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PATRICIA-MARIA-RIBEIRO

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE 
INSTITUTO DE HISTÓRIA 
 
 
 
 
PATRICIA MARIA RIBEIRO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“ENTRE OS MUITOS E ESQUISITOS PÁSSAROS E BICHOS DESTA 
TERRA” 
A remessa de animais silvestres do Brasil colônia para Portugal 
(1777-1808) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NITERÓI 
2021 
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
Gerada com informações fornecidas pelo autor
Bibliotecário responsável: Debora do Nascimento - CRB7/6368
R484? Ribeiro, Patricia Maria
 ?ENTRE OS MUITOS E ESQUISITOS PÁSSAROS E BICHOS DESTA TERRA?
: A remessa de animais silvestres do Brasil colônia para
Portugal (1777-1808) / Patricia Maria Ribeiro ; Ronald J.
Raminelli, orientador. Niterói, 2021.
 243 f. : il.
 Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2021.
DOI: http://dx.doi.org/10.22409/PPGH.2021.m.08767949754
 1. Brasil colonial. 2. Portugal. 3. Animais. 4. Coleções
zoológicas. 5. Produção intelectual. I. Raminelli, Ronald
J., orientador. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto
de História. III. Título.
 CDD -
PATRICIA MARIA RIBEIRO 
 
 
 
“ENTRE OS MUITOS E ESQUISITOS PÁSSAROS E BICHOS DESTA TERRA” 
A remessa de animais silvestres do Brasil colônia para Portugal 
(1777-1808). 
 
 
Dissertação apresentada como requisito para 
obtenção do título de Mestre junto ao Programa 
de Pós-Graduação em História – PPGH-UFF. 
Área de Concentração: História Moderna e 
Colonial 
 
 
Aprovada em: 21 de junho de 2021 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
_________________________________________ 
 
Prof. Dr. Ronald Raminelli 
(Orientador – PPGH-UFF) 
 
 
 
__________________________________________ 
Prof. Dr. Leonardo Marques 
(Membro – PPGH-UFF) 
 
 
 
__________________________________________ 
Prof. Drª Lorelai B. Kury 
(Membro – PPGHCS-COC/Fiocruz) 
 
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE 
INSTITUTO DE HISTÓRIA 
 
 
 
 
PATRICIA MARIA RIBEIRO 
 
 
 
 
 
 
“ENTRE OS MUITOS E ESQUISITOS PÁSSAROS E BICHOS DESTA TERRA” 
A remessa de animais silvestres do Brasil colônia para Portugal 
(1777-1808) 
 
 
Dissertação apresentada como requisito para 
obtenção do título de Mestre junto ao Programa 
de Pós-Graduação em História – PPGH-UFF 
 
Área de Concentração: História Moderna e 
Colonial 
 
 
 
 
Orientador: Prof. Dr. Ronald Raminelli 
 
 
NITERÓI 
2021 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A história não é mais só para as pessoas 
History is not just for people anymore1 
 
 
1 JACOBS, Nancy J. Birders of Africa: History of a Network. New Haven & London: Yale University 
Press, 2016. 325p., p.8 
 
 
DEDICATÓRIA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Àqueles que gritam, rosnam, cantam e urram... 
mas permanecem silenciados. 
 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Agradeço primeiramente aos meus pais, Walter e Lucia Ribeiro, e a meu filho, 
Mateus Ribeiro de Oliveira, pelo carinho, compreensão e sobretudo paciência, por serem 
o melhor ninho. 
Minha especial gratidão a meu orientador, Professor Dr. Ronald Raminelli, que 
souber ser mais do que ouvidos e olhos atentos ao dosar na medida certa apoio e força. 
Agradeço também ao Professor Dr. Cezar Honorato pelos grandes ensinamentos 
passados nas excelentes conversas regadas a não tão excelentes “cafés” que encontramos 
pela UFF. 
De coração, agradeço aos maravilhosos amigos que a UFF me trouxe, com os quais 
passei bons e maus bocados, em especial a Jéssica Coutinho minha maior companheira 
nas melhores – e piores – disciplinas que cursamos. Agradeço também a Victor Paiva 
(Bito) e Caio Marques pelas inúmeras lágrimas vertidas de tanto rir. Estendo o meu muito 
obrigada a: Nathalia Fernandes, Matheus Camacho, Débora Martins, Maria Alice e 
Brunno Oliveira, Bruno Castelo Branco, Thiago Mantuano, Luana Medeiros, Leo 
Almeida, Lucas Honorato, Isabella Vilarinho, Juliana Vianna, Marina Marins, Joyce 
Assis e tantas outras e outros amigos que tornaram essa estada na UFF muito mais 
agradável. Não poderia deixar de agradecer especialmente a Blonsom Faria, pela 
companhia que atravessou o Atlântico. 
A Ekaterina Volkova Américo, meu Спасибо большое pelos ensinamentos e por 
tornar possível o contato com a língua e cultura russa. 
Muito obrigada também aos professores do Instituto de História, em especial: Vania 
Froes, Elisa F. Garcia, Alexandre Carneiro, Marcelo da Rocha Wanderley, Larissa Viana, 
Bernardo Kocher e Tatiana Poggi pela experiência compartilhada. Meu muito obrigada 
também a Juceli, rainha da História UFF. 
Aproveito para estender o agradecimento aos professores Leonardo Marques e 
Tâmis Parron, do PPGH-UFF, pela cuidadosa leitura do material de qualificação, e pelas 
fundamentais sugestões a esta pesquisa. Minha gratidão também à professora Lorelai B. 
Kury, por aceitar o convite em participar da banca desta dissertação, e pelas considerações 
relaçizadas em prol da melhoria deste trabalho. 
 
 
Por fim, agradeço ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e 
Tecnológico), pela bolsa de estudos que possibilitou a dedicação ao programa de pós-
graduação e operacionalização deste estudo. 
 
 
 
RESUMO 
 
A presente dissertação tem por objetivo analisar a remessa de animais silvestres saídos da 
América lusa para Portugal em finais do século XVIII e início do século XIX (1777–
1808). Os animais enviados do Brasil colonial para o reino iriam compor as coleções 
zoológicas dos viveiros reais ou o acervo de gabinetes de ciências e museus. Muitos foram 
os agentes envolvidos na captura e transporte de exemplares da fauna brasileira, e muitos 
também foram os esforços impetrados por esses homens para fazer chegar vivos do outro 
lado do Atlântico os “esquisitos e galantes bichos” do Brasil. 
 
Palavras-chave: Animais; coleções zoológicas; Portugal; Brasil colonial. 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
The present dissertation intends to analyze the consignment of wild animals from 
Lusitanian America to Portugal at the end of the 18th century and the beginning of the 
19th century (1777–1808). The animals sent from colonial Brazil to the kingdom would 
compose the zoological collections of of the royal menageries or the collection of sciences 
offices and museums. Many were the agents involved in capturing and transporting 
brazilian wildlife specimens, and many were the efforts of these men to make the "weird 
and gallant animals" of Brazil live on the other side of the Atlantic. 
 
Key-words: Animals; zoological collections; Portugal; colonial Brazil. 
 
 
 
RESÚMEN 
La presente dissertación tiene por objectivo analisar el envío de animales salvajes de la 
América lusa a Portugal a finales del siglo XVIII y principios del XIX (1777-1808). Los 
animales enviados desde el Brasil colonial al reino compondrían las colecciones 
zoológicas de los viveros reales o la colección de los gabinetes científicos y los museos. 
Muchos fueron los agentes involucrados en la captura y transporte de especímenes de la 
fauna brasileña, y muchos también fueron los esfuerzos realizados por estos hombres para 
llevar a los “animales raros y gallardos” de Brasil vivos al otro lado del Atlántico. 
 
Palabras-llaves: Animales, colecciones zoológicas; Portugal, Brasil colonial. 
 
 
 
LISTA DE ILUSTRAÇÕES 
 
Figura 1: Ilustração da Ménagerie de Versalhes por Adam Pérelle (1638-1695) ......... 67 
Figura 2: Planta do Real Palácio e Quinta de Belém, 1845. Abaixo detalhe do Pátio dos 
Bichos ............................................................................................................................. 75 
Figura 3: Pátio dos Bichos com as antigas jaulas ao fundo .......................................... 77 
Figura 4: Viveiros de Pássaros do Jardim das Cascatas, Palácio de Belém .................. 79 
Figura 5: Exemplar de mata-matá (Chelusfrimbiratus) ................................................ 98 
Figura 6: Alguns dos animais enviados a partir da capitania do Grão-Pará e Rio Negro
 ...................................................................................................................................... 106 
Figura 7: Tamanduá-bandeira ..................................................................................... 110 
Figura 8: Representação da entrada do Passeio Público em finais do século XVIII. . 111 
Figura 9: O encontro entre dois mundos ..................................................................... 120 
Figura 10: A participação de negros na captura de animais nativos ........................... 121 
Figura 11: Ciríaco Antônio. ......................................................................................... 124 
Figura 12: Primatas remetidos a partir da capitania do Grão-Pará e Rio Negro ........ 128 
Figura 13: Lobo-guará ................................................................................................. 130 
Figura 14: “Araras azuis” ............................................................................................ 145 
Figura 15: Área de ocorrência de Anodorhynchus leari e área de ocorrência histórica de 
Cyanopsitta spixii ......................................................................................................... 146 
Figura 16: Saguis amarelos ou cor de pérola .............................................................. 147 
Figura 17: Mutum-de-alagoas ..................................................................................... 150 
Figura 18: Biquinhos-de-lacre e pixoxó ...................................................................... 152 
 
