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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE 
 
INSTITUTO DE HISTÓRIA 
 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA 
 
 
LEANDRO RIBEIRO BRITO 
 
 
 
 
Violência e Identidade na Conquista de Lisboa em 1147: 
 uma análise da crônica De Expugnatione Lyxbonensi e sua inserção na 
Cristandade Latina dos séculos XI e XII 
 
 
 
Orientadora: Profª Drª Carolina Coelho Fortes 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Niterói, 
Março de 2022 
 
 
 
 
 
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE 
 
INSTITUTO DE HISTÓRIA 
 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA 
 
 
LEANDRO RIBEIRO BRITO 
 
Violência e Identidade na Conquista de Lisboa em 1147: 
 uma análise da crônica De Expugnatione Lyxbonensi e sua inserção na 
Cristandade Latina dos séculos XI e XII 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de 
Pós-Graduação em História da 
Universidade Federal Fluminense, como 
requisito parcial para a obtenção do grau 
de Mestre em História Social. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Orientadora: Profª Drª Carolina Coelho Fortes 
 
 
Niterói, 
Março de 2022 
 
 
 
 
 
LEANDRO RIBEIRO BRITO 
 
 
Violência e Identidade na Conquista de Lisboa em 1147: 
uma análise da crônica De Expugnatione Lyxbonensi e sua inserção na Cristandade 
Latina dos séculos XI e XII 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de 
Pós-Graduação em História da 
Universidade Federal Fluminense, como 
requisito parcial para a obtenção do grau 
de Mestre em História Social. 
 
 
Orientadora: Profª. Drª. Carolina Coelho Fortes 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
 
Profª. Drª. Carolina Coelho Fortes 
Universidade Federal Fluminense 
 
 
 
Prof. Dr. Edmar Checon de Freitas 
Universidade Federal Fluminense 
 
 
 
Profª. Drª. Leila Rodrigues da Silva 
Universidade Federal do Rio de Janeiro 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Agradecimentos 
 
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior 
(CAPES) pelo financiamento da presente dissertação. A bolsa de fomento à pesquisa foi 
fundamental para os resultados aqui apresentados. 
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal 
Fluminense por seu ambiente de excelência na formação de pesquisadores e seu 
extraordinário quadro docente que sempre proporcionou um ensino enriquecedor. 
À professora Carolina Coelho Fortes por sua orientação e paciência. O incentivo 
que me dá desde a graduação foi fundamental para a minha formação. Suas críticas e 
correções me tornaram um pesquisador melhor. Sua forma humanizada de orientar 
auxiliou nos momentos de desespero que todo historiador acaba passando ao longo de 
uma investigação. 
À banca de qualificação composta pelo professor Edmar Checon de Freitas e pela 
professora Leila Rodrigues da Silva. A disponibilidade de grandes nomes da 
medievalística, colaborando para a melhoria da pesquisa é de suma importância. Reforço 
o agradecimento por aceitarem participar da banca de defesa de mestrado. 
Às professoras e professores que tive durante os dois anos de mestrado e as leituras 
e debates estimulantes realizados durante as disciplinas cursadas: Luiza Laranjeira, da 
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carolina Coelho Fortes, Mário Jorge da Motta 
Bastos e Vânia Leite Fróes da Universidade Federal Fluminense. 
À minha mãe que me trouxe ao mundo e fez todo o possível e o impossível para 
que recebesse educação e me mantivesse na escola mesmo durante períodos de carestia. 
Obrigado por tudo dona Risete. 
Ao meu pai, Asclepíades, que enquanto esteve comigo tinha o sonho de me ver 
cursando faculdade. Se puder testemunhar os dias atuais, espero que sinta orgulho. 
Aos meus irmãos mais velhos, que também me incentivaram a buscar o ensino 
superior. 
Aos meus amigos de UFF e da vida. Em especial Fabricio Lamothe e Júlio 
Massolar. Mesmo longe, vocês ainda caminham comigo. Agradeço igualmente à Nathália 
Fernandes Pessanha que auxiliou tanto neste período que nem consigo descrever. 
 
 
 
 
À Karen Natasha por ser minha amiga de mais de uma década. Cultivar amizades 
assim me manteve de pé em muitos momentos quando ainda nem sonhava em estar na 
UFF. Deixo também meu agradecimento à Luzia Risso por sua amizade sincera. 
Por fim, desejo paz aos que sofreram com a pandemia de Covid-19. Que o futuro 
nos proporcione momentos de serenidade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Resumo 
 
Os séculos XI e XII foram um período de intensas movimentações no interior da 
Cristandade Latina. Dentre algumas transformações podemos citar as cruzadas, a 
reconquista, as expansões feudais, o fortalecimento papal e um significativo aumento 
demográfico. Entre conflitos e alianças, os reinos ibéricos tomaram parte das políticas 
existentes para seu próprio fortalecimento. Dentre estes reinos, a monarquia portucalense 
buscava se afirmar como uma autoridade régia dentro da Cristandade. A conquista de 
Lisboa ocorre em 1147. Situada como uma guerra santa, a expansão feudal de Afonso 
Henriques usa as hostes cruzadas em seu intento de legitimação. Expandindo seus 
domínios, Afonso constrói uma imagem de suas guerras através de uma literatura 
memorialística com intuito propagandista. De Expugnatione Lyxbonensi é uma crônica 
que narra a conquista de Lisboa e foi escrita por um anglo-normando de nome Raul. A 
carta, que entendemos ter como objetivo a construção de uma identidade cristã frente ao 
diferente muçulmano, está repleta de violência como instrumento de subjugação e 
domínio, além de ser usada como veículo de exaltação dos feitos afonsinos. Portanto, o 
objetivo da presente dissertação é apontar a existência da violência justificada pela lógica 
da identidade e da diferença. Uma violência que foi instrumentalizada pelos poderes 
existentes no período. 
 
Palavras-chave: Violência; Identidade; Cristandade Latina; Portugal; Conquista de 
Lisboa 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Abstract 
 
The 11th and 12th centuries were a period of intense movement within Latin Christianity. 
Among some transformations we can mention the crusades, the reconquest, the feudal 
expansions, the papal strengthening and a significant demographic increase. Between 
conflicts and alliances, the Iberian kingdoms took part in the existing policies for their 
own strengthening. Among these kingdoms, the Portuguese monarchy sought to assert 
itself as a royal authority within Christianity. The conquest of Lisbon takes place in 1147. 
Situated as a holy war, the feudal expansion of Afonso Henriques uses the Crusader hosts 
in its attempt to legitimize it. Expanding his domains, Afonso builds an image of his wars 
through a memorialistic literature with a propagandist intention. De Expugnatione 
Lyxbonensi is a chronicle that narrates the conquest of Lisbon and was written by an 
Anglo-Norman named Raul. The letter, which we understand as having as its objective 
the construction of a Christian identity in the face of the different Muslims, is full of 
violence as an instrument of subjugation and domination, in addition to being used as a 
vehicle for the exaltation of Alfonsine deeds. Therefore, the objective of this dissertation 
is to point out the existence of violence justified by the logic of identity and difference. 
A violence that was instrumentalized by the existing powers at the time. 
 
Keywords: Violence; Identity; Latin Christendom; Portugal; Conquest of Lisbon 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
Introdução ................................................................................................. 6 
 
Capítulo 1 – Os Medievais e a Violência ................................................ 19 
1.1 Conceituando violência ........................................................................ 20 
1.2 Violência como instrumento político ...................................................24 
1.3 A violência nos séculos XI e XII ......................................................... 34 
1.4 Vingança: violência ou composição? ................................................... 58 
 
Capítulo 2 – As Guerras Cristãs: Violência Sacralizada ..................... 68 
2.1 A guerra santa cristã: violência permitida ........................................... 69 
2.2 As conquistas cristãs na Península Ibérica: a guerra santa hispânica .. 82 
2.3 As cruzadas: a desmedida não condenada ........................................... 93 
 
Capítulo 3 – Lisboa e a Cruzada: A Conquista de 1147 .......................114 
3.1 A construção afonsina: o rei e o reino ..................................................115 
3.2 Vassalo da Sé Romana: o rei, o papa e as alianças …………………. 127 
3.3 Lisboa à vista: a violência cristã na conquista ……………………… 135 
3.3.1 A função socializadora da violência ……………………………… 139 
3.3.2 A conquista de Lisboa como uma guerra de vingança …………… 143 
3.3.3 A noção de violentia em De Expugnatione Lyxbonensi ………….. 147 
3.3.4 A violência cultural: os muçulmanos em De Expugnatione 
Lyxbonensi ……………………………………………………………… 151 
3.3.5 A violência como justiça …………………………………………. 156 
3.3.6 A violência simbólica na conquista de Lisboa …………………… 160 
3.4 De Expugnatione Lyxbonensi e a cruzada ………………………….. 162 
 
Capítulo 4 – Identidade e Diferença: A Violência Contra o Outro .... 174 
4.1 Identidade: um conceito sob rasura? …………………………………175 
4.2 Identidade e Idade Média: uma análise possível ……………………..180 
 
 
 
 
4.3 Identidade e diferença em De Expugnatione Lyxbonensi : a violência contra o 
outro…………………………………………………………………….. 189 
4.3.1 De Expugnatione Lyxbonensi como lugar de memória ………….. 206 
 
Conclusão ……………………………………………………………... 211 
 
Documentação ………………………………………………………... 216 
 
Referências Bibliográficas …………………………………………….218
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Deus não precisa do homem para nada, exceto para ser 
Deus. 
 
