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AULA 6 FAMÍLIA, SAÚDE E SOCIEDADE Profª Tânia Maria Santos Pires 2 INTRODUÇÃO Apesar de a família ter um relevante papel na vida de seus membros, nem sempre ela se encontra em condições de exercer esse papel de maneira tranquila e estável. Isso acontece porque a família atravessa crises para as quais nem sempre está preparada. São situações inesperadas que balançam o sistema familiar e revelam sua fragilidade e debilidade, mas que podem também fazer esse sistema emergir mais forte e melhor para todos. Além das crises, há situações graves crônicas de disfuncionalidade familiar que podem se tornar ainda piores com o decorrer do tempo, levando os profissionais que trabalham com essas famílias a tomar providências quanto aos mais frágeis, retirando-os do ambiente familiar. Vamos discutir a seguir algumas dessas situações. TEMA 1 – FATORES DE RISCO E RESILIÊNCIA Um dos atendimentos que mais nos marcou a vida profissional foi durante uma visita domiciliar a uma paciente diabética, idosa, Dona Maria da Silva (nome fictício), 75 anos. A equipe de enfermagem nos contou que essa paciente costumava abandonar o tratamento com frequência. Sabíamos que essa senhora morava com a filha e, em outro momento, essa moça já havia sido chamada na US na tentativa de ajudar a mãe no uso da insulina. Parecia ser uma jovem inteligente e bem articulada. Ao chegarmos à casa, já na entrada notamos o cenário de abandono. O ambiente sujo desde a área externa, onde um cachorro raivoso nos recebeu, já dava a ideia da situação que encontraríamos dentro da casa. A idosa veio nos receber, mostrando-se um pouco preocupada com a nossa presença. Por não conseguir conter o cachorro, chamou pelo neto para ajudá-la. Vimos surgir um menino de aproximadamente 7 anos de idade, magro, cabisbaixo, encurvado, caminhando com passos lentos, resignados, em direção ao cachorro. Conduziu o animal ao ponto de contenção com uma corrente, da mesma forma firme e resignada como caminhava. Mal olhou para nós e retirou-se. Entramos na casa e a condição de higiene que vimos dentro era ainda pior do que estava fora. Restos de alimentos espalhados sobre a pia, insetos percorrendo louças sujas, marcas de fezes humanas misturadas às fezes de animais, odor fétido do banheiro espalhando-se por todo o ambiente. A idosa 3 estava ficando cega por causa do diabetes e não tinha mais condições de ficar sozinha, de cuidar de si, muito menos poderia ficar responsável por outros. Além da idosa e do menino de 7 anos, havia uma outra criança, com aproximadamente 2 anos de idade. As duas crianças estavam tossindo. O menino informou que estava tossindo há bastante tempo e mostrou o xarope que ele mesmo administrava. A idosa nos contou que estava muito preocupada com as crianças porque tinha consciência de que quase não enxergava. A filha era traficante de drogas e ficava fora o dia inteiro. Algumas vezes trazia homens para a casa e o restante da família tinha que ficar na parte de trás, num pequeno cômodo, que era ainda pior que a parte da frente da casa. Ao terminarmos aquela visita, fomos imediatamente conversar com a referência da Rede de Proteção daquela área, que era também a diretora da escola. Ao relatarmos o que vimos, a diretora surpreendeu-se porque o menino de 7 anos era um ótimo aluno, sempre trazia as tarefas de casa, comportava-se muito bem na escola, portanto, ela não fazia ideia do risco que aquela criança corria. Formalizamos o relato junto à Rede de Proteção, acionando a proteção para as crianças e para a idosa. O desfecho do caso não foi como desejávamos e, infelizmente, não foi também fora do contexto. Alguns dias depois da nossa visita, a filha de Dona Maria foi assassinada por traficantes, as crianças seguiram para casas diferentes, cada uma com o seu pai, sendo acolhidas diante da nova situação, e a idosa seguiu para uma instituição de cuidados. Dessa experiência, o que mais nos marcou foi a imagem do menino, o peso que ele parecia carregar sobre os ombros. Toda sua postura corporal demonstrava sofrimento e sobrecarga, no entanto, ele era um ótimo aluno na escola. Que surpreendente é essa capacidade humana de reagir aos problemas, mesmo tão jovem. O que será que nos leva a ter reações de defesa tão importantes? Quais são os recursos que utilizamos para isso? Onde encontramos forças para enfrentar os dramas da vida e os superarmos, de modo até a surpreender pessoas ao nosso redor? Por que alguns conseguem desenvolver resiliência e outros não? 1.1 Construindo a resiliência Diz-se que uma pessoa é resiliente quando passa por momentos