada de pedra. São Paulo: Companhia das Le- tras, 1988. Raquel de Sousa Ribeiro 36 37 A Identidade n’A Caverna: Crise e Reconstrução (Artigo publicado originalmente na Revista Todas as Musas, ano 3, n. 2, 2012, p. 66-80) Cipriano Algor e sua família, personagens d’A Caverna, de José Sara- mago, sobreviveram, durante a maior parte de suas vidas, da fabricação e comércio de utensílios domésticos de barro. Neste período, o protago- nista construiu uma identidade de artesão, ou seja, uma identidade mar- cada pelo desenvolvimento harmonioso dos diferentes elementos que compõem a sua personalidade. Segundo Ernest Fischer, em A necessi- dade da arte, o artesão desenvolve suas diferentes potencialidades de maneira simultânea e harmoniosa, uma vez que idealiza o objeto a ser construído, fabrica-o e comercializa-o, empenhando-se, totalmente, em cada uma destas etapas do processo. A era industrial, por outro lado, se- gundo o mesmo estudioso, tendo por objetivo a produção em grande quantidade, a fim de atender à demanda de uma população crescente, passa à produção em série e a exigir a especialização do trabalhador. Uma das consequências dessa prática é a não utilização de muitas das capaci- dades do indivíduo, sua atrofia e o surgimento de um desequilíbrio. No mundo pós-industrial, a mudança, deslocamento ou descentramento do sujeito, bem como os problemas decorrentes aguça-se. Segundo Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade: O sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e es- tável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Cor- respondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais ‘lá fora’ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as ‘neces- sidades’ objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identifi- cação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna- se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em Raquel de Sousa Ribeiro 38 relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. O sujeito assume identidades contra- ditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (...) à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos iden- tificar – ao menos temporariamente (2006, p. 12-13). A preferência dos consumidores do Grande Centro Comercial pelos mesmos produtos fabricados a partir do plástico faz com que o chefe do departamento de compras recuse os de Cipriano, provocando-lhe uma crise de identidade, na medida em que não só todo o desenvolvimento referido fica suspenso, como sua sobrevivência e independência estão ameaçadas. É por necessidade, portanto, que se dedica a sua nova ativi- dade. Tentando superar a crise em que o oleiro mergulha, sua filha procura encontrar outra forma que consiga a sua reinserção no mercado do Cen- tro: o resultado é tornar-se fabricante de estatuetas de barro. Em sua nova atividade, que é também uma reconstrução de sua identidade em crise, Algor aproxima-se de vários mitos da criação, entre eles do Deus judaico-cristão. Nesta linha, o discurso do narrador refere-se à sua con- dição de criador de adões e evas: “só alguns vieram a este mundo para fazerem do barro adões e evas” (SARAMAGO, 2000, p. 173). A relação do criador bíblico com suas criaturas é marcada pela seme- lhança, pela continuidade do seu ser nelas, por aquilo que, para ele, é familiar, e pela diferença, por aquilo que contraria seu ser, seu projeto, desgostando-o, provocando-lhe estranhamento e reação. O mesmo ocorre entre o criador criatura d’A caverna e suas criações. No que se refere à sua relação com o criador judaico-cristão e com outros criadores de outros mitos, o oleiro surge como duplo, na medida em que se carac- teriza por uma dupla relação: é o mesmo e outro, é semelhante e dife- rente, é, enfim, um paradoxo, como diz Clément Rosset em O real e seu duplo: O ensaio que se segue pretende esclarecer o vínculo entre a ilusão e o du- plo, mostrar que a estrutura fundamental da ilusão não é outra senão a estrutura paradoxal do duplo. Paradoxal porque a noção do duplo, como veremos, implica