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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE HISTÓRIA PATRICIA MARIA RIBEIRO “ENTRE OS MUITOS E ESQUISITOS PÁSSAROS E BICHOS DESTA TERRA” A remessa de animais silvestres do Brasil colônia para Portugal (1777-1808) NITERÓI 2021 Ficha catalográfica automática - SDC/BCG Gerada com informações fornecidas pelo autor Bibliotecário responsável: Debora do Nascimento - CRB7/6368 R484? Ribeiro, Patricia Maria ?ENTRE OS MUITOS E ESQUISITOS PÁSSAROS E BICHOS DESTA TERRA? : A remessa de animais silvestres do Brasil colônia para Portugal (1777-1808) / Patricia Maria Ribeiro ; Ronald J. Raminelli, orientador. Niterói, 2021. 243 f. : il. Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.22409/PPGH.2021.m.08767949754 1. Brasil colonial. 2. Portugal. 3. Animais. 4. Coleções zoológicas. 5. Produção intelectual. I. Raminelli, Ronald J., orientador. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de História. III. Título. CDD - PATRICIA MARIA RIBEIRO “ENTRE OS MUITOS E ESQUISITOS PÁSSAROS E BICHOS DESTA TERRA” A remessa de animais silvestres do Brasil colônia para Portugal (1777-1808). Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em História – PPGH-UFF. Área de Concentração: História Moderna e Colonial Aprovada em: 21 de junho de 2021 BANCA EXAMINADORA _________________________________________ Prof. Dr. Ronald Raminelli (Orientador – PPGH-UFF) __________________________________________ Prof. Dr. Leonardo Marques (Membro – PPGH-UFF) __________________________________________ Prof. Drª Lorelai B. Kury (Membro – PPGHCS-COC/Fiocruz) UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE HISTÓRIA PATRICIA MARIA RIBEIRO “ENTRE OS MUITOS E ESQUISITOS PÁSSAROS E BICHOS DESTA TERRA” A remessa de animais silvestres do Brasil colônia para Portugal (1777-1808) Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em História – PPGH-UFF Área de Concentração: História Moderna e Colonial Orientador: Prof. Dr. Ronald Raminelli NITERÓI 2021 A história não é mais só para as pessoas History is not just for people anymore1 1 JACOBS, Nancy J. Birders of Africa: History of a Network. New Haven & London: Yale University Press, 2016. 325p., p.8 DEDICATÓRIA Àqueles que gritam, rosnam, cantam e urram... mas permanecem silenciados. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente aos meus pais, Walter e Lucia Ribeiro, e a meu filho, Mateus Ribeiro de Oliveira, pelo carinho, compreensão e sobretudo paciência, por serem o melhor ninho. Minha especial gratidão a meu orientador, Professor Dr. Ronald Raminelli, que souber ser mais do que ouvidos e olhos atentos ao dosar na medida certa apoio e força. Agradeço também ao Professor Dr. Cezar Honorato pelos grandes ensinamentos passados nas excelentes conversas regadas a não tão excelentes “cafés” que encontramos pela UFF. De coração, agradeço aos maravilhosos amigos que a UFF me trouxe, com os quais passei bons e maus bocados, em especial a Jéssica Coutinho minha maior companheira nas melhores – e piores – disciplinas que cursamos. Agradeço também a Victor Paiva (Bito) e Caio Marques pelas inúmeras lágrimas vertidas de tanto rir. Estendo o meu muito obrigada a: Nathalia Fernandes, Matheus Camacho, Débora Martins, Maria Alice e Brunno Oliveira, Bruno Castelo Branco, Thiago Mantuano, Luana Medeiros, Leo Almeida, Lucas Honorato, Isabella Vilarinho, Juliana Vianna, Marina Marins, Joyce Assis e tantas outras e outros amigos que tornaram essa estada na UFF muito mais agradável. Não poderia deixar de agradecer especialmente a Blonsom Faria, pela companhia que atravessou o Atlântico. A Ekaterina Volkova Américo, meu Спасибо большое pelos ensinamentos e por tornar possível o contato com a língua e cultura russa. Muito obrigada também aos professores do Instituto de História, em especial: Vania Froes, Elisa F. Garcia, Alexandre Carneiro, Marcelo da Rocha Wanderley, Larissa Viana, Bernardo Kocher e Tatiana Poggi pela experiência compartilhada. Meu muito obrigada também a Juceli, rainha da História UFF. Aproveito para estender o agradecimento aos professores Leonardo Marques e Tâmis Parron, do PPGH-UFF, pela cuidadosa leitura do material de qualificação, e pelas fundamentais sugestões a esta pesquisa. Minha gratidão também à professora Lorelai B. Kury, por aceitar o convite em participar da banca desta dissertação, e pelas considerações relaçizadas em prol da melhoria deste trabalho. Por fim, agradeço ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), pela bolsa de estudos que possibilitou a dedicação ao programa de pós- graduação e operacionalização deste estudo. RESUMO A presente dissertação tem por objetivo analisar a remessa de animais silvestres saídos da América lusa para Portugal em finais do século XVIII e início do século XIX (1777– 1808). Os animais enviados do Brasil colonial para o reino iriam compor as coleções zoológicas dos viveiros reais ou o acervo de gabinetes de ciências e museus. Muitos foram os agentes envolvidos na captura e transporte de exemplares da fauna brasileira, e muitos também foram os esforços impetrados por esses homens para fazer chegar vivos do outro lado do Atlântico os “esquisitos e galantes bichos” do Brasil. Palavras-chave: Animais; coleções zoológicas; Portugal; Brasil colonial. ABSTRACT The present dissertation intends to analyze the consignment of wild animals from Lusitanian America to Portugal at the end of the 18th century and the beginning of the 19th century (1777–1808). The animals sent from colonial Brazil to the kingdom would compose the zoological collections of of the royal menageries or the collection of sciences offices and museums. Many were the agents involved in capturing and transporting brazilian wildlife specimens, and many were the efforts of these men to make the "weird and gallant animals" of Brazil live on the other side of the Atlantic. Key-words: Animals; zoological collections; Portugal; colonial Brazil. RESÚMEN La presente dissertación tiene por objectivo analisar el envío de animales salvajes de la América lusa a Portugal a finales del siglo XVIII y principios del XIX (1777-1808). Los animales enviados desde el Brasil colonial al reino compondrían las colecciones zoológicas de los viveros reales o la colección de los gabinetes científicos y los museos. Muchos fueron los agentes involucrados en la captura y transporte de especímenes de la fauna brasileña, y muchos también fueron los esfuerzos realizados por estos hombres para llevar a los “animales raros y gallardos” de Brasil vivos al otro lado del Atlántico. Palabras-llaves: Animales, colecciones zoológicas; Portugal, Brasil colonial. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1: Ilustração da Ménagerie de Versalhes por Adam Pérelle (1638-1695) ......... 67 Figura 2: Planta do Real Palácio e Quinta de Belém, 1845. Abaixo detalhe do Pátio dos Bichos ............................................................................................................................. 75 Figura 3: Pátio dos Bichos com as antigas jaulas ao fundo .......................................... 77 Figura 4: Viveiros de Pássaros do Jardim das Cascatas, Palácio de Belém .................. 79 Figura 5: Exemplar de mata-matá (Chelusfrimbiratus) ................................................ 98 Figura 6: Alguns dos animais enviados a partir da capitania do Grão-Pará e Rio Negro ...................................................................................................................................... 106 Figura 7: Tamanduá-bandeira ..................................................................................... 110 Figura 8: Representação da entrada do Passeio Público em finais do século XVIII. . 111 Figura 9: O encontro entre dois mundos ..................................................................... 120 Figura 10: A participação de negros na captura de animais nativos ........................... 121 Figura 11: Ciríaco Antônio. ......................................................................................... 124 Figura 12: Primatas remetidos a partir da capitania do Grão-Pará e Rio Negro ........ 128 Figura 13: Lobo-guará ................................................................................................. 130 Figura 14: “Araras azuis” ............................................................................................ 145 Figura 15: Área de ocorrência de Anodorhynchus leari e área de ocorrência histórica de Cyanopsitta spixii ......................................................................................................... 146 Figura 16: Saguis amarelos ou cor de pérola .............................................................. 147 Figura 17: Mutum-de-alagoas ..................................................................................... 150 Figura 18: Biquinhos-de-lacre e pixoxó ...................................................................... 152 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 12 CAPÍTULO 1 – ENTRE PENAS, BICOS E GARRAS: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O COLECIONISMO ZOOLÓGICO ........................ 12 1.1. O que é uma coleção? ............................................................................................ 22 1.2 Uma breve história do colecionismo zoológico..................................................... 25 1.2.1 Na (quase) cova dos leões – as coleções de animais vivos. .................................. 25 1.2.2. De chifres de unicórnios a tamanduás empalhados – o colecionismo zoológico de curiosidades e científico. ................................................................................................ 