José Saramago
 
6 
 
 
 
Introdução 
 
Vinte e quatro de outubro de 1147. Um rei adentra uma cidade conquistada após 
meses de cerco. Junto dele, bispos e padres com incensos e cânticos dão o tom daquela 
contenda. O rei é Afonso Henriques. Enquanto Afonso toma a cidade pela frente, alguns 
homens invadem por outros caminhos e circulam pelas ruas do aglomerado urbano. Eles 
arrombam casas, matam os moradores e cometem todo tipo de violência imaginável e 
repudiável. Estes homens se viam no direito de fazê-lo, assim como o rei que entrava pelo 
portão dianteiro. Passando por cima de cadáveres e de poças de sangue, Afonso Henriques 
seguia com seu grupo de homens tomando os espaços, tirando os antigos símbolos 
muçulmanos e erguendo cruzes, estandartes cristãos e toda espécie de imagens caras 
àqueles que seriam os novos senhores de Lisboa. 
Setembro de 2020: “foi tornado público, através de uma denúncia que chegou ao 
Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia (STARQ), que a Direção-Geral do 
Património Cultural (DGPC) autorizou a desmontagem de estruturas de uma antiga 
mesquita, no âmbito das obras em curso na Sé de Lisboa”.1 A notícia fala da reforma de 
restauração no claustro da igreja localizada na capital portuguesa, onde se descobriu os 
resquícios de uma antiga mesquita do tempo dos almorávidas. Um debate se inicia: qual 
seria o destino da arquitetura muçulmana, que mostra a presença islâmica na história 
local? A primeira decisão foi pela retirada da estrutura visando a conservação da igreja. 
Depois disso, seguiram-se algumas denúncias até que se decide por sua preservação. O 
fato curioso é que houve a necessidade de uma denúncia e uma intensa discussão para a 
manutenção dos vestígios. A decisão inicial sobre o resguardo da igreja em detrimento da 
mesquita ilustra qual memória seria conservada na história da cidade. O apagamento de 
parte da memória local indica a construção de um tipo de sociedade específica, que se 
vincula com um passado restrito. 
O primeiro exemplo citado sobre o longínquo ano de 1147 não deixa dúvidas 
acerca da presença da violência. O segundo exemplo não é tão nítido, mas a violência 
também está presente. Uma cidade, duas temporalidades distintas, mas testemunha de 
 
1 Trecho retirado da notícia: https://www.jn.pt/artes/pcp-e-be-querem-explicacoes-sobre-caso-da-
mesquita-sob-a-se-de-lisboa-12825867.html. 
https://www.jn.pt/artes/pcp-e-be-querem-explicacoes-sobre-caso-da-mesquita-sob-a-se-de-lisboa-12825867.html
https://www.jn.pt/artes/pcp-e-be-querem-explicacoes-sobre-caso-da-mesquita-sob-a-se-de-lisboa-12825867.html
 
7 
 
 
um fenômeno: violência. A reforma da Sé que resultaria no apagamento da presença 
muçulmana golpearia de morte uma existência marcante naquele local durante um 
período. Conforme, Nachman Falbel “o nome permite à memória atuar e manter vivo o 
ser humano no tempo infinito, caso contrário ele cairia no abismo do esquecimento, na 
verdadeira morte”.2 Por que uma violência é tão identificável e a outra não? Por qual 
motivo aqueles homens, em 1147, massacraram tantas pessoas? 
A cidade de Lisboa foi testemunha de um conflito que diz muito sobre uma época. 
O papa ainda não reconhecia Afonso Henriques como rei, embora este agisse como tal. 
A cruzada movimentava um grupo tão hostil que os exércitos destes “marcados pela cruz” 
sempre criavam um clima de tensão, cercado de desconfiança sobre as intenções destes 
cristãos ávidos por honra, butim e salvação. 
 A violência e a espiritualidade caminhavam juntas naquelas hostes e uma não 
invalidava a outra. Afinal de contas, a Igreja precisava destes combatentes agindo no 
mundo, ao seu modo, com funções dentro da Cristandade e colaborando, de certa forma, 
com a universalidade tão pretendida pelo Cristianismo. Essa guerra e esse movimento 
foram vistos como violência por seus praticantes? A força utilizada contra outras pessoas 
nestes embates era compreendida como um ato piedoso e os discursos que veicularam 
estes atos buscaram a construção desta imagem pia. Por que? Por que o discurso faz isso. 
Ele cria uma verdade. Se a verdade se liga à realidade, isto não importa para o poder que 
detém a capacidade na difusão de uma ideia. O que importa é inculcar aquela verdade 
para reproduzi-la. 
A verdade sobre a violência é o poder que constrói. A utilização da violência é a 
razão do poder que determina. Na compreensão da razão, é possível a percepção de que 
forma o poder não qualifica como violência atos de natureza violenta em seu intuito de 
dominação. O exercício é complexo e a violência de uma época não é a violência de outra 
época, pois a racionalidade é distinta. No entanto, um poder que visa a dominação busca 
uma hegemonia e o discurso é uma das instâncias fundamentais que perpetua e possibilita 
este propósito. 3 
 
2 FALBEL, Nachman. Kidush Hashem: Crônicas Hebraicas sobre as Cruzadas. São Paulo: Editora 
Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001, p.17; 
3 Essas questões serão aprofundadas no primeiro capítulo; 
 
8 
 
 
A conquista de Lisboa em 1147 nos apresenta uma série de elementos em voga na 
Cristandade Latina daquele período. Guerra Santa, cruzada, expansão cristã na Península 
Ibérica etc. Uma conquista, tantas possibilidades. Uma conquista, tantas leituras. A 
tomada desta cidade sempre foi tratada por algumas leituras da historiografia portuguesa4 
como um marco para o nascimento de Portugal. A crônica mais detalhada e complexa 
sobre esta conquista é uma narrativa elaborada por um cruzado. As visões, muitas vezes 
romanceadas, deste “nascimento” ignoram algumas possibilidades espinhosas. Primeiro, 
um “nascimento” sangrento. Se Portugal nasce em Lisboa, então, vem ao mundo banhado 
pelo sangue alheio. Afinal de contas, sabemos que as hostes cruzadas queajudaram neste 
embate não eram conhecidas por sua temperança. Segundo, se a crônica que narra esta 
conquista busca ocultar alguns massacres uma análise crítica ainda permite identificar um 
“nascimento” cercado pela violência. 
Porém, a violência é direcionada. Quando os cristãos rompem os portões de 
Lisboa, sabem contra quem dirigir sua belicosidade e quais são os seus inimigos: os 
muçulmanos. O século XII é o período das cruzadas, da expansão da Cristandade e de 
uma política papal que identificava aqueles que se constituíam como um perigo para os 
cristãos. Assim, vê-se a construção de uma unidade e de quem estava fora dela. Uma 
identidade cristã que se baseava na diferença e no contato com os não-cristãos. 
A presente dissertação visa a compreensão da violência como uma marca deste 
mítico “nascimento de Portugal” .5 A violência da guerra? Também, mas não apenas essa. 
Nosso objetivo é entender a campanha de Lisboa ligada aos componentes que se 
constituíam na Cristandade Latina e que promoviam uma violência baseada em categorias 
identitárias. Visamos, aqui, ampliar o entendimento sobre violência. Ou seja, um estudo 
inserido num quadro de análise que apresente algumas categorias da violência. Além 
disso, vincular a narrativa de Lisboa com as políticas próprias do reino. A expansão e 
promoção da monarquia visam a construção de uma imagem que autonomize Afonso 
Henriques perante o papado e os outros reinos cristãos peninsulares. Uma extensa 
literatura foi elaborada com a finalidade de divulgação e propaganda da monarquia 
 
4 Dentre algumas obras podemos citar MARTINS, Oliveira. História de Portugal. 10.ed. Lisboa: Parceria, 
1920 e PERES, Damião. Como nasceu Portugal. Portucalense Editora, 6ª Edição, Porto, 1967; 
5 Um “nascimento” cristão que, propositalmente, ignora a presença de povos distintos na constituição 
histórica deste país. 
 
