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Ida-unB ■ Programa de Pós-graduação em arte ■ janeIro/junho de 2009 ■ v. 8 n.o 1 ■ 33 Narrativas são manifestações orais, escritas, sonoras e visuais que se organizam a par- tir de uma sucessão de episódios ou ocorrências de interesse humano que integram uma mesma ação. Uma sequência de idéias articulada através de palavras faladas ou escritas, e/ou através de sons e imagens é condição para que uma manifesta- ção seja reconhecida como narrativa. Sequência e organização são elementos que dão algum tipo de unidade a idéias, falas, frases, sons e imagens que se complementam como narrativa. Desse modo, podemos dizer que narrar é contar algo sobre o mundo, sobre a existência, sobre o outro ou sobre si mesmo. É uma maneira de des- crever cenários, reinventar a vida, recriar histórias, mas, sobretudo, de recontar eventos, realidades, conflitos, problemas, dúvidas e sentimentos que revelam diferentes versões e perspectivas dos seres humanos. Romances, crônicas, novelas televisivas, ensaios, histórias em quadrinhos, tirinhas, fotogra- fias de família, filmes, canções, piadas e até mesmo fatos nas páginas policiais são maneiras de contar, são ações ou acontecimentos que o narrador, ao registrá-los, pode torná-los focos de interesse para a posteridade. NARRATIVAS VISUAIS: IMAGENS, VISUALIDADES E ExPERIêNCIA EDUCATIVA R a i m u n d o M a r t i n s Resumo Este texto tem como foco o conceito de narrativa e a análise de uma narrativa visual como experiência educativa. Na primeira parte, examina de maneira sucinta as transformações deste conceito nas últimas décadas e sua predominância na cultura contemporânea. Em seguida, analisa a relação entre visualidades e experiência visual ressaltando o modo como imagens criam associações, evocam contextos e são moldadas por práticas subjetivas e culturais. A interação entre imagem, narrativa e ação é discutida na terceira parte através da análise da narrativa visual de uma aluna do curso de Licenciatura em Artes Visuais da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. O texto conclui colocando em perspectiva algumas implicações para a utilização desse recurso pedagógico e enfatizando sua relevância no sentido de aproximar os alunos do conhecimento e dos problemas relacionados ao contexto social e cultural em que vivem. Palavras-chave: Narrativa. Imagem. Visualidades. Experiência Educativa. Abstract This paper has its focus on the concept of narrative and in the analysis of a visual narrative as educative experience. In the first part, it examines in a succinct way the transformations of this concept in the last decades and its predominance in contemporary culture. Following it analyses the relation between visualities and visual experience emphasizing the way images create associations, evoke contexts and are shaped by subjective and cultural practices. The interaction between image, narrative and action is discussed in the third part of the paper through the analyses of a visual narrative of a student of the Visual Arts Teacher Training Course from the Visual Arts College of the Federal University of Goiás - brazil. The paper concludes pointing to some implications for the utilization of this pedagogical resource emphasizing its relevance in order to approximate students to knowledge and to problems related to the social and cultural context where they live. Keywords: Narratives. Image. Visualities. Educative Experience. RAIMUNDO MARTINS é Professor Titular e docente do Programa de Pós-Graduação em cultura visual da Facul- dade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. é pós-doutor pela Universidade de Barcelona (Espanha), doutor pela Universidade de Southern Illinois e Mestre pela Andrews University (EUA). é membro do Grupo de Pesquisa Educação e Visualidade da FAV/UFG, da Associa- ção Nacional de Pesquisa em Artes Plásticas (ANPAP) e da Federação Brasileira de Arte Educadores (FAEB). raimarmartins@uol.com.br 34 ■ janeIro/junho de 2009 ■ v. 8 n.o 1 ■ Programa de Pós-graduação em arte ■ Ida-unB Seção 1 – Cultura e viSualidade: queStõeS em CurSo A partir da segunda metade do século XX, mas em especial nas últimas três décadas, as narrativas transformaram-se em espaço dinâmico de discussão intelectual e reflexão teórica, ganhando predomi- nância na cultura contemporânea. Fonte de inte- resse e provocação, elas desestabilizaram o sistema