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1 Simbologia dos alimentos

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Tema 1: Simbologia Dos Alimentos
1. Simbólico da alimentação
Ao final deste módulo, você será capaz de identificar os aspectos reais, simbólicos e imaginários da alimentação.
Aspectos reais, simbólicos e imaginários da alimentação
# Por que estudar História e Antropologia da Alimentação
Você, como estudante de Nutrição, deve estar se perguntando que disciplina é essa e por que ela é importante para você. Então, antes de mais nada, vamos refletir juntos sobre isto? Para entendermos primeiramente o que é a Antropologia da Alimentação, começaremos falando sobre Antropologia: o que vem a ser Antropologia?
Resposta: A Antropologia é uma ciência social que surgiu no século XIX e que é fruto do Neocolonialismo. O Neocolonialismo, isto é, o novo colonialismo, está diretamente relacionado à Revolução Industrial e foi a expansão imperialista das potências europeias no século XIX em direção à África e à Ásia.
Diante da crise de superprodução na Europa em função da descoberta da utilização da eletricidade e do petróleo, esses países saíram em busca de novos mercados, matérias-primas e mão de obra. Segundo Laplantine (2000), os colonos e viajantes começaram assim a acumular informações sobre os povos considerados exóticos desses países e assim se organiza a disciplina que se propõe a estudar esses povos, a Antropologia.
A Antropologia significa literalmente o estudo do homem (a palavra vem do grego anthropos, que significa homem, e logos, que significa razão, pensamento). A Antropologia surgiu com o intuito de compreender esse homem exótico de forma global, ou seja, sua arte, economia, religião, seu pensamento, parentesco, sua alimentação, cultura material etc.
A Antropologia Cultural pode ser definida como a ciência que está interessada nos aspectos culturais dos grupos e sociedades e em suas consequências no comportamento individual e coletivo. Sendo assim, ela reflete sobre o homem, principalmente, a partir do conceito de cultura.
Já a Antropologia da Alimentação, o que ela estuda?
Resposta: Ela se ocupa justamente das dimensões culturais da alimentação. Para melhor compreender este ponto, vamos refletir primeiramente sobre a centralidade da alimentação em nossas vidas a partir de algumas questões. Por que comemos? O que comemos? Como comemos e como preparamos os alimentos? Esta última ideia de modalidade inclui também questões como: a que horas comemos? Com quem comemos? Onde comemos?
É interessante observarmos que, se o homem em algum momento de sua história precisou lutar para encontrar alimentos, atualmente ele enfrenta a balança: ele luta para não comer. A obesidade já é um problema de saúde pública maior que a desnutrição. Se atualmente produzimos tantos alimentos quanto jamais o fizemos, também convivemos, muitas vezes, com o desperdício e o consumo pletórico de alimentos, a fome e a desnutrição.
Toda a arte da Gastronomia é desenvolvida a partir do prazer e do desejo. Por outro lado, a alimentação está ligada de outras formas à dimensão psicológica dos homens. Muitas vezes comemos, por exemplo, por estarmos ansiosos ou tristes.
Partilhamos a mesa com outros comensais em refeições que podem ser mais ou menos festivas, a dita comensalidade, ou o ato de comermos juntos. Na Antropologia da Alimentação, falamos em função social da refeição.
Se pensamos no que comemos, alguns podem responder: comida! Mas será que todos consideram aquilo que é potencialmente ingerível como comida?
... aquilo que é considerado comida varia enormemente de acordo com o grupo dos indivíduos.
Os indivíduos se distinguem por aquilo que comem. Nós nos diferenciamos de outros povos nesse quesito; em sociedades divididas em classes como a nossa, as diferenças entre essas classes são criadas e mantidas por meio do que se come, de como se come. A alimentação funciona a favor desse mecanismo de distinção, desse modo de distinguir pessoas de classes sociais diferentes. Resumindo: o que comemos depende de muitos fatores.
Em relação à última questão, como comemos e como preparamos os alimentos? Comemos todos do mesmo jeito?
Evidentemente, não. Comemos certas coisas com garfos, facas ou colheres e outras com as mãos. Comemos sentados em uma mesa com amigos ou familiares em nossa casa, ou em um restaurante, mas também comemos solitários andando pela rua ou de frente para a TV ou para o computador.
Muitos orientais usam o hachi para comer e, em alguns lugares da África, todos comem com a mão no mesmo prato. Em algumas sociedades, come-se no chão; em outras, homens, mulheres e crianças não comem juntos, nem ao mesmo tempo. Já em alguns momentos e situações na Antiguidade, comia-se recostado.
Come-se também de forma diferente nos diferentes estratos sociais. Podemos ter uma mesa simples onde todos comem com colheres somente ou com a mão, e uma outra com inúmeros talheres, pratos e copos de todo os tipos somente para uma refeição. Toda essa parte relacionada à alimentação na Antropologia da Alimentação é chamada de modos à mesa, que variam enormemente entre os povos e sociedades.
Podemos ver então que a alimentação é um ótimo caminho para pensarmos sobre o ser humano, uma vez que ela engloba dimensões fisiológicas, psicológicas, socioculturais e econômicas.
Por este motivo, é que falamos em Antropologia da Alimentação.
Para ser eficiente como um profissional da área da saúde, você deve compreender que quem está no centro desse processo é o seu paciente ou seu público-alvo. As ações devem se adaptar aos pacientes para que haja uma efetiva mudança de comportamento no sentido da promoção da saúde. A postura do nutricionista deve ser sempre a de orientar, respeitando as particularidades culturais e pessoais dos indivíduos. O olhar sobre as diferenças deve ser generoso e ético.
O Real, o Simbólico e o Imaginário na psicanálise de Lacan
Quando falamos em real, simbólico e imaginário da alimentação, estamos na realidade fazendo referência a uma classificação que é oriunda da psicanálise de Lacan. Vamos explorar de forma bem suscinta e simplificada o significado desses termos no pensamento do ilustre doutor. Grosso modo, de acordo com Macarini (s.d.), que trata o assunto de modo compreensível, o real seria aquilo que descrevemos com palavras, aquilo que existe antes de nós e que não depende de nós.
O simbólico será resultado da maneira como construímos e como isso vai moldar a forma com que nos relacionamos com os demais. Interpretamos o mundo, as palavras, os sons, o que vemos, transformando-os em símbolos que lhes atribuem significados. Esses termos são amplamente discutidos pela Filosofia e por outras ciências, como a Antropologia e a História, além da Psicanálise.