32 1.3 – “Uma onça preta tão mansa e doméstica não há indício algum de sua fereza natural” – a fauna brasileira e os processos de domesticação. ................................. 43 1.3.1 Nem doméstico, nem selvagem: animal de ménagerie.......................................... 49 1.4 “A rainha e todos fazem-lhe muitas festas porque dizem que é muito manso.” – novas sensibilidades e os animais de companhia em fins do século XVIII. ............. 52 CAPÍTULO 2: COLECIONISMO ZOOLÓGICO E A SOCIEDADE DE CORTE ......................................................................................................................................... 62 2.1 Coleções Zoológicas Régias e o Processo Civilizador: o exemplo da Ménagerie de Luís XIV em Versalhes. ............................................................................................... 62 2.2 Pátio dos Bichos: um espaço para a sociabilidade humana ................................ 73 2.3 Trocas de animais – presentes diplomáticos ........................................................ 83 2.4 Objetivos das remessas ........................................................................................... 89 2.5 Envio de animais e prestação de serviços à Coroa. ............................................. 94 CAPÍTULO 3 – FATORES DETERMINANTES NAS REMESSAS ..................... 102 3. 1 Os homens peritos do Sertão desta Capitania – os agentes que operacionalizavam as remessas ................................................................................. 102 3.2 As diligências ......................................................................................................... 117 3.3 As espécies mais enviadas e as mais solicitadas ................................................. 121 3.4 As condições do transporte .................................................................................. 131 3.5 Para lá da distante fronteira do Javari - A interiorização na América portuguesa e a busca por animais ................................................................................................. 135 3.6 Biogeografia .......................................................................................................... 139 CONCLUSÃO .............................................................................................................. 153 REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 162 FONTES MANUSCRITAS ........................................................................................ 173 APÊNDICES ................................................................................................................ 220 12 INTRODUÇÃO Tão logo os iniciais contatos entre europeus e a natureza do Novo Mundo foram estabelecidos, a fauna americana aguçou a curiosidade tanto dos primeiros viajantes que aqui aportaram quanto de reis e nobres que acabaram por ver nessas espécies o reflexo de grandes, diversas e longínquas possessões. O exotismo das cores, formas e sons evidenciava também a multiplicidades de terras e povos sob o domínio da Coroa Portuguesa. Poder expor ao mesmo tempo os bichos de África, Ásia e América servia como afirmação do grande poder que Portugal tinha sobre locais geograficamente tão distantes como Goa e Salvador. Domar essas feras era também dominar as gentes. Segundo Lorelai Kury, “a admiração europeia em relação à fauna brasileira diz respeito a viagens, coletas, coleções e à própria atividade colonizadora.” A autora ainda afirma que as pesquisas sobre animais se inserem nas mais variadas dimensões da vida humana, desde a cultura até a biologia, esta nem sempre valorizada pelas ciências humanas.2 A mobilidade ecológica, aquela associada à transferência de plantas, animais e doenças, se acelera cada vez mais devido à ação humana. A depender exclusivamente do ritmo da natureza e sem a interferência antrópica, muito provavelmente o Canis lupis familiaris, ou simplesmente cão, não estaria presente nos cinco continentes. Este é só um dos milhares de exemplos que podemos buscar na ação humana como influenciadora – e até mesmo determinante – na evolução de outras espécies. E é principalmente a ideia de mobilidade ecológica que acabou por inspirar as questões levantadas ao longo desta pesquisa, a partir da análise das remessas de animais, em especial os silvestres, do Brasil colônia para Portugal em finais do século XVIII e início do século XIX, durante o reinado de D. Maria I e a regência de seu filho, D. João. Tomamos como delimitação geográfica, portanto, as capitanias da América portuguesa. A escolha deste corte cronológico (1777– 1808) se justifica por ter sido ao fim da década de 1770 que o envio de animais brasileiros passou a ter um caráter mais sistemático. A data limite de 1808 se deve ao fato de que com a chegada da família real ao Brasil e a conjuntura de guerra na Europa, as remessas diminuem consideravelmente. 2 KURY, Lorelai Brilhante. Animais e História. In: KURY, Lorelai Brilhante (org). Representações da fauna no Brasil – Séculos XVI-XX. Rio de Janeiro: Andrea Jakobson Estúdio Editorial Ltda, 2014. p.09 13 Por compreendermos as remessas de exemplares da funa brasílica dentro de um contexto mais amplo de intercâmbio ecológico, procuramos compreenderesta prática colecionista também como parte constituinte de alterações ambientais mais amplas. Tal ideia, é o que nos move na seção sobre Biogeografia, e mais especificamente sobre a associação entre história, biologia e geografia. Entretanto, para adentrarmos à temática da biogeografia, é necessário que se tenha em mente o debate sobre a capacidade humana em se configurar enquanto agente geológico, e, portanto, transformador do mundo natural. Parece-nos inegável que a ação humana ao longo do tempo fora capaz de moldar o ambiente circundante. Fato é que o período mais recente da história da Terra foi intensamente marcado por alterações ecológicas de fundo antrópico. Na tentativa de compreender a atuação humana como força geológica capaz de modificar o(s) ecossistema(s), o químico holandês e ganhador do Prêmio Nobel, Paul Josef Crutzen, em conjunto com o biólogo norte-americano Eugene F. Stoermer, cunharam o termo Antropoceno. De acordo com a dupla, os impactos da atividade humana na terra e na atmosfera acabaram por alcançar uma escala global, o que caracterizaria o Antropoceno como parte do Haloceno, mais especificamente o final do século XVIII em diante.3 Procurando as raízes históricas da atual crise planetária da mudança climática ou do aquecimento global, Dipesh Chakrabarty evidencia que os humanos são agentes biológicos e geológicos. Para o autor, os seres humanos sempre foram agentes biológicos, seja individual ou coletivamente. Entretanto, somente histórica e coletivamente a humanidade pode ser encarada como um agente geológico capaz de causar impacto no próprio planeta. Ainda segundo o historiador indiano, os humanos “começaram a adquirir esse tipo de agência apenas desde a Revolução Industrial, mas o processo realmente tomou impulso na segunda metade do século XX. Os seres humanos se tornaram agentes geológicos muito recentemente na história humana.”4 Para Chakrabarty a razão “talvez não seja o único guia de nossas escolhas coletivas efetivas”, o que não significa a não-agência. O autor expõe que agência e intenção não estão obrigatoriamente conectadas, como se fosse um pré-requisito da ação a intencionalidade. O que o autor procura demonstrar é que mesmo sem o desejo, as ações 3 CRUTZEN, Paul J; STOERMER, Eugene F. O antropoceno. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, sem número, 06 nov. 2015. 4 CHAKRABARTY, Dipesh. “O clima da história: quatro teses”. Sopro, n. 91, p. 4-22, 2013, p.10-11. 14 humanas se refletem em mudanças ambientais capazes de deflagrar uma verdadeira crise ecológica. Intencional ou não, a ação antrópica se revela, atualmente, um agente geológico capaz de perturbar as condições ambientais “necessárias à nossa própria existência.” Por fim, Chakrabarty diz ter havido “uma rachadura no muro entre as histórias humana e natural”, a partir do momento em que “enquanto espécie, nos tornamos um agente geológico”.5 A história natural e a história humana não podem ser apartadas. Em edição dedicada às mudanças climáticas, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), citando o historiador ambiental e geógrafo histórico, o norte-americano Jason W. Moore, define Capitaloceno como o momento a partir do qual o capitalismo iniciou a atual “crise ecológica global que está nos levando a uma mudança de era geológica.” Ainda de acordo com a mesma publicação, o termo Ocidentaloceno, seria uma variação de Capitaloceno, variação esta cunhada pelo historiador francês Christophe Bonneuil, ao afirmar que “a responsabilidade pela mudança climática recai sobre as nações ocidentais industrializadas, não sobre os países mais pobres.”6 A antropóloga Astrid Ulloa atenta para o fato de que o conceito de Capitaloceno surge como uma crítica surge como uma crítica da noção de Antropoceno, ao considerar que a ação humana é sempre perpassada por relações políticas e econômicas de poder e desigualdades no contexto do capitalismo global. O Capitaloceno ressalta, portanto, como as valorizações econômicas capitalistas de apropriação da natureza e de territórios, e não apenas as ações humanas diretas, são a causa das transformações ambientais.7 Para a autora, o que está aqui é jogo é perceber as diferenças entre as sociedades e culturas em grau de participação nas modificações ambientais. Visão compartilhada por Andreas Malm, quando critica a ideia homogeneizadora de Antropoceno, compartilhada pelo que chama de “meio acadêmico ocidental e mídia”. De acordo com Malm, a narrativa do Antropoceno erra por perceber a espécie humana como “protagonista unificado” das alterações ecológicas, sem dar a devida dimensão às diferenças sociais, culturais e econômicas que influenciam diretamente numa maior ou menor capacidade transformadora.8 5 Idem, passim. 