de crise 4 ou situações crônicas de estresse e angústia e consegue superá-los, conduzindo- se dentro de um funcionamento emocional satisfatório. São processos sociais e intrapsíquicos que sustentam o indivíduo, levando-o a ter um estilo de vida sadio, mesmo quando o seu meio social e ambiental não o sejam (Pesce et al., 2004). As respostas das pessoas diante do estresse crônico são muito diferentes, por isso alguns autores elaboraram a hipótese de que seria possível que algumas pessoas pudessem ter nascido com essa capacidade e outras não. Posteriormente foi entendido que na verdade a resiliência é uma construção sobre alguma base emocional prévia, influenciada pela relação do indivíduo e seu meio ambiente. Nesse sentido, há muitas variantes que influenciam a reação das crianças e adolescentes diante das crises que enfrentam. Na verdade, a resiliência é o resultado da relação entre os fatores de risco e os fatores de proteção aos quais as pessoas são expostas. Os fatores de risco são de natureza diferente. Alguns podem ser crônicos, como a pobreza, rupturas na família, doenças na família ou na própria pessoa, situações permanentes de violência, exposição e convívio com a dependência química, como álcool e drogas. Outros fatores são pontuais, como a perda do emprego, mudança da condição social e padrão de vida, perda súbita de um dos pais. A forma como esses fatores afetam as pessoas também dependem do tempo de exposição e de outros recursos de defesa que as pessoas desenvolvam no decorrer da vida. A verdade é que todas as pessoas são expostas a fatores estressantes na vida, porém alguns são mais expostos do que outros, porque enfrentam muitos fatores estressores ao mesmo tempo e por períodos muito prolongados. No entanto, apesar de fatores como pobreza, ambiente social hostil ou mesmo com pouco estímulo positivo, o que determina a reação dos indivíduos diante das situações de estresse é quão seguros eles se sentem diante das mudanças, como entendem seu papel e seu valor naquele contexto e quais são suas fontes de proteção e apoio. Quando se analisa a vida de crianças nas famílias de maior vulnerabilidade, nota-se que há situações predisponentes de risco. É comum a convivência de crianças de paternidades diferentes na mesma família, geralmente chefiadas pela avó. Os vínculos são pobres e frágeis, há sensação de insegurança diante das uniões rápidas e inconsistentes dos pais e a possibilidade de sofrer rejeição pelo novo cônjuge dos pais é real. Falas de alienação parental são frequentes. 5 O valor dessa criança na família não é destacado como positivo. É comum que ela escute que é resultado de um erro, ou que significa um peso em termos de despesa para a família. Seus pequenos feitos não são valorizados, e os adultos ao seu redor descontam nela suas frustrações por meio de palavras agressivas e atitudes violentas. Sentimentos de menos valia e insegurança estão presentes na sua vida (Fernandes; Curra, 2006) O maior problema dessa criança é a falta de referenciais positivos nos quais possa ancorar sua vida, seus sentimentos, seu suporte emocional. Quando ela encontra esse referencial, seja em alguém de sua família, como um tio, uma avó, ou até mesmo fora, na figurade um professor ou de um contato próximo com um profissional de saúde, há mais chances de desenvolver resiliência. Quanto ao fato de se ter um dos pais ausentes e o impacto dessa ausência, sabe-se que há mais importância no tipo de relacionamento desenvolvido com a figura parental presente do que a falta de um deles. O que mostra que, se houver uma figura de referência positiva, esta conseguirá dar sustentação para que a criança se desenvolva de forma saudável, mesmo em condições sociais adversas. TEMA 2 – PROTEÇÃO E CUIDADO A importância dos fatores de proteção tem sido destacada como mais influente do que a exposição aos fatores sociais de risco. Os estudiosos os classificaram em três principais grupos (Pesce et al., 2004), que veremos a seguir. 2.1 Fatores individuais Relacionam-se à autoestima positiva, equilíbrio emocional, autocontrole. Apesar de serem considerados fatores relacionados à pessoa, esse conjunto de habilidades é desenvolvido dentro do conjunto de comportamentos aprendidos pela criança com a sua família. Aprender a respeitar a vez do outro, entender que não se consegue as coisas tendo uma crise e se jogando no chão, são situações manejadas pela família educadora. O equilíbrio da criança espelha o equilíbrio dos adultos ao seu redor. Crianças que são tratadas respeitosamente pelos seus pais tendem a serem respeitosas com seus professores e demais pessoas ao seu redor. Crianças tratadas aos gritos e com palavras desrespeitosas desenvolvem essa mesma forma de lidar com situações de estresse. Cabe aos pais observar os comportamentos que são mais inerentes à personalidade da criança e ajudá- 6 la a potencializar o que é bom e a controlar o que não é, da mesma forma que ensinamos os filhos a fazer suas eliminações fisiológicas em lugar privado. 