9 
 
 
portucalense. O mosteiro de Santa Cruz de Coimbra ficou imbuído de grande parte destas 
obras, dentre as quais alguns relatos de conquista. 6 
A princípio, a pesquisa em si é propícia a desvios para concepções cercadas de 
anacronismos e armadilhas conceituais com as quais todo historiador acaba lidando no 
caminho de uma investigação. Por isso, escolhemos um trajeto que proporcione à 
dissertação uma percepção plausível destas sociedades tão distantes de nós 
temporalmente. Uma análise da violência nos séculos XI e XII nos leva a uma pergunta 
inevitável: de qual violência estamos falando? A noção que temos atualmente, com todas 
as percepções que nos cabe como pessoas do século XXI ou a noção construída na Idade 
Média Central? Nossa proposta é a compreensão de ambas, como uma alternativa 
propícia na tentativa de visualização de uma temporalidade através de outra. Partindo de 
noções atuais, debatidas pelas Ciências Humanas, percorreremos o caminho até os 
séculos XI e XII. 
Esta escolha tem como objetivo uma teorização da violência a partir de princípios 
utilizados pela etnomodelagem, conhecidos como perspectiva êmica e perspectiva ética. 
Ou seja, olhar uma sociedade “de dentro” e “de fora” ao mesmo tempo. No entanto, 
reconhecemos as limitações ao referencial “de dentro”, visto que os vestígios deste 
interior nos foi legado por uma parcela social que tinha acesso à escrita. Uma parcela 
reduzida, se tratando de séculos XI e XII. Para uma aguçada percepção das noções que 
circulavam no período nossa escolha foi de nos atentarmos, no primeiro capítulo, aos 
livros de relatos de milagres. Entendendo a visão sobre a violência nestas obras e usando 
a metodologia de Marcus Bull7, é possível a conexão de uma leitura das cruzadas com a 
conquista de Lisboa. 
Efetuaremos a investigação da conquista de Lisboa através da crônica do clérigo 
cruzado Raul 8 intitulada De Expugnatione Lyxbonensi. O relato pretende justificar o uso 
 
6 Para maiores detalhes acerca do papel dos crúzios ver: BRANCO, Maria João. A conquista de Lisboa 
revisitada. Porto: Edições Afrontamento Ltda, 2001, MARTINS, Armando Alberto. O Mosteiro de Santa 
Cruz de Coimbra na Idade Média. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2003, 
MATTOSO, José. A nova face de Afonso Henriques. In: Naquele Tempo. Ensaios De História Medieval, 
Lisboa, 2000; 
7 Referente às trigger words. São palavras-gatilho que usam de símbolos universais na união de grupos 
distintos. A metodologia será melhor explicada adiante. 
8 A carta é assinada com a inical R e estudos sobre o documento indicam que se tratava de Raul de Glanville, 
presbítero anglo-normando. Raul tinha um homônimo que pertencia ao ciclo da nobreza, da qual Hervey 
de Glanville era oriundo. Porém, embora o sobrenome seja o mesmo, não há ligação familiar, strictu sensu, 
com os Glanville de Calvados, na Normandia. Ver: DAVID, Charles Wendell. De Expugnatione 
 
 
10 
 
 
da violência a partir da construção do muçulmano como o “outro”, o inimigo da 
Cristandade. Essa construção que impele o movimento violento de conquista também 
busca a aproximação de Afonso Henriques com as políticas papais, visto que é um 
guerreiro cristão que combate o Islã. Essa aproximação, na perspectiva afonsina, tinha 
como um de seus desígnios o reconhecimento do então infante como rei. Reconhecimento 
que fortaleceria o futuro reino de Portugal frente aos outros reinos peninsulares e no 
interior da própria Cristandade Latina. 
A violência cristã está embebida nas circunscritas do período. Em seu livro 
Guerra Santa a Ideia de Cruzada no Ocidente cristão,9 Jean Flori traça um caminho de 
análise que recua ao Cristianismo do Baixo Império e reflete sobre a recusa do uso da 
violência por parte dos cristãos. Adiante, verifica os possíveis pontos de virada desta ideia 
ao se questionar porquê uma religiosidade que nasce pacifista se torna beligerante. Para 
resumir parte de suas reflexões, as questões de Flori se conectam com a transformação, 
primeiro, da religiosidade de uma parcela da sociedade que se torna majoritária, 
principalmente a partir da conversão das elites. Assim, na busca pela defesa e manutenção 
de seus privilégios a Igreja entra no jogo das práticas em vigor. Na Idade Média Central, 
os poderes eclesiásticos estão profundamente enraizados no sistema feudal e, logo, 
reproduzindo-se da maneira que o sistema se reproduz: com violência.10 
A violência bate à porta das igrejas e o poder clerical desenvolve uma noção de 
violentia com o intuito de qualificação do que considera atos dignos de repúdio e que 
precisam ser combatidos.11 Esta ideia de violentia vigora dentro da sociedade feudal, 
onde as assembleias de paz conhecidas como Paz de Deus e Trégua de Deus surgem e se 
renovam constantemente. A tendência na Francia Ocidental é a construção de uma noção 
de violentia que se liga ao impedimento do exercício de um direito e não significa, 
necessariamente, uma relação com nossas ideias de violência. A violência passa, então, a 
ser um instrumento usado para o combate da violentia. A Igreja incentiva o uso da 
 
Lyxbonensi, The conquest of Lisbon, ed. Columbia University Press, N. Y., 1936; BRANCO, Maria João. 
A Conquista de Lisboa na estratégia de um poder que se consolida. In: A Conquista de Lisboa aos Mouros. 
Relato de um Cruzado., 2018; 
9 FLORI, Jean. Guerra Santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão / Jean Flori; tradução: 
Ivone Benedetti; Campinas: Editora da Unicamp, 2013; 
10 Porém, não de forma descontrolada. Para maiores detalhes sobre o tema ver BLOCH, Marc. A Sociedade 
Feudal/ Marc Bloch; Tradução: Laurent de Saes. – São Paulo: EDIPRO, 2016 ; BARTHÉLEMY, 
Dominique. A cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII; Tradução: Néri de Barros Almeida 
e Carolina Gual da Silva. Campinas: Editora da Unicamp, 2010; DUBY, Georges. A Sociedade 
Cavaleiresca/G.Duby; tradução: Antônio de Pádua Danesil – São Paulo: Martins Fontes, 1989 
11 Ver FLORI, Jean. Op.Cit., 2013; 
 
11violência na proteção de seu patrimônio12 sacralizando-a. 13 Assim, a violência passa a 
ser destinada contra os inimigos da Igreja; desta maneira, se constrói a noção de quem 
são estes inimigos, que variam conforme o contexto social. O caráter de semelhança passa 
a caracterizar uma identidade cristã que se vê ameaçada pelo diferente,14 aquele que está 
situado fora da Cristandade. Assim, nossa primeira hipótese é que a conquista de Lisboa 
se efetua pela violência justificada a partir da identidade e da diferença. 
Outro aspecto é que a Conquista de Lisboa faz parte da expansão cristã na 
Península Ibérica, que tradicionalmente se chama Reconquista. As monarquias hispânicas 
precisavam fortalecer sua imagem perante a Cristandade.15 Os confrontos cotidianos nas 
regiões de marca envolviam o embate contra outros senhores cristãos e também diante 
dos muçulmanos, que habitavam a região desde o século VIII.16 No decorrer dos séculos 
XI e XII surge o fenômeno da cruzada. Além disso, presencia-se um considerável 
fortalecimento da figura do papa. 17 Assim, os contatos com o Islã na Península Ibérica e, 
mais que isso, as guerras, que eram atividades regulares na região, se transformaram em 
eventos revestidos de sacralidade. À presença de Cluny, Cister, às políticas casamenteiras 
entre as aristocracias hispânicas e gálicas transportaram ideias que circulavam na Francia 
Ocidental e foram apropriadas em contexto peninsular. 18 
Diante disto, as monarquias hispânicas utilizaram as noções de guerra santa 
advindas principalmente das ideias construídas com o surgimento da cruzada. Estes reis 
usufruem destas políticas19 em seu favor. O discurso da guerra santa, então, entra na 
lógica ibérica. Os benefícios que o uso deste discurso traz para as monarquias locais são 
diversos, mas é preciso a elaboração de uma memória sobre estes feitos e a criação de 
 