6 Glossário. In: O Correio da UNESCO, abril-junho 2018, p. 28-29. 7 ULLOA, Astrid. A era do ser humano. Vivemos no Capitaloceno?. Tradução: Soraia Vilela. Goethe- Institut Kolumbien, 2019. 8 MALM, Andreas. A perspectiva da Dominica: Antropoceno ou Capitaloceno? O Correio da UNESCO, abril-junho 2018, p. 23-25. 15 Ao que nos parece, o conceito de Antropoceno ainda é controverso, seja em virtude de uma delimitação temporal, seja por circunscrever numa mesma essência, toda uma variedade de culturas e espaços. A homogeneização deste antropos acabaria por não relevar a responsabilidade dos humanos ocidentais – e seu sistema socioeconômico capitalista – na “transgressão dos limites biogeofísicos”, e consequentemente como uma força geológica. E fora na tentativa de demarcar mais claramente o papel transformador da sociedade ocidental, que conceitos como Capitaloceno e Ocidentaloceno acabaram por surgir. Em momento oportuno, retornaremos ao tema Antropoceno.9 O que importa no momento reter é que a ação antrópica é capaz de afetar diretamente os processos ecológicos e consequentemente a distribuição geográfica dos seres vivos. E é tendo esta discussão como fundo que a proposta desta dissertação é procurar entender os canais utilizados nos envios de animais silvestres do Brasil Colônia para Portugal, abordando os agentes em ambos os lados do Atlântico que operacionalizavam as remessas, as espécies enviadas, a forma de captura e os caminhos que percorriam até o Reino. Por fim, pretendemos compreender os objetivos e as possíveis compensações em se remeter determinadas espécies à luz da ideia de prestação de serviços enquanto amálgama da relação entre a monarquia e seus vassalos. Para tal, é imprescindível o diálogo entre História, Biologia e Antropologia na tentativa de compreender por que homens a serviço da Coroa se mostravam tão empenhados em adentrar sertões pouco conhecidos para capturar e transportar desde frágeis colibris a ferozes onças. No que se refere às fontes, para esta pesquisa utilizamos dois tipos documentais, a saber: a comunicação administrativa entre colônia e metrópole, em que de alguma maneira haja referências a animais; e relatos sobre as Quintas Reais em Lisboa e seus viveiros produzidos por alguns viajantes ou diplomatas estrangeiros que ali estiveram em finais do século XVIII e início do XIX. Para este estudo levantamos 367 documentos, entre ofícios, cartas e relações, produzidas em sua grande maioria por agentes da administração nas capitanias brasileiras. Destes, 332 estão depositados no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), em Lisboa, Portugal. Dos 35 restantes, seis encontram-se no acervo da Biblioteca Nacional (BNRJ) e 29 no Arquivo Nacional (ANRJ), ambos na cidade do Rio de Janeiro. 9 ISSBERNER, Liz-Rejane & LÉNA, Philippe. Antropoceno: os desafios essenciais de um debate científico. O Correio da UNESCO, abril-junho 2018, p. 7-10 (p.8) 16 Em relação à metodologia utilizada, buscamos a compilação e a análise de fontes primárias em que fosse possível verificar referências a animais, dentro do recortetemporal desta pesquisa (1777 a 1808). O primeiro contato com as fontes foi através de pesquisa digital no sítio eletrônico do AHU – Arquivo Científico Tropical10, mais especificamente na aba “AHU: Fundos e Coleções”, selecionando em seguida o campo: AHU: Conselho Ultramarino. Neste ponto, ao selecionar “Brasil”, fomos remetidos a uma área de busca com catálogos individuais para cada capitania.11 Resolvemos iniciar a busca através de palavras-chaves como: animal (animais), pássaro(s), ave(s), bicho(s), quadrúpede(s); após o que passamos a buscar por termos mais específicos como: macaco(s), onça(s), fera(s), papagaio(s), periquitos(s), etc. No que toca aos documentos custodiados no ANRJ, foi necessária a pesquisa presencial, onde verificamos especialmente os documentos do fundo do Vice-Reinado. Por fim, os documentos arquivados na BNRJ também foram consultados via remota, através de busca no site da instituição, mais especificamente na seção de documentos manuscritos.12 A maior parte da documentação utilizada nesta pesquisa fora levantada anteriormente, quando da preparação de nosso trabalho monográfico apresentado para a obtenção do título de Licenciatura em História, nesta mesma Universidade Federal Fluminense. Na pesquisa iniciada ainda na graduação, abordamos tanto as remessas de espécimes para os viveiros reais, quanto aquelas de cunho eminentemente científico, porém com ênfase nas do primeiro tipo, e contemplando somente as capitanias da Bahia, Gão-Pará e Rio Negro. Para o atual estudo, resolvemos por manter a abordagem nas “remessas vivas” para as menageries régias da metrópole. Os envios de animais preparados ou seus subprodutos, quando aqui expostos, o serão sobretudo para efeitos de exemplificação das espécies remetidas, ou para referência aos agentes que operacionalizavam o transporte de exemplares da fauna americana. Sobre a delimitação espacial e temporal, esta pesquisa está centrada em parte do império português da época moderna, mais precisamente no Reino e nas possessões portuguesas na América durante o a maior parte do reinado de D. Maria I: iniciamos em 10 Disponível em: <https://actd.iict.pt/>. Acessso em: 23 jun. 2020. 11 Disponível em: <https://actd.iict.pt/collection/actd:CUF004>. Acesso em: 23 jun. 2020. 12 Disponível em: <https://www.bn.gov.br/producao/publicacoes/guia-colecoes-divisao-manuscritos- biblioteca-nacional>. Acesso em: 23 jun. 2020. https://actd.iict.pt/ https://actd.iict.pt/collection/actd:CUF004 https://www.bn.gov.br/producao/publicacoes/guia-colecoes-divisao-manuscritos-biblioteca-nacional https://www.bn.gov.br/producao/publicacoes/guia-colecoes-divisao-manuscritos-biblioteca-nacional 17 1777, com a ascensão da monarca ao trono, e finalizamos em 1808, com a chegada da família real ao Rio de Janeiro. Acerca do primeiro grupo de fontes, aqueles documentos que compunham a comunicação administrativa entre a Corte em Lisboa e as instâncias da governança na colônia, parte se encontra sob a tutela do Arquivo Histórico Ultramarino e está disponível para pesquisa online. Outro grupo de missivas refere-se à correspondência de vice-reis do Brasil com o Reino, presente no Arquivo Nacional no Rio de Janeiro. E por fim, utilizamos algumas correspondências internas a diferentes instâncias da administração colonial, e outras poucas que foram emitidas na Secretaria de Estado e da Marinha do Ultramar direcionadas aos governadores de capitanias ou vice-reis do Brasil, que estão depositadas na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. O segundo tipo documental que analisaremos corresponde a memórias e relatos produzidos entre as últimas décadas dos Setecentos e as primeiras da centúria seguinte, sobre os palácios reais lisboetas, mais particularmente sobre as coleções zoológicas régias nestes espaços. Grande parte destas descrições encontra-se disponível para consulta online. O corpus documental mais abundante nesta pesquisa evidentemente não permite preencher certas lacunas: como há um franco predomínio da produção escrita de homens orientados por uma visão ocidental da natureza circundante, não se conseguiu de forma satisfatória abordar as visões indígenas e africanas. Diferentemente dos homens brancos, tentou-se silenciar índios, mulheres, escravos, crianças e mesmo os animais por quase quatro séculos de domínio português nestas terras. Diferenças linguísticas, culturais, religiosas, estatutárias e biológicas não permitiram que suas vozes fossem ouvidas ou que seus feitos fossem devidamente registrados, mas não podemos negar que suas silenciosas agências contribuíram para a formação de um novo mundo que se forjara exatamente a partir da realidade colonial. As relações cotidianas entre animais humanos e não humanos acabam nos passando desapercebidas. A rotina de tal convivência chega mesmo a beirar a banalidade, o que talvez nos sirva como justificativa para uma certa escassez documental e historiográfica. Associe-se a isto, as próprias dificuldades em prescrutar nas fontes a agência animal, o que metodologicamente nos leva à inegável necessidade de buscar em outras disciplinas aporte para o desenvolvimento desta temática. De acordo com António H. de Oliveira Marques, para a escrita de uma história sobre animais, há que se “recorrer 18 a técnicas de investigação e a conhecimentos científicos a que a história normalmente não obriga e para os quais normalmente o historiador não se acha geralmente preparado”.13 Tendo em mente as dificuldades que se apresentam diante da temática escolhida, optamos por um maior diálogo entre história e antropologia (sobretudo etno e zooantropologia), zooarqueologia, zoogeografia, ecologia, entre outras. Acreditamos que a pesquisa em tela estaria inserida em um contexto que transita entre a história social, história ambiental e os Estudos sobre Animais (Animal Studies). Sobre a inserção deste estudo no campo maior da história ambiental14, compreendemos que as relações entre homens e animais são afetadas – e afetam – o ambiente natural. No que se relaciona aos Estudos sobre Animais, recorrermos ao aporte teórico- metodológico mais específico dos Human-Animal Studies (HAS) 15, por entendermos que o objeto desta pesquisa – toda uma cadeia de procedimentos que se iniciam