2.2 Fatores familiares Refletem a forma como a família se relaciona e funciona. Atitudes de união, estabilidade, planejamento de vida, respeito uns aos outros e suporte mútuo nas dificuldades são funções desenvolvidas dentro da família. A criança percebe claramente isso quando vê os pais cuidando dos avós, recebendo os sobrinhos em casa porque um dos tios está doente, socorrendo uns aos outros nas necessidades. São atitudes que geram o sentimento de pertencimento, de ter certeza de que não será abandonado e que seus pais ou responsáveis farão de tudo para defendê-lo e cuidar de você. Crianças que vivenciam famílias assim sentem-se felizes e seguras. 2.3 Fatores sociais Estão relacionados com o meio ambiente, como a escola, amigos, igrejas, grupos de suporte social como os escoteiros, inclusão em atividades de esporte, demais situações que favoreçam o reconhecimento de habilidades e autoestima. As crianças adoram fazer coisas em grupo, como cantar, dançar, praticar esportes. É comum que os professores observem talentos inesperados nessas atividades. De toda forma, ao ter seu reconhecimento publicado, as crianças sentem-se valorizadas e melhoram sua autoestima. Os fatores de proteção conseguem transformar a vida de crianças mesmo quando são acessados de maneira mais tardia, como acontece em situações de crianças que foram submetidas a elevados agravos e depois protegidas. Estudos mostram que, após serem cuidadas e se sentirem em segurança, elas foram capazes de desenvolver vínculos significativos com pessoas de referência, como cuidadores, pais adotivos, superando os traumas que viveram e seguindo suas vidas de modo saudável. Os estudiosos do tema afirmam que os fatores de risco não são preditivos de resiliência, mas os fatores de proteção demonstram essa capacidade agindo, sobretudo, de quatro maneiras: a. redução de respostas negativas ao impacto imediato a exposição de risco, alterando a exposição da pessoa aquela situação. A reação de defesa parte 7 da segurança de entender-se capaz de julgar e tomar uma decisão embasando-se no seu repertório pessoal. Citamos como exemplo a negativa a um convite de alguém para experimentar drogas ou ser considerado como chato porque é estudioso. Situações de exposição à violência repercutem menos em pessoas com boa autoestima; b. redução de impacto negativo desencadeadas posteriormente, ou seja, mais tardiamente na vida, em consequência da exposição de risco. As emoções negativas ficam arquivadas no nosso emocional, podendo mais tarde desencadearem situações de doença, transtornos mentais ou desajustes sociais. Pessoas que desenvolvem os fatores de proteção repercutem muito menos esses efeitos tardios da exposição ao risco; c. estabelecimento e manutenção da autoestima e da sensação de vitória pessoal, também chamada de autoeficácia, ao apegar-se a relacionamentos significativos e executar bem as tarefas que lhe são propostas. Dentro dessa dimensão está também entender-se como um ser que pode falhar e recomeçar, perdoar e pedir perdão, sem que isso lhe deixe a sensação de ser alguém que sempre está errado ou que não acerta nunca. Todos erram e acertam. Quando acertamos, nos congratulamos, quando erramos, corrigimos os erros e seguimos em frente; d. criação de oportunidades para reverter os efeitos do estresse. Isto é muito importante porque ensina a criar mecanismos de alívio, de autoproteção e lazer. Quando os pais estão atentos para isso, procuram criar no final de semana um momento diferente para os filhos, como um almoço especial (que pode ser simplesmente estender uma toalha de mesa no chão do quintal e almoçar brincando de piquenique), ou levando os filhos em um parque público, construir um brinquedo com a criança, fazer um bolo junto com ela, ou outra tarefa na casa e enaltecer a sua participação. São pequenos momentos que ajudam a criança a entender que ela é alvo de atenção e sua companhia torna os pais felizes. TEMA 3 – PRINCIPAIS SITUAÇÕES DE CRISE: SEPARAÇÃO DO CASAL, DESEMPREGO E MORTE As crises fazem parte da vida e mesmo as crianças têm que passar por elas. É certo que a forma como as famílias e indivíduos vão reagir às crises depende do seu grau de funcionalidade. Sendo assim, quando a crise acontece, 8 esta vai ressaltar a funcionalidade ou disfuncionalidade da família. Durante a pandemia do coronavírus, por exemplo, os órgãos de monitoramento detectaram um expressivo aumento da violência intrafamiliar. É um exemplo de como as crises, mesmo de origem externa, podem agravar as crises internas das famílias. Entre as crises que podem afetar profundamente as famílias, destacamos situações de separação do casal, desemprego e doença/morte. 