12 Os ataques ao patrimônio fundiário das igrejas e as contestações de seus direitos senhoriais auxiliam na 
construção desta concepção de violentia e se liga diretamente às relações feudais existentes no sistema de 
então. 
13 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: 
Jorge Zahar Editor, 1995; 
14 Ver Le Goff 
15 Cf. BRANCO, Maria João.A conquista de Lisboa na estratégia de um poder que se consolida. In: A 
Conquista de Lisboa aos mouros. Relato de um cruzado, Ed. Aires A. Nascimento, 2ª ed., Lisboa, Nova 
Vega, 3ª Edição, 2018; 
16 Ver MATTOSO, José & SOUZA, Armindo de. História de Portugal. Antes de Portugal. Lisboa: Editora 
Estampa, 1993; RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995; 
17 Cf. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Tradução de Maria da Luz Veloso. Edições 70, 
Lisboa, 1983; BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010; RILEY-SMITH, Jonathan. As Cruzadas: uma 
história/ Jonathan Riley-Smith; tradução de Jonathas de Castro – Campinas, SP: Eclesiae, 2019; FLORI, 
Jean. Op.Cit. ,2013; ORLANDIS, José. El Pontificado Romano em la Historia. Madrid: Palabra, 1999; 
18 GALLI, Sidinei. A cruz, a espada e a sociedade medieval portuguesa. São Paulo: Arte & Ciência/UNIP, 
1997; FRANCO JR, Hilário. Cluny e a Feudo-Clericalização de Castela,1985. Disponível em 
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/36148/18992. Acessado em 
19/01/2022; 
19 Cf. BRANCO, Maria João. Op.Cit., 2018; 
 
12 
 
 
uma tradição: a tradição do combate aos inimigos da Igreja. Assim, na busca por 
fortalecimento, o condado portucalense reveste-se destes elementos e faz das razias contra 
os muçulmanos guerras santas. 20A conquista de Lisboa se efetua nesta racionalidade. A 
vitória diante dos muçulmanos precisava ser contada e celebrada. Assim, uma literatura 
memorialística de exaltação passou a fazer parte do programa político portucalense. De 
Expugnatione Lyxbonensi é uma destas memórias sobre a conquista.21 Nossa segunda 
hipótese, então, é demonstrar que a crônica faz parte desta literatura de exaltação. A 
maneira de apresentar a invasão lisboeta é a inclusão de elementos que celebram o rei 
dentro das políticas do período. 
Assim, o caminho selecionado na comprovação destas hipóteses é o seguinte: no 
primeiro capítulo faremos uma análise da violência nos séculos XI e XII na região da 
Gália, terra de origem do autor de De Expugnatione Lyxbonensi. Iniciaremos detalhando 
as duas concepções de violência que serão utilizadas na pesquisa. A concepção atual e a 
concepção em circulação nos séculos XI e XII. Para entendermos as noções atuais de um 
conceito tão amplo, ambíguo e polissêmico utilizaremos a Sociologia de Johan Galtung 
e a tripartição em violência direta, violência estrutural e violência cultural. Porém, 
verificam-se outras leituras complementares para tal compreensão e elas serão 
devidamente trabalhadas. Além disso, a compreensão da racionalidade da violência e sua 
instrumentalização em distintos aspectos também possibilita a percepção deste fenômeno 
numa lógica racional, em que propicie a leitura do poder que busca a apropriação da 
violência, tornando-a um meio de perpetuação daquele poder, inclusive, ocasionando a 
aceitação das violências como necessárias. 
Ainda neste primeiro capitulo, trabalharemos detidamente a Gália e a Francia 
Ocidental como um todo, na busca da noção de violentia que circulava na região. Uma 
das formas para este entendimento é recorrer às narrativas de milagres de santos. A 
utilização dos miracula como meio para ter acesso ao social parte de um entendimento 
destes documentos como uma leitura das manifestações das visões perpetuadas por um 
segmento social, seja como um entendimento de seu entorno ou como uma busca de 
 
20 Cf.MATTOSO, José. Identificação de um país: Oposição-Composição: Ensaio sobre as origens de 
Portugal 1096-1325. Lisboa: Temas e Debates: Círculo de Leitores, 2015 
21 Cf. WILSON, Jonathan : Enigma of the De Expugnatione Lyxbonensi, Journal of Medieval Iberian 
Studies, 2016. DOI: 10.1080/17546559.2016.1166257. Disponível em 
https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/17546559.2016.1166257. BRANCO, Maria João. Op.Cit., 
2018; BRANCO, Maria João. A conquista de Lisboa revisitada. Porto: Edições Afrontamento, 2001. 
MICHELAN, Kátia Brasilino. Um rei em três versões: a construção da história de D. Afonso Henriques 
pelos cronistas medievais portugueses. 1ª Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011; 
 
13 
 
 
imposição de alguma noção universalizante, mesmo que associada ao contexto local. 
Sendo assim, estes relatos oferecem ao historiador uma gama de opções e uma porta de 
entrada para um universo de possibilidades e para a cultura de um período. Marcus Bull 
é um dos defensores deste tipo de estudo que, na sua visão, ainda precisa ser melhor 
trabalhado. Segundo Bull, estes miracula “podem lançar uma luz valiosa sobre as 
aspirações religiosas, necessidades e instintos das pessoas no Cristianismo medieval”.22 
Porém, além dos pontos positivos existem aspectos que necessitam de certos cuidados 
na utilização deste material. 23 
Através destes relatos é possível acessar uma parte das impressões do cotidiano a 
partir das leituras que os autores fazem do meio em que vivem e, ao mesmo tempo, a 
ligação que estabelecem com o mundo. Independentemente de os relatos serem 
verdadeiros ou não, a construção da realidade nos miracula que importa ao historiador 
que pesquisa esta documentação: “A essência de um milagre era que representava uma 
justaposição entre o excepcional e o mundano”. 24A utilização de elementos rotineiros 
busca uma auto identificação e, ao mesmo tempo, um reconhecimento de algo que é 
comum para quem recebe a mensagem do miracula. O uso do cotidiano é uma “estratégia 
autoral sensata” 25 daquele que compila os relatos. Essa representação no relato dos 
milagres dos santos se aproxima da noção utilizada por Chartier em História Cultural26 
quando coloca queo objetivo da representação é “identificar o modo como em diferentes 
lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada e dada a ler, etc”. 
Sendo assim, os relatos sobre os milagres são significativos, pois “revelam sobre 
a capacidade da mentalidade histórica por parte dos escritores de milagres”. 27 Ainda de 
acordo com Bull, os miracula “eram reflexos e afirmações de valor para as comunidades 
religiosas de olhar para fora e de interagir com o mundo”. Embora não sejam um 
dispositivo que abarque todo o social , os livros de milagres “nos aproximam o suficiente 
 
22 BULL, Marcus. The miracles of Our Lady of Rocamadour : analysis and translation. St Edmundsbury 
Press Ltd, Bury St Edmunds, Suffolk, 1999, p.10; 
23 Embora haja semelhanças em relações às noções de violência, há elementos distintos em diversos outros 
campos pois são relatos elaborados com as particularidades locais de cada centro. 
24 BULL, Marcus. Op.Cit, 1999, p.11; 
25 Ibidem, p.11; 
26 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 
1990, p.17; 
27 BULLL, Marcus. View of Muslims and of Jerusalem in miracle stories, ca. 1000-ca. 1200: reflections 
on the study of first crusaders’ motivations. in BULL, Marcus, e HOUSLEY, Norman (eds.), The 
experience of crusading.Western approaches, Cambridge: Cambridge University Press, 2004, Vol. I, p.23; 
 