com a captura do espécime, até a sua ambientação nos viveiros das Quintas Reais – reflete uma situação relacional que envolve múltiplas agências. Por mais que os homens e mulheres à época agissem diretamente nas remessas, o sucesso destas se deveu também aos animais. Vários são os exemplos do fracasso em se remeter determinada espécie, e há considerável número de relatos em que os administradores e governantes se desculpam pela fuga ou morte dos exemplares que seriam encaminhados à rainha. Quanto mais recuada no tempo se dá a interação interespecífica, maior será a necessidade de contribuições entre diferentes campos científicos na compreensão das dinâmicas que moviam estas relações. Importante frisar que quando se trata da convivência entre espécies são imprescindíveis as colaborações entre zoologia e história na busca por um maior conhecimento das interações entre homens e animais ao longo do tempo. As fontes administrativas ou narrativas talvez não deem conta por si só de indicar a importância que a presença dos animais teria para as sociedades humanas. De acordo 13 MARQUES, António H. de Oliveira. Introdução à história dos gatos em Portugal. In: TENGARRINHA, José (coord.). A historiografia portuguesa hoje. São Paulo: HUCITEC, 1999. (p. 46- 59), p. 46 14 Sobre esse tema recomendamos: WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, p. 198-215. Disponível em: http://www.nuredam.com.br/files/divulgacao/artigos/Para%20fazer%20hist%F3ria%20ambiental.pdf. Acesso em 28 jun 2021., p. 02. 15 Sobre esse tema ver: DEMELLO, Margo.Animals and Society: An Introduction to Human-Animal Studies. Nova York: Columbia University Press, 2021; HOSEY Geoff & MELFI, Vicky. Antrozoology: Human-Animal Interactions in Domesticated and Wild Animals. Oxford: Oxford University Press, 2019; MANNING, Aubrey & SERPELL, James (eds). Animals and human societey: Changing perspectives. Londres & Nova Iorque: Routledge, 1994. 19 com Dolores Carmen Morales Múñiz caberia frequentemente ao zoólogo proporcionar “informação complementar através da análise faunística que permitiria revelar aspectos relacionados à economia e cultura de uma população humana que jamais poderiam chegar a inferir-se com a mera consulta das fontes ‘tradicionais’”. 16 E é por este motivo que em alguns momentos recorreremos aos estudos de zoólogos, zoogeógrafos e ambientalistas. Por ser uma pesquisa em que se faz necessária por muitas vezes a identificação científica dos espécimes remetidos, procuramos utilizar a nomenclatura científica corrente, e quando pertinente, o nome popular tradicionalmente atribuído à espécie em questão. E para tal, usamos como referência bibliográfica para identificação dos exemplares guias de identificação científica de aves, mamíferos e répteis, além das produções do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) sobre a fauna brasileira e seu estado de conservação. Sobre as produções mais específicas acerca do tema tratado neste estudo, buscamos o diálogo sobretudo com os escritos de Nelson Papavero & Dante Teixeira e a tese de doutorado de José Alberto Pais sobre o colecionismo zoológico português ao longo do século XVIII. As pesquisas de Papavero & Teixeira, ainda que eminentemente descritivas, foram de valor informativo considerável. Já a dissertação de Pais se mostrou de grande auxílio no mapeamento das espécies remetidas a partir de cada Capitania, bem como no aporte às teorias sobre colecionismo. Considerando que a matéria desta dissertação não se deve concentrar tão somente na identificação das espécies animais que foram enviadas, propomos a abordagem sobre uma temática mais ampla, qual seja a do colecionismo zoológico. Para tal, pretendemos que este estudo seja estruturado em 4 capítulos. No capítulo 1 – Entre penas, bicos e garras: alguns apontamentos sobre o colecionismo zoológico – procuramos discorrer brevemente sobre os antecedentes do colecionismo zoológico e das relações homem-animais. Para tal, o capítulo conta com quatro seções, nas quais buscamos evidenciar o aporte teórico que permeia grande parte 16 “información complementaria a través del análisis faunístico que permite revelar aspectos relacionados con la economía y cultura de una población humana que jamás podrían llegar a inferirse con la mera consulta de las fuentes ‘tradicionales’”. MORALES MÚÑIZ, Dolores Carmen. Zoohistoria: reflexión acerca de una nueva disciplina auxiliar de la ciencia histórica. Espacio Tiempo y Forma. Serie III, Historia Medieval, [S.l.], n. 4, ene. 1991. ISSN 2340-1362. Disponible en: <http://revistas.uned.es/index.php/ETFIII/article/view/3522>. Fecha de acceso: 21 mar. 2021 doi:https://doi.org/10.5944/etfiii.4.1991.3522. p. 368-9 20 deste estudo: teorias que nos permitem compreender as diferentes formas de relação estabelecidas entre homens e animais ao longo do tempo. Por acreditarmos que o colecionismo zoológico – tanto de espécimes vivas quanto de mortas ou de seus subprodutos – configura-se em uma das muitas formas que os homens procuraram dispor da existência dos animais não humanos, neste capítulo buscaremos analisar brevemente como os ajuntamentos faunísticos se estabeleceram nos distintas épocas e espaços. Já em tempos imemoriais, homens e mulheres procuraram ter junto a si alguns animais, fossem para a satisfação das necessidades materiais mais imediatas, fosse para o lazer e contemplação, para a ostentação de poder ou simplesmente para aplacar a solidão. Optamos por diferenciar, entretanto sem necessariamente contrapor, coleções zoológicas vivas das “mortas”, representadas, principalmente, por gabinetes de curiosidades e/ou científicos. Sobre o primeiro tipo de ajuntamento, procuramos abordar coleções faunísticas que iam desde os serralhos (recintos para as feras) até a concepção de uma ménagerie à semelhança de um "jardim zoológico" régio. Já no que se relaciona aos acervos da fauna morta, iniciamos com os gabinetes de curiosidades que paulatinamente foram cedendo espaço aos gabinetes de cunho científico e museus de história natural. À terceira seção deste que é o primeiro capítulo procuramos dar ênfase à relação homens-animais caracterizada como domesticação – ou melhor, domesticações. Procuramos demonstrar que a maior aproximação entre humanos e animais favoreceu ao estabelecimento de diferentes tipos de domesticação, tipos estes em que algumas das vezes relegou-se ao homem o papel de “domesticado”. E este convívio mais estreito entre as espécies gerou diferentes formas – ou diferentes graus – de adestramento, diferenças estas que se deram por questões culturais, mas também em virtude de certa agência animal. Na última seção do primeiro capítulo buscamos compreender que as alterações percebidas ao final do século XVIII nas formas de ajuntamento dos animais em muito se devem a novas concepções acerca do papel que esses animais – também o homem – desempenhavam na Criação, levando a mudanças nas sensibilidades de tal forma que, consequentemente, os bichos exóticos passam a ser também tratados como “pets” (sobretudo os animais de “câmara”). O capítulo 2 – Colecionismo zoológico e a Sociedade de Corte – é dedicado a estabelecer um nexo entre o colecionismo zoológico e a sociabilidade cortesã. Neste 21 ponto, dividimos o capítulo em cinco seções. Na primeira buscamos desenvolver um preâmbulo sobre o colecionismo de espécimes faunísticos vivos e a curialização da nobreza, usando como exemplo a edificação da ménagerie de Luís XIV em Versalhes. À seção subsequente tratamos dos Viveiros das Quintas Reais portuguesas enquanto espaços de sociabilidade humana, e se foram estas coleções cópias das menageries francesas. No próximo segmento observamos como as trocas de animais acionaram diferentes circuitos extra-imperiais, sobretudo quando pensadas a partir de modelos de presentes diplomáticos. Já o tópico que se segue, é relativo aos diferentes objetivos de se enviar exemplares da fauna colonial para a metrópole, buscando, em particular evidenciar os diálogos entre o colecionismo exibicionista e o de cunho científico. Por fim, este capítulo conta com uma última seção, sobre o envio de animais inserido na lógica de prestação de serviços à Coroa. O capítulo 3 – Fatores determinantes nas remessas – está diretamente relacionado à face colonial que envolvia o colecionismo zoológico, ou seja, nesta parte tratamos dos fatores determinantes para o sucesso – ou o fracasso – do transporte de exemplares da fauna colonial para o Reino. O capítulo conta com cinco seções em que pretendemos abordar os agentes que operacionalizavam os envios; as diligências nas diversas capitanias da América portuguesa; as condições em que se dava o transporte; a interiorização territorial em busca dos animais e o uso das fontes históricas como aporte nos estudos de biogeografia. E é ao longo deste capítulo que aproveitaremos para abordar mais detidamente a comunicação administrativa trocada entre o reino e sua principal colônia, relacionando-a aos tópicos propostos. Em momentos oportunos ao longo desta dissertação fizemos referências de forma mais detalhada a uma ou outra remessa. Ainda que nosso foco não seja uma quantificação dos espécimes remetidos no período em tela, importa citar que as fontes nos permitiram verificar o envio de 5.501 exemplares entre 1777 e 1808.17 Na seção dos apêndices é possível acompanhar através de tabelas a identificação,quando possível, destes indivíduos. 17 Dos 5.501 espécimes, identificamos 4.963 aves (90,2%), 500 mamíferos (9,1%), 35 répteis (0,6%) e três exemplares não tiveram sua classe definida. 