3.1 Casal em fase de separação Esse é um momento crítico para a família, porque raramente ele é composto por uma situação de consenso. Na maioria das vezes, o casal se separa em meio a brigas, desvalorização mútua, causando um importante conflito que atinge todos os familiares, principalmente as crianças e adolescentes. Quando essa decisão parte da mulher, é um agravante a mais para risco de violência e até mesmo de feminicídio. Chantagem financeira, perseguição, ameaças e assédio são também frequentes, desestabilizando ainda mais as famílias, aumentando a sua vulnerabilidade. Se a decisão já está tomada de fato, a separação deve passar por etapas até que se conclua. São fases que podem chegar até um ou dois anos, dando tempo para todas as pessoas processarem a situação e o luto que traz. Seria muito bom se o casal pudesse conversar com alguém que pudesse funcionar como um mediador da situação. É claro que é algo difícil de ser aceito, sobretudo por aquele que não deseja ou não aceita a separação. Muito mais difícil fica o consenso se a relação do casal é permeada de violências. Nesses casos, a equipe de saúde deve orientar a parte mais fragilizada, geralmente a mulher com os filhos, para que procure proteção legal. 3.2 Etapas da separação 3.2.1 A decisão de se separar Algo vai mal quando de vez emquando uma das partes fala em se separar. Isso significa que a decisão está se consolidando e espera o momento para acontecer. É a hora para saber se todas as possibilidades do casal foram esgotadas ou se eles ainda estão dispostos a tentar a convivência. Caso o casal decida tentar manter a relação, é importante que tenha apoio de profissionais ou de pessoas experientes para ajudar na restauração da relação, senão os mesmos 9 padrões vão se repetir e aquilo que está causando a separação vai se manter. Nesse caso, sem ajuda, sem tentar mudanças, manter a relação significa apenas prolongar o sofrimento de todos. 3.2.2 A separação propriamente dita Nessa fase, o casal se separa de fato, com a saída de um dos cônjuges de casa. É muito importante explicar aos filhos pequenos que a saída do pai de casa (ou da mãe) não resultará na quebra dos laços parentais; eles continuarão sendo pais mesmo separados. 3.2.3 Estabilização das duas novas famílias monoparentais que se formam Nessa etapa, os pais devem fazer acordos sobre as visitas dos filhos nas duas casas. Em caso de crianças pequenas, esses acordos são essenciais para que as rotinas da criança sejam respeitadas nas duas casas. Se os pais tiverem coerência, a criança se beneficiará muito quanto à sua educação e não conseguirá manipular os pais para atender a caprichos. Um alerta importante é não fazer a criança de espiã na casa do outro, estimulando-a a relatar o que viu na casa do pai ou da mãe, ou com quem ele ou ela conversa, alimentando disputas ou ciúmes possessivos no pós-separação. 3.2.4 Divórcio propriamente dito Fase de formalização legal da separação, acordos sobre pensões alimentícias e proteção dos vulneráveis da família, sobretudo de crianças, de modo a garantir seus estudos, moradia, segurança física e emocional no presente e futuro. 3.2.5 Reorganização da vida dos ex-cônjuges Fase de consolidação da nova realidade para todos os ex-cônjuges e para os filhos. Geralmente nessa etapa o luto está superado e as pessoas seguem suas vidas. Há também investimento em carreiras profissionais dos ex-cônjuges, criação de novas redes de apoio social, amizades e nova estrutura emocional e afetiva. É um bom momento para se pensar nos erros e acertos da relação anterior, de modo maduro e o mais profundamente possível, para evitar repetir os mesmos erros em relações futuras. Os ex-cônjuges provavelmente encontram 10 novos pares e iniciam novos relacionamentos. Um alerta para essa fase é não apresentar aos filhos relacionamentos no início e não trazer pessoas estranhas para dormir na mesma casa com eles. Não é bom para a criança ver o pai ou a mãe com muitos namorados porque isso causa insegurança emocional. Quando a relação de namoro for séria, então sim as crianças devem ser apresentadas. 