 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 12 
CAPÍTULO 1 – ENTRE PENAS, BICOS E GARRAS: ALGUNS 
APONTAMENTOS SOBRE O COLECIONISMO ZOOLÓGICO ........................ 12 
1.1. O que é uma coleção? ............................................................................................ 22 
1.2 Uma breve história do colecionismo zoológico..................................................... 25 
1.2.1 Na (quase) cova dos leões – as coleções de animais vivos. .................................. 25 
1.2.2. De chifres de unicórnios a tamanduás empalhados – o colecionismo zoológico de 
curiosidades e científico. ................................................................................................ 32 
1.3 – “Uma onça preta tão mansa e doméstica não há indício algum de sua fereza 
natural” – a fauna brasileira e os processos de domesticação. ................................. 43 
1.3.1 Nem doméstico, nem selvagem: animal de ménagerie.......................................... 49 
1.4 “A rainha e todos fazem-lhe muitas festas porque dizem que é muito manso.” – 
novas sensibilidades e os animais de companhia em fins do século XVIII. ............. 52 
CAPÍTULO 2: COLECIONISMO ZOOLÓGICO E A SOCIEDADE DE CORTE
 ......................................................................................................................................... 62 
2.1 Coleções Zoológicas Régias e o Processo Civilizador: o exemplo da Ménagerie de 
Luís XIV em Versalhes. ............................................................................................... 62 
2.2 Pátio dos Bichos: um espaço para a sociabilidade humana ................................ 73 
2.3 Trocas de animais – presentes diplomáticos ........................................................ 83 
2.4 Objetivos das remessas ........................................................................................... 89 
2.5 Envio de animais e prestação de serviços à Coroa. ............................................. 94 
CAPÍTULO 3 – FATORES DETERMINANTES NAS REMESSAS ..................... 102 
3. 1 Os homens peritos do Sertão desta Capitania – os agentes que 
operacionalizavam as remessas ................................................................................. 102 
3.2 As diligências ......................................................................................................... 117 
3.3 As espécies mais enviadas e as mais solicitadas ................................................. 121 
 
 
3.4 As condições do transporte .................................................................................. 131 
3.5 Para lá da distante fronteira do Javari - A interiorização na América portuguesa 
e a busca por animais ................................................................................................. 135 
3.6 Biogeografia .......................................................................................................... 139 
CONCLUSÃO .............................................................................................................. 153 
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 162 
FONTES MANUSCRITAS ........................................................................................ 173 
APÊNDICES ................................................................................................................ 220 
 
 
12 
 
INTRODUÇÃO 
 
Tão logo os iniciais contatos entre europeus e a natureza do Novo Mundo foram 
estabelecidos, a fauna americana aguçou a curiosidade tanto dos primeiros viajantes que 
aqui aportaram quanto de reis e nobres que acabaram por ver nessas espécies o reflexo de 
grandes, diversas e longínquas possessões. O exotismo das cores, formas e sons 
evidenciava também a multiplicidades de terras e povos sob o domínio da Coroa 
Portuguesa. Poder expor ao mesmo tempo os bichos de África, Ásia e América servia 
como afirmação do grande poder que Portugal tinha sobre locais geograficamente tão 
distantes como Goa e Salvador. Domar essas feras era também dominar as gentes. 
Segundo Lorelai Kury, “a admiração europeia em relação à fauna brasileira diz respeito 
a viagens, coletas, coleções e à própria atividade colonizadora.” A autora ainda afirma 
que as pesquisas sobre animais se inserem nas mais variadas dimensões da vida humana, 
desde a cultura até a biologia, esta nem sempre valorizada pelas ciências humanas.2 
A mobilidade ecológica, aquela associada à transferência de plantas, animais e 
doenças, se acelera cada vez mais devido à ação humana. A depender exclusivamente do 
ritmo da natureza e sem a interferência antrópica, muito provavelmente o Canis lupis 
familiaris, ou simplesmente cão, não estaria presente nos cinco continentes. Este é só um 
dos milhares de exemplos que podemos buscar na ação humana como influenciadora – e 
até mesmo determinante – na evolução de outras espécies. E é principalmente a ideia de 
mobilidade ecológica que acabou por inspirar as questões levantadas ao longo desta 
pesquisa, a partir da análise das remessas de animais, em especial os silvestres, do Brasil 
colônia para Portugal em finais do século XVIII e início do século XIX, durante o reinado 
de D. Maria I e a regência de seu filho, D. João. Tomamos como delimitação geográfica, 
portanto, as capitanias da América portuguesa. A escolha deste corte cronológico (1777–
1808) se justifica por ter sido ao fim da década de 1770 que o envio de animais brasileiros 
passou a ter um caráter mais sistemático. A data limite de 1808 se deve ao fato de que 
com a chegada da família real ao Brasil e a conjuntura de guerra na Europa, as remessas 
diminuem consideravelmente. 
 
2 KURY, Lorelai Brilhante. Animais e História. In: KURY, Lorelai Brilhante (org). Representações da 
fauna no Brasil – Séculos XVI-XX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobson Estúdio Editorial Ltda, 2014. 
p.09 
13 
 
Por compreendermos as remessas de exemplares da funa brasílica dentro de um 
contexto mais amplo de intercâmbio ecológico, procuramos compreenderesta prática 
colecionista também como parte constituinte de alterações ambientais mais amplas. Tal 
ideia, é o que nos move na seção sobre Biogeografia, e mais especificamente sobre a 
associação entre história, biologia e geografia. 
Entretanto, para adentrarmos à temática da biogeografia, é necessário que se tenha 
em mente o debate sobre a capacidade humana em se configurar enquanto agente 
geológico, e, portanto, transformador do mundo natural. Parece-nos inegável que a ação 
humana ao longo do tempo fora capaz de moldar o ambiente circundante. Fato é que o 
período mais recente da história da Terra foi intensamente marcado por alterações 
ecológicas de fundo antrópico. Na tentativa de compreender a atuação humana como 
força geológica capaz de modificar o(s) ecossistema(s), o químico holandês e ganhador 
do Prêmio Nobel, Paul Josef Crutzen, em conjunto com o biólogo norte-americano 
Eugene F. Stoermer, cunharam o termo Antropoceno. De acordo com a dupla, os impactos 
da atividade humana na terra e na atmosfera acabaram por alcançar uma escala global, o 
que caracterizaria o Antropoceno como parte do Haloceno, mais especificamente o final 
do século XVIII em diante.3 
Procurando as raízes históricas da atual crise planetária da mudança climática ou 
do aquecimento global, Dipesh Chakrabarty evidencia que os humanos são agentes 
biológicos e geológicos. Para o autor, os seres humanos sempre foram agentes biológicos, 
seja individual ou coletivamente. Entretanto, somente histórica e coletivamente a 
humanidade pode ser encarada como um agente geológico capaz de causar impacto no 
próprio planeta. Ainda segundo o historiador indiano, os humanos “começaram a adquirir 
esse tipo de agência apenas desde a Revolução Industrial, mas o processo realmente 
tomou impulso na segunda metade do século XX. Os seres humanos se tornaram agentes 
geológicos muito recentemente na história humana.”4 
Para Chakrabarty a razão “talvez não seja o único guia de nossas escolhas coletivas 
efetivas”, o que não significa a não-agência. O autor expõe que agência e intenção não 
estão obrigatoriamente conectadas, como se fosse um pré-requisito da ação a 
intencionalidade. O que o autor procura demonstrar é que mesmo sem o desejo, as ações 
 
3 CRUTZEN, Paul J; STOERMER, Eugene F. O antropoceno. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, sem 
número, 06 nov. 2015. 
4 CHAKRABARTY, Dipesh. “O clima da história: quatro teses”. Sopro, n. 91, p. 4-22, 2013, p.10-11. 
14 
 
humanas se refletem em mudanças ambientais capazes de deflagrar uma verdadeira crise 
ecológica. Intencional ou não, a ação antrópica se revela, atualmente, um agente 
geológico capaz de perturbar as condições ambientais “necessárias à nossa própria 
existência.” Por fim, Chakrabarty diz ter havido “uma rachadura no muro entre as 
histórias humana e natural”, a partir do momento em que “enquanto espécie, nos tornamos 
um agente geológico”.5 A história natural e a história humana não podem ser apartadas. 
Em edição dedicada às mudanças climáticas, a Organização das Nações Unidas 
para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), citando o historiador ambiental e 
geógrafo histórico, o norte-americano Jason W. Moore, define Capitaloceno como o 
momento a partir do qual o capitalismo iniciou a atual “crise ecológica global que está 
nos levando a uma mudança de era geológica.” Ainda de acordo com a mesma publicação, 
o termo Ocidentaloceno, seria uma variação de Capitaloceno, variação esta cunhada pelo 
historiador francês Christophe Bonneuil, ao afirmar que “a responsabilidade pela 
mudança climática recai sobre as nações ocidentais industrializadas, não sobre os países 
mais pobres.”6 
A antropóloga Astrid Ulloa atenta para o fato de que o conceito de Capitaloceno 
surge como uma crítica surge como uma crítica da noção de Antropoceno, ao 
considerar que a ação humana é sempre perpassada por relações políticas e 
econômicas de poder e desigualdades no contexto do capitalismo global. O 
Capitaloceno ressalta, portanto, como as valorizações econômicas capitalistas 
de apropriação da natureza e de territórios, e não apenas as ações humanas 
diretas, são a causa das transformações ambientais.7 
 
Para a autora, o que está aqui é jogo é perceber as diferenças entre as sociedades e 
culturas em grau de participação nas modificações ambientais. Visão compartilhada por 
Andreas Malm, quando critica a ideia homogeneizadora de Antropoceno, compartilhada 
pelo que chama de “meio acadêmico ocidental e mídia”. De acordo com Malm, a narrativa 
do Antropoceno erra por perceber a espécie humana como “protagonista unificado” das 
alterações ecológicas, sem dar a devida dimensão às diferenças sociais, culturais e 
econômicas que influenciam diretamente numa maior ou menor capacidade 
transformadora.8 
 
5 Idem, passim. 
6 Glossário. In: O Correio da UNESCO, abril-junho 2018, p. 28-29. 
7 ULLOA, Astrid. A era do ser humano. Vivemos no Capitaloceno?. Tradução: Soraia Vilela. Goethe-
Institut Kolumbien, 2019. 
8 MALM, Andreas. A perspectiva da Dominica: Antropoceno ou Capitaloceno? O Correio da UNESCO, 
abril-junho 2018, p. 23-25. 
15 
 