literário ao mesmo tempo em que geraram ruídos em relação às classificações genéricas desse sistema. As narrativas desafiaram, também, os limites con- vencionais da literatura por caracterizar-se como um tipo de manifestação ao alcance de gente comum que aspira contar aspectos da sua trajetória desenhando percursos e rupturas de sua história particular. Nesse sentido, pode-se dizer que as narrativas criaram uma nova estética, uma maneira peculiar para os indivíduos se expressarem sobre a vida, a memória, a intimidade. As narrativas não obedecem um formato, não se submetem à uma única perspectiva crítica, tam pouco se acomodam a modelos estabelecidos, situação que, muitas vezes, inquieta e intriga os indiví duos intera- tores. Paradoxais, as narrativas mobilizam a sensibili- dade intelectual, ideológica e psicológica das pessoas, interpelando-as e impelindo-as a refletir ou experi- mentar múltiplas maneiras de perceber e interpretar. Têm potencial para provocar fissuras semânticas nos modos de organizar e interpretar discursos/textos/sig- nos e imagens, rompendo os limites das “linguagens” e desestabilizando convenções, ao mesticizar figura- ções da voz, do corpo, da vida ou da morte. Fazendo uma analogia com as idéias de Maristany (2005) e tendo como foco as imagens como maté- ria-prima de narrativas visuais, pode-se dizer que “[...] as [imagens] não se lêem, se recortam como se fossem figuras, se reconhece sua materialidade, sua ‘beleza aparente” (p. 67). Ainda segundo Maristany, é necessário tratar as palavras – e, no caso da minha analogia, as imagens - com uma sensibilidade que valorize a “proeminência da sua materialidade [...] até despojá-las de seu significado [atávico] para abordá-las como meras peças de um jogo de dese- nhos” [ou rabiscos] (p. 67). Assim, talvez consigamos fugir da armadilha e do “erro de crer na [imagem] em si” (ibid.) para construir uma reflexão deslocada – multicêntrica – e crítica. Das iMaGens às VisUaLiDaDes Na cultura pós-moderna se intensifica a distân- cia entre a riqueza e a amplitude da experiência visual e a habilidade ou recursos para compreen- der essa experiência. A velocidade e o volume de imagens que nos invadem e interpelam diaria- mente constituem uma espécie de avalanche que nos encharca e nos consome sem que tenhamos tempo para refletir, analisar ou exercer algum tipo de avaliação crítica sobre elas. Alem disso, a tecnologia digital contribuiu de maneira significativa não apenas para ampliar a produção de imagens, mas, principalmente, para transportá-las em tempo real por meio de câmeras de celulares, câmeras fotográficas, computadores, criando links e tornando-as públicas na internet em sites como o Youtube, em portais, blogs, Orkuts etc. Achutti (2004) detalha com muita proprieda- de implicações deste processo ao comentar que na era digital qualquer pessoa deixa de ser um mero consumidor de imagens para se tornar um realizador/criador de imagens e se consagrar a reproduzir a vida cotidiana em vídeo ou em fotografia, por um preço módico, sem ter conhecimen- tos técnicos muito avançados. (p. 101) Então, quando falamos de visualidades, nos referimos a um processo de sedução, rejeição e cooptação que se desenvolve a partir de ima- gens. Esse processo tem sua origem na experi- ência visual. Podemos caracterizar a experiência visual como uma espécie de cosmos imagético que nos envolve ao mesmo tempo em que nos assedia, sugerindo e até mesmo gerando links com nossos repertórios individuais. Esses reper- tórios individuais incluem imagensde infância, de família, de amores, conflitos, acasos, azares e dissabores. Enfim, são imagens associadas a situações marcantes que, por razões diversas, preservamos para nos proteger das emoções que elas acionam ou, ainda, imagens que guardamos com afeto – e nos reservamos o direito de reviver as emoções que elas desencadeiam apenas em épocas ou momentos especiais. A experiência visual e seus repertórios são responsáveis por sinapses entre conhecimentos objetivos e subje- tivos configurados por referências culturais que, de alguma maneira, influenciam os modos e as práticas de ver dos indivíduos. Mas é importante ressaltar que esse rastrea- mento, localização e recuperação de imagens da Ida-unB ■ Programa de Pós-graduação em arte ■ janeIro/junho de 2009 ■ v. 8 n.o 1 ■ 35 naRRatIVaSVISuaIS:ImagenS,VISualIdadeSeexPeRIêncIaeducatIVa RaImundomaRtInS experiência