3.2.6 Novos casamentos Nesse momento formam-se novas famílias. Quem é pai ou mãe deve pactuar previamente com o seu novo cônjuge, qual será seu papel na vida da criança. Ele também deve ter ciência que o ex-cônjuge do seu companheiro fará parte da sua vida também, que eles devem conversar sempre que for necessário fazer acordos sobre os filhos. Esse pacto deve ser muito bem discutido para evitar tensões no futuro. TEMA 4 – FAMÍLIAS VIVENDO COM A DEPENDÊNCIA QUÍMICA Existem algumas situações que proporcionam extremo sofrimento às famílias, desestabilizando todo o sistema familiar. Nessas situações, as pessoas sentem-se esgotadas e sem esperança, confusas, com dificuldade para tomar decisões. É o caso de famílias que convivem com a dependência química, álcool e drogas. Quando dizemos que ninguém adoece sozinho e que a família é um sistema produtor e mantenedor de saúde e doença, nada seria mais representativo do que quando abordamos a questão da dependência química. O dependente químico está gravemente doente e a família adoece severamente também junto com ele. Todos os meus anos de experiência como médica me fizeram entender que é muito difícil mensurar o grau de sofrimento de uma família diante de um diagnóstico grave como um câncer, mas afirmo, sem dúvida, que a maioria das família lida muito melhor com o diagnóstico de um câncer em um filho do que com o diagnóstico da dependência química. Todos adoecem nesse sistema familiar e a dependência química torna-se o tema da família, o que significa que tudo giram em torno daquela doença e daquele doente. A família não percebe claramente isso, mas se torna a fonte, o gatilho para a doença e, de alguma forma, também está inserida na raiz do problema. É importante que a família enxergue isso, não para identificar culpados, 11 mas para alterar padrões de comportamento que se repetem dentro de diversas gerações, mantendo a doença em sequência. Não é raro encontrarmos avôs, pais, netos alcoolistas e suas filhas casando-se com alcoolistas, repetindo o ciclo. 4.1 Papel da família no tratamento e estabilização da dependência Todos os estudos mostram que a família é o maior recurso para o tratamento e recuperação do dependente químico, devendo ser envolvida no tratamento e ao mesmo tempo sendo tratada também. Um dos maiores avanços no tratamento da dependência química foi a mudança de visão do tratamento exclusivamente do doente para o tratamento de todo o sistema familiar. Dentro do foco sistêmico, entende-se a dependência química como uma manifestação de adoecimento do sistema familiar, portanto o dependência química é o sintoma da doença, e o paciente é o que manifesta esse sintoma. Nesse sentido, todos os membros da família manifestam algum sintoma da doença, ainda que eles mesmos não sejam usuários de substâncias. Vamos encontrar nesse grupo familiar quadros de depressão, ansiedade crônica, transtorno do sono, dificuldade de adesão aos tratamentos. Quando falamos no sintoma, é adequado lembrar que todo sintoma aponta para um problema. O sintoma em si não é a doença, mas uma sinalização da doença causadora dele. Ao analisarmos dessa forma, podemos entender que a dependência química está apontando para conflitos mal manejados, frustrações abafadas, comunicação truncada, percepção de menos valia, falta de afeto. É comum ouvirmos os pais dizerem que não entendem por que aquilo aconteceu, já que sempre deram tudo ao filho. Na verdade, o tudo que foi dado não era o tudo de que a criança precisava. Algo falhou, ou ficou insuficiente dentro daquele sistema que adoeceu e não teve condições de se reequilibrar. Por não compreender esse conjunto, a família busca ajuda para o dependente químico, mas não entende que também precisa tratar-se ao mesmo tempo, para quebrar o ciclo e modificar o padrão de relacionamento mantenedor da dependência. Na maioria das vezes, a dependência química inicia-se na adolescência. Isso não acontece por acaso, mas pelo fato de ser o momento em que se inicia a crítica mais intensa, além da segurança de ser capaz de vencer a repressão e expressar-se. Quando o sistema familiar permite a expressão de diferentes opiniões, respeitando e alinhando os pontos de vista, a comunicação acontece por 12 meio de palavras, de conversas e até mesmo por meio de atos bastante expressivos como fazer uma tatuagem, colocar piercings, ouvir um rock mais pesado. Os pais ficam um pouco estressados por perceberem que seu filho, antes tão doce, parece de repente insurgir contra os padrões da família, mas, se souberem lidar com a situação, vão constatar que, uma vez plantada uma boa semente, ela germina e a planta aparecerá bonita e coerente com a