Ao que nos parece, o conceito de Antropoceno ainda é controverso, seja em virtude 
de uma delimitação temporal, seja por circunscrever numa mesma essência, toda uma 
variedade de culturas e espaços. A homogeneização deste antropos acabaria por não 
relevar a responsabilidade dos humanos ocidentais – e seu sistema socioeconômico 
capitalista – na “transgressão dos limites biogeofísicos”, e consequentemente como uma 
força geológica. E fora na tentativa de demarcar mais claramente o papel transformador 
da sociedade ocidental, que conceitos como Capitaloceno e Ocidentaloceno acabaram por 
surgir. Em momento oportuno, retornaremos ao tema Antropoceno.9 
O que importa no momento reter é que a ação antrópica é capaz de afetar 
diretamente os processos ecológicos e consequentemente a distribuição geográfica dos 
seres vivos. E é tendo esta discussão como fundo que a proposta desta dissertação é 
procurar entender os canais utilizados nos envios de animais silvestres do Brasil Colônia 
para Portugal, abordando os agentes em ambos os lados do Atlântico que 
operacionalizavam as remessas, as espécies enviadas, a forma de captura e os caminhos 
que percorriam até o Reino. Por fim, pretendemos compreender os objetivos e as possíveis 
compensações em se remeter determinadas espécies à luz da ideia de prestação de 
serviços enquanto amálgama da relação entre a monarquia e seus vassalos. Para tal, é 
imprescindível o diálogo entre História, Biologia e Antropologia na tentativa de 
compreender por que homens a serviço da Coroa se mostravam tão empenhados em 
adentrar sertões pouco conhecidos para capturar e transportar desde frágeis colibris a 
ferozes onças. 
No que se refere às fontes, para esta pesquisa utilizamos dois tipos documentais, 
a saber: a comunicação administrativa entre colônia e metrópole, em que de alguma 
maneira haja referências a animais; e relatos sobre as Quintas Reais em Lisboa e seus 
viveiros produzidos por alguns viajantes ou diplomatas estrangeiros que ali estiveram em 
finais do século XVIII e início do XIX. 
Para este estudo levantamos 367 documentos, entre ofícios, cartas e relações, 
produzidas em sua grande maioria por agentes da administração nas capitanias brasileiras. 
Destes, 332 estão depositados no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), em Lisboa, 
Portugal. Dos 35 restantes, seis encontram-se no acervo da Biblioteca Nacional (BNRJ) 
e 29 no Arquivo Nacional (ANRJ), ambos na cidade do Rio de Janeiro. 
 
9 ISSBERNER, Liz-Rejane & LÉNA, Philippe. Antropoceno: os desafios essenciais de um debate 
científico. O Correio da UNESCO, abril-junho 2018, p. 7-10 (p.8) 
16 
 
Em relação à metodologia utilizada, buscamos a compilação e a análise de fontes 
primárias em que fosse possível verificar referências a animais, dentro do recortetemporal desta pesquisa (1777 a 1808). O primeiro contato com as fontes foi através de 
pesquisa digital no sítio eletrônico do AHU – Arquivo Científico Tropical10, mais 
especificamente na aba “AHU: Fundos e Coleções”, selecionando em seguida o campo: 
AHU: Conselho Ultramarino. Neste ponto, ao selecionar “Brasil”, fomos remetidos a uma 
área de busca com catálogos individuais para cada capitania.11 Resolvemos iniciar a busca 
através de palavras-chaves como: animal (animais), pássaro(s), ave(s), bicho(s), 
quadrúpede(s); após o que passamos a buscar por termos mais específicos como: 
macaco(s), onça(s), fera(s), papagaio(s), periquitos(s), etc. 
No que toca aos documentos custodiados no ANRJ, foi necessária a pesquisa 
presencial, onde verificamos especialmente os documentos do fundo do Vice-Reinado. 
Por fim, os documentos arquivados na BNRJ também foram consultados via remota, 
através de busca no site da instituição, mais especificamente na seção de documentos 
manuscritos.12 
A maior parte da documentação utilizada nesta pesquisa fora levantada 
anteriormente, quando da preparação de nosso trabalho monográfico apresentado para a 
obtenção do título de Licenciatura em História, nesta mesma Universidade Federal 
Fluminense. Na pesquisa iniciada ainda na graduação, abordamos tanto as remessas de 
espécimes para os viveiros reais, quanto aquelas de cunho eminentemente científico, 
porém com ênfase nas do primeiro tipo, e contemplando somente as capitanias da Bahia, 
Gão-Pará e Rio Negro. Para o atual estudo, resolvemos por manter a abordagem nas 
“remessas vivas” para as menageries régias da metrópole. Os envios de animais 
preparados ou seus subprodutos, quando aqui expostos, o serão sobretudo para efeitos de 
exemplificação das espécies remetidas, ou para referência aos agentes que 
operacionalizavam o transporte de exemplares da fauna americana. 
Sobre a delimitação espacial e temporal, esta pesquisa está centrada em parte do 
império português da época moderna, mais precisamente no Reino e nas possessões 
portuguesas na América durante o a maior parte do reinado de D. Maria I: iniciamos em 
 
10 Disponível em: <https://actd.iict.pt/>. Acessso em: 23 jun. 2020. 
11 Disponível em: <https://actd.iict.pt/collection/actd:CUF004>. Acesso em: 23 jun. 2020. 
12 Disponível em: <https://www.bn.gov.br/producao/publicacoes/guia-colecoes-divisao-manuscritos-
biblioteca-nacional>. Acesso em: 23 jun. 2020. 
https://actd.iict.pt/
https://actd.iict.pt/collection/actd:CUF004
https://www.bn.gov.br/producao/publicacoes/guia-colecoes-divisao-manuscritos-biblioteca-nacional
https://www.bn.gov.br/producao/publicacoes/guia-colecoes-divisao-manuscritos-biblioteca-nacional
17 
 
1777, com a ascensão da monarca ao trono, e finalizamos em 1808, com a chegada da 
família real ao Rio de Janeiro. 
Acerca do primeiro grupo de fontes, aqueles documentos que compunham a 
comunicação administrativa entre a Corte em Lisboa e as instâncias da governança na 
colônia, parte se encontra sob a tutela do Arquivo Histórico Ultramarino e está disponível 
para pesquisa online. Outro grupo de missivas refere-se à correspondência de vice-reis do 
Brasil com o Reino, presente no Arquivo Nacional no Rio de Janeiro. E por fim, 
utilizamos algumas correspondências internas a diferentes instâncias da administração 
colonial, e outras poucas que foram emitidas na Secretaria de Estado e da Marinha do 
Ultramar direcionadas aos governadores de capitanias ou vice-reis do Brasil, que estão 
depositadas na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. 
 O segundo tipo documental que analisaremos corresponde a memórias e relatos 
produzidos entre as últimas décadas dos Setecentos e as primeiras da centúria seguinte, 
sobre os palácios reais lisboetas, mais particularmente sobre as coleções zoológicas régias 
nestes espaços. Grande parte destas descrições encontra-se disponível para consulta 
online. 
O corpus documental mais abundante nesta pesquisa evidentemente não permite 
preencher certas lacunas: como há um franco predomínio da produção escrita de homens 
orientados por uma visão ocidental da natureza circundante, não se conseguiu de forma 
satisfatória abordar as visões indígenas e africanas. Diferentemente dos homens brancos, 
tentou-se silenciar índios, mulheres, escravos, crianças e mesmo os animais por quase 
quatro séculos de domínio português nestas terras. Diferenças linguísticas, culturais, 
religiosas, estatutárias e biológicas não permitiram que suas vozes fossem ouvidas ou que 
seus feitos fossem devidamente registrados, mas não podemos negar que suas silenciosas 
agências contribuíram para a formação de um novo mundo que se forjara exatamente a 
partir da realidade colonial. 
As relações cotidianas entre animais humanos e não humanos acabam nos 
passando desapercebidas. A rotina de tal convivência chega mesmo a beirar a banalidade, 
o que talvez nos sirva como justificativa para uma certa escassez documental e 
historiográfica. Associe-se a isto, as próprias dificuldades em prescrutar nas fontes a 
agência animal, o que metodologicamente nos leva à inegável necessidade de buscar em 
outras disciplinas aporte para o desenvolvimento desta temática. De acordo com António 
H. de Oliveira Marques, para a escrita de uma história sobre animais, há que se “recorrer 
18 
 
a técnicas de investigação e a conhecimentos científicos a que a história normalmente não 
obriga e para os quais normalmente o historiador não se acha geralmente preparado”.13 
Tendo em mente as dificuldades que se apresentam diante da temática escolhida, 
optamos por um maior diálogo entre história e antropologia (sobretudo etno e 
zooantropologia), zooarqueologia, zoogeografia, ecologia, entre outras. Acreditamos que 
a pesquisa em tela estaria inserida em um contexto que transita entre a história social, 
história ambiental e os Estudos sobre Animais (Animal Studies). Sobre a inserção deste 
estudo no campo maior da história ambiental14, compreendemos que as relações entre 
homens e animais são afetadas – e afetam – o ambiente natural. 
No que se relaciona aos Estudos sobre Animais, recorrermos ao aporte teórico-
metodológico mais específico dos Human-Animal Studies (HAS) 15, por entendermos que 
o objeto desta pesquisa – toda uma cadeia de procedimentos que se iniciam com a captura 
do espécime, até a sua ambientação nos viveiros das Quintas Reais – reflete uma situação 
relacional que envolve múltiplas agências. Por mais que os homens e mulheres à época 
agissem diretamente nas remessas, o sucesso destas se deveu também aos animais. Vários 
são os exemplos do fracasso em se remeter determinada espécie, e há considerável 
número de relatos em que os administradores e governantes se desculpam pela fuga ou 
morte dos exemplares que seriam encaminhados à rainha. 
Quanto mais recuada no tempo se dá a interação interespecífica, maior será a 
necessidade de contribuições entre diferentes campos científicos na compreensão das 
dinâmicas que moviam estas relações. Importante frisar que quando se trata da 
convivência entre espécies são imprescindíveis as colaborações entre zoologia e história 
na busca por um maior conhecimento das interações entre homens e animais ao longo do 
tempo. As fontes administrativas ou narrativas talvez não deem conta por si só de indicar 
a importância que a presença dos animais teria para as sociedades humanas. De acordo 
 