14 
 
 
para vislumbrar alguns valores e percepções culturais importantes [...]”.28 Podemos 
pensar nesses miracula como uma maneira de obtenção de certas informações das visões, 
imposições, aspirações e inquietações daqueles que relatavam os milagres. 
A utilização dos relatos de milagres parece pertinente para a compreensão da 
noção que circulava entre aquelas comunidades situadas no midi francês e que perpassam 
noções que percorrem um itinerário mais ao Norte, abarcando grande parte da Francia 
Ocidental. Esse itinerário segue o caminho das assembléias de paz. A construção da ideia 
de violentia nos milagres e as visões existentes nestes relatos se ligam aos chamados de 
cruzada a ponto de reconhecermos estas noções na crônica do cruzado Raul, clérigo 
anglo-normando, que narra a tomada de Lisboa. Assim, percebemos ideias correlatas 
acerca da violência, visto que os miracula falam dos ataques às igrejas onde a Paz de 
Deus está presente. Consequentemente, são dessas regiões que partem os maiores 
contingentes cruzados nas primeiras campanhas. As noções de vingança, violência e 
guerra santa se constroem numa lógica situada nas mesmas regiões que presenciaram as 
assembleias de paz. Não é mera coincidência que estas visões tenham se desenhado a 
partir dos contextos que apresentaremos nas próximas páginas. 
Nos deteremos precisamente em três destas narrativas: os milagres de Santa Fé , 
os milagres de Nossa Senhora de Rocamandour e os milagres de São Privato de Mende. 
As ideias destes miracula se aproximam e, embora sejam de localidades diferentes, 
podemos ponderar sobre a lógica de violência em circulação na região. Os milagres tem 
como ambiente os períodos de invasões de terras da Igreja durante a Paz de Deus. Muitas 
destas noções estão relacionadas ao tumultuado ambiente de espoliações sofridas pelas 
igrejas da Gália. 
Ainda neste primeiro capítulo, desmitificaremos certas visões em relação ao 
medievo que trasmitem uma imagem do período repleto de extrema violência física, visto 
que os mecanismos de controle eram inexistentes, criando um ambiente de insegurança 
constante. A violência é presente, mas, muitas vezes, menos do que certos relatos 
apontam. Por isso é importante termos a consciência desta verdade construida sobre a 
violentia. Contabilizar uma série de atos presentes na documentação e enquadrá-los 
simplesmente como violência é atribuir a eles uma lógica atual que era estranha ao 
 
28 Ibidem; 
 
15 
 
 
passado. Por isso é latente a necessidade das perspectivas “de dentro” e “de fora” que 
abordamos acima. 
No segundo capítulo, é pertinente um estudo dos fenômenos que a violência ajuda 
a perpetuar: guerra santa, reconquista29 e cruzadas. Tais fenômenos não eram tratados 
como violentos e recebiam outras nomenclaturas. Um debate historiográfico será 
efetuado para o entendimento sobre como a medievalística trabalha estes elementos. 
Guerra santa e cruzada podem estar relacionadas conforme a premissa sobre alguns 
rompimentos e permanências que levam ao estudo, inclusive, da antiguidade para uma 
percepção inserida na longa duração. Dentre alguns autores que tratam do assunto, Jean 
Flori, Jonathan Riley-Smith, Dominique Barthélemy, Steven Runciman, Carl Erdman, 
entre outros, foram divididos em escolas de pensamento divergentes e que expressaremos 
neste debate. 
Ainda no segundo capítulo nos deteremos nas narrativas sobre o concílio de 
Clermont de 1095 e como o chamado de Urbano II se liga às ideias presentes nos relatos 
de milagres. Os autores das histórias sobre as cruzadas visam a inclusão destas marchas 
militares e penitenciais na história da providência e criam uma narrativa coerente 
construindo uma identidade cristã que ignora as tensões internas que atravessava a 
Cristandade de então. Veremos como o discurso da cruzada é um clamor por vingança. 
No entanto, a vingança destinada ao “outro” não se relaciona com o sistema de vendetas 
internas entre os próprios cristãos. Todos estes fatores serão discutidos no capítulo dois. 
Neste capítulo utilizaremos, ainda, das crônicas hebraicas traduzidas pelo professor 
Nachman Falbel para demonstrar a importância que uma sociedade tem em sua 
representação e como as guerras cruzadas negam tal aspecto. 
No terceiro capítulo nosso foco será o reino portucalense e nos componentes 
envolvidos na sua constituição. A análise será efetuada abordando as visões circunscritas 
ao contexto afonsino, inseridas numa perspectiva ampla de extensão do sistema feudal e 
das fronteiras cristãs. A partir disto, trabalharemos a violência teorizada no primeiro 
capítulo dentro das lógicas que perpassam a conquista em si e a memória que se fez desta. 
A análise do ambiente da conquista e de sua escrita, efetuada posteriormente, precisa ser 
entendida na junção de alguns fatores: além de Afonso Henriques e a sua aliança com 
parte do corpo eclesiástico local, ocorre o estabelecimento de Santa Cruz de Coimbra e a 
 
29 Da qual, a partir daqui, será chamada de expansão cristã e explicaremos, adiante, nossa escolha. 
 
16 
 
 
presença de instituições além-pirinaicas. Outro aspecto considerável é o interesse papal 
pela Península Ibérica que complexifica a leitura, pois cada um destes poderes tinham 
suas próprias intenções, fazendo com que os acordos conjugassem propensões diversas. 
Ainda neste terceiro capítulo veremos como se dá a consolidação destes poderes: o papa, 
a figura do rei e do reino diante da Cristandade. 
Seguindo no terceiro capítulo efetuaremos a investigação da violência praticada 
durante o processo da conquista de Lisboa. A crônica De Expugnatione Lyxbonensi narra 
a tomada da cidade e traz em seu bojo distintas políticas presentes na Cristandade Latina 
dos séculos XI e XII. A crônica em si, embora situada em ambiente portucalense, é uma 
ponte para uma globalidade. Afinal, o autor é um clérigo cruzado anglo-normando a 
caminho do Levante, que colabora com Afonso Henriques e permanece no reino após a 
conquista. 
Desta maneira, utilizando as teorizações do primeiro capítulo, nossa leitura se 
insere no escopo teórico trabalhado em relação às categorizações da violência. Outro 
ponto é a pertinência da compreensão sobre a constituição do discurso desta conquista, 
que foi elaborado com o objetivo da propagação de uma memória referente aos feitos 
afonsinos, mas também permeadas de elementos da doutrina cristã de então, vinculada 
aos poderes do período. No demais, faremos a leitura do que o autor da crônica entendiapor violentia. A noção do autor se aproxima dos miracula trabalhados no primeiro 
capítulo, visto que Raul é do mesmo ambiente cultural destes milagres. Além disso a 
escrita da crônica tentava uma aproximação da guerra contra os muçulmanos de Al-
Andalus com a cruzada. 
No quarto e último capítulo a análise identitária da conquista será feita. A busca 
na construção de uma identidade cristã visa a composição, através da narrativa de Lisboa, 
do “nós” (cristão) e do “eles” (muçulmanos), visto que o autor era um clérigo cristão. A 
teorização dessas concepções de identidade e diferença nos permite também a 
visualização de elementos da violência que estabelecem binarismos hierarquizantes, pois 
na elaboração de um diferente, este é visto como um estranho ao que se considera norma. 
O diferente é um “outro”, um estranho num corpo que se pretende um referente 
universal.30 Um grupo que tenha uma consciência em si e perceba afinidades em seu 
 
30 Não é um comportamento universal. O outro não é, necessariamente, tratado com violência. A crônica 
mostra a violência nesta relação, mas não se pode generalizar e transferir esta lógica para todas as relações 
sociais. 
 