visual nem sempre é algo espontâ- neo ou corriqueiro. Muitas vezes esse rastreamen- to se caracteriza como uma operação complexa, confi dencial e por isto mesmo um tanto nebulosa, protegida por receios, dúvidas, inseguranças e até mesmo ameaças que temos de nós mesmos e das emoções que tais imagens podem reativar. Além disso, as imagens e suas sinapses estão permea- das por referências ou práticas culturais que nos ajudam a compreender o mundo social, ou seja, as formas de torná-lo inteligível (SILVA, 2003). Colocando de outra maneira, estamos falando de ações, atividades, experiências e outras formas de produzir sentido que constituem e instituem o que conhecemos como cultura. Do ponto de vista educacional, a dimensão visual vai além de um repertório de eventos ou objetos visí- veis porque pressupõe uma compreensão dos seus processos, o modo como operam, suas implicações e, principalmente, seus contextos. Assim, podemos dizer que a experiência visual é um processo dinâmico e gra- dual, em constante transformação e, consequentemen- te, mais demorado e, portanto, mais abrangente do que a instantaneidade da experiência de ver. A experiência visual e seus repertórios tam- bém incluem “as representações e as imagens [que] fluem pela vida diária valorizando as formas cultu- rais como o cinema e a televisão, criando uma espé- cie de névoa que encobre as regiões de fronteira entre as imagens de arte e de não-arte” (BECKER, 2009, p. 26). Richard (2006), aprofunda a discussão proposta por Becker ao afirmar que a “[...] diferen- ça entre arte e não-arte perdeu agora sua hierarquia de valor, ao cair submergida em uma nova cons- telação expandida do visual que envolve todas as formas de ver, de ser visto e de se mostrar” (p. 98). Nesse processo de compreensão que se desenvolve a partir de imagens, as visualidades ganham sentido como representações que transitam e emergem de repertórios visuais criando associações, acionando referências e evocando contextos. Desse modo, podemos dizer que as representações visuais são moldadas por práticas subjetivas e culturais que as transformam em visualidades. De acordo com Rolnik (1997), a subjetividade é “um modo de ser – de pensar, de agir, de sonhar, de amar etc. – que recorta o espaço, formando um interior e um exterior” (p. 1). Esse modo de ser dá aos indivíduos a possibilidade de articular uma “prática subjetiva e intersubjetiva do processo de formação, a partir das experiências e aprendizagens construídas ao longo da vida [...], reunindo e articulando “expe- riências diferentes e diversas, através das próprias escolhas, das dinâmicas e singularidades de cada vida” (SOUZA, 2006, p. 57). A aproximação entre prática subjetiva e intersubjetiva sinaliza uma inter- dependência ou, dizendo de outra maneira, uma interação entre a cultura e as práticas culturais. Neste sentido, podemos considerar as subjetividades como impressões ou vestígios da cultura nos nossos modos de ser, pensar, agir e sentir (BECKER, 2009). Hernández (2007), ao mesmo tempo em que escrutina, também detalha esta discussão ressal- tando diferenças entre subjetividade e identidade. Segundo o autor, Cada indivíduo tem uma percepção de si que pode ou não ser coincidente com a que outros indivíduos ou diferentes grupos têm a seu respeito. As discrepâncias entre a própria subjetividade e a identidade grupal é a causa de preocu- pação e ansiedade nos jovens. O que leva com frequência a que a identidade do grupo prevaleça sobre a experiên- cia individual. Por isso, rapazes e moças dedicam muito tempo, muita energia e muito esforço procurando ver e agir de forma igual ao restante dos membros do grupo. [...] Tal concepção defende que a construção da identidade se articula, não de modo determinista e natural, mas a partir de múltiplos compromissos, alianças, lealdades e rejeições, que cada um constrói mediante uma série de estratégias. (p. 73) Silva (2001), faz uma síntese contundente da relação subjetividade-identidade ao argumentar que quem detém o conhecimento detém o poder de representar, porque “é na representação, entre- tanto, que o poder do olhar e o olhar do poder se materializam” (p. 61). Assim, fica evidente que as visualidades são construções culturais que operam como imã, como pontos de referência para onde convergem diferentes olhares que se encontram e se entrecruzam atraindo o olhar de quem representa, de quem tem o poder de