13 MARQUES, António H. de Oliveira. Introdução à história dos gatos em Portugal. In: 
TENGARRINHA, José (coord.). A historiografia portuguesa hoje. São Paulo: HUCITEC, 1999. (p. 46-
59), p. 46 
14 Sobre esse tema recomendamos: WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos 
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, p. 198-215. Disponível em: 
http://www.nuredam.com.br/files/divulgacao/artigos/Para%20fazer%20hist%F3ria%20ambiental.pdf. 
Acesso em 28 jun 2021., p. 02. 
15 Sobre esse tema ver: DEMELLO, Margo.Animals and Society: An Introduction to Human-Animal 
Studies. Nova York: Columbia University Press, 2021; HOSEY Geoff & MELFI, Vicky. Antrozoology: 
Human-Animal Interactions in Domesticated and Wild Animals. Oxford: Oxford University Press, 
2019; MANNING, Aubrey & SERPELL, James (eds). Animals and human societey: Changing 
perspectives. Londres & Nova Iorque: Routledge, 1994. 
19 
 
com Dolores Carmen Morales Múñiz caberia frequentemente ao zoólogo proporcionar 
“informação complementar através da análise faunística que permitiria revelar aspectos 
relacionados à economia e cultura de uma população humana que jamais poderiam chegar 
a inferir-se com a mera consulta das fontes ‘tradicionais’”. 16 E é por este motivo que em 
alguns momentos recorreremos aos estudos de zoólogos, zoogeógrafos e ambientalistas. 
Por ser uma pesquisa em que se faz necessária por muitas vezes a identificação 
científica dos espécimes remetidos, procuramos utilizar a nomenclatura científica 
corrente, e quando pertinente, o nome popular tradicionalmente atribuído à espécie em 
questão. E para tal, usamos como referência bibliográfica para identificação dos 
exemplares guias de identificação científica de aves, mamíferos e répteis, além das 
produções do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) sobre 
a fauna brasileira e seu estado de conservação. 
Sobre as produções mais específicas acerca do tema tratado neste estudo, 
buscamos o diálogo sobretudo com os escritos de Nelson Papavero & Dante Teixeira e a 
tese de doutorado de José Alberto Pais sobre o colecionismo zoológico português ao 
longo do século XVIII. As pesquisas de Papavero & Teixeira, ainda que eminentemente 
descritivas, foram de valor informativo considerável. Já a dissertação de Pais se mostrou 
de grande auxílio no mapeamento das espécies remetidas a partir de cada Capitania, bem 
como no aporte às teorias sobre colecionismo. 
Considerando que a matéria desta dissertação não se deve concentrar tão somente 
na identificação das espécies animais que foram enviadas, propomos a abordagem sobre 
uma temática mais ampla, qual seja a do colecionismo zoológico. Para tal, pretendemos 
que este estudo seja estruturado em 4 capítulos. 
No capítulo 1 – Entre penas, bicos e garras: alguns apontamentos sobre o 
colecionismo zoológico – procuramos discorrer brevemente sobre os antecedentes do 
colecionismo zoológico e das relações homem-animais. Para tal, o capítulo conta com 
quatro seções, nas quais buscamos evidenciar o aporte teórico que permeia grande parte 
 
16 “información complementaria a través del análisis faunístico que permite revelar aspectos relacionados 
con la economía y cultura de una población humana que jamás podrían llegar a inferirse con la mera 
consulta de las fuentes ‘tradicionales’”. MORALES MÚÑIZ, Dolores Carmen. Zoohistoria: reflexión 
acerca de una nueva disciplina auxiliar de la ciencia histórica. Espacio Tiempo y Forma. Serie III, 
Historia Medieval, [S.l.], n. 4, ene. 1991. ISSN 2340-1362. Disponible en: 
<http://revistas.uned.es/index.php/ETFIII/article/view/3522>. Fecha de acceso: 21 mar. 2021 
doi:https://doi.org/10.5944/etfiii.4.1991.3522. p. 368-9 
20 
 
deste estudo: teorias que nos permitem compreender as diferentes formas de relação 
estabelecidas entre homens e animais ao longo do tempo. 
Por acreditarmos que o colecionismo zoológico – tanto de espécimes vivas quanto 
de mortas ou de seus subprodutos – configura-se em uma das muitas formas que os 
homens procuraram dispor da existência dos animais não humanos, neste capítulo 
buscaremos analisar brevemente como os ajuntamentos faunísticos se estabeleceram nos 
distintas épocas e espaços. Já em tempos imemoriais, homens e mulheres procuraram ter 
junto a si alguns animais, fossem para a satisfação das necessidades materiais mais 
imediatas, fosse para o lazer e contemplação, para a ostentação de poder ou simplesmente 
para aplacar a solidão. Optamos por diferenciar, entretanto sem necessariamente 
contrapor, coleções zoológicas vivas das “mortas”, representadas, principalmente, por 
gabinetes de curiosidades e/ou científicos. Sobre o primeiro tipo de ajuntamento, 
procuramos abordar coleções faunísticas que iam desde os serralhos (recintos para as 
feras) até a concepção de uma ménagerie à semelhança de um "jardim zoológico" régio. 
Já no que se relaciona aos acervos da fauna morta, iniciamos com os gabinetes de 
curiosidades que paulatinamente foram cedendo espaço aos gabinetes de cunho científico 
e museus de história natural. 
À terceira seção deste que é o primeiro capítulo procuramos dar ênfase à relação 
homens-animais caracterizada como domesticação – ou melhor, domesticações. 
Procuramos demonstrar que a maior aproximação entre humanos e animais favoreceu ao 
estabelecimento de diferentes tipos de domesticação, tipos estes em que algumas das 
vezes relegou-se ao homem o papel de “domesticado”. E este convívio mais estreito entre 
as espécies gerou diferentes formas – ou diferentes graus – de adestramento, diferenças 
estas que se deram por questões culturais, mas também em virtude de certa agência 
animal. 
Na última seção do primeiro capítulo buscamos compreender que as alterações 
percebidas ao final do século XVIII nas formas de ajuntamento dos animais em muito se 
devem a novas concepções acerca do papel que esses animais – também o homem – 
desempenhavam na Criação, levando a mudanças nas sensibilidades de tal forma que, 
consequentemente, os bichos exóticos passam a ser também tratados como “pets” 
(sobretudo os animais de “câmara”). 
O capítulo 2 – Colecionismo zoológico e a Sociedade de Corte – é dedicado a 
estabelecer um nexo entre o colecionismo zoológico e a sociabilidade cortesã. Neste 
21 
 
ponto, dividimos o capítulo em cinco seções. Na primeira buscamos desenvolver um 
preâmbulo sobre o colecionismo de espécimes faunísticos vivos e a curialização da 
nobreza, usando como exemplo a edificação da ménagerie de Luís XIV em Versalhes. À 
seção subsequente tratamos dos Viveiros das Quintas Reais portuguesas enquanto 
espaços de sociabilidade humana, e se foram estas coleções cópias das menageries 
francesas. No próximo segmento observamos como as trocas de animais acionaram 
diferentes circuitos extra-imperiais, sobretudo quando pensadas a partir de modelos de 
presentes diplomáticos. Já o tópico que se segue, é relativo aos diferentes objetivos de se 
enviar exemplares da fauna colonial para a metrópole, buscando, em particular evidenciar 
os diálogos entre o colecionismo exibicionista e o de cunho científico. Por fim, este 
capítulo conta com uma última seção, sobre o envio de animais inserido na lógica de 
prestação de serviços à Coroa. 
O capítulo 3 – Fatores determinantes nas remessas – está diretamente 
relacionado à face colonial que envolvia o colecionismo zoológico, ou seja, nesta parte 
tratamos dos fatores determinantes para o sucesso – ou o fracasso – do transporte de 
exemplares da fauna colonial para o Reino. O capítulo conta com cinco seções em que 
pretendemos abordar os agentes que operacionalizavam os envios; as diligências nas 
diversas capitanias da América portuguesa; as condições em que se dava o transporte; a 
interiorização territorial em busca dos animais e o uso das fontes históricas como aporte 
nos estudos de biogeografia. E é ao longo deste capítulo que aproveitaremos para abordar 
mais detidamente a comunicação administrativa trocada entre o reino e sua principal 
colônia, relacionando-a aos tópicos propostos. 
Em momentos oportunos ao longo desta dissertação fizemos referências de forma 
mais detalhada a uma ou outra remessa. Ainda que nosso foco não seja uma quantificação 
dos espécimes remetidos no período em tela, importa citar que as fontes nos permitiram 
verificar o envio de 5.501 exemplares entre 1777 e 1808.17 Na seção dos apêndices é 
possível acompanhar através de tabelas a identificação,quando possível, destes 
indivíduos.
 
17 Dos 5.501 espécimes, identificamos 4.963 aves (90,2%), 500 mamíferos (9,1%), 35 répteis (0,6%) e 
três exemplares não tiveram sua classe definida. 
22 
 
CAPÍTULO 1 – ENTRE PENAS, BICOS E GARRAS: ALGUNS 
APONTAMENTOS SOBRE O COLECIONISMO ZOOLÓGICO 
 
Os ajuntamentos faunísticos se deram de diversas formas ao longo do tempo. A 
manutenção de agrupamentos animais pelos homens se deveu tanto às necessidades 
materiais (alimentação, vestimenta, tração), quanto à segurança, companhia, lazer, 
ciência. Para esta pesquisa, as formas de manutenção de espécimes zoológicas que serão 
contempladas são aquelas relacionadas mais estritamente ao conceito de colecionismo: 
em primeiro lugar as coleções zoológicas vivas, e em segundo, os acervos de 
colecionadores da época moderna em que se reuniam animais mortos ou seus 
subprodutos, acervos estes que variaram em seu propósito entre os séculos XV e XIX. 
Outras formas de manutenção zoológicas serão brevemente abordadas, tanto a título de 
comparação, quanto de sistematização dentro de um colecionismo zoológico mais 
abrangente. Para tal, iniciaremos este capítulo com uma breve contextualização acerca do 
colecionismo zoológico apoiando-nos também em teorias colecionistas de cunho mais 
abrangente. 
Por compreendermos que o colecionismo zoológico se insere num tema mais 
amplo que seja o das relações interespecíficas humanos e não-humanos – relações estas 
que são cultural, geográfica e historicamente diversas – este capítulo contará ainda com 
duas seções dedicadas ao(s) processo(s) de domesticação de animais e à análise de uma 
possível mudança nas sensibilidades para com nossos irmãos de patas e penas que parece 
se iniciar nas cortes ibéricas a partir da segunda metade do século XVIII. 
 