17 
 
 
cotidiano, acaba por se constituir numa conjuntura de semelhanças que enxerga aqueles 
que não estão presentes num grupo como os diferentes.31 
Os “outros”, na crônica, são tratados com violência. No entanto, na narrativa, o 
clérigo anglo-normando também se desdobra em outros sujeitos. Existe o sujeito cristão, 
o sujeito cruzado e o sujeito anglo normando. Este último enxerga os cristãos de outras 
localidades com desconfiança e, em muitos momentos, condena seu comportamento. 
Porém, os outros cristãos estão mais na categorias de não iguais do que, propriamente, 
um “outro”. Nota-se como a construção desta(s) identidade(s) é(são) fluída(s), 
percebendo-se diversos conflitos identitários (ou papéis sociais?) na narração dos 
acontecimentos. Estes conflitos colocam o autor32 numa situação de fronteira. Não há 
um “eu” exclusivo. O que se capta é a fragmentação da figura de Raul, que precisa lidar 
com a diversidade de suas experiências. Embora o “eu” seja construído culturalmente, é 
necessário o questionamento sobre como se dá essa construção nas relações sociais. Na 
Cristandade Latina ocorre o cruzamento de experiências e uma pessoa insere-se em 
diversos campos culturais. O autor da epístola é cruzado, mas também é um anglo-
normando. Além disso, é uma figura do corpo eclesiástico. 
No entanto, a identidade cristã pode ser percebida em momentos distintos durante 
a campanha do cerco de Lisboa e apontaremos como a crônica elabora um ethos, em que 
as semelhanças estabelecem uma sociedade e identiticam, ao mesmo tempo, quem é o 
outro. Conforme Tomaz Tadeu da Silva33, geralmente consideramos que aquilo que é 
diferente deriva de uma concepção de identidade que normaliza. Essa normalização acaba 
sendo a referência, o ponto original. Segundo o autor “isso reflete a tendência de tomar 
aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que 
não somos.” 34 Esta identidade liga-se às relações de poder e que, na produção do que é 
diferente, se expressa as marcas deste mesmo poder: “incluir/excluir (estes pertencem, 
 
31 O que não impede que se enxergue semelhança naquele que é diferente. As relações sociais são bem mais 
complexas; 
32 Trata-se do enunciador como participante. Roland Barthes fala deste autor cesariano onde o enunciador 
do discurso é, ao mesmo tempo, participante do processo enunciado. Embora Barthes esteja fazendo uma 
reflexão sobre a escrita dos historiadores. Porém, na Idade Média tais crônicas eram um gênero literário 
que tinham caráter histórico. No entanto, uma história conduzida por Deus. In: BARTHES, Roland. “O 
discurso da história”; “O efeito de real”. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 163-
190; 
33 A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença: a 
perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 11.ed.- 
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012; 
34 Ibidem. p.76; 
 
18 
 
 
aqueles não), demarcar fronteiras (“nós” e “eles”), classificar (bons e maus, puros e 
impuros), normalizar (“nós somos normais, eles são anormais”). A crônica que narra a 
conquista de Lisboa apresenta uma série de conflitos entre cristãos. Estes conflitos são 
ocasionados pelos regionalismos. Porém, existe um “outro”, que é construído como um 
perigo maior para a Cristandade: o muçulmano 
Na crônica, este muçulmano constitui uma ameaça para o universalismo cristão. 
O discurso e os atos de violência que ali são cometidos inserem-se nesta lógica de “nós” 
e “eles”, fruto do que Derrida analisa como binarismo hierarquizante.35 Por último, 
situaremos De Expugnatione Lyxbonensi como um lugar de memória e entender como a 
crônica conserva enquanto produz esquecimento. Na elaboração de uma memória existe 
a seleção e esta só se efetua ao suprimir elementos que não lhe interessam. 
Portanto, nossa hipótese principal é comprovar que a violência está presente na 
crônica que narra a conquista de Lisboa. Uma violência ampla, justificada pela noção de 
identidade e diferença.. A outra hipótese é apontar De Expugnatione Lyxbonensi como 
uma memória de exaltação da monarquia portucalense com o objetivo de fortalecer a 
imagem do reino dentro da Cristandade Latina. Mais do que uma crônica de cruzada, 
consideramos que a carta do clérigo Raul tem objetivos específicos que se ligam ao rei 
portucalense. 
Uma pesquisa sobre um evento, a Conquista de Lisboa em 1147, é uma porta de 
entrada para um universo de possibilidades. Se debruçar sobre um fato não nos leva ao 
retorno de uma velha História Política. Pelo contrário. Utilizando as palavras de Georges 
Duby em seu livro Domingo de Bouvines, entendemos que do fato emergem vestígios que 
“se não nos detivéssemos nele, permaneceriam nas trevas, desapercebidos”.36 Quais são 
os traços dessa conquista “sobre os quais nunca se escreve”?37
 
35 Cf. DERRIDA, J. Limited Inc. Campinas: Papirus, 1991. 
36 DUBY, Georges. O Domingo de Bouvines: 27 de Julho de 1214 / Georges Duby; tradução Maria Cristina 
Frias. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p.11; 
37 Ibidem, p.11; 
 
19 
 
 
 
 Capítulo 1 
Os Medievais e a Violência 
 
Na percepção do senso comum a Idade Média foi um período de violentos 
combates travados sem controle e com derramamento excessivo de sangue. O tema de 
um medievo sangrento foi um lugar comum na historiografia até pouco tempo (talvez 
ainda seja). Comumente, o período se torna adjetivo e nomear algo de “medieval” 
caracteriza o que é retrógrado e imerso em barbárie. Como os medievais interpretavam 
os atos violentos? A violência era, de fato, incontrolável e pintava de sangue o tecido 
social do período? Haviam mecanismos de controle? Neste primeiro capítulo 
investigaremos o conceito de violência e como ele pode ser aplicado ao nosso recorte: os 
séculos XI e XII. Para isso, é imprescindível a compreensão deste conceito tão amplo e 
ambíguo: violência. Através de um diálogo interdisciplinar, o aporte teórico necessário 
será movimentado para a elucidação de um tema tão complexo. A utilização do conceito 
de violência significa certas escolhas que o historiador faz dentro de um quadro teórico 
pertinente para a análise pretendida. 
Na presente pesquisa faremos uso da Sociologia de Johan Galtung em 
consonância com alguns outros historiadores, antropólogos e sociólogos que trataram e 
tratam do tema e que possibilitem um diálogo com nossas perspectivas. Partindo desta 
conceituação buscaremos a compreensão da noção de violência existente nos séculos XI 
e XII. A dialética entre as visões de violência nos permite transitar entre dois modelos 
distintos a partir da percepção dos próprios períodos específicos. Afinalde contas, como 
é possível uma abordagem sem anacronismos quando falamos de violência na Idade 
Média Central? Numa dialética entre o êmico e o ético. 1 No estudo destas duas 
modalidades, realizaremos a investigação sobre alguns dos movimentos que surgem no 
período e que se apropriam da violência como forma legitimadora de ação cristã: a guerra 
santa, a conquista dos reinos cristãos ibéricos e as cruzadas. 
 
1 Onde se busca compreender as noções em circulação na própria sociedade que se estuda (êmico) ao 
mesmo tempo com as noções utilizadas pelos que estudam estas sociedades. Para maiores detalhes ver: 
ROSA, M.; OREY, D. C. O campo de pesquisa em etnomodelagem : as abordagens êmica, ética e dialética. 
Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 04, p. 865-879, out./dez. 2012. Disponível em: 
http://www.scielo.br/pdf/ep/v38n4/06.pdf; BERRY, John W. Emics and etics: a symbiotic conception. 
Culture & Psychology, v. 5, p. 165-171, 1999; 
http://www.scielo.br/pdf/ep/v38n4/06.pdf
 
20 
 
 
Portanto, neste primeiro capítulo situaremos um debate teórico e historiográfico 
sobre os temas citados além de buscar, dentro de nossa visão, uma concepção pertinente 
desses fenômenos que se mostrará propício ao posterior objeto de análise: a conquista de 
Lisboa. 
 
 1.1 Conceituando violência 
A Organização das Nações Unidas 2 entende a violência como o uso intencional 
da força física ou do poder, “real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, 
ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de 
resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou 
privação”.3 Esta definição básica apontada pelo órgão internacional serve como guia para 
a nossa reflexão sobre um fenômeno tão estudado e, mesmo assim, tão controverso. Como 
ponto de partida, destaquemos a questão da intenção. A violência só existe caso esteja 
ligada diretamente ao ato intencional? Não existe violência na ausência da intenção? Esta 
perspectiva é problemática. A ausência de intenção não descaracteriza algo como 
violento. Para Johan Galtung, a questão da intencionalidade está associada a um tipo 
específico de violência: a violência direta. 
A violência direta é identificada visualmente e, quase sempre, noticiada em 
telejornais e notícias no geral. Concerne ao ato que é possível a identificação de um 
emissor e um receptor. Para Galtung “se há um ator intencionado sobre as consequências 
dessa violência, podemos falar de violência direta.” 4 Esta violência tem o intuito de ferir 
outrem, de atentar contra uma pessoa para infligir-lhe dano físico ou psicológico. No 
entanto, o ato físico em si advém de um processo complexo e que se situa fora de nossa 
visão. Quando não se relaciona com uma reação, ligada com a própria defesa, a violência 
direta é a ponta do iceberg de outras duas categorias trabalhadas por Johan Galtung: a 
violência estrutural e a violência cultural. Reunindo essas categorias e legitimando-as se 
encontra o poder. 
 