nela mesma um paradoxo: ser ao mesmo tempo ela pró- pria e outra. A Identidade n’A Caverna: Crise e Reconstrução 39 Entretanto, toda duplicação supõe um original e uma cópia (...) (2008, p. 24, 48). Este criador criatura e suas obras relacionam-se de maneira seme- lhante: acontece entre eles o mesmo que se observa entre ele e o criador maior. No intuito de recuperar a habilidade adormecida durante o tempo de inatividade, Algor modela, no barro, uma figura à sua imagem e, outra, à imagem de Isaura, sua amada, pretendendo quenelas se manifestem tra- ços não só dos modelos imediatos como de todos os seres, independen- temente de idade, raças ou quaisquer outras diferenças, portanto, tam- bém à sua imagem: “figuras de que qualquer pessoa, homem ou mulher, jovem ou velha, olhando-as, pudesse dizer, Parecem-se comigo” (SARA- MAGO, 2000, p. 152-153). A ideia de que a figura masculina é feita à sua semelhança também aparece quando imagina que alguém a queira comprar e que responderá: “essa não está à venda, (...) Porque sou eu” (SARAMAGO, 2000, p. 152). De acordo com o discurso do narrador bíblico, Deus, depois de criar o mundo, em especial a terra e a água, cria o primeiro homem, Adão, a partir da mistura desses dois elementos, ou seja, do barro. Acrescenta- lhe, ainda, o sopro que lhe confere vida, como se pode ler na Bíblia de Jerusalém, livro do Gênesis, capítulo I, versículo 2: No tempo em que Iahweh Deus fez a terra e o céu, não havia ainda ne- nhum arbusto dos campos sobre a terra e nenhuma erva dos campos tinha ainda crescido, porque Iahweh Deus não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o solo. Entretanto, um manancial subia da terra e regava toda a superfície do solo. Então Iahweh Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente. (1995, p. 33). Este homem é criado mais à semelhança de Deus do que à sua ima- gem: “Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, como nossa se- melhança (...)” (1995: p. 32). Mais à semelhança do que à imagem porque esta refere-se ao físico e Deus não se apresenta desse modo. Segundo o comentarista, “‘Semelhança’ parece atenuar o sentido de ‘imagem’, (...). O termo concreto ‘imagem’ implica uma similitude física, como entre Adão e seu filho (5,3)” (1995, p. 32), ou seja, entre Adão e Set: “No dia em que Deus criou Adão, ele o fez à semelhança de Deus, (...) Adão (...) Raquel de Sousa Ribeiro 40 gerou um filho à sua semelhança, como sua imagem, e lhe deu o nome de Set” (1995, p. 38). Além disso, supõe uma similitude geral de natureza: “inteligência, vontade, poder;” (1995, nota n, 32). Confere, ainda, às cri- aturas que cria os “dons preternaturais”. É isso que nos dizem Padovani e Castagnola, em sua História da Filosofia: Da Escritura e da Tradição, garantidas pela interpretação da Igreja e sis- tematizadas pela teologia, evidencia-se, fundamentalmente, como o ho- mem primigênio não só teria possuído aquela harmonia natural, de que agora é privado [pelo pecado original], mas teria sido outrossim elevado, como que por nova criação, à ordem sobrenatural, com um conveniente conjunto de dons preternaturais. Noutras palavras, o homem teria parti- cipado – com uma natureza extraordinariamente dotada – da vida de Deus, teria gozado de uma espécie de deificação, não por direito, mas por graça. E evidencia-se também que – devido a uma culpa de orgulho contra Deus, cometida pelo primeiro homem, do qual pela natureza humana, de- via descender toda a humanidade – teria o homem perdido aquela har- monia e a dignidade sobrenatural, juntamente com os dons conexos (PA- DOVANI, H. e CASTAGNOLA, 1962, p. 136). Do exposto, é possível dizer que Deus e Adão são simultaneamente semelhantes e diferentes, que são o mesmo e outro. Semelhantes ou o mesmo pelos “dons preternaturais’, pela semelhança de natureza, ou, conforme as palavras do comentarista do texto bíblico, de inteligência, vontade, poder. Por outro lado, são seres diferentes, outros, com sua marca pessoal, irrepetível. É pelo fato de o primeiro homem se revelar outro, ceder