22 CAPÍTULO 1 – ENTRE PENAS, BICOS E GARRAS: ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O COLECIONISMO ZOOLÓGICO Os ajuntamentos faunísticos se deram de diversas formas ao longo do tempo. A manutenção de agrupamentos animais pelos homens se deveu tanto às necessidades materiais (alimentação, vestimenta, tração), quanto à segurança, companhia, lazer, ciência. Para esta pesquisa, as formas de manutenção de espécimes zoológicas que serão contempladas são aquelas relacionadas mais estritamente ao conceito de colecionismo: em primeiro lugar as coleções zoológicas vivas, e em segundo, os acervos de colecionadores da época moderna em que se reuniam animais mortos ou seus subprodutos, acervos estes que variaram em seu propósito entre os séculos XV e XIX. Outras formas de manutenção zoológicas serão brevemente abordadas, tanto a título de comparação, quanto de sistematização dentro de um colecionismo zoológico mais abrangente. Para tal, iniciaremos este capítulo com uma breve contextualização acerca do colecionismo zoológico apoiando-nos também em teorias colecionistas de cunho mais abrangente. Por compreendermos que o colecionismo zoológico se insere num tema mais amplo que seja o das relações interespecíficas humanos e não-humanos – relações estas que são cultural, geográfica e historicamente diversas – este capítulo contará ainda com duas seções dedicadas ao(s) processo(s) de domesticação de animais e à análise de uma possível mudança nas sensibilidades para com nossos irmãos de patas e penas que parece se iniciar nas cortes ibéricas a partir da segunda metade do século XVIII. 1.1. O que é uma coleção? É, portanto, possível circunscrever a instituição de que nos ocupamos: uma colecção, isto é, qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local fechado preparado para esse fim, e expostos ao olhar do público.18 18 POMIAN, Krzysztof. Coleção. In: Enciclopédia Einaudi, vol I, Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984. p. 51-86., p. 53 23 Se olharmos para objetos que nos cercam quotidianamente em nossas residências ou ambientes de trabalho, será que conseguimos definir a função ou mesmo utilidade de todos eles? Pensando em um escritório, por exemplo, podemos rapidamente delimitar a funcionalidade de um computador, de um relógio de parede, de canetas e papéis, mas o que dizer do porta-retrato sobre a mesa, o jarro de flores ou um troféu? Qual a função destes objetos? Ou melhor, qual o motivo de tais peças estarem ali dividindo espaço com “ferramentas de trabalho”? Para tentarmos algum tipo de resposta a essas questões será necessário compreender o que move homens e mulheres a juntar, atesourar ou colecionar. Juntar objetos parece ter sido um hábito humano bastante antigo. Desde imemoriáveis eras, a espécie humana reuniu pequenos objetos ou fragmentos naturais. Estes testemunhos da natureza circundante puderam posteriormente ser separados em objetos com utilidade direta – fundamentais na caça, por exemplo – ou aqueles que desempenharam papel mais subjetivo, como os que se destinaram a adornos ou amuletos protetores.19 O filósofo e historiador polonês, Krzysztof Pomian, apontou para o fato de que desde o início, a humanidade era produtora de coisas as quais rapidamente passaram a ser utilizadas na fabricação de ferramentas. Entretanto a separação entre itens úteis e itens não funcionais parece ter se iniciado no Paleolítico Superior (entre 30.000 e 10.000 anos a.C.). Os itens não funcionais seriam enquadrados, segundo Pomian, na categoria de objetos, visto terem sido a estes incorporados determinado valor cultural, ou seja, semióforos.20 Ainda sobre a diferenciação entre coisa e objeto, o museólogo tcheco Zbyněk Zbyslav Stránský destacou que o termo objeto está em oposição a um sujeito, sendo aí também incluídos entes não palpáveis, a exemplo das ideias. Já as coisas estão estritamente ligadas a elementos com materialidade. 21 A categoria de semióforos, portanto, descreve aqueles objetos “sem utilidade (...), mas que representam o invisível, são dotados de um significado; não sendo manipulados, mas expostos ao olhar, não sofrem usura.”22 O que torna uma coisa um objeto? Segundo Pomian e Stránský é a relação estabelecida com o item. Para os autores tanto coisas quanto objetos são “juntáveis”, mas 19 STAGGEMEIER, C., et al. Os adornos prehistóricos. Educaçao e Ciência na Era Digital, SEPE – XV Simpósio de Ensino Pesquisa e Extensão. 2011., p. 2 20 POMIAN, K., op. cit., p. 71 21 STRÁNSKÝ, Zbyněk Zbyslav. Object – Document. Or do we know what we are actually collecting? In: Symposium Object – Document? ICOFOM Study Series 23, pp. 47–51, Beijing, China, 1994. Disponível em: http://docplayer.fr/6585949-Symposium-object-document.html. Acesso em: 11 mar 2021. 22 POMIAN, K., op. cit., p. 71. http://docplayer.fr/6585949-Symposium-object-document.html 24 a relação que se estabelece com o objeto, relação esta de não funcionalidade, é o que justifica seu agrupamento sob uma forma específica, que seria a coleção. Os motivos de se colecionar objetos são vários e vão desde prestígio, gosto pessoal, curiosidades intelectuais, riqueza, entre outros. Entretanto, é importante ressaltar que essa categorização de objetos que acaba por representar uma coleção não se aplica a todas as culturas em todos os tempos, mas será o conceito aqui utilizado, visto que este trabalho trata de um tipo específico de ajuntamento: coleções zoológicas, sobretudo as vivas, em pleno Antigo Regime Português. Quando pensamos em coleções de objetos de luxo, é natural que nos venham à mente os acervos mantidos por nobres e membros das elites (políticas e econômicas). São as grandes coleções de reis e rainhas, aquelas que relegaram provas da cultura material de tempos antigos. Ainda que num primeiro momento as coleções do tipo “principescas” fossem um apanhado de objetos com algum tipo de utilidade, mas não monetarizados enquanto em uso, dependendo da necessidade se poderia recorrer a venda de parte deste acervo como forma de angariar fundos. Portanto, os tesouros principescos poderiam estar ou não fora dos circuitos de atividades econômicas.23 A função última dos objetos de uma coleção seria a intermediação entre o visível (espectador) e um mundo invisível, que a depender do tipo de coleção pode ser o mundo dos mitos, dos contos, das histórias, e mesmo da natureza. Na próxima seção trataremos mais especificamente dos objetos que são o foco deste capítulo: “os animais de coleção”. O que importa reter, por hora, desta breve introdução à teoria colecionista é o fato de que os itens uma vez agrupados sob pretextos como prestígio, ostentação, lazer, gosto pessoal, etc, determinam uma categoria diferenciada aos animais em exposição nos viveiros e/ou gabinetes de curiosidades e científicos. E se nos for permitido gerar um conceito para este tipo de ser, escolhemos trabalhar com “animais de ménagerie”, por compreendermos que essa categoria estaria a meio caminho dos ditos selvagens, mas com sua original ferocidade contida, o que nem por isso os tornaria domésticos. Entretanto, antes de nos adentrarmos às discussões sobre processos de domesticação e a condição do animal de cativeiro, pretendemos contextualizar de que forma se apresentaram as coleções zoológicas, em especial as europeias modernas. 23 POMIAN, K. op. cit., p. 61. 25 1.2 Uma breve história do colecionismo zoológico 1.2.1 Na (quase) cova dos leões – as coleções de animais vivos. Ajuntamentos de animais instituídos pelo homempuderam ser verificados já em longínquas eras, e há muito que os humanos agruparam animais cuja função não estivera relacionada à subsistência, ou seja, não dizia respeito a alimentação, vestuário e tração. Estamos diante de coleções zoológicas vivas nas quais o acervo era composto por espécies das mais variadas possíveis, espécies que perderam sua função original e ganham um novo significado. O grupo de animais aqui em tela deixa de ser coisa e passa a ser semióforo. E ainda que o colecionismo zoológico tivera variações na longa duração, em grande parte acabou preservando certas características em geral relacionadas à demonstração de poder. Já no Antigo Egito animais – domésticos ou não – eram mantidos em cativeiro para a celebração de ritos em que serpentes, gatos, águias, entre outros, representavam algumas das divindades egípcias. À época dos faraós, mais especificamente nos tempos da rainha Hatshepsut (1479-1457 a.C.), fora criado o primeiro jardim para aclimatação de plantas e animais provenientes do reino de Punt. As relações políticas e comerciais estabelecidas entre os reinos possibilitou a chegada ao Egito de produtos como ouro, ébano, mirra, perfumes, animais e seus subprodutos, notadamente o marfim e as plumas. Outro exemplo de colecionismo zoológico longínquo diz respeito aos animais reunidos em palácios da China Imperial. Por quase dois mil anos, as sucessivas dinastias chinesas reservaram em seus jardins e aposentos espaços para as mais diversas espécies procedentes de seus domínios ou presentes diplomáticos. Desde a Antiguidade nas grandes propriedades coexistiram aviários, lagos de peixes, currais e mesmo jaulas de feras. No que se relaciona ao Ocidente, foram os romanos os responsáveis por deixar marcas mais profundas nas relações entre homens e animais selvagens e/ou exóticos. De acordo com Carlos G.-C. Jiménez, em Roma verificou-se a manutenção de aviários e lagoas que serviam tanto a questões dietéticas quanto ao embelezamento.24 Entretanto, o que nos importa aqui é a relação estabelecida com as grandes feras, visto que esse tipo de coleção encontrará ao longo da época medieval e em parte da modernidade adeptos que incentivaram em grande medida seu ressurgimento – ou ao menos, sua releitura. 