+ O real da alimentação
O real da alimentação refere-se a todos os aspectos relacionados à ciência da nutrição, ou seja, qual é a composição nutricional deste alimento, como é obtido no processo de produção e suas consequências na saúde da população e dos indivíduos. Mas o real também se refere às características ditas organolépticas do item alimentar ou da preparação, ou seja, tudo aquilo que diz respeito a nossos sentidos, aparência, odor, textura e sabor.
Há quem vá se manifestar e dizer que comida real ou comida de verdade são alimentos in natura ou levemente processados, como os que são adeptos do Real Food (REAL, s.d.), uma tendência alimentar que preza por uma alimentação saudável e pela sustentabilidade ambiental. Mas, de acordo com o significado que estamos discutindo aqui, uma lata de sardinha ou um pacote de batatas fritas é tão real quanto uma fruta.
+ O simbólico da alimentação
A alimentação e os seus aspectos simbólicos 
Nesse caso, o significado atribuído à salada é que ela é algo menos importante que a carne. E, efetivamente, alguns trabalhadores do campo, ou mesmo pessoas nos centros urbanos, consideram as saladas como uma comida que não tem sustância e não dá força para o trabalho, sendo desvalorizadas (ALVES; BOOG, 2008).
Portanto, observamos diferentes valores simbólicos que foram dados à mesma preparação. E quanto às sardinhas em lata?Elas tanto podem significar um alimento saudável como também podem ser descartadas por ser um produto enlatado, não considerado um alimento natural ou de verdade.
Você pode observar então que os valores simbólicos que conferimos aos alimentos são culturalmente determinados e um alimento pode nem significar comida, ou seja, não fazer parte da categoria comida, como comentamos acima.
Aqui, é preciso sua atenção para uma diferença estabelecida pelo antropólogo Roberto DaMatta (1986) entre alimento e comida.
+ O imaginário da alimentação
Vamos agora refletir sobre o imaginário na alimentação. Para Baczko (apud ESPIG 2003/2004), o imaginário refere-se a ideias e imagens que são coletivamente construídas.
Quando pensamos em termos de alimentação, o imaginário comporta construções simbólicas sobre os alimentos que são amplamente difundidas entre os membros de uma população ou entre os membros de um grupo específico. O que isso significa? Que, em grupos ou populações, os significados que fazem parte do imaginário são comuns e frequentes.
A partir de Perez (1996), falemos de alguns exemplos relativos a um grupo indígena amazônico que pertence ao tronco linguístico Tupi e é conhecido como Cinta-Larga. Esses indígenas eram originariamente guerreiros e antropófagos, como costumam ser os Tupi.
A pesquisa em questão trata do tema da Antropologia da Saúde e da Doença, ou seja, como esses indivíduos enxergam, do ponto de vista tradicional, a doença, o mal, o infortúnio, como eles diagnosticam as enfermidades e como as curam. Nesse trabalho, também pretendia-se compreender como os profissionais não indígenas da área da saúde que trabalhavam com saúde indígena viam os hábitos e costumes dos Cinta-Larga.
Pois bem, esses colaboradores tinham um imaginário preconceituoso em relação aos hábitos alimentares e de higiene tradicionais desse povo. Eles acreditavam que a comida dos indígenas era estranha e preparada sem nenhuma limpeza. Também pensavam que eles eram sujos, que não cuidavam nem limpava bem suas crianças etc.
Para esses agentes, o problema da saúde indígena era a falta de higiene e seus hábitos bizarros. Enquanto o que ocorre efetivamente é que a saúde dessa população se deteriorou, sobretudo por conta das doenças trazidas pelos não indígenas e pelos hábitos que eles adquiririam com o contato: consumo de açúcar e carboidratos simples, como o arroz. Você pode observar dessa forma que o imaginário das populações que estão próximas a esses indígenas é extremamente preconceituoso.
Os indígenas também têm um imaginário específico em relação aos não indígenas e seus hábitos. No que concerne à alimentação, antes mesmo do contato, os agentes da FUNAI jogavam dos aviões sacos de arroz, farinha e açúcar para os Cinta-Larga. Essa era uma prática comum na época.
Difundiu-se entre os Cinta-Larga a ideia de que os sacos de comida que lhes eram lançados pelos aviões da FUNAI estavam com comida envenenada, que tinha como objetivo espalhar a doença entre eles. Essa teria sido a causa da grande mortandade. Isso vai ao encontro de um imaginário entre os indígenas de que os “brancos” só querem destruí-los e se apossar de suas terras. Infelizmente, isso não está longe da realidade, mas, no caso, não era absolutamente a intenção da FUNAI.
Um exemplo mais próximo é a relação entre os hábitos higiênicos de franceses e brasileiros. O imaginário sobre limpeza é bastante diferente entre esses povos.
Enquanto no Brasil o pão é colocado em um saco de papel, lá os franceses levam sua baguette debaixo do braço, algo que, para nós, entende-se que vai sujar o pão e contaminá-lo com a sujeira do corpo.
A quantidade de banhos que tomamos também é vista como um exagero, pois eles afirmam que esse hábito destrói a camada de gordura necessária à saúde da pele. Existem os pressupostos científicos de higiene e contaminação, mas a limpeza e a sujeira são, antes de tudo, imaginários culturalmente construídos. Os franceses não deixam de ter um pouco de razão em relação à pele. Os pediatras brasileiros insistem com as mães de recém-nascidos que o banho com sabão só deve ser dado uma vez ao dia. Caso contrário, a mãe poderia prejudicar a saúde da pele do bebê por excesso de lavagens.
Os carboidratos e as calorias são construções abstratas a partir de dados e observações. Não se está dizendo que eles não existem, nem invalidando a ciência, mas, sim, que eles somente existem na cabeça de homens que inventaram uma ciência. Além disso, as verdades científicas são provisórias e não definitivas. Você pode ver isso claramente na ciência da Nutrição, em que os itens alimentares passam constantemente de vilões a heróis e vice-versa.
+ O real: o corpo-máquina
Antes de falarmos sobre a forma como o corpo e a doença têm sido caracterizados pela medicina na contemporaneidade, vamos compreender uma oposição clássica da Antropologia, aquela entre natureza e cultura. Isso porque o corpo e as doenças são vistos por essa medicina como algo que faz parte da natureza. E o que se está defendendo aqui é que ele é também uma construção cultural.
Todos vocês que têm algum animal de estimação sabem muito bem que esse tipo de proibição não existe entre eles. Para ser um parceiro sexual, a única coisa necessária é que o indivíduo tenha maturidade sexual e que, no geral, a fêmea esteja disponível. O que você pode ver nesse caso é que, em um domínio extremamente natural, que é aquele da sexualidade, o homem diz que existem regras. Quais parentes são considerados incestuosos? Isso varia de sociedade para sociedade, mas na esmagadora maioria das vezes, pais, irmãos e filhos são vetados à relação sexual. E outros membros da família podem entrar nessa proibição também.