aos argumentos de sua outra parte, Eva, que comete o “pe- cado original”, fugindo do que Deus prescreveu, de que não comesse o fruto da árvore do Bem e do Mal. Da mesma maneira, Eva, ao mesmo tempo que é a costela de Adão, parte do seu corpo, também se revela ou- tra ao induzir Adão a fazer algo que não pretendia: Iahweh Deus plantou um jardim em Éden, no oriente, e aí colocou o ho- mem que modelara. Iahweh Deus fez crescer do solo toda espécie de ár- vores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jar- dim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal (1995, p. 33). Iahweh Deus chamou o homem: “Onde estás?”, disse ele. “Ouvi teu passo no jardim,” respondeu o homem: “tive medo porque estou nu, e me es- condi.” Ele retomou: “E quem te fez saber que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te proibi de comer!” O homem respondeu: “A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore, e eu comi!” Iahweh Deus disse à A Identidade n’A Caverna: Crise e Reconstrução 41 mulher: “Que fizeste?” E a mulher respondeu: “A serpente me seduziu e eu comi!” (1995, p. 35). Outro fator que contraria e desagrada a Deus é a violência dos des- cendentes de Adão e, em razão disso, decide puni-los com o Dilúvio, pou- pando Noé, sua companheira e seus descendentes, além de um casal de cada espécie criada: Iaweh viu que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo o desígnio de seu coração. Iahweh arrependeu- se de ter feito o homem sobre a terra, e afligiu-se o seu coração. E disse Iahweh: “Farei desaparecer da superfície do solo os homens que criei – e com os homens os animais, os répteis e as aves do céu –, porque me arre- pendo de os ter feito.” Mas Noé encontrou graça aos olhos de Iaweh (1995, p. 39). De acordo com Padovani e Castagnola, “segundo a solução teísta do problema teológico, o homem existe verdadeiramente, mas depende to- talmente de Deus, no ser e no agir.” (1962, p. 184). Ainda segundo os mesmos autores: Deus, portanto, pode ou não pode criar, pode criar este ou um outro mundo, entre infinitos mundos possíveis, de modo que Deus, querendo criar o mundo, pode única e absolutamente criá-lo para a sua glória – em- bora esta já seja interiormente infinita, sendo Deus a atualidade, a perfei- ção plena. Se se admitisse para a obra de Deus uma finalidade diversa, extrínseca, seria também preciso admitir em Deus uma indigência, como todas as consequências acima mencionadas. Deus, portanto, cria o mundo do nada, e não o tira de sua substância, mas o cria livremente e para a sua glória. E o homem faz parte dessa criação (1962, p. 139-140). Da mesma forma que Adão e Eva se tornaram outros em relação ao Criador supremo, o adão e eva que Algor está criando também apresen- tam desdobramentos que desagradam ao oleiro. Ao imaginar que alguém queira comprar seu adão, seduzido pelo que ele é, também porque, como desejava o aspirante a vendedor do Centro, se reconhece nele, Cipriano nega-se a vende-lo, porque a sua criatura não é apenas um outro, ou à semelhança do pretenso comprador ou de qualquer outro, desvinculado dele, mas é ele também, e, nesta condição, sendo Cipriano, desfazer-se dele, seria perder a sua integridade: “Algor dirá que essa não está à venda, (...) Porque sou eu.” (SARAMAGO, 2000, p. 152). Raquel de Sousa Ribeiro 42 Na medida em que a figura feminina remete a Isaura e ao mesmo tempo não é ela, é outra, é seu duplo. Por outro lado, referindo-se a Isaura e sendo ela a atual amada do oleiro desempregado, e como o su- jeito só ama porque encontra no outro, na amada, o que lhe falta ou o que é semelhante a ele, ou talvez porque procurará sempre a parte que foi retirada ao seu ancestral pelo criador divino, a eva do sogro de Marçal, Isaura, também será duplo dele. Todavia, como aconteceu com a figura bíblica e seu Adão, essas figuras criadas também vão suscitar experiên- cias indesejáveis para o antigo fornecedor do Centro. Depois de terminar o desenho das figuras que fabricarão artesanal- mente, Marta aproxima-se do pai e das duas esculturas que