24 JIMÉNEZ, Carlos Gómez-Centurión. De leoneras, ménageries y casas de fieras. Alguns apuntes sobre el coleccionismo zoológico en la Edad Moderna. In: GARCÍA, Arturo Morgado & MORENO, José Joaquín (eds). Los animales en la historia y en la cultura. Cádiz: UCA, 2011. P. 154 26 Importa salientar que a República de Roma teve um papel privilegiado no colecionismo de grandes animais, quando a partir do século III a.C. começaram a chegar ao Lácio espécies como elefantes, leões, tigres, girafas, etc, oriundos de terras conquistadas. Já no Império, os combates entre feras e gladiadores necessitava de um constante aporte destes animais à capital. Para deleite da plateia afeita a tão cruel diversão não foram poupados esforços na obtenção dos melhores exemplares que aportavam ao Coliseu, fornecidos por criadores especializados ou por coleções sustentadas pelos próprios imperadores. Segundo Jiménez, a captura destas feras “por todos os confins do Império” levou ao despovoamento de grandes áreas no norte da África e do Oriente Próximo.25 Mas não só a remessa de feras movimentava os circuitos comerciais que envolviam animais. Também as aves de gaiola encantaram homens e mulheres na Antiguidade, fosse por suas belas plumas, fosse por suas harmoniosas cantorias. Nas casas egípcias, gregas e romanas, a presença de viveiros com aves ornamentais era constante, assim como nos lares imperiais chineses e japoneses. 26 No Oriente, parece ter prevalecido um caráter mais lúdico das coleções zoológicas vivas. De acordo com Dolores Camem Morales Muñiz, as batalhas entre grandes animais não encontraram muitos adeptos, e o aprisionamento de animais tomava como base o exibicionismo. Era prática comum a utilização de animais em desfiles e passeios que visavam evidenciar o luxo e ostentar o poder de grandes nobres.27 Com a queda de Roma, e o arrefecimento do comércio de longa distância em função das migrações dos povos bárbaros, houve a diminuição da chegada de animais exóticos à Europa. Entretanto, após a primeira leva de invasões e a posterior fixação dessas populações, observou-se uma retomada, ainda que tímida, do colecionismo zoológico nos moldes romanos. Tomemos como exemplo as coleções de Carlos Magno, que no século VIII chegou a possuir elefantes, macacos, leões, ursos, camelos, falcões e muitas aves exóticas, em três distintos ajuntamentos. Muitos destes animais foram presenteados a Carlos Magno por soberanos do norte da África e da Ásia, a exemplo do elefante asiático (Elephas maximus) nomeado Abul-Abbas. O paquiderme em questão fora uma oferta do então califa de Bagdá, e permaneceu sob a posse do rei dos francos por 10 anos. 25 Idem, p. 156 26 SERPELL, James A. Companion animals. In: HOSEY Geoff & MELFI, Vicky. Antrozoology: Human- Animal Interactions in Domesticated and Wild Animals. Oxford: Oxford University Press, 2019., p. 18. 27 MORALES MUÑIZ, Dolores Camem. La fauna exótica en la Península Ibérica: apuntes para el estúdio del coleccionismo animal en el Medievo hispânico. Espacio, Tiempo y Forma, Serie III, Hª Medieval, t 13, 2000, págs. 233-270., p. 237. 27 Outras coleções medievais que merecem destaque foram as de Frederico II Hohenstaufen (1194-1250)28, Henrique III de Inglaterra (1207-1272)29, cuja coleção encontrava-se na Torre de Londres, e Renato I de Nápoles (1409-1480)30. Ainda de acordo com Jiménez, o hábito de colecionar animais exóticos ou selvagens “permaneceu também arraigado ao longo da Idade Média nas grandes fundações monásticas, nos castelos senhoriais ou nos orgulhosos burgos independentes.”31 É interessante notar que de comum aos exemplos supracitados seria o apreço por espécies exóticas, sobretudo os leões. Este grande felino acabou perdendo seu status de curiosidade ou maravilha estrangeira na mentalidade de homens e mulheres da Europa medieval. E é essa incorporação de uma fauna distante à mentalidade e simbolismos medievais que nos ajudam a explicar a presença de animais como os leões na heráldica de muitas Grandes Casas.32 Os contatos estabelecidos com nações e povos distantes – relações que poderiam ser comerciais, diplomáticas, ou mesmo bélicas – favoreceram a chegada de diferentes espécies à Europa, e isso, como já visto, desde tempos mais remotos. Grande importância para o aprovisionamento de animais exóticos tiveram as Cruzadas, e podemos citar como exemplo o elefante trazido por Luis IX de França (1214-1270) e ofertado a Henrique III de Inglaterra. Mesmo experimentando um período de queda na importação de espécimes extra-europeias, durante a Idade Média não deixaram de chegar aos castelos dos grandes senhores animais como leões, aves rapineiras, ursos e lobos, sendo que os dois últimos geralmente eram exemplares autóctones, ainda que pouco vistos (tal como o urso polar enviado da Noruega para a Torre de Londres em meados do século XIII). Não obstante os anos de diminuição do aporte de animais exóticos às grandes coleções nobres e eclesiásticas, a Europa voltaria a experimentar o incremento deste tipo de ajuntamento muito em função do ativo comércio via Mediterrâneo. Durante o Renascimento, as relações comerciais estabelecidas entre as cidades-Estado italianas com o Oriente, e o consequente enriquecimento, possibilitaram que a aristocracia organizasse coleções de animais exóticos em suas residências, com destaque para a família Médici de 28 Rei da Sicília de 1198 a 1250, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico de 1220 a 1250, além de Rei de Jerusalém de 1225 a 1228. 29 Henrique III reinou na Inglaterra de 1216 a 1272 30 Renato I de Nápoles, governou de 1434a 1442, e foi também duque de Anjou, Conde de Provença, Duque de Bar, Duque de Lorena, titular como Rei de Jerusalém (1438-1480) e de Aragão (1466-1480). 31 “permaneció también arraigada a lo largo de la Edad Media em las grandes fundaciones monásticas, los castillos señoriales o los orgullosos burgos independientes.” JIMÉNEZ, C., 2011, op. cit., p. 155-6. (tradução nossa). 32 BUQUET, Thierry. Les animaux exotiques dans les ménageries médiévales. In: TOUSSAINT, Jacques. Fabuleuses histoires des bêtes et des hommes. Trema - Société archéologique de Namur, pp.97-121, 2013., p. 99. 28 Florença, que no século XV mantinha grades animais, e em especial as feras, em cativeiro em seus serragli. Tal acervo, à semelhança dos artefatos preciosos e antiguidades, eram considerados objetos de luxo, e por isso mesmo, reafirmavam a distinção natural da nobreza. O serraglio (plural serragli) correspondia ao espaço destinado à manutenção de grandes predadores e de algumas presas. Concepção adotada em finais do século XIV, este tipo de coleção abrigava “animais destinados às práticas de combate à moda romana, porém em uma escala mais reduzida, pelas cortes europeias.”33 Este tipo de agrupamento zoológico vivo será mais bem analisado no Capítulo 2, entretanto o que por hora nos interessa reter é a união entre a ferocidade dos animais ali mantidos e a ideia de domínio pela força, que seus proprietários buscavam externar. E sobre isso, diz-nos Eric Baratay que o gosto pelo serraglio ressurgiu em fins do século XIV quando a aristocracia adota práticas exclusivas para se definir, e aqui mais especificamente o gosto pelo exotismo e a importação de animais.34 E seria exatamente a procedência destes bichos que diferenciaria o status de seus proprietários, ou seja, o custo para adquirir e manter aqueles provenientes de paragens mais distantes acabaria os restringindo aos serragli dos grandes nobres, enquanto a pequena nobreza teria que se contentar com a criação da fauna nativa. Dito isto, dentro do grupo das feras, os grandes felinos encontravam forte apelo junto à aristocracia. Já na Antiguidade, sua posse representava força e poder, ideais que persistiram durante o medievo, quando reis e grandes senhores procuravam ter a seu lado leões, linces e tigres. Por não encontrarem adversários à altura na natureza, os grandes felinos eram vistos como os dominadores – ou governantes – das outras espécies, e por este motivo, simbolizavam “de uma forma tão evidente a supremacia do poder régio e os valores guerreiros que distinguiam o estamento nobiliárquico.”35 Lembremos da heráldica europeia medieval em que os leões recorrentemente figuravam em brasões de armas, herança que pode ser verificada atualmente no brasão ainda usado pelo Governo do Reino Unido. Não só os grandes felinos simbolizavam o poder dos soberanos. Elefantes, rinocerontes e girafas não eram definitivamente animais acessíveis a qualquer colecionador. Já em finais do século XIV, mas principalmente a partir dos Quinhentos, 33 BARATAY, Éric. Le zoo: lieu politique, XVIe-XXe siècles. In: BACOT, P.; BARATAY, E. et al. (dir.). L''Animal en politique. L'Harmattan, 2003, p. 15-36., p. 17 34 Idem. 35 “simbolizaban de una forma tan evidente la supremacía del poder regio y los valores guerreros que distinguían al estamento nobiliario.” JIMÉNEZ, Carlos Gómez-Centurión. Curiosidades vivas: los animales de América y Filipinas en la Ménagerie real durante el siglo XVIII. In: Anuario de Estudios Americanos, 66, 2, Sevilha (Espanha), 2009. p. 181-211. p. 190 (tradução nossa). 