Mas por que com a proibição do incesto o homem “inventa” a cultura?
Resposta: Porque ele diz que as relações incestuosas são erradas, são sujas, levam ao caos e, eventualmente, à morte. A partir daí, inventa-se um juízo de valor sobre os mais variados eventos. Ao contrário dos animais, os homens criam um ordenamento em que existem coisas que são certas e erradas, puras e impuras, sujas e limpas, justas e injustas etc. Esses valores são uma invenção exclusivamente humana. Os animais, até onde se sabe, não têm essa visão da existência.
Podemos dizer que o tubarão é mau porque comeu o peixe ou que o coelho é bonzinho porque só come plantas, mas esses animais não se julgam bons nem maus, nem certos ou errados. Eles seguem os seus instintos.
Entre algumas sociedades tradicionais (povos nativos que mantiveram formas tradicionais de organização social, de produção e de exploração da natureza), o consumo de carne crua também é proibido, podendo levar à loucura, como afirmam os Cinta-Larga (PEREZ, 1996). Nessa circunstância, também é questão de natureza e cultura. A carne da caça deve ser passada pelo filtro da cultura e ser transformada em comida pelo cozimento. O consumo de carne crua é característico dos animais.
Aqui no Brasil, por exemplo, recentemente, foi proibido que as orelhas das meninas fossem furadas na maternidade, mas, em muitos casos, elas o são logo depois. As mulheres usam salto alto, os homens, terno. Isso também vai no sentido de fabricar um corpo feminino e masculino. A busca pelo corpo magro é uma forma cultural pela qual ele é manipulado baseado em certos padrões, que também são construções socioculturais.
A forma com que nos higienizamos, aquilo com o que o alimentamos, tudo isso constrói o corpo. As dietas, as cirurgias plásticas, as tatuagens, os brincos, colares, pulseiras, anéis, igualmente.
Vemos uma foto de uma mulher-girafa, um exemplo muito pertinente de como a cultura molda o corpo.
As chamadas mulheres-girafas da etnia Karen e da tribo Kayan usam anéis de bronze no pescoço. As argolas são parte da identidade cultural da tribo e são associadas à beleza das mulheres.
Agora que vimos como o corpo é culturalmente construído, vamos continuar pensando no jeito como ele é visto e construído pela medicina contemporânea, e qual o papel da Nutrição nesse processo.
Já mencionamos que a ciênciatambém é uma construção. Ela vem também se transformando com o decorrer do tempo e é importante enfatizar que não é produzida “do nada”, a partir de uma realidade natural que observa e descreve fielmente. Não existe percepção do mundo natural que não seja influenciada pela maneira como se dá uma sociedade e uma cultura determinada (QUEIROZ, 1986). Portanto, a ciência também atende a interesses diversos e não é tão neutra assim como você pode supor.
Esse modelo mecanicista que considera somente aquilo que pode ser medido objetivamente desconsidera as dimensões simbólicas, psicológicas, sociais, que são decisivas não somente na construção do corpo, como vimos, mas também na compreensão de como esse corpo adoece e se cura.
A medicina científica desenvolveu-se muito depois da Segunda Guerra, sobretudo do ponto de vista tecnológico. Se, por um lado, pensava-se que a cura de quase todas as doenças seria descoberta, por outro, a intervenção nos corpos os tornava mais aptos para a produção (QUEIROZ, 1986).
As queixas vão no sentido do alto custo dos tratamentos, o atendimento frio dos médicos, do fato de se dedicarem muito mais tempo à saúde, e os males antigos não apenas continuarem, como ainda serem somados a outros novos. Há uma elitização da saúde e um distanciamento cada vez maior entre pacientes e terapeutas (ibid.). E no caso da Nutrição?
A Nutrição, como uma ciência biomédica, repete esse modelo mecanicista. Para Kraemer et al. (2014), quando se constituiu, a Nutrição teve necessidade de se colocar junto aos saberes biomédicos para poder se legitimar. Consequentemente, isso a levou a uma maneira de enxergar os alimentos de forma descontextualizada de imaginário social e de seus vários significados socioculturais.
Para promover uma alimentação saudável, a ciência da Nutrição dita o que se deve comer, as quantidades e quando os itens alimentares devem ser ingeridos. Não levando em consideração os aspectos descritos anteriormente, tampouco as conjunturas políticas e econômicas nas quais se desenvolvem os comedores e a indústria alimentar, a ciência reduz seu alcance explicativo (ibid.).
Somente os corpos jovens e magros são considerados saudáveis. Para manter esses atributos, a alimentação deve ser controlada, as calorias devem ser contadas e os indivíduos se tornam responsáveis pela sua própria saúde ou pela falta dela. Se você está acima do peso, ou obeso, é porque você não se cuidou o suficiente (ibid.), porque você é fraco, sem força de vontade. Essa forma de ver as coisas, que é comum entre os nutricionistas, não leva em conta elementos sociais, psicológicos entre outros.
Evidentemente que a ciência da Nutrição tem demonstrado a estreita relação entre doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e a alimentação. A busca pela saúde deve intervir sobre todo o nosso comportamento alimentar como se existisse um único modelo que é válido para todos as situações, como uma verdade absoluta e inquestionável. Segundo Azevedo (2017), questiona-se a visão da comida considerando somente seus aspectos bioquímicos que determinam uma dieta específica para uma pessoa, desdenhando dos aspectos culturais e sociais.
A comida e o comer têm múltiplos significados em todas as sociedades, é exatamente disso que trata este conteúdo. E o que se pretende aqui é que você seja um profissional que vá além dos nutrientes, além do modelo mecanicista e além do corpo-máquina, de forma a enxergar seu paciente ou seu público-alvo como uma totalidade, e não como um aparelho digestivo ambulante.
Existem outras formas de comer que, mesmo do ponto de nutricional, podem nos surpreender. Ribeiro (1995) afirma que a dieta dos indígenas amazônicos corresponde a, aproximadamente, 80% a 85% de mandioca, seja na forma de cerveja, na variedade “doce”, seja na forma de farinha e seus derivados, na variedade “brava”. Os 15% a 20% restantes equivalem ao consumo de proteína animal e a todos os outros produtos da agricultura e da coleta.
Por outro lado, até as dietas e o peso ideal têm caráter ideológico. Belasco (2009 apud CULTURA, 2015) nos diz que o modelo nutricional ocidental que se tornou padrão considera a carne um alimento fundamental. Sendo que, dentro dessa visão, os hindus e os chineses não se alimentariam de forma adequada. O Índice de Massa Corporal é bastante útil, mas ele tem como base o padrão da sociedade americana. Até que ponto isso é válido para todos (KRAEMER et al. 2014)?