criou. Obser- vando a feminina, diz que não se parecem a nada “(...) que tenha visto, em todo o caso, a mulher lembra-me alguém” (SARAMAGO, 2000, p. 153). O futuro criador de estatuetas percebeou desconfia que Marta es- teja pensando em Isaura e, como tem resistido a confessar seu interesse ou amor por ela, talvez pela sua idade já avançada e temer parecer ridí- culo, ou por não estar em condições de prover a sua subsistência, sonda: “Em que ficamos, perguntou Cipriano Algor, dizes que não se parecem a nada que tenhas visto e acrescentas que a mulher te lembra alguém” (SA- RAMAGO, 2000, p. 153). Marta explica que coexistem as duas ideias, que, não obstante pareçam não ter semelhança com ninguém conhecido, tem a “impressão” de que nela existe algo de alguém próximo: “É uma impressão dupla, de estranheza e familiaridade (...)” (SARAMAGO, 2000, p. 153). Enquanto o mesmo é familiar, é conhecido, o outro é es- tranho. Por outro lado, a memória de Marta não parece identificar de imediato, algo que está no fundo de sua memória, resistindo a ficar claro mas passível de revelação a qualquer momento, num retorno do repri- mido. Pode também estar fingindo não identificar para não inibir ou sus- citar a confissão do pai. Os desdobramentos, por conseguinte, escapam ao seu projeto, fa- zendo com que reaja de maneira semelhante, em alguns aspectos, e dife- rente em outros, ao paradigma bíblico. “Sem terminar o seu trabalho, sem levá-los ao forno para que adquiram a aparência de vida” (SARA- MAGO, 2000, p. 182-183), que é o equivalente ao sopro sagrado, destrói- os. Principalmente no caso da sua Eva, fica evidente que é para evitar a especulação de Marta, para não dar explicações que não deseja: A Identidade n’A Caverna: Crise e Reconstrução 43 Cipriano Algor está agora sozinho na olaria. Provou distraidamente a so- lidez de uma cofragem, mudou de sítio, sem necessidade, um saco de gesso, e, como se apenas o acaso, e não a vontade, lhe tivesse guiado os passos, achou-se diante das figuras que havia modelado, o homem e a mu- lher. Em poucos segundos, o homem ficou transformado num amontoado informe de barro. Talvez a mulher tivesse sobrevivido se aos ouvidos de Cipriano Algor não soasse já a pergunta que Marta lhe faria amanhã, Por- quê, porquê o homem e não a mulher, porque um e não os dois. O barro da mulher amassou-se sobre o barro do homem, são outra vez um barro só (SARAMAGO, 2000, p. 173). A semelhança com o protótipo bíblico surge ainda no fato de que Eva faz parte de Adão: a ficcional é barro que se mistura ao barro do repre- sentante masculino; a bíblica é feita a partir da costela de Adão, da cria- ção divina não mais barro, mas já tornada carne. Além disso, a criação algoriana, quer se trate do masculino quer do feminino, ainda não rece- beu o sopro, ainda não saiu do estágio do barro. Nisto também diferem. Clément Rosset procura estabelecer uma ligação entre o duplo e a ilu- são, revelando o seu caráter paradoxal, como já foi citado. Olivier Reboul, em seu livro Introdução à retórica, diz que “paradoxo” é uma “opinião que contraria a opinião comum;” e que “isso não significa contrariar a razão” (1998, p. 219). Marta, com sua segunda opinião, a de que a figura lhe lembra alguém, conhecido, portanto, contraria a opinião que mani- festou inicialmente, a que surge como comum, como primeira e mais es- pontânea, naquela situação, a de que “não se parecem a nada que (...) tenha visto”. O discurso do pai denuncia esse paradoxo ao induzi-la a es- colher uma das duas opiniões. A figura revela-se paradoxal ao suscitar as duas opiniões ou impressões em Marta: se é o mesmo e se o ser é uno, se não existe ninguém igual, não pode ser outro, mas, se é outro, é porque é diferente do modelo, não se confunde com ele, pelo contrário, são distin- tos. Depois desses ensaios, destruídos, o criador criatura, Algor, dedica- se a nova criação, mas agora não apenas de seu primeiro homem à sua semelhança ou da primeira mulher à semelhança de sua amada, Isaura. Os novos modelos são mais distanciados da