29 com as grandes viagens atlânticas, uma certa animália feroz ou “monstruosa” vem a aportar na Europa. E nesse ponto, Portugal teve papel de destaque. Almudena P. Tudela e Annemarie J. Gschwend afirmam que nenhuma outra corte renascentista foi tão afetada pelos Descobrimentos quanto Portugal. Os animais exóticos configuraram-se nas primeiras raridades enviadas da Índia para Portugal. Ao estabelecer contatos com novos territórios em África, Ásia e América, os portugueses passaram a conviver com o estranho, o maravilhoso e o exótico em seu quotidiano.36 Caso emblemático e que não poderia deixar de ser citado refere-se ao envio de um elefante branco, chamado Hanno, oferecido por D. Manuel de Portugal ao Papa Leão X. O paquiderme, presente digno de um rei ou papa, viajou acompanhado de seu tratador mahout, e em 1514 chegou a Roma em grande embaixada. Acredita-se que o próprio D. Manuel recebera o animal como um presente diplomático do rei de Cochim. Também do outro lado da fronteira, a corte habsburguesa soube aproveitar os contatos privilegiados que se iniciaram com a conquista do Novo Mundo, a exemplo da experiência colecionista do imperador Montezuma em Tenochtitlán. Foram os Habsburgo a dinastia mais poderosa da Europa no raiar da modernidade, configurando-se também nos principais colecionistas de então. A Casa de Áustria soube como nenhuma outra acionar seus contatos familiares entre suas diversas cortes (Madri, Lisboa, Bruxelas, Viena, Praga, Innsbruck) para o aprovisionamento frequente de seus viveiros e gabinetes de curiosidades. Estudioso das relações entre homens e animais, Keith Thomas diz ter sido a caça desempenhada por nobres um dos principais motivos para se estabelecer normas de conservação dos animais na Inglaterra da época Moderna. Segundo o autor, algumas espécies já receberam o status de protegidas em virtude de se relacionarem a status e prestígio, como os bois brancos selvagens de alguns parques privados no século XVI e os cisnes “preservados por sua beleza” em Abbotsbury, Dorset, desde os tempos medievais. Não era qualquer cidadão que poderia possuir os belos cisnes, sendo sua criação marca de distinção social e controlada pela Coroa.37 Thomas ainda informa que os animais exóticos sempre foram alvo de estima como presentes dignos de reis e governantes, e desde ao menos o século XII, que a casa Plantageneta se dedicou à manutenção de leões, 36 TUDELA, Almudena Pérez & GSCHWEND, Annemarie Jordan. Renaissance Menageries: Exotic Animals and Pets at the Habsburg Courts in Iberia and Central Europe. In: ENNEKEL, Karl A. E. & SMITH, Mark. S. (eds), Early Modern Zoology: The Construction of Animals in Science, Literature and the Visual Arts, vol 1. Leiden: Brill, 2007, p. 418-447. p. 421 37 THOMAS, Keith, O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e aos animais (1500-1800). Tradução: João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 390 30 leopardos e outros animais ferozes – o brasão mesmo da dinastia Angevina era composto por três leões. Coube a Henrique III a construção do abrigo das feras na Torre de Londres, abrigo este que durou até 1834. Talvez a Torre de Londres seja o mais bem acabado exemplo do colecionismo zoológico vivo praticado pelas casas reais europeias, exatamente porque em virtude de sua longevidade: por aproximadamente 600 anos, suas paredes e grades encerraram uma gama incontável de feras ou animais exóticos. A ménagerie instalada na Torre, permite- nos traçar a evolução deste tipo de coleção, pois seu início se deu como uma casa de feras, passando pela concepção de abrigo de animais exóticos, cristalizando-se, posteriormente como um símbolo da conquista colonial inglesa. Avancemos um pouco. Com o raiar da Modernidade, a fase que ficou conhecida como Época dos Descobrimentos, descortinou também um novo mundo de patas e penas, e assim o colecionismo zoológico privado atingiu patamares até então não vistos no continente europeu. O já citado Keith Thomas atesta que na Inglaterra elizabetana, as coleções de aves multicolores tornaram-se “traço padrão de todo jardim aristocrático, havendo muitos vendedores especializados em espécies exóticas”, sem falar nos aristocratas hanoverianos que possuíam coleções de animais rarose exuberantes.38 Os animais exóticos vivos se configuravam como produtos altamente demandados, e por isso atingiram elevados preços nas principais praças europeias modernas. O frisson despertado por espécimes da fauna americana no século XVI nas principais casas do Velho Continente pode ser comparado ao interesse por produtos como as especiarias, o açúcar, pedras e metais preciosos. Prioritariamente ofertado a crianças mais velhas, a posse destes animais se espalha pela Europa nos séculos XVII e especialmente no XVIII, quando aristocracia e alta burguesia passam a acessar tais espécies com maior frequência em virtude da queda relativa dos preços de importação. E este é o principal motivo pelo qual papagaios e macacos se tornaram os animais de estimação dos mais ricos nas grandes cidades.39 Já no que se relaciona ao império inglês, tanto Nigel Rothfels quanto Keith Thomas compreendem que as ménageries simbolizavam riqueza, status e dominação colonial, e que especificamente esta última perspectiva se tornaria mais visível ao longo do século XIX. 40 38 Idem, p. 391 39 BARATAY, É., op. cit., p. 30. 40 ROTHFELS, Nigel. Savages and beasts: the birth of the modern zoo. Baltimore & Londres: The Johns Hopkins University Press, 2002, p.21 31 Entre o fim do século XVII e por todos o XVIII, a forma de agrupamento de animais que prevaleceu foram as ménageries, ou os viveiros de animais exóticos.41 Importa por hora reter que este tipo de coleção serviu a abrigar preferencialmente animais exóticos, mas já nem tão ferozes, visto que em muitas situações se privilegiou a manutenção de espécies amansados – os animais de ménagerie. Símbolo de status e poder, essa forma de juntar animais seria o ideal a ser seguido pela nobreza europeia a partir de sua instalação no Palácio de Versalhes, durante o reinado de Luis XIV (1643-1715), e só começaria a perder terreno para os jardins zoológicos no início dos Oitocentos. Para Jiménez, a arquitetura dos recintos dos viveiros régios era uma tentativa de demonstrar o domínio humano sobre a natureza, onde os animais eram expostos hierarquicamente de acordo com as categorizações científicas mais recentes, semelhante a um livro de história natural. A ménagerie moderna, e mesmo aquela da segunda metade do século XVIII funcionaria como um gabinete de curiosidades vivas.42 Os zoológicos do século XIX se diferenciam das ménageries da centúria anterior fundamentalmente por seu estatuto (nacional, municipal ou privado), seu público (moradores das cidades e não da corte) e seu registro na paisagem (não mais restritos aos palácios). Entretanto, o exotismo de seu acervo é uma herança considerável dos ajuntamentos faunísticos anteriores.43 A principal motivação para a criação dos jardins zoológicos fora sem dúvida a “ambição científica” que verdadeiramente toma corpo em finais do século XVIII e se firma no Oitocentos. Nas derradeiras décadas dos Setecentos, boa parte dos naturalistas franceses tecera duras críticas às ménageries ao afirmarem que estes estabelecimentos se orientavam mais a expor os animais do que conferir-lhes alguma utilidade, além de serem inapropriadas para o estudo do comportamento animal. Nasce, assim, o colecionismo inventariante da natureza ou de aclimatação de espécies exóticas. Se há uma característica que parece persistir desde os serralhos tardo-medievais até os primeiros jardins zoológicos do século XIX é o apelo à raridade e exotismo dos animais, ainda que a perspectiva tenha se modificado: para os serralhos o exotismo associava-se à violência das feras capturadas, passando posteriormente aos animais de paragens distantes que compunham as ménageries modernas e simbolizavam o poder do monarca sob as diversas gentes e terras e finalmente chegaram aos primeiros zoológicos 41 A formação deste tipo de estabelecimento será mais bem analisada no capítulo 2. 42 JIMÉNEZ, C., 2011, op. cit., p. 167-8 43 BARATAY, Éric. Le frisson sauvage: les zoos comme mise en scène de la curiosité. In: BANCEL, N. et al. (dir.), Zoos humains. Paris: La Découverte, 31-37. 32 contemporâneos que serviam de vitrine da natureza selvagem. A título de complementação, em relação aos zoológicos contemporâneos – tema que foge ao escopo desta pesquisa – o principal motivo para sua fundação teria sido a ambição científica, o que é ressaltado por Éric Baratay quando alega terem sido os naturalistas franceses pós- Revolução de 1789, os inauguradores deste tipo de ajuntamento faunístico.44 Ao fim e ao cabo, as coleções se definem menos por seu repertório de objetos, e sim pela relação estabelecida entre aqueles itens e quem os agrupa. E é nesse sentido que devemos ter em mente a forma como as coleções faunísticas se forjaram: símbolo de status e poder, fosse seu acervo vivo ou morto. 1.2.2. De chifres de unicórnios a tamanduás empalhados – o colecionismo zoológico de curiosidades e científico. Nem todas as coleções zoológicas são ruidosas, nas quais os diferentes sons da natureza parecem ali se encontrar, ainda que modulados pela nova condição em que se encontra o animal em cativeiro. Em alguns ajuntamentos reinou o silêncio de urros, cantos, rugidos... só vozes humanas foram ouvidas. Estamos falando dos gabinetes, antes de curiosidades ou maravilhas, e depois científicos. O colecionismo zoológico de animais mortos – ou partes deste – também ocorria já há bastante tempo. Não obstante, para o tema da pesquisa em tela, importa compreender os acervos deste tipo que tiveram ocorrência na Europa do período tardo-medieval até inícios do século XIX. No grego antigo ou no latim, curiosidade tinha a conotação de interesse inapropriado por algo, e este conceito negativo atravessou toda a Idade Média, chegando mesmo a ser associado à luxúria e orgulho. A ideia negativa que circundava o termo só começa a mudar ao início da modernidade, quando curiosidade passa a ser associada ao maravilhoso, ideia essa que acaba por moldar o colecionismo experimentado nos séculos XVI e XVII. Já ao longo dos Setecentos, o termo passa a ser identificado cada vez mais à vulgaridade, já que a especialização das coleções levou à correlação deste acervo com a ideia de utilidade, relegando a curiosidade a cultura popular ou mesmo ao colecionismo amador. 