semente. Famílias rígidas, sem abertura para questionamentos ou mudanças, cujo padrão de comunicação é com frequência abusivo, manipulador de culpas, controle dos filhos com extremo esforço, por meio de coerção, manipulação de culpa ou chantagem emocional, a forma de manifestação tende a ser mais agressiva, aumentando consideravelmenteo risco para a dependência química. As situações são mais complicadas quando o padrão social da família e suas crenças aparentemente deveriam ser protetoras dessa situação. Ainda assim, vemos esse quadro entre famílias de boas condições financeiras, religiosas, com ensino superior completo, demonstrando que o problema supera as fragilidades sociais e econômicas, embora estas sejam um componente de maior risco. Por outro lado, famílias que são excessivamente permissivas têm uma aparente liberdade, que na verdade mostra a falta de compromisso com os seus, ausência de limites, de disciplina, de metas e rumos. A criança é deixada à sua própria sorte e as escolhas, sem qualquer direcionamento. São condições de abandono, mesmo que aparentemente seus pais ou responsáveis estejam presentes, dando-lhes o que comer, vestir e teto para morar. Nesse tipo de família, os vínculos são quase inexistentes. 4.2 Estratégias terapêuticas para abordagem da dependência Existem atualmente diversas linhas terapêuticas para o manejo da dependência química. Devido à complexidade do tema, há necessidade de abordagens multiprofissionais como também de tratamento medicamentoso e comportamental. A mudança da estratégia terapêutica, mudando o foco exclusivamente do paciente para a abordagem da família, mostrou-se mais efetiva para prevenir as recaídas e permitir a desintoxicação permanente do paciente, afinal o sistema familiar está adoecido e não apenas uma pessoa. 13 4.2.1 Terapia sistêmica familiar A terapia familiar, dentro da abordagem sistêmica, é apontada como a melhor forma terapêutica para mudança do comportamento abusivo e direcionamento da família para melhora do padrão de funcionalidade (Paz, Colossi, 2013). Quando um filho torna-se dependente químico, toda a demanda emocional da família volta-se para ele. Com isso, as outras demandas prévias entram em “modo silencioso”, como os desentendimentos do casal, relacionamentos paralelos de um dos cônjuges, as disputas entre irmãos, os destaques de filho preferido, a sogra manipuladora. Tudo sai do palco para que a dependência química domine e parece então que o único problema da família é a dependência química de um filho, que parece ser o responsável por toda a infelicidade da família. O que acontecerá quando esse filho melhorar, deixar a dependência química e buscar outros rumos na vida? A família então tem que mudar de foco, não podendo mais usar aquela situação para abafar todas as outras com as quais não quer lidar. Mesmo sem perceber, as famílias mantêm algumas situações para que consigam conviver com outras. É um processo inconsciente de adequação do sistema, por esse motivo a família precisa de tratamento, para olhar para si mesma como um conjunto, que interage e que consegue também modificar padrões, encontrar suas forças, seus princípios e reordenar seu funcionamento. 4.2.2 Terapia de grupos de pares A terapia de grupo de pares mostrou-se muito efetiva pela sua validação prática. Todos os participantes vivenciam o mesmo problema, mas estão em diferentes estágios dessa vivência. Isso permite que aqueles que estão na fase mais aguda, iniciando a terapia, escute daqueles que já estão há mais tempo vivendo o problema, algumas verdades que talvez não tolerassem escutar de um terapeuta. Nesse modelo de abordagem, o terapeuta assume o papel de facilitador do processo, mas o andamento da terapia acontece no compartilhamento das experiências dos participantes. Os grupos promovem suporte mútuo por meio de discussão do problema, exposição da sua experiência, admissão das suas dificuldades. O fato de todos estarem vivendo o mesmo tipo de problema diminui muito o receio de ser julgado pelos demais, situação que favorece o olhar sincero 14 sobre si mesmo e sobre a situação da sua família. Também ajuda a família a reconstruir uma rede de ajuda e de vivência, diminuindo a sensação de solidão. Exemplos de grupos de pares existentes em diversas cidades: • Al-Anon – grupo de suporte aos familiares de pessoas com dependência alcóolica. O paciente pode estar ou não inserido no grupo dos Alcoólicos Anônimos; • Alateen – voltado para adolescentes em contato com familiares com dependência alcoólica; • Amor Exigente – trabalha com famílias de pessoas com dependência química e atua também na