1.1. O que é uma coleção? 
 
É, portanto, possível circunscrever a instituição de que nos ocupamos: uma 
colecção, isto é, qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos 
temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, 
sujeitos a uma proteção especial num local fechado preparado para esse fim, e 
expostos ao olhar do público.18 
 
 
 
 
 
18 POMIAN, Krzysztof. Coleção. In: Enciclopédia Einaudi, vol I, Memória-História. Lisboa: Imprensa 
Nacional – Casa da Moeda, 1984. p. 51-86., p. 53 
23 
 
Se olharmos para objetos que nos cercam quotidianamente em nossas residências 
ou ambientes de trabalho, será que conseguimos definir a função ou mesmo utilidade de 
todos eles? Pensando em um escritório, por exemplo, podemos rapidamente delimitar a 
funcionalidade de um computador, de um relógio de parede, de canetas e papéis, mas o 
que dizer do porta-retrato sobre a mesa, o jarro de flores ou um troféu? Qual a função 
destes objetos? Ou melhor, qual o motivo de tais peças estarem ali dividindo espaço com 
“ferramentas de trabalho”? Para tentarmos algum tipo de resposta a essas questões será 
necessário compreender o que move homens e mulheres a juntar, atesourar ou colecionar. 
Juntar objetos parece ter sido um hábito humano bastante antigo. Desde 
imemoriáveis eras, a espécie humana reuniu pequenos objetos ou fragmentos naturais. 
Estes testemunhos da natureza circundante puderam posteriormente ser separados em 
objetos com utilidade direta – fundamentais na caça, por exemplo – ou aqueles que 
desempenharam papel mais subjetivo, como os que se destinaram a adornos ou amuletos 
protetores.19 
 O filósofo e historiador polonês, Krzysztof Pomian, apontou para o fato de que 
desde o início, a humanidade era produtora de coisas as quais rapidamente passaram a ser 
utilizadas na fabricação de ferramentas. Entretanto a separação entre itens úteis e itens 
não funcionais parece ter se iniciado no Paleolítico Superior (entre 30.000 e 10.000 anos 
a.C.). Os itens não funcionais seriam enquadrados, segundo Pomian, na categoria de 
objetos, visto terem sido a estes incorporados determinado valor cultural, ou seja, 
semióforos.20 Ainda sobre a diferenciação entre coisa e objeto, o museólogo tcheco 
Zbyněk Zbyslav Stránský destacou que o termo objeto está em oposição a um sujeito, 
sendo aí também incluídos entes não palpáveis, a exemplo das ideias. Já as coisas estão 
estritamente ligadas a elementos com materialidade. 21 A categoria de semióforos, 
portanto, descreve aqueles objetos “sem utilidade (...), mas que representam o invisível, 
são dotados de um significado; não sendo manipulados, mas expostos ao olhar, não 
sofrem usura.”22 
O que torna uma coisa um objeto? Segundo Pomian e Stránský é a relação 
estabelecida com o item. Para os autores tanto coisas quanto objetos são “juntáveis”, mas 
 
19 STAGGEMEIER, C., et al. Os adornos prehistóricos. Educaçao e Ciência na Era Digital, SEPE – XV 
Simpósio de Ensino Pesquisa e Extensão. 2011., p. 2 
20 POMIAN, K., op. cit., p. 71 
21 STRÁNSKÝ, Zbyněk Zbyslav. Object – Document. Or do we know what we are actually collecting? 
In: Symposium Object – Document? ICOFOM Study Series 23, pp. 47–51, Beijing, China, 1994. 
Disponível em: http://docplayer.fr/6585949-Symposium-object-document.html. Acesso em: 11 mar 
2021. 
22 POMIAN, K., op. cit., p. 71. 
http://docplayer.fr/6585949-Symposium-object-document.html
24 
 
a relação que se estabelece com o objeto, relação esta de não funcionalidade, é o que 
justifica seu agrupamento sob uma forma específica, que seria a coleção. 
Os motivos de se colecionar objetos são vários e vão desde prestígio, gosto 
pessoal, curiosidades intelectuais, riqueza, entre outros. Entretanto, é importante ressaltar 
que essa categorização de objetos que acaba por representar uma coleção não se aplica a 
todas as culturas em todos os tempos, mas será o conceito aqui utilizado, visto que este 
trabalho trata de um tipo específico de ajuntamento: coleções zoológicas, sobretudo as 
vivas, em pleno Antigo Regime Português. 
Quando pensamos em coleções de objetos de luxo, é natural que nos venham à 
mente os acervos mantidos por nobres e membros das elites (políticas e econômicas). São 
as grandes coleções de reis e rainhas, aquelas que relegaram provas da cultura material 
de tempos antigos. Ainda que num primeiro momento as coleções do tipo “principescas” 
fossem um apanhado de objetos com algum tipo de utilidade, mas não monetarizados 
enquanto em uso, dependendo da necessidade se poderia recorrer a venda de parte deste 
acervo como forma de angariar fundos. Portanto, os tesouros principescos poderiam estar 
ou não fora dos circuitos de atividades econômicas.23 A função última dos objetos de uma 
coleção seria a intermediação entre o visível (espectador) e um mundo invisível, que a 
depender do tipo de coleção pode ser o mundo dos mitos, dos contos, das histórias, e 
mesmo da natureza. 
Na próxima seção trataremos mais especificamente dos objetos que são o foco 
deste capítulo: “os animais de coleção”. O que importa reter, por hora, desta breve 
introdução à teoria colecionista é o fato de que os itens uma vez agrupados sob pretextos 
como prestígio, ostentação, lazer, gosto pessoal, etc, determinam uma categoria 
diferenciada aos animais em exposição nos viveiros e/ou gabinetes de curiosidades e 
científicos. E se nos for permitido gerar um conceito para este tipo de ser, escolhemos 
trabalhar com “animais de ménagerie”, por compreendermos que essa categoria estaria a 
meio caminho dos ditos selvagens, mas com sua original ferocidade contida, o que nem 
por isso os tornaria domésticos. Entretanto, antes de nos adentrarmos às discussões sobre 
processos de domesticação e a condição do animal de cativeiro, pretendemos 
contextualizar de que forma se apresentaram as coleções zoológicas, em especial as 
europeias modernas. 
 
 
23 POMIAN, K. op. cit., p. 61. 
25 
 
1.2 Uma breve história do colecionismo zoológico 
 
1.2.1 Na (quase) cova dos leões – as coleções de animais vivos. 
Ajuntamentos de animais instituídos pelo homempuderam ser verificados já em 
longínquas eras, e há muito que os humanos agruparam animais cuja função não estivera 
relacionada à subsistência, ou seja, não dizia respeito a alimentação, vestuário e tração. 
Estamos diante de coleções zoológicas vivas nas quais o acervo era composto por espécies 
das mais variadas possíveis, espécies que perderam sua função original e ganham um 
novo significado. O grupo de animais aqui em tela deixa de ser coisa e passa a ser 
semióforo. E ainda que o colecionismo zoológico tivera variações na longa duração, em 
grande parte acabou preservando certas características em geral relacionadas à 
demonstração de poder. 
Já no Antigo Egito animais – domésticos ou não – eram mantidos em cativeiro para 
a celebração de ritos em que serpentes, gatos, águias, entre outros, representavam algumas 
das divindades egípcias. À época dos faraós, mais especificamente nos tempos da rainha 
Hatshepsut (1479-1457 a.C.), fora criado o primeiro jardim para aclimatação de plantas 
e animais provenientes do reino de Punt. As relações políticas e comerciais estabelecidas 
entre os reinos possibilitou a chegada ao Egito de produtos como ouro, ébano, mirra, 
perfumes, animais e seus subprodutos, notadamente o marfim e as plumas. Outro exemplo 
de colecionismo zoológico longínquo diz respeito aos animais reunidos em palácios da 
China Imperial. Por quase dois mil anos, as sucessivas dinastias chinesas reservaram em 
seus jardins e aposentos espaços para as mais diversas espécies procedentes de seus 
domínios ou presentes diplomáticos. 
Desde a Antiguidade nas grandes propriedades coexistiram aviários, lagos de 
peixes, currais e mesmo jaulas de feras. No que se relaciona ao Ocidente, foram os 
romanos os responsáveis por deixar marcas mais profundas nas relações entre homens e 
animais selvagens e/ou exóticos. De acordo com Carlos G.-C. Jiménez, em Roma 
verificou-se a manutenção de aviários e lagoas que serviam tanto a questões dietéticas 
quanto ao embelezamento.24 Entretanto, o que nos importa aqui é a relação estabelecida 
com as grandes feras, visto que esse tipo de coleção encontrará ao longo da época 
medieval e em parte da modernidade adeptos que incentivaram em grande medida seu 
ressurgimento – ou ao menos, sua releitura. 
 