repre- sentar; o olhar de quem é representado, cuja falta de poder impede que se represente a si mesmo; o olhar de quem olha a representação; os olhares, eles mesmos cru- zados, das pessoas situadas, na representação, em posi- ções diferentes de poder. (SILVA, 2001, pp. 61-62) 36 ■ janeIro/junho de 2009 ■ v. 8 n.o 1 ■ Programa de Pós-graduação em arte ■ Ida-unB Seção 1 – Cultura e viSualidade: queStõeS em CurSo No mundo ocidental, a partir da premissa de Descartes - penso, logo existo – “pensar” passou a ser a marca que distingue os seres humanos dos outros animais. Todavia, acompanho a ousadia de Kehl (2005) de opor-se ao dualismo cientificista/ cartesiano corpo/mente, preceito que durante três séculos se tornou consenso epistemológico no oci- dente. A autora argumenta que não é o pensamento que distingue, primordialmente, um ser humano do outro. A certeza subjetiva que nos garante, muito precocemente, que “eu sou”, não provém da nossa capacidade de pensar, mas da nossa identificação à uma imagem. A imagem corporal. Não é o pensamento que garante a singularidade do ser; [...] O que garante o ser, para um sujeito, é sua visibilidade – para outro sujeito. (p. 148) Com base neste argumento podemos dizer que existir é, antes de tudo, fazer-se presente e ser reconhecido numa instância pública e simbólica que tem como pressuposto a interação entre ima- gem, narrativa e ação (ARENDT, 2005). É parti- lhar e compartilhar imagens e visualidades como práticas sociais e culturais que se estabelecem e se desestabilizam na teia de relações e significações humanas onde cada indivíduo se insere e participa a seu modo. inTeRaçãO enTRe iMaGeM, naRRaTiVa e açãO Todo conhecimento humano é, de alguma manei- ra, um tipo de interpretação. Na cultura, pratica- mente tudo tem um aspecto narrativo e, portanto, pode ser percebido e interpretado como narrativa. Clandinin e Conelly (2000) explicitam esta com- preensão ao explicar que [...] a vida – como chega a nós e aos outros – é construída por fragmentos narra tivos vividos em momentos conta- dos no tempo e espaço, sobre os quais refletimos e com- preendemos em termos de unidades e descontinuidades narrativas. (p. 17) Assim, podemos dizer que as narrativas podem mudar o modo de produção cultural e social por- que, ao narrar imagens e visualidades, os indiví- duos reorganizam sua experiência de modo que elas ganhem coerência e significado, dando senti- dos a eventos/acontecimentos marcantes nas suas trajetórias. As sutilezas do ver, olhar, espiar, espreitar, obser- var, vigiar e, também, do prazer visual, são um problema tão profundoquanto as várias formas de leitura - decifração, decodificação, interpretação, etc. Essas sutilezas e especificidades apontam para a constatação de que a experiência visual não é expli- cável apenas através do modelo da textualidade. Expressão, sentido e interpretação estão sempre presentes nas narrativas, construídas a partir de quatro elementos: personagem, tempo, ação e espa- ço. Assim, as narrativas visuais oferecem a possibi- lidade de se trabalhar questões da experiência for- madora dos indivíduos que, de maneira geral, são constituídas por imagens ou referências imagéticas isoladas, dispersas. Essas imagens são, de certa for- ma, marcas da trajetória e das vivências dos indiví- duos. Processadas culturalmente como visualidades e transformadas em experiências, essas imagens têm fortes componentes emocionais que expressam sen- timentos de alegria, satisfação, medo, insegurança, vergonha, timidez, tristeza, decepção etc. Por esta razão, a experiência de construir narra- tivas visuais dá aos alunos a oportunidade de iden- tificar situações significativas na sua trajetória de formação, de criar vínculos com questões subjetivas, mas, principalmente, de buscar uma compreensão de si mesmo tendo como referência as imagens e informações que escolheu como importantes e insti- tuidoras da sua vivência pessoal e social. Ao constru- írem narrativas visuais, os alunos dispõem de espaço para revisitar, retomar e rever criticamente aspectos, momentos de suas experiências narrando represen- tações de suas trajetórias como indivíduos e alunos numa dimensão contextual. A disciplina Arte, Percepção e Aprendizagem I, oferecida no quinto período do curso de licenciatura em Artes Visuais da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (UFG), culmina com a construção, apresentação e avaliação de uma