Uma dieta pobre em frutas, legumes e verduras (FLV) é o contrário do que determina a Organização Mundial da Saúde e os nutricionistas. Todavia, no geral, os indígenas amazônicos têm uma saúde muito boa, ficando doentes justamente quando mudam seus hábitos e regimes alimentares em decorrência do contato com não indígenas.
Coimbra (1985), analisando quimicamente a cerveja feita de mandioca doce, atestou que, devido à fermentação que é provocada pela saliva das mulheres, essa preparação contém açúcares mais complexos que aqueles presentes na mandioca in natura.
+ O simbólico: os múltiplos significados dos alimentos
Por que, nesse caso, nós dispensamos toda uma quantidade de proteínas que tão generosamente a natureza nos oferece?
Resposta: Precisamente, por conta do significado que atribuímos a esses potenciais alimentos. Mesmo se aqui no Brasil comemos farofa de içá, como foi dito; se no Norte do país tem-se o costume de comer formigas aladas, e se restaurantes famosos e estrelados servem insetos em pratos gourmets em São Paulo, na maior parte das vezes, os insetos são considerados repugnantes
Como vimos, aquilo que é considerado comida para uns não é para outros. Cada cultura determinará as diferentes possibilidades que lhe são ofertadas. A categoria comida é culturalmente construída:
Como salienta Flandrin (1998), desde a Pré-História, os homens têm acesso aos mais variados itens alimentares nos lugares por onde passam, mas nem tudo o que esses ambientes lhes oferecem é escolhido para fazer parte da categoria comida. Essas escolhas são feitas de acordo com regras impossíveis de serem decifradas na maioria das vezes. Você pode perceber que essas escolhas não são baseadas em critérios pragmáticos nem racionais. Caso contrário, todos comeríamos insetos, pois eles existem em quase todos os lugares do mundo.
Escargots
Na Europa, o ambiente oferece os mesmos recursos, mas somente os franceses comem caramujo, os famosos escargots, e rãs. Temos tartarugas também em muitos locais, mas a sopa feita delas é uma especialidade inglesa.
Poderíamos multiplicar os exemplos, mas já ficou claro que não é o ambiente que determina as escolhas alimentares, mesmo que sejam feitas a partir dele.
Esquimós
É evidente que um esquimó não pode ser vegetariano, pois morreria de fome, mas, mesmo em uma região com recursos tão limitados, os homens fazem escolhas culturais diferentes. Laraia (2007) fala sobre os esquimós que constroem suas casas de gelo e usam trenós puxados por cães; e os lapões, que vivem no mesmo ambiente, são pastores de rena, constroem suas casas com a pele delas e se locomovem tradicionalmente com raquetes de neve.
Carne
Outro ponto interessante sobre o significado dos alimentos é o simbolismo associado à carne. Carneiro (2003) comenta que a Europa sempre valorizou a alimentação carnívora. Desde a Antiguidade Grega, a caça e o consumo de carne são considerados importantes para preparar os homens para a guerra, tornando-os mais ferozes e cruéis. Sem falar no fato de que a propriedade de rebanhos confere prestígio e riqueza.
Churrasco
Os países ocidentais valorizam muito o consumo de carne. Aqui no Brasil, o churrasco é uma verdadeira instituição, sendo muito comum na Região Sul, mas também no Sudeste e no Centro-Oeste, onde, no geral, o único acompanhamento da carne é a mandioca cozida. Flandrin (1998) nos ensina que nas refeições festivas de todos os tempos sempre foi necessária a presença da carne fresca; e, é claro, das bebidas fermentadas.
Se falamos em consumo de carne, não podemos deixar de lado a antropofagia. De acordo com Bueno (2012), esse costumede muitos povos indígenas brasileiros foi o que mais espantou os europeus. Alguns rituais antropofágicos entre os Tupinambás foram descritos com precisão por alguns cronistas, sobretudo por Hans Staden (1998), que foi capturado por esses indígenas e viveu entre eles por alguns anos.
Mesmo se os homens já comeram carne humana para matar a fome, em momento de penúria extrema ou na Pré-História, o canibalismo do qual se tem notícia tem sempre um significado ritual. Pode-se consumir os inimigos para se vingar deles, para recuperar sua força ou para aniquilá-la, mas, no caso, também pode ser uma obrigação consumir a carne de seus parentes mortos para desumanizá-los, uma vez que são comidos como presas e para que sua substância fique entre os membros da família.
Para fecharmos esta seção, vamos falar sobre outra dimensão simbólica da comida: o fato de que ela constitui uma linguagem. Quando convidamos alguém para comer em nossa casa, a comida que vamos servir vai falar sobre nós, expressar nosso cuidado, nosso carinho, nossa consideração.
Os diferentes tipos de ingredientes são as letras e as preparações das palavras. Com uma letra, você pode fazer inúmeras palavras se combiná-la com outras letras, assim como podemos fazer um monte de receitas diferentes misturando os ingredientes-letras. E a frase é a refeição, em que tudo deve ser combinado de uma forma específica para ter sentido (MONTANARI, 2008).
É claro que a forma como a frase-refeição é construída depende da cultura, disponibilidade econômica do responsável, ocasião.
A frase é diferente e pode até se tornar um texto em uma refeição festiva, como um banquete de casamento. E mesmo a gramática da refeição é diferente nos dias da semana e no fim de semana. Por meio das palavras, damos sentido ao mundo, criamos categorias, e a comida faz a mesma coisa. Ela fala de nós, de nossos hábitos, valores, crenças, origem, classe social. A comida fala!
+ O imaginário: as angústias do comedor moderno
Como diz Ferrières (2002), além do medo de que falte comida, existe o medo de comer uma comida que esteja contaminada ou apodrecida e possa afetar negativamente a saúde. A autora traz no livro A História dos medos alimentares um histórico desde a Idade Média das angústias relativas àquilo que vamos incorporar ao nosso corpo. Por conta disso, no Ocidente, desenvolveu-se pouco a pouco um controle sanitário sobre o processo de produção dos alimentos.
Fischler (1990) afirma que o ato de comer é muito íntimo e, mesmo que seja fonte de prazer, ele também traz medo e ansiedade no tocante à ingestão dos mais variados itens.