24 JIMÉNEZ, Carlos Gómez-Centurión. De leoneras, ménageries y casas de fieras. Alguns apuntes sobre 
el coleccionismo zoológico en la Edad Moderna. In: GARCÍA, Arturo Morgado & MORENO, José 
Joaquín (eds). Los animales en la historia y en la cultura. Cádiz: UCA, 2011. P. 154 
26 
 
Importa salientar que a República de Roma teve um papel privilegiado no 
colecionismo de grandes animais, quando a partir do século III a.C. começaram a chegar 
ao Lácio espécies como elefantes, leões, tigres, girafas, etc, oriundos de terras 
conquistadas. Já no Império, os combates entre feras e gladiadores necessitava de um 
constante aporte destes animais à capital. Para deleite da plateia afeita a tão cruel diversão 
não foram poupados esforços na obtenção dos melhores exemplares que aportavam ao 
Coliseu, fornecidos por criadores especializados ou por coleções sustentadas pelos 
próprios imperadores. Segundo Jiménez, a captura destas feras “por todos os confins do 
Império” levou ao despovoamento de grandes áreas no norte da África e do Oriente 
Próximo.25 Mas não só a remessa de feras movimentava os circuitos comerciais que 
envolviam animais. Também as aves de gaiola encantaram homens e mulheres na 
Antiguidade, fosse por suas belas plumas, fosse por suas harmoniosas cantorias. Nas 
casas egípcias, gregas e romanas, a presença de viveiros com aves ornamentais era 
constante, assim como nos lares imperiais chineses e japoneses. 26 
No Oriente, parece ter prevalecido um caráter mais lúdico das coleções zoológicas 
vivas. De acordo com Dolores Camem Morales Muñiz, as batalhas entre grandes animais 
não encontraram muitos adeptos, e o aprisionamento de animais tomava como base o 
exibicionismo. Era prática comum a utilização de animais em desfiles e passeios que 
visavam evidenciar o luxo e ostentar o poder de grandes nobres.27 
Com a queda de Roma, e o arrefecimento do comércio de longa distância em função 
das migrações dos povos bárbaros, houve a diminuição da chegada de animais exóticos à 
Europa. Entretanto, após a primeira leva de invasões e a posterior fixação dessas 
populações, observou-se uma retomada, ainda que tímida, do colecionismo zoológico nos 
moldes romanos. Tomemos como exemplo as coleções de Carlos Magno, que no século 
VIII chegou a possuir elefantes, macacos, leões, ursos, camelos, falcões e muitas aves 
exóticas, em três distintos ajuntamentos. Muitos destes animais foram presenteados a 
Carlos Magno por soberanos do norte da África e da Ásia, a exemplo do elefante asiático 
(Elephas maximus) nomeado Abul-Abbas. O paquiderme em questão fora uma oferta do 
então califa de Bagdá, e permaneceu sob a posse do rei dos francos por 10 anos. 
 
25 Idem, p. 156 
26 SERPELL, James A. Companion animals. In: HOSEY Geoff & MELFI, Vicky. Antrozoology: Human-
Animal Interactions in Domesticated and Wild Animals. Oxford: Oxford University Press, 2019., p. 18. 
27 MORALES MUÑIZ, Dolores Camem. La fauna exótica en la Península Ibérica: apuntes para el estúdio 
del coleccionismo animal en el Medievo hispânico. Espacio, Tiempo y Forma, Serie III, Hª Medieval, t 
13, 2000, págs. 233-270., p. 237. 
27 
 
Outras coleções medievais que merecem destaque foram as de Frederico II 
Hohenstaufen (1194-1250)28, Henrique III de Inglaterra (1207-1272)29, cuja coleção 
encontrava-se na Torre de Londres, e Renato I de Nápoles (1409-1480)30. Ainda de 
acordo com Jiménez, o hábito de colecionar animais exóticos ou selvagens “permaneceu 
também arraigado ao longo da Idade Média nas grandes fundações monásticas, nos 
castelos senhoriais ou nos orgulhosos burgos independentes.”31 É interessante notar que 
de comum aos exemplos supracitados seria o apreço por espécies exóticas, sobretudo os 
leões. Este grande felino acabou perdendo seu status de curiosidade ou maravilha 
estrangeira na mentalidade de homens e mulheres da Europa medieval. E é essa 
incorporação de uma fauna distante à mentalidade e simbolismos medievais que nos 
ajudam a explicar a presença de animais como os leões na heráldica de muitas Grandes 
Casas.32 
Os contatos estabelecidos com nações e povos distantes – relações que poderiam 
ser comerciais, diplomáticas, ou mesmo bélicas – favoreceram a chegada de diferentes 
espécies à Europa, e isso, como já visto, desde tempos mais remotos. Grande importância 
para o aprovisionamento de animais exóticos tiveram as Cruzadas, e podemos citar como 
exemplo o elefante trazido por Luis IX de França (1214-1270) e ofertado a Henrique III 
de Inglaterra. Mesmo experimentando um período de queda na importação de espécimes 
extra-europeias, durante a Idade Média não deixaram de chegar aos castelos dos grandes 
senhores animais como leões, aves rapineiras, ursos e lobos, sendo que os dois últimos 
geralmente eram exemplares autóctones, ainda que pouco vistos (tal como o urso polar 
enviado da Noruega para a Torre de Londres em meados do século XIII). 
Não obstante os anos de diminuição do aporte de animais exóticos às grandes 
coleções nobres e eclesiásticas, a Europa voltaria a experimentar o incremento deste tipo 
de ajuntamento muito em função do ativo comércio via Mediterrâneo. Durante o 
Renascimento, as relações comerciais estabelecidas entre as cidades-Estado italianas com 
o Oriente, e o consequente enriquecimento, possibilitaram que a aristocracia organizasse 
coleções de animais exóticos em suas residências, com destaque para a família Médici de 
 
28 Rei da Sicília de 1198 a 1250, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico de 1220 a 1250, além 
de Rei de Jerusalém de 1225 a 1228. 
29 Henrique III reinou na Inglaterra de 1216 a 1272 
30 Renato I de Nápoles, governou de 1434a 1442, e foi também duque de Anjou, Conde de Provença, 
Duque de Bar, Duque de Lorena, titular como Rei de Jerusalém (1438-1480) e de Aragão (1466-1480). 
31 “permaneció también arraigada a lo largo de la Edad Media em las grandes fundaciones monásticas, los 
castillos señoriales o los orgullosos burgos independientes.” JIMÉNEZ, C., 2011, op. cit., p. 155-6. 
(tradução nossa). 
32 BUQUET, Thierry. Les animaux exotiques dans les ménageries médiévales. In: TOUSSAINT, Jacques. 
Fabuleuses histoires des bêtes et des hommes. Trema - Société archéologique de Namur, pp.97-121, 
2013., p. 99. 
28 
 
Florença, que no século XV mantinha grades animais, e em especial as feras, em cativeiro 
em seus serragli. Tal acervo, à semelhança dos artefatos preciosos e antiguidades, eram 
considerados objetos de luxo, e por isso mesmo, reafirmavam a distinção natural da 
nobreza. 
O serraglio (plural serragli) correspondia ao espaço destinado à manutenção de 
grandes predadores e de algumas presas. Concepção adotada em finais do século XIV, 
este tipo de coleção abrigava “animais destinados às práticas de combate à moda romana, 
porém em uma escala mais reduzida, pelas cortes europeias.”33 Este tipo de agrupamento 
zoológico vivo será mais bem analisado no Capítulo 2, entretanto o que por hora nos 
interessa reter é a união entre a ferocidade dos animais ali mantidos e a ideia de domínio 
pela força, que seus proprietários buscavam externar. E sobre isso, diz-nos Eric Baratay 
que o gosto pelo serraglio ressurgiu em fins do século XIV quando a aristocracia adota 
práticas exclusivas para se definir, e aqui mais especificamente o gosto pelo exotismo e 
a importação de animais.34 E seria exatamente a procedência destes bichos que 
diferenciaria o status de seus proprietários, ou seja, o custo para adquirir e manter aqueles 
provenientes de paragens mais distantes acabaria os restringindo aos serragli dos grandes 
nobres, enquanto a pequena nobreza teria que se contentar com a criação da fauna nativa. 
Dito isto, dentro do grupo das feras, os grandes felinos encontravam forte apelo 
junto à aristocracia. Já na Antiguidade, sua posse representava força e poder, ideais que 
persistiram durante o medievo, quando reis e grandes senhores procuravam ter a seu lado 
leões, linces e tigres. Por não encontrarem adversários à altura na natureza, os grandes 
felinos eram vistos como os dominadores – ou governantes – das outras espécies, e por 
este motivo, simbolizavam “de uma forma tão evidente a supremacia do poder régio e os 
valores guerreiros que distinguiam o estamento nobiliárquico.”35 Lembremos da heráldica 
europeia medieval em que os leões recorrentemente figuravam em brasões de armas, 
herança que pode ser verificada atualmente no brasão ainda usado pelo Governo do Reino 
Unido. 
Não só os grandes felinos simbolizavam o poder dos soberanos. Elefantes, 
rinocerontes e girafas não eram definitivamente animais acessíveis a qualquer 
colecionador. Já em finais do século XIV, mas principalmente a partir dos Quinhentos, 
 
33 BARATAY, Éric. Le zoo: lieu politique, XVIe-XXe siècles. In: BACOT, P.; BARATAY, E. et al. 
(dir.). L''Animal en politique. L'Harmattan, 2003, p. 15-36., p. 17 
34 Idem. 
35 “simbolizaban de una forma tan evidente la supremacía del poder regio y los valores guerreros que 
distinguían al estamento nobiliario.” JIMÉNEZ, Carlos Gómez-Centurión. Curiosidades vivas: los 
animales de América y Filipinas en la Ménagerie real durante el siglo XVIII. In: Anuario de Estudios 
Americanos, 66, 2, Sevilha (Espanha), 2009. p. 181-211. p. 190 (tradução nossa). 
29 
 
com as grandes viagens atlânticas, uma certa animália feroz ou “monstruosa” vem a 
aportar na Europa. E nesse ponto, Portugal teve papel de destaque. Almudena P. Tudela 
e Annemarie J. Gschwend afirmam que nenhuma outra corte renascentista foi tão afetada 
pelos Descobrimentos quanto Portugal. Os animais exóticos configuraram-se nas 
primeiras raridades enviadas da Índia para Portugal. Ao estabelecer contatos com novos 
territórios em África, Ásia e América, os portugueses passaram a conviver com o 
estranho, o maravilhoso e o exótico em seu quotidiano.36 
Caso emblemático e que não poderia deixar de ser citado refere-se ao envio de um 
elefante branco, chamado Hanno, oferecido por D. Manuel de Portugal ao Papa Leão X. 
O paquiderme, presente digno de um rei ou papa, viajou acompanhado de seu tratador 
mahout, e em 1514 chegou a Roma em grande embaixada. Acredita-se que o próprio D. 
Manuel recebera o animal como um presente diplomático do rei de Cochim. 
Também do outro lado da fronteira, a corte habsburguesa soube aproveitar os 
contatos privilegiados que se iniciaram com a conquista do Novo Mundo, a exemplo da 
experiência colecionista do imperador Montezuma em Tenochtitlán. Foram os Habsburgo 
a dinastia mais poderosa da Europa no raiar da modernidade, configurando-se também 
nos principais colecionistas de então. A Casa de Áustria soube como nenhuma outra 
acionar seus contatos familiares entre suas diversas cortes (Madri, Lisboa, Bruxelas, 
Viena, Praga, Innsbruck) para o aprovisionamento frequente de seus viveiros e gabinetes 
de curiosidades. 
Estudioso das relações entre homens e animais, Keith Thomas diz ter sido a caça 
desempenhada por nobres um dos principais motivos para se estabelecer normas de 
conservação dos animais na Inglaterra da época Moderna. Segundo o autor, algumas 
espécies já receberam o status de protegidas em virtude de se relacionarem a status e 
prestígio, como os bois brancos selvagens de alguns parques privados no século XVI e os 
cisnes “preservados por sua beleza” em Abbotsbury, Dorset, desde os tempos medievais. 
Não era qualquer cidadão que poderia possuir os belos cisnes, sendo sua criação marca 
de distinção social e controlada pela Coroa.37 Thomas ainda informa que os animais 
exóticos sempre foram alvo de estima como presentes dignos de reis e governantes, e 
desde ao menos o século XII, que a casa Plantageneta se dedicou à manutenção de leões, 
 