narra- tiva visual de duração mínima de três minutos. Cada aluno apresenta e comenta com os colegas a sua narrativa. As narrativas podem ser apresentadas em powerpoint, vídeo, filme, utilizando imagens fixas e/ ou em movimento. Os quatro momentos/cenas que serão apresentados e analisados a seguir são parte da narrativa visual Peça de água, realizada por uma aluna da turma de 2008* (Figura 1). * Agradeço a aluna Aisha Terumi Kanda por dispor de sua nar- rativa para a realização deste texto. Ida-unB ■ Programa de Pós-graduação em arte ■ janeIro/junho de 2009 ■ v. 8 n.o 1 ■ 37 naRRatIVaSVISuaIS:ImagenS,VISualIdadeSeexPeRIêncIaeducatIVa RaImundomaRtInS O cenário da narrativa é simples e lúgubre (Figu- ra 1). O espaço sugere um banheiro, pequeno e fechado, com iluminação tênue e azulada (detalhe não observável nas imagens neste texto). Pratica- mente todo o lado esquerdo do cenário é ocupado por uma banheira de plástico, inflável, cheia de água. A foto da aluna, quando criança, está projetada na água de maneira que nos faz vê-la como se estivesse no fundo da banheira. À direita da banheira, sentada sobre as pernas, está a aluna, descalça, de bermuda escura e camiseta branca, cabelos soltos. Na sua mão, um balde de alumínio. O cenário parece anunciar sua intenção: desfazer-se da imagem, arremessá-la para fora da banheira junto com a água. A imagem, volátil e vulnerável é, ao mesmo tempo, persistente e inquiridora, porém, aparentemente passí- vel de ser eliminada. Os gestos iniciais confirmam a intenção previamente anunciada. A aluna mergu lha o balde e, cuidadosamente, capta a imagem e uma quantidade da água onde a imagem está refletida, atirando-as, água e imagem, para fora da banheira. Por alguns instan- tes tem-se uma per cepção dissimulada do desmembramento ou desaparecimento da imagem (Figura 2). Mas, aos poucos, os deslocamentos ondulatórios gerados pelo movimento do balde vão cessando e, gradativamen- te, fragmentos refratados da imagem se recompõem sobre a superfície liquida, refazendo novamente sua projeção. A ausência de uma materialidade palpável dá a imagem um caráter enig- mático sugerindo um confronto aluna- imagem, ou seja, a aluna e ela mesma, embora possamos reconhecer a fotogra- fia apenas como um registro de infân- cia. Mas é antes um registro que reativa outras imagens, momentos e circuns- tâncias, pegadas simbólicas de experiên- cias, significados e emoções vividas que balizam sua trajetória até este momento. É como se a imagem, em silêncio, gri- tasse muitas questões: quem sou eu para você? O que você diz de mim, ou, ainda, o que você quer comigo? A arte de evocar, narrar e de atribuir sentido às expe- riências como uma estranheza de si permite ao sujeito interpretar suas recordações em duas dimensões. Primeiro como uma etapa vinculada à formação a partir da singula- ridade de cada história de vida e, segundo, como um pro- cesso de conhecimento sobre si que a narrativa favorece. O processo de formação e de conhecimento possibilita ao sujeito questionar-se sobre os saberes de si a partir do saber-ser – mergulho interior e o conhecimento de si – e o saber-fazer-pensar sobre o que a vida lhe ensinou. (p. 62) Assim, podemos dizer que ao identificar, esco- lher ou reconstruir experiências visuais significa- tivas e formadoras, o aluno cria um espaço para interpretar momentos ou aspectos de sua trajetória buscando uma compreensão de si mesmo e de Figura 1. narrativa visual Peça de água, Terumi Kanda. Figura 2. narrativa visual Peça de água, Terumi Kanda. 38 ■ janeIro/junho de 2009 ■ v. 8 n.o 1 ■ Programa de Pós-graduação em arte ■ Ida-unB Seção 1 – Cultura e viSualidade: queStõeS em CurSo experiências vividas que, desafiadoras, sofridas ou decepcionantes/desagradáveis, podem ser transfor- madas em aprendizagem. O fluxo das imagens mantém a percepção visual do movimento e a narrativa continua. Personagem, espaço e ação continuam os mesmos. O tempo da ação conserva seu ritmo lento se arrastando intercalado por pausas que se repetem como que solicitando prudência e reflexão: água e imagem, recolhidas pelo balde, são atiradas fora da banheira; em seguida, um momento de pausa, de espera; gra- dativamente os movimentos da água diminuem e, a imagem, de maneira vagarosa e astuta, reaparece, se reapresenta sobre a superfície líquida fitando e provocando a sua matriz, a sua origem - a aluna. A obsessão pela imagem, ou, dizendo