No entanto, essa confiança foi quebrada com a Doença da Vaca Louca (Encefalopatia Espongiforme Bovina), que surge na Inglaterra por volta de 1985 (POULAIN apud DÓRIA, 2015). Essa doença ataca o Sistema Nervoso Central e mata os animais. A origem da doença se deu por conta dos restos de carcaças de mamíferos que entravam na composição da ração que era dada aos animais, submetendo os herbívoros a uma espécie de canibalismo.
Na França, essa suspeita recaiu sobre todos os tipos de carnes bovinas e seus derivados. Para conter a doença, milhares de animais foram sacrificados. Temia-se que a doença fosse transmitida aos humanos e a outros animais. A utopia da segurança em relação ao que comemos foi abalada e gerou ansiedade e medo em relação à qualidade dos alimentos.
Por outro lado, por conta da globalização que permite uma circulação sem precedentes de mercadorias e pessoas, os fatores de risco se multiplicam, como declara Proença (2010). Os riscos são de contaminação por microrganismos, problemas na manipulação e na conservação dos alimentos, introdução acidental ou voluntária de substâncias tóxicas, excesso de agrotóxicos etc.
Aqui no Brasil, vimos leite contaminado com formol (ILHA, 2013), suco à base de soja com soda cáustica (VIGILÂNCIA, 2013) e um aumento no número de agrotóxicos liberados para utilização em 2020 (LEITE, 2020). Isso sem falar nos transgênicos que são uma grande ameaça à biodiversidade (OLIVEIRA, 2016). Também nos preocupamos com a quantidade de hormônios que os animais consomem e que efeitos isso pode ter na nossa saúde, e o assombroso consumo de antibióticos pelo gado bovino.
Você viu que existem riscos reais à nossa saúde causados pelos alimentos nas mais variadas fases da produção, mas se somam a essas outras questões que só aumentam a ansiedade do comedor. Além desses riscos biológicos, questões de ordem ética nos preocupam. Nós nos preocupamos com a forma como os alimentos que comemos foram obtidos, isto é, se houve agressão ao meio ambiente ou aos trabalhadores envolvidos no processo. Questões de sustentabilidade ambiental e econômica nos dizem respeito. Pelo surgimento de uma solidariedade entre espécies, não queremos que os animais que nos servem de comida sejam tratados com violência ou desprezo.
Por conta disso, surgiram novas ideologias alimentares, como, por exemplo, o Slow Food. Esse movimento, fundado pelo italiano Carlos Petrini em 1986, acredita que o homem, ao comer, afeta seu meio ambiente e social e que é necessário se conscientizar e agir em consequência disso para que esses impactos sejam benéficos.
Para isso, ao contrário do Fast-Food, é necessário ter prazer ao comer degustando o alimento com consciência, consumir produtos artesanais, de preferência que sejam fruto do trabalho de produtores locais e que, nesse processo, sejam respeitados o meio ambiente e os trabalhadores envolvidos na produção (MOVIMENTO, 2007).
Não podemos esquecer do medo de engordar, de desenvolver doenças mesmo que os alimentos não estejam contaminados: somente sua composição já pode nos assustar. Tudo isso levou a uma medicalização da nutrição, como já comentamos. Diante disso, outro dilema que o comedor enfrenta é a escolha do que comer. A quantidade de opções de itens, de ideologias alimentares, de produtos light, diet, orgânicos, sem glúten, sem lactose, fat free disponíveis atualmente para o comedor são enormes (VERTHEIN; MEDINA, 2015).
Em busca do corpo perfeito e, sendo agora o responsável pela saúde e pelas decisões sobre o que comer para atingir esses objetivos, o comedor tem cada vez mais angústias, medos, preocupações e culpas.
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2. Identidade cultural
Alimentação e identidade cultural
Diante de tantas mudanças em relação à forma de comer, ao que comer, quando, onde, sozinho ou acompanhado, estabelecem-se questões relativas às identidades culturais individuais e coletivas.
O que é a identidade cultural, como podemos definir esse conceito?
Se pensarmos, por exemplo, em um indivíduo que pertença a uma sociedade tradicional, a sua identificação afirma seu pertencimento àquela etnia, ao seu gênero e à sua posição na família: pai, mãe, filho, todas essas sendo identidades culturais que variam de acordo com a sociedade. As obrigações e funções de pais e filhos são culturalmente construídas.
O gênero também é uma construção cultural, ser mulher ou homem não significa a mesma coisa para todas as culturas. Mesmo em nossa sociedade, a forma como uma mulher e um homem constroem seus pertencimentos de gênero varia no tempo. Logo, a identidade cultural é algo que se transforma.
Nas sociedades contemporâneas, a questão da identidade cultural tem novas dimensões. Já não criamos pertencimentos com os membros das sociedades tradicionais, em uma sociedade complexa e fragmentada como a nossa, pertencemos aos mais variados grupos cultuais e temos múltiplas identidades (HALL, 1999).
As identidades culturais também não são fixas, pois não só mudamos nossos pertencimentos, como também alegamos diferentes identidades em diferentes situações. Em alguns casos, é possível enfatizar mais o gênero, a classe social ou o pertencimento étnico. Em uma situação de violência contra a mulher, sua identidade de gênero vai prevalecer. Já em caso de injúria racial, será o pertencimento étnico e, diante de injustiças sociais, prevalecerá o pertencimento declasse e/ou sua ideologia política.
Mas você deve estar se perguntando: e o que a alimentação tem a ver com tudo isso?
Pois bem, como você se sente brasileiro? Pelo fato de ter nascido no Brasil, pela nacionalidade? Com certeza, mas também porque fala português e tem um código corporal diferente dos europeus, por exemplo, nós nos tocamos o tempo todo. E à mesa, como você se sente brasileiro? Comendo feijão com arroz, algo que se come no Brasil inteiro, do Oiapoque ao Chuí (BARBOSA, 2007).
Aquilo que comemos é uma fonte de pertencimento muito importante. Como nos ensina DaMatta:
E as comidas típicas?
Mas essas comidas são consumidas no dia a dia?
De maneira alguma! Geralmente, são consumidas em ocasiões festivas ou especiais. São preparações que foram escolhidas, de certa forma, para representar a identidade cultural daquele lugar. Então, come-se feijão – das mais variadas cores, segundo o local – com arroz, porque se é brasileiro, mas o pato no tucupi representa o pertencimento da região Norte.
Mais do que hábitos e comportamentos alimentares, as cozinhas implicam formas de perceber e expressar determinado modo ou estilo de vida particular a determinado grupo. Assim, o que é colocado no prato serve para nutrir o corpo, mas também sinaliza um pertencimento, servindo como um código de reconhecimento social (MACIEL, 2005).