44 Sobre esse assunto ver: BARATAY, Éric. Le frisson sauvage: les zoos comme mise en scène de la curiosité. In: BANCEL, N. et al. (dir.). Zoos humains. Paris: La Découverte, 2002, p. 31-37; BARATAY, Éric. Le zoo, lieu politique, XVIe-XXe siècles. In: BACOT, Paul et al., L’animal en politique. Paris: L’Harmattan, 2003, p. 15-36; KISLING, Vernon N. Zoo and Aquarium History: Ancient Animal Collections to Zoological Gardens. Boca Raton: CRC Press, 2001; ROTHFELS, Nigel. Savages and Beasts: The Birth of the Modern Zoo. Baltimore & Londres: The Johns Hopkins University Press, 2002. 33 De acordo com Pomian, é na segunda metade do século XIV que a Europa ocidental vê surgir um novo ímpeto colecionista, com preocupações em relação ao passado, à geografia e à natureza. Novos semióforos surgem, ou melhor, novas categorias de peças tornam-se semióforos: as antiguidades, produtos exóticos, obras de arte e os instrumentos científicos (a partir do século XVII). E fora a curiosidade dos primeiros tempos modernos, curiosidade esta associada ao colecionismo e ao fazer científico, que alavancou o consumismo e consequente comércio de artigos de luxo.45 E no que diz respeito ao estudo aqui desenvolvido, a categoria que merece ênfase é aquela referente aos produtos oriundos de paragens distantes, ou exóticos. Grupo de semióforos que ganha destaque a partir do século XV são aqueles angariados nas viagens: “tecidos, ourivesarias, porcelanas, fatos de plumas, ‘ídolos’, ‘fetiches’, exemplares da flora e da fauna, conchas, pedras que afluem assim aos gabinetes dos príncipes e aos dos sábios.”46Estes objetos configuram-se em semióforos em virtude do significado que assumem ao chegar a Europa, quando se tornam representantes do invisível, do exotismo de países, sociedades e climas não europeus. Segundo Pomian, essas peças se diferem das antiguidades por não se caracterizarem em objetos de estudo, mas em curiosidades. Durante quase três séculos foram as antiguidades os semióforos de maior valor, só sendo suplantadas a partir da segunda metade do século XVIII pelos objetos de história natural. Dentre a categoria colecionismo de gabinete, devemos estabelecer a diferença, ainda que sensível, entre os gabinetes de curiosidades, ou maravilhas, e os gabinetes ditos científicos. A origem do primeiro grupo de coleção remontaria ao colecionismo medieval de tesouros, ou Schatzkammer, um ajuntamento de louças, pratos de ouro, tecidos finos, joias e tapeçarias, que eram acumuladas por eclesiásticos e reis. Alguns objetos um tanto quanto curiosos também poderiam compor o acervo destas coleções, tais como chifres de unicórnios ou ossos de santos. Para a mentalidade dos homens e mulheres do medievo, esses objetos eram dotados de um significado inato, valorizados sobretudo por suas propriedades mágicas ou miraculosas. E de acordo com Annemarie Jordan Gschwend, na estética medieval, “arte e natureza refletiam a beleza ideal de Deus, e as relações dos fenômenos naturais e artificiais eram racionalizadas por meio de símbolos e alegorias.”47 45 DASTON, Lorraine. “The Moral Economy of Science.” Osiris, vol. 10, 1995, pp. 2–24., p. 17 46 POMIAN, K., op. cit., p. 77. (grifo nosso). 47 “art and nature reflected the ideal beauty of God, and the relations of natural and artificial phenomena were rationalized through symbol and allegory.” GSCHWEND, Annemarie Jordan. In the Tradition of Princely Collections: Curiosities and Exotica in the Kunstkammer of Catherine of Austria. Bulletin of the Society for Renaissance Studies. Vol XIII, N.1, Out. 1995. P. 1 (Tradução nossa). 34 Os gabinetes de curiosidades se tornaram a voga no século XVI, ainda que o colecionismo artístico, científico ou de objetos religiosos tivesse sua existência anterior a essa centúria. Príncipes, nobres e humanistas, juntavam nas câmaras de maravilhas48 toda a sorte de objetos e “estranhezas” da natureza (naturalia) quanto aqueles feitos por hábeis mãos humanas (artificialia). Entretanto, estes homens e mulheres não procuravam tão somente agrupar objetos aleatórios. Estas coleções foram reflexo de uma aspiração filosófica em tentar reunir todo um conhecimento universal e enciclopédico do mundo, algo que servisse como uma vitrine, onde o mundo interno (microcosmo) refletisse o mundo externo (macrocosmo). 49 Os gabinetes de curiosidades do norte da Europa ficaram conhecidos pelos termos germânicos Wunderkammer e Kunstkammer, sendo o primeiro referente às câmaras de maravilhas e o segundo às câmaras de artes. Apesar de uma inicial divisão tipológica dos acervos, e mesmo as Wunderkkamers sendo mais ecléticas do que as câmaras de artes, ambas as coleções sempre se mesclaram. Para o filosofo e cientista inglês Francis Bacon (1561-1626), os gabinetes de curiosidades funcionariam como um espelho do mundo, uma vez que seus acervos comportariam três aspectos da natureza: o comum, o excêntrico e o feito por mãos humanas. Dentro da categoria excêntrica, Bacon dizia figurar produções como “carcaças de dragões, chifres de animais imaginários ou não, sereias mumificadas e outros frutos da curiosidade humana”.50 Fernanda de Camargo-Moro expõe ainda um outro tipo de gabinete, o studiolo, que nascido na península itálica, se diferenciava da Wunderkammer por ter seu acervo agrupado com a finalidade da pesquisa e do estudo.51 Segundo Pomian é a hierarquização social que permite o aparecimento de coleções. Expliquemos melhor: uma coleção é um ajuntamento de objetos que possuem significado (semióforos), mas perderam (ou mesmo não possuíam) uma função/utilidade, e por isso não eram “coisas”. A existência dos semióforos – objetos que estão fora dos circuitos econômicos – só é possível porque a hierarquização social permite que uma parcela desta sociedade seja liberada das atividades econômicas e possa se dedicar ao colecionismo. Seria este o indivíduo que Pomian chama de homem-semióforo: rei, 48 Kunst e Wunderkammern nos territórios ao norte dos Alpes ou studioli nas cidades italianas. 49 GSCHWEND, A., op. cit., p. 2. 50 CAMARGO-MORO, Fernanda de. Câmaras de maravilhas, studioli e gabinetes de curiosidades: Vandelli e sua circunstância. In: BRIGOLA, João Brigola et. al. O gabinete de curiosidades de Domenico Vandelli. Rio de Janeiro: Dantes, 2015. P. 18-39., p. 19 51 Idem, p. 20 35 imperador, papa, presidente da república, etc.52 Ou seja, indivíduos-semióforos forjam coleções de peças-semióforos, e assim podemos compreender em que bases sociais e econômicas de assentaram as câmaras de maravilhas. A título de exemplificação podemos destacar o papel que teve a nobreza da Espanha Moderna na associação entre o hábito de colecionar e mecanismos de imitação próprios das sociedades hierarquizadas, ou seja, os acervos particulares carregavam valores simbólicos que refletiam a vontade de ascender socialmente.53 O que nos chama a atenção é que para além do ato de colecionar, importa aqui o modo de colecionar, exatamente porque o hábito de atesourar nem tanto estaria relacionado a questões estéticas, mas sim a distinções sociais. Mas como deveria se estabelecer a organização destas galerias? Que relações deverem ser observadas entre os objetos que compunham estes acervos? Por mais que peças como tapetes e chifres de unicórnios possam nos parecer dessemelhantes, havia uma lógica intrínseca a essas coleções que acabavam por hierarquizar seus componentes. A sistematização desse tipo de reunião encontrou no médico flamengo Samuel Quiccheberg um de seus maiores expoentes, que em 1565 dizia ser uma coleção ideal aquela baseada na História Natural, de Plínio, o Velho. Desta forma as Kunstkammer (câmaras para objetos artísticos) e as Wunderkammers (repositórios para objetos extraordinários) deveriam ser divididas em categorias, classes e subclasses que refletiriam a qualidade dos materiais envolvidos. A esta forma de organizar as câmaras, o médico aplicou ainda a corrente noção de teatro do filósofo italiano Giulio Camilo. Assim, as câmaras refletir-se-iam numa espécie de teatro do mundo, “onde toda a sua variedade estava hermeticamente contida num só espaço, o seu conteúdo decidido pela diversidade, pela abundância, pelo irregular, pelo estranho e pelo invulgar”.54 Interessante ainda ressaltar que, de acordo com Quiccheberg, uma vez reunidos, os objetos definiam, e mesmo justificavam, o status e a honra de seus proprietários. Como exemplo de “colecionismo de maravilhas” no mundo ibérico, e mais precisamente luso, podemos invocar as coleções de Catarina de Áustria (1507-1578), rainha de Portugal, esposa de D. João III (1502-1557). D. Catarina foi detentora de coleções cuidadosamente organizadas ao longo de 50 anos, que se compunham de objetos 52 POMIAN, K., op. cit., p. 74 53 Sobre esse tema, conferir: HERRERA, Antonio Urquízar. Coleccionismo y nobleza. Signos de distinción social en la Andalucía del Renacimiento. Madri: Marcial Pons, 2007. pp. 13-28. 54 “in all its variety, was hermetically contained in one space, its Contents decided by diversity, abundance, the irregulär, the odd and the uncommon.” GSCHWEND, A., op. cit., P. 2 (Tradução nossa). 36 vários, como: tapeçarias flamengas, retratos da corte, objetos preciosos, joias, peças exóticas, móveis, pratos e livros. Foi também mantenedora de muitos animais, vivos ou não. Foi sem dúvida favorecida por uma extensa rede de contatos, que iam desde seus familiares Habsburgo até administradores e súditos espalhados pelo vasto império
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