2 A definição é da Organização Mundial da Saúde (O.M.S.). Se trata de uma agência pertencente a 
Organização das Nações Unidas e tem o intuito de direcionar a saúde internacional dentro do sistema das 
Nações Unidas e liderar parceiros nas respostas globais à saúde. Conforme resolução WHA49.25, a 
violência é um dos principais problemas mundiais de saúde pública; 
3Krug EG et al., eds. World report on violence and health. Geneva, World Health Organization, 2002, p.5; 
4GALTUNG, Johan. Paz por medios pacíficos: paz y conflito, desarrollo y civilización. 2003, p.20; 
 
21 
 
 
A ideia de poder aplicada aqui vai ao encontro das noções trabalhadas por Michel 
Foucault em sua fase genealógica. O poder, neste caso, é relacional e capilar. Ele “se 
configura como um conjunto de práticas que possibilitam que alguns possam conduzir ou 
governar a conduta de outrem exercendo uma interferência sobre seu campo de 
possibilidade de ações”. 5 O caráter microfísico percebe as relações de poder de forma 
pulverizada, distribuídas pela sociedade e não como algo exclusivo de caráter jurídico6 
ou mesmo sinônimo de opressão. Ou seja, “o poder circula entre todos os indivíduos, haja 
vista que não se pode conceber um sujeito apartado de relações de poder”. Para Foucault: 
O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos 
não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e 
de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são 
sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica 
aos indivíduos, passa por eles.7 
 
O poder e as relações advindas dele não estão acima da sociedade, regendo-a. Ele 
se encontra em circulação nas pessoas e emana delas. Assim, o poder se dá em diversos 
estratos sociais. Poder eclesiástico, poder familiar, poder laico e uma infinidade de outros 
que se conectam e se reproduzem em acordos ou conflitos. O poder não é simplesmente 
pura dominação, pois sua existência se dá na possibilidade de resistência. Nas relações 
de poder se verifica os que submetem e os submetidos. Existem instrumentos variados 
para o exercício de uma submissão; dentre eles a violência. 
Em concepção similar Hannah Arendt define poder como 
Habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em 
concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um 
grupo e permanece em existência apenas enquanto o grupo se conserva 
unido. Quando dizemos que alguém está “no poder”, na realidade nos 
referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de 
pessoas para agir em seu nome. A partir do momento em que o grupo 
do qual se originara o poder desde o começo (potestas in populo: sem 
um povo ou grupo não há poder) desaparece, “seu poder” também se 
desvanece. Em seu uso corrente, quando falamos de um “homem 
poderoso” ou de uma “personalidade poderosa”, já usamos a palavra 
“poder” metaforicamente; aquilo a que nos referimos sem a metáfora é 
o vigor.8 
 
5COSTA, Helrison. Poder e Violência no pensamento de Michel Foucault. Belo Horizonte: Sapere Aude, 
2018, p.155; 
6 Para Hannah Arendt “todas as instituições políticas são manifestações e materializações do poder”. In. 
ARENDT, Hannah. Sobre a violência/ Hannah Arendt; tradução de André de Macedo Duarte. – 11ª ed. – 
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020; 
7 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23. ed. São Paulo: Graal, 2004, p.193; 
8 ARENDT, Hannah. Op.Cit., 2020, p.61; 
 
22 
 
 
Portanto, a capilarização do poder nos permite entendê-lo nas relações sociais. 
Onde existem pessoas, o poder está presente.9 Para Deleuze força e poder tem uma 
relação direta. De acordo com o autor, a força não pode ser usada no singular, pois uma 
força está sempre em relação com outra força. Ou seja, “toda força já é relação, isto é, 
poder”. Foucault pensa em “relações de poder” como ideia de força.10 Porém, não são 
sinônimos de opressão ou violência. Assim, trabalhamos o poder como relação. São 
relações assimétricas, que se detecta certo grau de autoridade e obediência. Porém, não 
são exercidas sempre de maneira violenta. A violência é instrumentalizada pelos poderes 
com intuitos diversos e pode ser utilizada, inclusive, como resistência pelos submetidos. 
Em vista disso, poder e violência são dois elementos que se associam e se 
perpetuam através das relações sociais. No entanto, a capacidade da identificação de um 
ato como violento se altera conforme lugar e tempo. A compreensão da violência é 
determinada culturalmente pois “algumas pessoas tencionam ferir outras, mas com base 
em seus antecedentes culturais e suas crenças, não percebem seus atos como violentos”.11 
Inclusive, uma mesma sociedade têm diferentes entendimentos do fenômeno. Para Robert 
Muchembled 12 “a percepção do fenômeno varia no seio de uma mesma civilização, 
especialmente em função dos grupos sociais, das idadese do sexo”.13 
A estrutura social determina a capacidade de assimilação sobre um ato ser 
qualificado como violento ou não e, inclusive, utilizar-se desta capacidade de 
determinação, sempre associada com o poder, na legitimação do uso da violência. Uso 
este que, muitas vezes, guia as relações sociais. Relações que são pautadas por violência 
e, ao mesmo tempo, não percebidas desta forma. Neste caso, estamos falando da violência 
estrutural. Nesta modalidade, a intencionalidade não está na base. Ou seja, a violência 
existe mesmo sem a intenção de praticá-la. Sendo assim, não é imperativa a identificação 
de um emissor. A motivação dos atos está na estrutura da sociedade. A violência estrutural 
também é chamada de violência indireta. “A violência indireta provém da própria 
estrutura social: entre seres humanos, entre conjuntos de seres humanos (sociedades), 
 
9 Ver SANTOS, Paulo Rodrigues. A concepção de poder em Michel Foucault. 2016. In: Especiaria- 
Caderno de Ciências Humanas. V.16, n.28, jan/jun. 2016, p.261-280, pp.262-263; 
10 Ibidem, p.262; 
11 Cf. Walters RH, Parke RD. Social motivation, dependency, and susceptibility to social influence. In: 
Berkowitz L, ed. Advances in experimental social psychology. Vol. 1. New York, NY, Academic Press, 
1964 pp.231-276. 
12 MUCHEMBLED, Robert. História da Violência: do fim da Idade Média aos nossos dias/Robert 
Muchembled; tradução: Abner Chiqueri. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. 
13 Ibidem, p.13. 
 
23 
 
 
entre conjuntos de sociedades (alianças, regiões)”14 . Esta categoria de violência é a 
consequência de um processo de relações históricas que dão fruto às desigualdades. 
Conforme Johan Galtung: 
“Nós nos referimos ao tipo de violência onde há um agente que comete 
a violência como violência pessoal ou direta, e a violência onde não há 
ator como violência estrutural ou indireta. Em ambos os casos os 
indivíduos podem ser mortos ou mutilados, atingidos ou machucados 
em ambos os sentidos dessas palavras e manipulados por meio de 
estratégias e porretes. Mas enquanto no primeiro caso essas 
consequências podem ter sua origem traçada de volta até pessoas e 
agentes concretos, no segundo caso isso não é mais significativo. 
Talvez não haja nenhuma pessoa que diretamente cause danos a outra 
na estrutura. A violência é embutida na estrutura e aparece como 
desigualdade de poder e, consequentemente, como chances desiguais 
de vida.”15 
A capacidade socializadora da violência demonstra que a coesão das estruturas 
sociais se dá nas relações de força e na imposição de alguns grupos sobre outros. A 
imposição violenta sobre outros grupos não significa, necessariamente, que quem sofre a 
violência esteja num mesmo ambiente social-cultural compartilhado. Como é o caso da 
guerra entre duas sociedades distintas. O grupo ou os grupos (aliança) que vence(m) o 
conflito promove(m) a paz dos vencedores. O rito da paz nada mais é que que a afirmação 
da violência vencedora. 16 A imposição da estrutura de quem vence ocorre em muitos 
momentos por meio da reprodução de certas configurações através da força ou 
compensação material devida por parte daqueles que foram vencidos. Um exemplo pode 
ser a cobrança de tributos extras, multas e exclusões que promovem marginalização de 
um grupo social específico. As estruturas que estimulam a violência interna e externa à(s) 
sociedade(s) são legitimadas por uma outra categoria do fenômeno chamada de violência 
cultural. 
Essa categoria se expressa, por exemplo, quando se impõe modelos de 
comportamento à sociedade ou setores sociais submetidos. Esses modelos de 
comportamento guiam as estruturas que promovem a violência física, por exemplo. Em 
sua obra Paz por medios pacíficos: paz y conflito, desarrollo y civilización Johan Galtung 
 