Chamamos de alteridade essa percepção que temos de nós mesmos como diferentes a partir da visão que temos dos outros. Ou, como dizem os antropólogos, do outro, que representa aquela sociedade que não é a minha. A alteridade se opõe à identidade cultural, ao mesmo tempo em que é fundamental na sua construção.
O discurso da identidade não se confunde com o discurso das origens ou uma suposta autenticidade. Vamos pensar na feijoada, um prato que é reivindicado como um dos maiores representante da nossa identidade cultural alimentar. O feijão-preto e a mandioca da farofa são nativos das Américas, mas o porco, a couve, o arroz e a laranja são todos ingredientes exóticos no sentido literal da palavra, ou seja, aquilo que é estrangeiro, que não é nativo, mas isso não faz da feijoada um prato menos brasileiro. Assim como pimentões e os tomates são característicos da cozinha mediterrânea, mas são nativos das Américas e somente após as Grandes Navegações apareceram por lá (MACIEL, 2005).
A esse propósito, é curioso o papel da feijoada na construção da identidade nacional. Reza a lenda que a feijoada é uma invenção dos escravos a quem eram deixadas somente as partes menos nobres. Esse mito é difundido mesmo entre pesquisadores importantes sobre o tema.
Câmara Cascudo (2004) já exalta a origem portuguesa da feijoada, comparando-a com pratos europeus feitos de carnes, legumes e favas, como os cozidos, o puchero e o cassoulet, este presente desde a Antiguidade.
Ele também sinaliza na mesma obra que os escravos comiam de acordo com as posses do seu senhor, e que muitas das vezes nas fazendas era um punhado de farinha de mandioca com o caldo e uma laranja espremida por cima. Entretanto, foi Dória (2009) quem trouxe o tema ao debate recentemente.
Ele argumenta que os escravos, assim como os indígenas, eram povos subalternos, considerados coisas, como cabeças de gado, que, inclusive, viajavam de forma muito mais cômoda que os escravos nos navios negreiros, ou tumbeiros, como também eram chamados. Eles não escolhiam o que iam comer, e muito menos criavam pratos. Classificar as carnes da feijoada com menos nobres também pode ser um equívoco, já que elas são consideradas iguarias em muitas culturas. Na França, existe um restaurante chamado Au Pied de Cochon (aos pés de porco, em tradução livre) que só serve pés de porco das mais variadas maneiras.
Comensalidade
Compartilhamento da comida
O que é a comensalidade? Certamente, você tem pelo menos uma ideia do que isso significa. Segundo Maciel (2011), o fato de comermos juntos é o que faz com que o ato de se nutrir se torne um evento social. A palavra companheiro vem do latim cum panem, que significa compartilhar o pão. Já a comensal vem de cum mensa, que significa compartilhar a mesa. A comensalidade refere-se àqueles que comem juntos.
No entanto, mesmo se não existe uma mesa, existiria comensalidade. Câmara Cascudo (2004) nos conta que, assim como os indígenas, com esteiras no chão, os mais pobres também comiam no Brasil colonial. Luccock (1997), um cronista inglês, chama a atenção para o fato de que, mesmo em famílias mais abastadas, mulheres e crianças comiam da mesma forma nas alcovas, a parte íntima da casa. Os orientais também comem em tapetes, sentados no chão (LIMA; NETO; FARIAS, 2015).
Até os dias atuais, em torno de uma mesa ou em um coquetel, como os coffee breaks, faz-se todo o tipo de acordo, de aliança e de celebração. São estabelecidas relações de amizade, amorosas, mas também se fecham negócios e acordos políticos, nem tão diferente do que acontecia na Europa na Idade Média.
O clima mais descontraído das refeições festivas e banquetes, no geral, regados a bebida alcoólica, facilita a conversa mais sincera. Daniel e Cravo (2015) acreditam que os conchavos políticos se dão também nos banquetes ou nos coquetéis, e não só nas câmaras ou nos palácios dos governos. As tribos germânicas discutiam questões importantes durante os banquetes, mas somente tomavam as decisões no dia seguinte, quando estavam sóbrios (ALTHOFF, 1998).
No entanto, existem exceções a essa regra de estreitar relações sociais em torno da comida. Os balineses, descritos por Geertz, associam o ato de se alimentar a algo próximo da animalidade e, para evitar constrangimentos, comem somente sozinhos.
Mesmo se a generosidade e paz são pontos importantes quando comemos juntos, acontece de as festas e os banquetes darem errado por conta de rixas entre seus membros. Elas podem ser frutos de problemas que se pretendia justamente resolver com o banquete ou, como muitos de nós já vimos, brigas e desentendimentos que ocorrem nas comemorações familiares. Quem nunca teve o peru de Natal amargo por uma discussão entre aqueles primos que não se cruzam?
O compartilhamento da comida é tão importante que, mesmo em ocasiões nada festivas, é preciso pensar no cardápio que será oferecido. Aqui no Brasil, onde ainda se velam os mortos em casa, café e guloseimas para os presentes são obrigatórios. Nos Estados Unidos, após a cerimônia de sepultamento, a família sempre oferece uma refeição aos que estavam presentes.
Atualmente, a comensalidade vem se transformando.
Você consegue fazer refeições com a sua família com frequência? Você consegue sentar-se à mesa para fazer suas refeições? Quantas vezes comemos na frente do computador ou da TV? Ou no transporte público e mesmo na rua? Nós, brasileiros, valorizamos o momento da refeição em família.
Conforme Barbosa (2007), é a hora de pais e filhos conversarem e dos laços familiares se estreitarem. Mas será que conseguimos fazer refeições diariamente em família? Muitas vezes, aos domingos, sim. Outras somente no aniversário de alguém ou no Natal.
Há também uma tendência da alimentação contemporânea, que é a individualização. Por conta das rotinas diferentes, do enfraquecimento da instituição familiar e de uma ideologia individualista, os membros de uma família, mesmo estando juntos em casa, comem de forma separada (BARBOSA, 2007).
Haveria uma individualização do momento da refeição, mas também do seu conteúdo. Na realidade brasileira, mesmo se não se come junto, pois os horários de cada um são diferentes, a comida é a mesma para todos, no geral. Isso porque, como já vimos, no geral, os brasileiros gostam do momento da refeição em família.
As formas de se comportar à mesa também são muito importantes. Mesmo se essas regras sociais não fizerem parte das leis, não as respeitar, ou não as conhecer pode causar muitos problemas. Vamos supor que você vá jantar com uma pessoa em quem esteja interessado. Você percebe rapidamente que essa pessoa não só mastiga com a boca aberta, como também arrota à mesa. Bom, ela pode ser muito interessante e atraente,mas com certeza esse comportamento vai esfriar o seu interesse, ou mesmo acabar com ele. Resulta que, se alguém não sabe se comportar à mesa, certamente será colocado em uma situação de isolamento social.