36 TUDELA, Almudena Pérez & GSCHWEND, Annemarie Jordan. Renaissance Menageries: Exotic 
Animals and Pets at the Habsburg Courts in Iberia and Central Europe. In: ENNEKEL, Karl A. E. & 
SMITH, Mark. S. (eds), Early Modern Zoology: The Construction of Animals in Science, Literature 
and the Visual Arts, vol 1. Leiden: Brill, 2007, p. 418-447. p. 421 
37 THOMAS, Keith, O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos 
animais (1500-1800). Tradução: João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, 
p. 390 
30 
 
leopardos e outros animais ferozes – o brasão mesmo da dinastia Angevina era composto 
por três leões. Coube a Henrique III a construção do abrigo das feras na Torre de Londres, 
abrigo este que durou até 1834. 
 Talvez a Torre de Londres seja o mais bem acabado exemplo do colecionismo 
zoológico vivo praticado pelas casas reais europeias, exatamente porque em virtude de 
sua longevidade: por aproximadamente 600 anos, suas paredes e grades encerraram uma 
gama incontável de feras ou animais exóticos. A ménagerie instalada na Torre, permite-
nos traçar a evolução deste tipo de coleção, pois seu início se deu como uma casa de feras, 
passando pela concepção de abrigo de animais exóticos, cristalizando-se, posteriormente 
como um símbolo da conquista colonial inglesa. 
Avancemos um pouco. Com o raiar da Modernidade, a fase que ficou conhecida 
como Época dos Descobrimentos, descortinou também um novo mundo de patas e penas, 
e assim o colecionismo zoológico privado atingiu patamares até então não vistos no 
continente europeu. O já citado Keith Thomas atesta que na Inglaterra elizabetana, as 
coleções de aves multicolores tornaram-se “traço padrão de todo jardim aristocrático, 
havendo muitos vendedores especializados em espécies exóticas”, sem falar nos 
aristocratas hanoverianos que possuíam coleções de animais rarose exuberantes.38 
 Os animais exóticos vivos se configuravam como produtos altamente demandados, 
e por isso atingiram elevados preços nas principais praças europeias modernas. O frisson 
despertado por espécimes da fauna americana no século XVI nas principais casas do 
Velho Continente pode ser comparado ao interesse por produtos como as especiarias, o 
açúcar, pedras e metais preciosos. Prioritariamente ofertado a crianças mais velhas, a 
posse destes animais se espalha pela Europa nos séculos XVII e especialmente no XVIII, 
quando aristocracia e alta burguesia passam a acessar tais espécies com maior frequência 
em virtude da queda relativa dos preços de importação. E este é o principal motivo pelo 
qual papagaios e macacos se tornaram os animais de estimação dos mais ricos nas grandes 
cidades.39 Já no que se relaciona ao império inglês, tanto Nigel Rothfels quanto Keith 
Thomas compreendem que as ménageries simbolizavam riqueza, status e dominação 
colonial, e que especificamente esta última perspectiva se tornaria mais visível ao longo 
do século XIX. 40 
 
38 Idem, p. 391 
39 BARATAY, É., op. cit., p. 30. 
40 ROTHFELS, Nigel. Savages and beasts: the birth of the modern zoo. Baltimore & Londres: The Johns 
Hopkins University Press, 2002, p.21 
31 
 
Entre o fim do século XVII e por todos o XVIII, a forma de agrupamento de 
animais que prevaleceu foram as ménageries, ou os viveiros de animais exóticos.41 
Importa por hora reter que este tipo de coleção serviu a abrigar preferencialmente animais 
exóticos, mas já nem tão ferozes, visto que em muitas situações se privilegiou a 
manutenção de espécies amansados – os animais de ménagerie. Símbolo de status e poder, 
essa forma de juntar animais seria o ideal a ser seguido pela nobreza europeia a partir de 
sua instalação no Palácio de Versalhes, durante o reinado de Luis XIV (1643-1715), e só 
começaria a perder terreno para os jardins zoológicos no início dos Oitocentos. Para 
Jiménez, a arquitetura dos recintos dos viveiros régios era uma tentativa de demonstrar o 
domínio humano sobre a natureza, onde os animais eram expostos hierarquicamente de 
acordo com as categorizações científicas mais recentes, semelhante a um livro de história 
natural. A ménagerie moderna, e mesmo aquela da segunda metade do século XVIII 
funcionaria como um gabinete de curiosidades vivas.42 
Os zoológicos do século XIX se diferenciam das ménageries da centúria anterior 
fundamentalmente por seu estatuto (nacional, municipal ou privado), seu público 
(moradores das cidades e não da corte) e seu registro na paisagem (não mais restritos aos 
palácios). Entretanto, o exotismo de seu acervo é uma herança considerável dos 
ajuntamentos faunísticos anteriores.43 A principal motivação para a criação dos jardins 
zoológicos fora sem dúvida a “ambição científica” que verdadeiramente toma corpo em 
finais do século XVIII e se firma no Oitocentos. Nas derradeiras décadas dos Setecentos, 
boa parte dos naturalistas franceses tecera duras críticas às ménageries ao afirmarem que 
estes estabelecimentos se orientavam mais a expor os animais do que conferir-lhes 
alguma utilidade, além de serem inapropriadas para o estudo do comportamento animal. 
Nasce, assim, o colecionismo inventariante da natureza ou de aclimatação de espécies 
exóticas. 
Se há uma característica que parece persistir desde os serralhos tardo-medievais 
até os primeiros jardins zoológicos do século XIX é o apelo à raridade e exotismo dos 
animais, ainda que a perspectiva tenha se modificado: para os serralhos o exotismo 
associava-se à violência das feras capturadas, passando posteriormente aos animais de 
paragens distantes que compunham as ménageries modernas e simbolizavam o poder do 
monarca sob as diversas gentes e terras e finalmente chegaram aos primeiros zoológicos 
 
41 A formação deste tipo de estabelecimento será mais bem analisada no capítulo 2. 
42 JIMÉNEZ, C., 2011, op. cit., p. 167-8 
43 BARATAY, Éric. Le frisson sauvage: les zoos comme mise en scène de la curiosité. In: BANCEL, N. 
et al. (dir.), Zoos humains. Paris: La Découverte, 31-37. 
32 
 
contemporâneos que serviam de vitrine da natureza selvagem. A título de 
complementação, em relação aos zoológicos contemporâneos – tema que foge ao escopo 
desta pesquisa – o principal motivo para sua fundação teria sido a ambição científica, o 
que é ressaltado por Éric Baratay quando alega terem sido os naturalistas franceses pós-
Revolução de 1789, os inauguradores deste tipo de ajuntamento faunístico.44 
Ao fim e ao cabo, as coleções se definem menos por seu repertório de objetos, e 
sim pela relação estabelecida entre aqueles itens e quem os agrupa. E é nesse sentido que 
devemos ter em mente a forma como as coleções faunísticas se forjaram: símbolo de 
status e poder, fosse seu acervo vivo ou morto. 
 
1.2.2. De chifres de unicórnios a tamanduás empalhados – o colecionismo zoológico de 
curiosidades e científico. 
Nem todas as coleções zoológicas são ruidosas, nas quais os diferentes sons da 
natureza parecem ali se encontrar, ainda que modulados pela nova condição em que se 
encontra o animal em cativeiro. Em alguns ajuntamentos reinou o silêncio de urros, 
cantos, rugidos... só vozes humanas foram ouvidas. Estamos falando dos gabinetes, antes 
de curiosidades ou maravilhas, e depois científicos. O colecionismo zoológico de animais 
mortos – ou partes deste – também ocorria já há bastante tempo. Não obstante, para o 
tema da pesquisa em tela, importa compreender os acervos deste tipo que tiveram 
ocorrência na Europa do período tardo-medieval até inícios do século XIX. 
No grego antigo ou no latim, curiosidade tinha a conotação de interesse 
inapropriado por algo, e este conceito negativo atravessou toda a Idade Média, chegando 
mesmo a ser associado à luxúria e orgulho. A ideia negativa que circundava o termo só 
começa a mudar ao início da modernidade, quando curiosidade passa a ser associada ao 
maravilhoso, ideia essa que acaba por moldar o colecionismo experimentado nos séculos 
XVI e XVII. Já ao longo dos Setecentos, o termo passa a ser identificado cada vez mais 
à vulgaridade, já que a especialização das coleções levou à correlação deste acervo com 
a ideia de utilidade, relegando a curiosidade a cultura popular ou mesmo ao colecionismo 
amador. 
 