criatura que os modela, em- bora sejam representativos de vários segmentos da sociedade humana atual ou do passado: enfermeira, palhaço, bobo, esquimó, mandarim e assírio de barbas. Trata-se de uma série que deverá ser repetida, Raquel de Sousa Ribeiro 44 exatamente igual, muitas outras vezes, para vender: uma produção em série, em escala, não industrial, mas artesanal. Embora se trate da segunda criação de Algor, porque deverá ser com- pletada, o que não aconteceu com a anterior, o primeiro da série torna- se Primeiro e, nesta condição, ganha um cuidado, uma dedicação, uma reverência, uma ansiedade próximas do culto ao sagrado, na medida em que toda a criação, todo o nascimento é um mistério, motivo de encanta- mento e perplexidade, principalmente para seus iguais. Por outro lado, há um grande empenho porque também estão ligados à vida, à necessi- dade de sobrevivência de quem os confecciona: é preciso ter produtos em condições de agradar para oferecer ao mercado, ao consumidor. Ao dever sua vida, sua sobrevivência e independência à criatura que deverá agra- dar ao consumidor, Cipriano passa de criador a criatura em relação à sua criação. Esta é outra explicação que contraria a anterior, a comum: o pa- radoxo está sempre presente. Estes são alguns campos semânticos do vo- cabulário empregado. Cipriano, não obstante, continua como criador de adões e evas, de du- plos, ao dar vida ou aparência de vida, à primeira criatura da série. “Como um obstetra ou parteira, como se tivesse a ajudar a um nasci- mento (...) retira das cinzas, tépidas como pele humana, e macias e sua- ves como ela” (SARAMAGO, 2000, p. 202), produzidas pelo fogo feito num buraco aberto na terra, como se fosse um ventre, a sua primeira cri- atura, de uma série de seis, que deverá garantir a sua vida, dar-lhe con- dições de sobrevivência, além de sentido. Como num parto, Algor, “(...) depois de enterrar suas mãos nas cin- zas, segurou entre os dedos indicador e médio, primeiro a cabeça ainda oculta de um boneco, depois, todo o corpo e puxou para cima” (SARA- MAGO, 2000, p. 202) com todo o cuidado, como se de um bebê se tra- tasse. Além disso, para sacudir-lhe as cinzas do corpo, soprou-lhe no rosto, e é como se estivesse a limpá-lo da placenta e dos líquidos amnió- ticos. Este sopro remete, ainda, ao sopro do criador bíblico (Então Iahweh Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em suas na- rinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente. (Bíblia de Jerusalém, livro do Gênesis, capítulo I, versículo 2, 1995, p. 33), na me- dida em que “parecia que esta a dar-lhe uma espécie de vida, a passar para ela o hausto dos seus próprios pulmões, o pulsar do seu próprio co- ração” (SARAMAGO, 2000, p. 202). A Identidade n’A Caverna: Crise e Reconstrução 45 Este novo primeiro homem, este adão do oleiro aspirante a fornece- dor do Centro, é uma enfermeira. Embora, enquanto Eva, seja feita da carne e do osso em que o barro do primeiro homem bíblico se tornou, é como o primeiro homem que ela é feita, modelada do barro. Como enfer- meira, a estatueta representa aquela que, de maneira semelhante a Algor, ao criador, ajudará a dar vida a outras criaturas, e cuidará da vida de to- dos, na sociedade humana, inclusive do pai de Marta, caso lhe dê as con- dições de sobrevivência material, ao se tornar objeto de sedução dos con- sumidores do Centro. Por outro lado, como as filhas dos homens do dis- curso bíblico, (e não como os descendentes masculinos, filhos de Deus, conforme Gênesis I, 6, p. 39) é Eva, é mulher. Nesta condição, atualiza também o fato de ser ela, mais do que o homem, que, neste mundo ter- reno, de aparências e imitações, segundo a perspectiva platônica (2002), também retomada pelo discurso saramaguiano, está ligada mais direta- mente a prover e a protege a vida, primeiro com seu ventre, depois com seu seio, com seu cuidado e orientação, até que o novo ser se torne au- tossuficiente. A esta Cipriano contempla com o seu sopro humanamente divino
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