prevenção com famílias em risco. Há outros grupos de suporte coordenados por secretarias de saúde, universidades e igrejas, que podem ser mais específicos, por exemplo, para suporte de esposas de homens alcoolistas, ou pessoas com dependência de jogos. O acesso ao grupo dá suporte importante ao tratamento da família adoecida. TEMA 5 – SOFRENDO EM SILÊNCIO: OFENSA SEXUAL DENTRO DA FAMÍLIA Eis um tema difícil de abordar e mais difícil ainda de se lidar porque traz consigo a culpa, a vergonha, o acobertamento de outros que são parte da família e um conjunto de dores longas, com repercussões variáveis. Todos nós repudiamos essa prática, no entanto, mesmo nos países mais desenvolvidos do mundo, em que a criminalidade, como os roubos e assassinatos, é muito baixa, ele continua em alta, com grande dificuldade até mesmo para estatísticas, devido à dificuldade da vítima em denunciar. 5.1 Caracterizando o crime Uma vez atendi uma jovem com síndrome do pânico. Ela entrava em crise no seu trabalho e conseguiu identificar a razão. O banheiro do trabalho tinha um modelo de janela que a fazia relembrar o assédio do irmão mais velho adulto, que a espiava enquanto tomava banho na infância. Ela avisou os pais que ele fazia isso com frequência, mas os pais não acreditaram nela. Uma menina de 10 anos informou à mãe que o tio a colocou no colo e tentou tocar sua genitália. Quando a mãe o questionou, ele negou, disse que se a tocou foi sem querer, acidentalmente, enquanto a colocava no colo. Disse que a 15 considerava uma filha e que jamais faria qualquer mal à criança. Tudo não teria passado de um mal entendido. Dias depois ele se aproveitou de um momento em que a criança estava sozinha numa parte mais isolada da casa e tentou tirar a roupa dela. Ela gritou e foi socorrida por uma vizinha. Sua mãe finalmente acreditou. Quando perguntamos a uma paciente se ela sofreu algum tipo de abuso sexual, a pessoa responde rapidamente que não, porque nem sempre identifica atos como os que acabamos de relatar como um abuso sexual pelo fato de não ter se completado o ato em si. Analisando a definição da OMS, todos os atos sexuais envolvendo crianças ou adolescentes são considerados ofensas sexuais, mesmo que este aparentemente concorde com o ato. É necessário destacar que, no caso do adolescente, mesmo aparentemente concordando com a incursão sexual, seu grau de maturidade não lhe permite uma análise completa sobre as consequências de seus atos (por exemplo, uma gravidez), ao contrário do adulto que lhe envolve. Outra característica desse crime é o sentimento de culpa que envolve a própria vítima. A criança não entende o que está acontecendo quando um adulto a toca de forma indevida, por isso, dependendo de sua idade, não tem qualquer mecanismo de defesa. Além de tudo, a criança pequena está acostumada a ter seu corpo exposto aos adultos da casa, que são seus pais, avós, tios com quem convive, para tomar banho e fazer sua higiene. Não tem qualquer defesa, ou suspeita prévia de que algo de errado pode lhe acontecer se um deles lhe disser para tirar a roupinha para tomar banho, ou vier ajudá-la na higiene após evacuação. Mesmo sentindo desconforto, medo e angústia com a situação, o corpo da criança responde ao toque do agressor, o que confunde a sua emoção por achar que está participando do processo. Quando a criança se recusa a continuar, acontece a ameaça, a intimidação e medo de não lhe darem crédito. O pior é quando ela se manifesta, e a mãe ou a pessoa responsávelpor ela de fato não acredita nela. Nesse momento, acontece o sentimento de autodepreciação. A criança acredita que não tem valor para a mãe e que por isso não tem mesmo valor para ninguém. É comum pessoas que passaram por isso guardarem mais mágoa da mãe que não lhe deu crédito do que propriamente do agressor. Por que a mãe não acredita? Uma vez atendemos uma criança cujos sintomas fizeram suspeitar que estivesse sendo vítima de ofensa sexual. A mão 16 foi questionada a esse respeito e mostrou-se muito preocupada e motivada a esclarecer a situação. Ela era separada do pai da criança e imediatamente levantou suspeitas sobre ele, dizendo que se isso estivesse acontecendo certamente seria durante as visitas da menina ao pai e seus familiares. Ao conversarmos com a menina, ela confirmou as suspeitas, mas disse que o agressor era o avô materno, com quem morava e com quem ficava sozinha quando a mãe e a avó saiam para trabalhar. Ao saber disso, a mãe desqualificou a denúncia da filha, disse que com certeza ela estaria se confundindo, que jamais o avô faria isso. Em outro momento, uma jovem com um quadro