44 Sobre esse assunto ver: BARATAY, Éric. Le frisson sauvage: les zoos comme mise en scène de la 
curiosité. In: BANCEL, N. et al. (dir.). Zoos humains. Paris: La Découverte, 2002, p. 31-37; 
BARATAY, Éric. Le zoo, lieu politique, XVIe-XXe siècles. In: BACOT, Paul et al., L’animal en 
politique. Paris: L’Harmattan, 2003, p. 15-36; KISLING, Vernon N. Zoo and Aquarium History: 
Ancient Animal Collections to Zoological Gardens. Boca Raton: CRC Press, 2001; ROTHFELS, 
Nigel. Savages and Beasts: The Birth of the Modern Zoo. Baltimore & Londres: The Johns Hopkins 
University Press, 2002. 
33 
 
De acordo com Pomian, é na segunda metade do século XIV que a Europa 
ocidental vê surgir um novo ímpeto colecionista, com preocupações em relação ao 
passado, à geografia e à natureza. Novos semióforos surgem, ou melhor, novas categorias 
de peças tornam-se semióforos: as antiguidades, produtos exóticos, obras de arte e os 
instrumentos científicos (a partir do século XVII). E fora a curiosidade dos primeiros 
tempos modernos, curiosidade esta associada ao colecionismo e ao fazer científico, que 
alavancou o consumismo e consequente comércio de artigos de luxo.45 E no que diz 
respeito ao estudo aqui desenvolvido, a categoria que merece ênfase é aquela referente 
aos produtos oriundos de paragens distantes, ou exóticos. 
Grupo de semióforos que ganha destaque a partir do século XV são aqueles 
angariados nas viagens: “tecidos, ourivesarias, porcelanas, fatos de plumas, ‘ídolos’, 
‘fetiches’, exemplares da flora e da fauna, conchas, pedras que afluem assim aos 
gabinetes dos príncipes e aos dos sábios.”46Estes objetos configuram-se em semióforos 
em virtude do significado que assumem ao chegar a Europa, quando se tornam 
representantes do invisível, do exotismo de países, sociedades e climas não europeus. 
Segundo Pomian, essas peças se diferem das antiguidades por não se caracterizarem em 
objetos de estudo, mas em curiosidades. Durante quase três séculos foram as antiguidades 
os semióforos de maior valor, só sendo suplantadas a partir da segunda metade do século 
XVIII pelos objetos de história natural. 
Dentre a categoria colecionismo de gabinete, devemos estabelecer a diferença, 
ainda que sensível, entre os gabinetes de curiosidades, ou maravilhas, e os gabinetes ditos 
científicos. A origem do primeiro grupo de coleção remontaria ao colecionismo medieval 
de tesouros, ou Schatzkammer, um ajuntamento de louças, pratos de ouro, tecidos finos, 
joias e tapeçarias, que eram acumuladas por eclesiásticos e reis. Alguns objetos um tanto 
quanto curiosos também poderiam compor o acervo destas coleções, tais como chifres de 
unicórnios ou ossos de santos. Para a mentalidade dos homens e mulheres do medievo, 
esses objetos eram dotados de um significado inato, valorizados sobretudo por suas 
propriedades mágicas ou miraculosas. E de acordo com Annemarie Jordan Gschwend, na 
estética medieval, “arte e natureza refletiam a beleza ideal de Deus, e as relações dos 
fenômenos naturais e artificiais eram racionalizadas por meio de símbolos e alegorias.”47 
 
45 DASTON, Lorraine. “The Moral Economy of Science.” Osiris, vol. 10, 1995, pp. 2–24., p. 17 
46 POMIAN, K., op. cit., p. 77. (grifo nosso). 
47 “art and nature reflected the ideal beauty of God, and the relations of natural and artificial phenomena 
were rationalized through symbol and allegory.” GSCHWEND, Annemarie Jordan. In the Tradition of 
Princely Collections: Curiosities and Exotica in the Kunstkammer of Catherine of Austria. Bulletin of 
the Society for Renaissance Studies. Vol XIII, N.1, Out. 1995. P. 1 (Tradução nossa). 
34 
 
Os gabinetes de curiosidades se tornaram a voga no século XVI, ainda que o 
colecionismo artístico, científico ou de objetos religiosos tivesse sua existência anterior a 
essa centúria. Príncipes, nobres e humanistas, juntavam nas câmaras de maravilhas48 toda 
a sorte de objetos e “estranhezas” da natureza (naturalia) quanto aqueles feitos por hábeis 
mãos humanas (artificialia). Entretanto, estes homens e mulheres não procuravam tão 
somente agrupar objetos aleatórios. Estas coleções foram reflexo de uma aspiração 
filosófica em tentar reunir todo um conhecimento universal e enciclopédico do mundo, 
algo que servisse como uma vitrine, onde o mundo interno (microcosmo) refletisse o 
mundo externo (macrocosmo). 49 
Os gabinetes de curiosidades do norte da Europa ficaram conhecidos pelos termos 
germânicos Wunderkammer e Kunstkammer, sendo o primeiro referente às câmaras de 
maravilhas e o segundo às câmaras de artes. Apesar de uma inicial divisão tipológica dos 
acervos, e mesmo as Wunderkkamers sendo mais ecléticas do que as câmaras de artes, 
ambas as coleções sempre se mesclaram. Para o filosofo e cientista inglês Francis Bacon 
(1561-1626), os gabinetes de curiosidades funcionariam como um espelho do mundo, 
uma vez que seus acervos comportariam três aspectos da natureza: o comum, o excêntrico 
e o feito por mãos humanas. Dentro da categoria excêntrica, Bacon dizia figurar 
produções como “carcaças de dragões, chifres de animais imaginários ou não, sereias 
mumificadas e outros frutos da curiosidade humana”.50 Fernanda de Camargo-Moro 
expõe ainda um outro tipo de gabinete, o studiolo, que nascido na península itálica, se 
diferenciava da Wunderkammer por ter seu acervo agrupado com a finalidade da pesquisa 
e do estudo.51 
Segundo Pomian é a hierarquização social que permite o aparecimento de 
coleções. Expliquemos melhor: uma coleção é um ajuntamento de objetos que possuem 
significado (semióforos), mas perderam (ou mesmo não possuíam) uma função/utilidade, 
e por isso não eram “coisas”. A existência dos semióforos – objetos que estão fora dos 
circuitos econômicos – só é possível porque a hierarquização social permite que uma 
parcela desta sociedade seja liberada das atividades econômicas e possa se dedicar ao 
colecionismo. Seria este o indivíduo que Pomian chama de homem-semióforo: rei, 
 
48 Kunst e Wunderkammern nos territórios ao norte dos Alpes ou studioli nas cidades italianas. 
49 GSCHWEND, A., op. cit., p. 2. 
50 CAMARGO-MORO, Fernanda de. Câmaras de maravilhas, studioli e gabinetes de curiosidades: 
Vandelli e sua circunstância. In: BRIGOLA, João Brigola et. al. O gabinete de curiosidades de 
Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes, 2015. P. 18-39., p. 19 
51 Idem, p. 20 
35 
 
imperador, papa, presidente da república, etc.52 Ou seja, indivíduos-semióforos forjam 
coleções de peças-semióforos, e assim podemos compreender em que bases sociais e 
econômicas de assentaram as câmaras de maravilhas. 
A título de exemplificação podemos destacar o papel que teve a nobreza da 
Espanha Moderna na associação entre o hábito de colecionar e mecanismos de imitação 
próprios das sociedades hierarquizadas, ou seja, os acervos particulares carregavam 
valores simbólicos que refletiam a vontade de ascender socialmente.53 O que nos chama 
a atenção é que para além do ato de colecionar, importa aqui o modo de colecionar, 
exatamente porque o hábito de atesourar nem tanto estaria relacionado a questões 
estéticas, mas sim a distinções sociais. 
Mas como deveria se estabelecer a organização destas galerias? Que relações 
deverem ser observadas entre os objetos que compunham estes acervos? Por mais que 
peças como tapetes e chifres de unicórnios possam nos parecer dessemelhantes, havia 
uma lógica intrínseca a essas coleções que acabavam por hierarquizar seus componentes. 
A sistematização desse tipo de reunião encontrou no médico flamengo Samuel 
Quiccheberg um de seus maiores expoentes, que em 1565 dizia ser uma coleção ideal 
aquela baseada na História Natural, de Plínio, o Velho. Desta forma as Kunstkammer 
(câmaras para objetos artísticos) e as Wunderkammers (repositórios para objetos 
extraordinários) deveriam ser divididas em categorias, classes e subclasses que refletiriam 
a qualidade dos materiais envolvidos. A esta forma de organizar as câmaras, o médico 
aplicou ainda a corrente noção de teatro do filósofo italiano Giulio Camilo. Assim, as 
câmaras refletir-se-iam numa espécie de teatro do mundo, “onde toda a sua variedade 
estava hermeticamente contida num só espaço, o seu conteúdo decidido pela diversidade, 
pela abundância, pelo irregular, pelo estranho e pelo invulgar”.54 Interessante ainda 
ressaltar que, de acordo com Quiccheberg, uma vez reunidos, os objetos definiam, e 
mesmo justificavam, o status e a honra de seus proprietários. 
Como exemplo de “colecionismo de maravilhas” no mundo ibérico, e mais 
precisamente luso, podemos invocar as coleções de Catarina de Áustria (1507-1578), 
rainha de Portugal, esposa de D. João III (1502-1557). D. Catarina foi detentora de 
coleções cuidadosamente organizadas ao longo de 50 anos, que se compunham de objetos 
 
52 POMIAN, K., op. cit., p. 74 
53 Sobre esse tema, conferir: HERRERA, Antonio Urquízar. Coleccionismo y nobleza. Signos de 
distinción social en la Andalucía del Renacimiento. Madri: Marcial Pons, 2007. pp. 13-28. 
54 “in all its variety, was hermetically contained in one space, its Contents decided by diversity, 
abundance, the irregulär, the odd and the uncommon.” GSCHWEND, A., op. cit., P. 2 (Tradução 
nossa). 
36 
 
vários, como: tapeçarias flamengas, retratos da corte, objetos preciosos, joias, peças 
exóticas, móveis, pratos e livros. Foi também mantenedora de muitos animais, vivos ou 
não. Foi sem dúvida favorecida por uma extensa rede de contatos, que iam desde seus 
familiares Habsburgo até administradores e súditos espalhados pelo vasto império

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