Quando nos sentamos para comer em algum lugar fora de casa, estando ou não acompanhados, involuntariamente observamos o comportamento dos outros durante a refeição e fazemos julgamentos de valor sobre sua educação, seu grau de instrução e seu pertencimento de classe. Vimos que as diferentes classes sociais criam e afirmam suas diferenças por meio do que se come e de como se come.
Se, atualmente, somente comemos com as mãos sanduíches, lanches, frutas e algumas preparações como frango à passarinho, comer com as mãos foi a única forma de comer até pelo menos o século XIV, quando os talheres eram usados em algumas cidades italianas. Somente no século XVIII os talheres se popularizaram na Europa, e aqui no Brasil só quase no século XX.
Os modos à mesa na durante os meados da Idade Média na Europa seriam considerados por nós apavorantes atualmente.
As formas de comer, a ordem dos pratos, aquilo que é considerado importante ou trivial para a refeição variam de acordo com as diferentes culturas. No Japão, o que caracteriza a refeição é o arroz, enquanto no sul da Índia é o pão que cumpre esse papel. Até a temperatura pode ser importante na definição de uma refeição. Quantas vezes comemos uma salada, que pode até ser feita de massa, e chegamos ao fim do dia sem a sensação de ter comido de verdade?
O processo de consumo e até de preparo dos alimentos obedece a certas regras. Já comentamos sobre como os pratos têm certa ordem durante a refeição segundo os significados que lhes atribuímos. Podemos dizer também que esse processo é altamente ritualizado. O ritual remete a um conjunto de ações que devem ser feitas de maneira específica para que se atinja dado objetivo.
Os rituais religiosos, como, por exemplo, uma missa católica ou uma iniciação no candomblé, devem seguir um passo a passo minuciosamente para que o indivíduo saia purificado da missa, ou seja iniciado no candomblé. O mesmo ocorre à mesa. Para que o comensal esteja ao final da refeição bem alimentado e feliz, os gestos, a sequência dos pratos, sua combinação devem ser colocados nos seus devidos lugares. Como falamos sobre a comida como linguagem, a frase e o texto serão incompreensíveis se as letras e palavras não estiverem no lugar certo.
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3. Significados simbólicos
Comida afetiva e memória gustativa
O que são as comidas afetivas?
De acordo com Garcia (1997), sabemos que a comida, por ter como ponto de partida o universo doméstico de cada um, tem significados afetivos. Mesmo os mais desgarrados têm lembranças relacionadas a momentos de refeições em família e/ou de pratos para ocasiões especiais ou para o almoço de domingo que eram feitos por uma tia ou uma avó.
Na atualidade, podemos nos perguntar que memórias serão guardadas das comidas afetivas no futuro e quem vai saber fazer as receitas de família. Com a correria do dia a dia, a mãe ou a avó não tem mais tempo para cozinhar para a família. Então, elas lançam mão de todo os aparelhos eletrônicos, de comidas prontas e semiprontas, comidas delivery e tudo que possa facilitar suas vidas e alimentar as famílias. Ora, sabemos que, em um país como o Brasil, que tem uma desigualdade enorme, muitas mulheres passam seu tempo de folga cozinhando o trivial para a família se alimentar quando ela está ausente.
Nesses casos, aquela receita especial da família será talvez perdida. Se considerarmos que as tradições culinárias de um povo são fundamentais para a sua identidade cultural, esse saber fazer torna-se um patrimônio imaterial daquela sociedade. Já temos desde o ano de 2000 um livro de Registro de Patrimônios Imateriais do IPHAN, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Até então, somente se podia tombar patrimônios culturais materiais.
Fique atento às receitas da família e, se puder, faça um livro de receitas. Um membro da família que vem a falecer sem ter transmitido esses saberes é como um livro de receitas afetivas que se queima.
Por outro lado, essa perda de receitas vem se juntar a outra teoria sobre a alimentação contemporânea, a homogeneização do gosto. Esta teoria diz que, em um contexto de alto consumo de produtos industrializados e comidas prontas, há uma tendência à pasteurização ou à homogeneização do gosto. Todas as salsichas de uma lata têm o mesmo gosto, assim como todos os iogurtes daquele sabor e marca e todos os biscoitos de um pacote. As lasanhas e pizzas prontas, as latas de feijoada, igualmente.
Essa realidade não se aplica ao caso brasileiro. Mesmo que haja um aumento no consumo de produtos industrializados, ainda temos o hábito de comprar os ingredientes e fazer a comida em casa, na medida do possível. Nós, no sentido contrário da pressão que a indústria e suas publicidades fazem, ainda temos uma gramática tradicional da refeição: arroz, feijão, alguma proteína e algum legume ou verdura. Mesmo se comermos fora, vamos buscar na maior parte das vezes um PF – prato feito – em um botequim ou uma comida mais caseira em um restaurante a quilo.
A construção do gosto
Tipos de gosto
O gosto é algo bastante complexo. Já houve diferentes teorias sobre como ele funciona fisiologicamente. A tese do mapa de língua durou do século XIX até o século XX. Segundo ela, diferentes regiões da língua sentiam diferentes gostos, mas ela já foi desacreditada.
O gosto se dá em uma interação entre as substâncias do que estamos comendo e os botões gustativos que cobrem a língua e o palato mole. Além dos sabores que já conhecemos, doce, salgado, amargo e azedo, temos o umami e o alcaçuz.
O umami, um sabor definido pelos japoneses, está presente no peixe, no tomate e no queijo parmesão, mas ele não tem uma equivalência na nossa cultura alimentar, o que faz com que ele seja muito difícil de descrever (MARQUES, 2015). Já o alcaçuz é uma raiz de sabor forte com a qual se faz um doce comum na Europa e, na verdade, é outro nome da planta regaliz.
Atualmente, já se sabe que o sabor envolve o gosto, mas também os estímulos do cheiro, a percepção das formas e a sensação tátil na boca (Id.). Comemos com os olhos também. Além de ser o principal determinante das escolhas alimentares, o gosto também tem uma determinação genética. Há estudos que falam que até 40% do paladar seria geneticamente determinado. Então, sim, a couve é mais amarga para uns do que para outros, e o gosto do alho e do café também mudam (DONAHUE, 2018).
O gosto vai além do dado fisiológico. Ele é culturalmente construído. Aprendemos a comer determinadas coisas, certas misturas desde pequenos, e vamos nos habituando a elas, mas o gosto também tem um componente que é totalmente pessoal.