melhor, pela destruição da imagem, ganha um impulso dra- mático. O confronto, aluna-imagem, proporciona- do pela construção da narrativa visual, apresenta embates no decorrer da trajetória e de experiências vividas no seu itinerário como filha, mulher, irmã e aluna. Essas experiências, “marcadas por aspectos históricos”, desencadeiam um “continuo subjetivo frente às reflexões e análises construídas por cada sujeito sobre o ato de lembrar, narrar e escrever sobre si” (SOUZA, 2006, p. 79). Retornando à narrativa, o ritmo da ação se acele- ra e o movimento do balde se intensifica na expec- tativa de que imagem, água, ou ambos, se esgotem. Mas o esforço se revela inútil. Tomada pelo cansaço e pela irritação, a aluna se lança à banheira, desta vez sem o balde e, com movimentos frenéticos das mãos e dos braços, faz sua última tentati- va de livrar-se da água, da banheira e da imagem (Figura 3). Movimentos rápidos e bruscos des- locam a banheira, agora quase vazia, ao mesmo tempo em que denunciam um sentimento de ânsia e ódio. A energia e o esforço despendidos se mostram inúteis e o sentimento de ânsia e ódio parecem gerar exaustão. Com cabelos e camise- ta molhados, a aluna recorre ao último recurso que lhe resta: abrir a válvula e retirar o ar da banheira. A pressão do ar e o plástico escorregadio oferecem resis- tência, dificultando a abertura da válvu- la com a mão. Então, resta apenas um recurso, arrancar a tampa da válvula com a força dos dentes. A aluna mergulha a cabeça na banheira e abre a válvula de ar. Uma pequena quantidade de água escorre para fora da banheira. Com passos tímidos, a aluna sai, se retira do cená-rio da narrativa. No pouco de água que ainda resta no fundo da banheira, como num passe de mágica, lentamente, mas de maneira audaciosa e surpreendente, a ima- gem se recompõe e reconfigura. Na banheira quase vazia, a imagem pode ser vista parcialmente, fican- do a metade inferior do rosto encoberta pela borda da banheira (Figura 4). iMaGeM, naRRaTiVa e eDUcaçãO Narrativas visuais são uma forma de compreensão da experiência, um processo performativo de fazer ou contar uma história, ou seja, a narração de uma série de eventos visuais ou imagens em sequên- cia. Como explica Tomm (1993), “[...] nós, como humanos, não apenas damos significado à nossa experiência ao narrar nossas vidas, mas também temos o poder de ‘representar’ nossos relatos graças ao conhecimento que temos deles” (p. 12). Nesse sentido, é importante ressaltar que a vali- dade de um relato pode ser determinada por aquilo que a narrativa provoca ou evoca nos indivíduos, porque são eles que podem considerar uma experi- ência autêntica, crível ou possível. Na sociedade em que vivemos as narrativas dominantes não apenas influenciam poderosamente, mas, muitas vezes, determinam o que é contado/historiado e como é contado ou historiado. Figura 3. narrativa visual Peça de água, Terumi Kanda. Ida-unB ■ Programa de Pós-graduação em arte ■ janeIro/junho de 2009 ■ v. 8 n.o 1 ■ 39 naRRatIVaSVISuaIS:ImagenS,VISualIdadeSeexPeRIêncIaeducatIVa RaImundomaRtInS Assim, compreender a formação de alunos como uma iniciação, mas, principalmente, como um processo de conhecimento, pressupõe criar vínculos/conexões com aspectos ou momentos de experiências significati- vas que se constroem ao longo da vida e que podem se refletir de maneira surpreendente no seu percurso edu- cativo. As narrativas visuais podem assinalar diferentes sentidos con- feridos à formação educacional e à pesquisa aproximando os alunos do conhecimento e dos problemas rela- cionados ao contexto social e cultural em que vivem. Falando de uma perspectiva pós- moderna e pós-estruturalista ouso dizer que é necessário assumir o compromisso de construir narrativas visuais sobre pessoas ou grupos que têm suas vidas em perigo ou que estão correndo risco em função do lugar onde estão no mundo ou daquilo que o mundo traz ou oferece para elas. Desse modo, não podemos perder de vista que aquilo que sabemos, aquilo que somos e aquilo que sonhamos são, de alguma maneira, as coisas que nos motivam e dão sentido à nossa vida, são as coisas que queremos compreender e interpretar. ■ RefeRências BiBLiOGRáficas aChuTTi, Luiz E. r.. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto alegre: Editora da universidade Federal do rio Grande do sul: Tomo Editorial, 2004. arEnDT, hannah. 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