de depressão grave e tentativa de suicídio contou que o pai a molestou durante anos, até seus 12 anos de idade, e que isso acontecia no quarto da mãe, enquanto ela estava sentada na sala fazendo crochê. Ele simplesmente dizia que ia tirar um cochilo na companhia da filha e a mãe sequer reagia a isso, como se fosse algo muito natural um homem trancar-se no quarto com uma criança para tirar um cochilo. A mãe não reage mesmo sabendo, quando a revelação da criança mexe com os seus interesses e a afeta, quando depende emocionalmente e financeiramente do agressor, ou quando ela mesma foi vítima desse crime e o minimiza para conseguir viver. São muitas as razões, todas cruéis, e que tornam essa mulher tão agressora quanto ao agressor, sobretudo aos olhos da vítima. 5.2 Quando suspeitar? Apesar do silêncio que permeia este crime, a vítima emite sinais e sintomas, que com frequência são ignorados pela família e confundidos pelos profissionais de saúde, razão pela qual eu resolvi incluí-lo neste momento de estudo. Ressaltamos que os sintomas não são exclusivos dessa situação, assim como a febre não é exclusiva das infecções bacterianas, mas, devido à prevalência, sempre devem fazer parte do diagnóstico diferencial. Como em qualquer diagnóstico, só se pode chegar a uma conclusão quando se pensa na possibilidade de ela existir. • Alteração súbita de comportamento, como tristeza, isolamento social, manifestação de irritabilidade e raiva; • Autoagressão, como arrancar os cabelos, machucar-se com algum objeto, tentar se cortar, bater com a cabeça propositadamente; 17 • Dor abdominal recorrente. Apesar de a dor abdominal ser muito frequente em crianças pequenas, ela é também um sintoma de ansiedade. Estranhe e investigue melhor quadros constantes de dor abdominal que não melhoram em crianças e adolescentes; • Depressão e tentativa de suicídio em crianças e adolescentes. 5.3 O que fazer ao se deparar com esse crime? A resposta parece óbvia: denuncie! Parece simples, mas nem sempre é, porque os profissionais podem sofrer ameaças quando fazem o diagnóstico da situação, principalmente os que atuam na Atenção Primária, devido à proximidade com o agressor, trabalhando no mesmo bairro e sendo conhecidos de todos. É importante que a cidade tenha estratégias e fluxos para que a denúncia seja feita de forma anônima pelos profissionais de saúde, pelos professores e até mesmo vizinhos ou familiares. A Rede de Proteção é um grande instrumento que envolve o setor Saúde, Educação, Assistência Social e Sistema Judiciário por meio do Ministério Público. A criança precisa ser protegida de uma sociedade cada vez mais cruel e doente, cujas maldades não conhecem limites, senão nada nos restará de humanidade e de esperança. 18 REFERÊNCIAS ARAGÃO, A; MILAGRES, E; FIGLIE, N. Qualidade de vida e desesperança em familiares de dependentes químicos. Psico – UFS. Itatiba/São Paulo, v. 14, n. 1, p. 117-123, jan.-abr. 2009. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/pusf/v14n1/a12v14n1.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2021. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Proteger e cuidar da saúde de adolescentes na atenção básica 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2018. DESLANDES S. Livro das famílias: conversando sobre a vida e sobre os filhos. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde/Sociedade Brasileira de Pediatria, 2005. FALCETO, O; FERNANDES, C; WARTCHOW E. O médico, o paciente e sua família. In: DUNCAN, B. B. et al. Medicina ambulatorial: condutas de atenção primária baseadas em evidências. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005. p. 115-124. FERNANDES, C. L. C; CURRA, L. C.D. Ferramentas de abordagem da família. in: PROMEF – Programa de Atualização em Medicina da Família e Comunidade. Sistema de Educação Médica Continuada a Distância – Ciclo 1, Módulo 3. Organizado pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Porto Alegre: Artmed/Panamericana, 2006. p. 11-41. PAZ, F. M; COLOSSI, P. M. Aspectos da dinâmica da família com dependência química. Estudos de Psicologia, v. 18, n. 4, p. 551-558, out,-dez. 2013. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/epsic/v18n4/a02v18n4.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2021. PESCE, R. et al. Risco e proteção: em busca de um equilíbrio promotor de resiliência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 20, n. 2 p. 135-143, 2004. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/ptp/v20n2/a06v20n2.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2021.
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