Gênero e alimentação
Relações e o ato de se alimentar
As relações entre gênero e alimentação são velhas conhecidas de todos nós. A mulher sempre foi aquela, desde a Pré-História, que cuida e prepara o alimento. Entre dois e quatro milhões de anos atrás, os homens teriam inventado a divisão sexual do trabalho. Enquanto os homens caçavam, as mulheres coletavam, cozinhavam e cuidavam das crianças (CARNEIRO, 2003).
Mesmo que muita coisa tenha mudado desde então, as mulheres continuam sendo as detentoras dos saberes sobre as práticas culinárias. Já falamos sobre as receitas, um patrimônio imaterial, e como são transmitidas sobretudo entre mulheres. Durante muito tempo, a cozinha foi considerada, e continua sendo atualmente, um território feminino.
Assunção (2013) fez seu trabalho sobre alimentação e relações familiares no Morro do Caixa, uma comunidade que fica na cidade de Tubarão, em Santa Catarina. Em um primeiro momento, as mulheres não conseguiam compreender o porquê do interesse da pesquisadora em um tema tão banal. O que sugere, a princípio, que esse assunto não é importante, a mesma forma de pensar de outras mulheres 50 anos antes. Paraas mulheres desse lugar, o cozinhar só faz sentido se a comida é feita para outra pessoa. Conhecer as receitas e as preferências alimentares dos membros da família confere a essas mulheres certo poder.
No entanto, enquanto as mulheres ficam com a barriga no fogão, o glamour da cozinha fica para os grandes chefs, que são, na sua maioria, homens. Quando o assunto é cozinhar para a família cotidianamente, a tarefa é monótona e repetitiva, mas, quando se trata de usar a criatividade, aí é a vez dos homens.
Dória (2012) nos conta que, já na Idade Média, a divisão tradicional do trabalho foi mudando. Na França, a preparação de alimentos vai sendo passada para os homens. Claro que eles trabalham na rua vendendo seus produtos, como os padeiros, os que fazem frios como presunto etc.
No século XIX, surge a figura do chef, profissão destinada aos homens, obviamente. Se temos atualmente chefs mulheres famosas, os maiores entre eles seguem sendo homens. Na Idade Moderna, os homens são os cozinheiros dos nobres, e são os que vão trabalhar nos restaurantes que surgem. Até os livros de culinária são escritos por eles.
Outra questão relativa ao gênero é que as mulheres são as que tomam as decisões em casa sobre o que se vai comer. Mas, no poder público, são sub-representadas, sendo os homens que tomam todas as decisões sobre as políticas relacionadas aos alimentos, que dizem respeito diretamente às mulheres (COELHO, 2005).
Vamos terminar esta seção falando de enfermidades que são culturalmente localizadas e que afetam sobretudo as mulheres: os Transtornos do Comportamento Alimentar (TCA).
Há uma perversão em relação aos padrões de beleza do corpo feminino.
Como vimos, o sujeito é responsabilizado pela sua doença, em desconsideração a todos os demais fatores, e “só é gordo quem quer” (KRAEMER et al., 2014). Enquanto a indústria da beleza impulsiona a um ideal corporal que sequer existe, pois muitas das imagens são manipuladas, a indústria alimentar faz produtos cada vez mais calóricos, gordurosos e deliciosos.
Comida e sexo
O prazer associado à alimentação
Em muitas línguas, o vocabulário relativo ao sexo e à alimentação se assemelha. Desde a inocente lua de mel até o se lambuzar no ato sexual, as associações são muitas. Aqui no Brasil, o verbo comer refere-se também à cópula, passando pelo “gostoso(a)”.
Não podemos esquecer as mais variadas mulheres frutas aqui no Brasil, que reforçam a associação entre sexo e comida, o primeiro é fundamental para a sobrevivência da espécie e o outro imprescindível para a sobrevivência do indivíduo. Duas necessidades banais e essenciais que estão do lado da reprodução biológica. Os dois polos do prazer e do desejo. Talvez por isso mesmo tenhamos inventado um enorme edifício simbólico para significar ambos com uma séria de regras, valores, crenças, preferências, rejeições, medos.
+++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++++Considerações finais
Neste conteúdo, vimos os aspectos simbólicos da alimentação e como não podemos pensar os alimentos somente em termos de nutrientes, fora do contexto social e cultural no qual eles se encontram. O nutricionista deve sempre estar atento aos múltiplos significados que seus pacientes ou seu público-alvo dão aos alimentos, sob pena de não ser um profissional ético e competente.
Vimos no módulo 1 que, além do aspecto real, que diz respeito às caraterísticas nutricionais e organolépticas dos alimentos, os grupos e indivíduos moldam seus hábitos alimentares segundo o imaginário simbólico construído pela sua sociedade. O que comer, quando, com quem, antes de que, depois de que, preparado por quem são consequências desses significados simbólicos que os homens atribuem aos alimentos.
Vimos no módulo 1 que, além do aspecto real, que diz respeito às caraterísticas nutricionais e organolépticas dos alimentos, os grupos e indivíduos moldam seus hábitos alimentares segundo o imaginário simbólico construído pela sua sociedade. O que comer, quando, com quem, antes de que, depois de que, preparado por quem são consequências desses significados simbólicos que os homens atribuem aos alimentos.
No módulo 2, observamos como a alimentação é fonte de pertencimento e de identificação. Discutimos também sobre como o fato de se sentar junto à mesa estabelece e reforça os mais variados vínculos entre os comensais. Discutimos igualmente sobre as mudanças que estão ocorrendo na comensalidade atualmente e como os modos à mesa são regras muito importantes que regem a forma de se abordar o alimento e de se comportar em uma refeição.
No módulo 3, vimos os significados das práticas de alimentação sob vários aspectos. Falamos sobre como o ato de comer desperta em nós diversos afetos; como certas comidas nos remetem a situações e memórias, como elas são parte da nossa história. As receitas e os modos de fazer comida de uma família são parte do patrimônio imaterial daquele povo, por isso, deveríamos tentar não perder as receitas de família e o hábito de cozinhar juntos. Nestes tempos, em que corremos tanto e mal temos tempo de comer, quanto mais de cozinhar e ensinar, é necessário um esforço para mantermos esse patrimônio.
Seguimos com a construção do gosto e suas variadas facetas e, depois, tratamos da discussão sobre gênero e alimentação e o quanto é a mulher que efetivamente se ocupa da alimentação e da saúde da família, sendo assim a melhor interlocutora do nutricionista.
Fechamos discorrendo sobre as associações entre comida e sexo e como esses dois polos do prazer humano tão necessários à nossa sobrevivência deram origem a tantos significados distintos.

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