14 GALTUNG, Johan. Op.Cit,, 2003, p.20; 
15 GALTUNG, Johan e Höivik. Structural and direct violence: A note on operationalization. Journal of 
Peace Research, vol. 8, no. 1, 1971, pp. 73–76. JSTOR, www.jstor.org/stable/422565; Acessado em 
11/02/2022; 
16 Cf.BENJAMIN, Walter. Para una crítica de la violência. In: Benjamin, Walter, Conceptos de filosofía de 
la historia, Buenos Aires, Terramar, 2007 Apud DEVIA, Cecília. Violencia y dominación en la Baja Edad 
Media castellana. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires : Editorial de la Facultad de Filosofía y 
Letras Universidad de Buenos Aires, 2014, p.28; 
http://www.jstor.org/stable/422565#_blank
 
24 
 
 
faz a seguinte pergunta: por que as pessoas matam? O próprio responde que “em parte 
porque assim foram socializadas, não diretamente para matar, mas, vendo que matar é 
legítimo em algumas ocasiões”.17 De acordo com Galtung, a legitimidade na prática da 
violência é baseada na cultura. No entanto, a mesma cultura que colabora para a 
legitimação de atos violentos também é utilizada para a promoção da paz.18 Nota-se que 
“a violência não é culturalmente aberrante, mas embutida nas estruturas de significado 
promovidas pela própria sociedade.” 19 
Na esfera da violência cultural se legitimam e se justificam as outras categorias 
citadas e que promovem, no âmbito discursivo, tais violências. São elementos embutidos 
na própria linguagem, fazendo desta linguagem uma das instâncias de perpetuação e 
fixação da violência numa sociedade. Ou seja, é a esfera simbólica da existência humana 
exemplificada nos mecanismos que dão sentido àquela. Por exemplo: religião, arte, 
ciência, etc. O aspecto cultural faz com que a violência direta e estrutural seja sentida 
como correta; ou pelo menos, não errada. 
 
1.2 A violência como instrumento político 
A utilização da violência como um meio para determinado fim é uma variante que 
precisa ser analisada de acordo com o recorte que se busca. Ou seja, o que se pretende no 
uso das mais variadas formas de violência? O uso político da violência só pode ser 
compreendido a partir, primeiramente, da concepção acerca deste político e o seu 
significado. Nosso entendimento de político empregado aqui se relaciona com a noção da 
Nova História Política, atrelada às novas maneiras de escrever a História desde Marc 
Bloch e a obra Os Reis Taumaturgos. O trabalho fundante de Bloch revolucionou a forma 
de pensar o político. No prefácio da obra, Le Goff afirma que Marc Bloch, fundando a 
 
17 GALTUNG, Johan. Op.cit, 2003, p.25. 
18 O argumento corrobora, inclusive, para demonstrar que guerra e violência são promovidas, 
majoritariamente, pelos homens. Os homens a promovem por estarem inseridos em culturas patriarcais que 
constroem papeis de gênero. Robert Muchembled afirma, por exemplo, que “o elo primordial não se 
estabelece entre violência e a masculinidade por esta ser um dado biológico. Liga-se com a virilidade, uma 
noção definida por cada sociedade, no quadro da determinação dos gêneros sexuais de que ela reconhece a 
existência”. 18 Ou seja, em sociedades patriarcais, grande parte dos atos de violência acabam sendo 
masculinos. 18 Porém, agir com virilidade pode, também, ser um comportamento feminino. A categoria 
“viril”, geralmente, se atrela ao papel do gênero masculino em sistemas patriarcais, mas não é exclusivo 
àquele. Cf. MUCHEMBLED, Robert. Op.Cit., 2012; 
19 SKOODA, Hannah. Medieval Violence: Physical Brutality in Northern France 1270-1330. Oxford: 
Oxford University Press, 2013, pp,1-2; 
 
25 
 
 
Antropologia Histórica, acaba apelando ao retorno da História Política. No entanto, uma 
História Política renovada na qual “[...] corre o fio condutor das coisas profundas, a busca 
de uma história total do poder, em todas as suas formas e com todos os seus 
instrumentos”. 20 Busca-se enxergar a política em vários âmbitos a partir de uma nova 
concepção de poder que proporcione“uma história do poder na qual este não esteja nem 
separado de suas bases rituais nem privado de suas imagens e de suas representações”. 21 
Embora alguns aspectos da obra clássicatenham sido superados, é perceptível a 
importância do historiador em seu caráter inovador. Esta nova maneira pensa a política 
numa mudança de compreensão sobre o que é poder. Para o entendimento desta nova 
História Política é necessário, conforme José D’Assunção Barros, 22 um vislumbre sobre 
os recentes interesses da área, como o discurso, o imaginário, o teatro do poder, a história 
das ideias políticas, a história conceitual e as modalidades historiográficas híbridas que 
conectam a história política com outros campos de estudo, tal como a história cultural. 23 
De acordo com o autor, o conceito de política se beneficiou da expansão da concepção de 
poder, assim como a noção de cultura nos estudos antropológicos. Da mesma forma que 
a cultura não se situa somente nas elites e na ideia de um conhecimento restrito, a política 
e o poder não são encontrados apenas no âmbito do Estado: 
“Estes objetos só puderam surgir quando se transmudou efetivamente a 
noção de “poder” com a qual até então os historiadores haviam operado. 
Quando atentaram para o fato de que o Poder não se encontra 
necessariamente no aparelho estatal e em outras formas de centralidade 
política, e nem mesmo exclusivamente no seio das classes dominantes, 
os historiadores políticos começaram a se voltar para o estudo das 
‘relações interindividuais’ – da família, das vizinhanças, da vida 
cotidiana – e também para o estudo dos ‘discursos’ e ‘representações’. 
Compreendiam agora, concomitantemente à descoberta de novas 
possibilidades de objetos de estudo, que o Poder não está 
necessariamente onde se anuncia, de que esse mesmo poder pode se 
esconder nas palavras, nas tecnologias de poder relacionadas com a 
construção de discursos.”24 
A noção apresentada aqui é a compreensão do político em seus diversos aspectos, 
nos variados estratos da sociedade e não apenas num âmbito específico. “os objetos da 
 
20 LE GOFF, Jacques. Prefácio in: BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: O caráter sobrenatural do poder 
régio, França e Inglaterra/ tradução Júlia Mainardi. – 2ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras,2018, p.42 
21 Ibidem, p.42. 
22 BARROS, José D’ Assunção. BARROS, José D, Assunção. História Política: da expansão conceitual 
às novas conexões intradisciplinares. OPSIS, Catalão, v. 12, n. 1, p. 29-55, 2012. Disponível em 
https://www.revistas.ufg.br/Opsis/article/view/17338. Acessado em 11/04/2021; 
23 Ibidem, p.29; 
24 Ibidem, p.34; 
https://www.revistas.ufg.br/Opsis/article/view/17338
 
26 
 
 
História Política passam a ser todos aqueles que se mostrem atravessados pela noção de 
“poder” em todas as direções e sentidos, e não mais exclusivamente de uma perspectiva 
da centralidade estatal ou da imposição dos grupos dominantes de uma sociedade”.25 
Sendo assim, a violência, como instrumento político, ultrapassa aquilo que geralmente se 
pensa sobre ela. Um instrumento que vai além da prática de uma guerra ou de conflitos. 
Se a noção de política e poder abarca os mais variados aspectos, a violência segue 
caminho semelhante. O emprego de atos violentos como política é algo além da agressão 
física. A política que usa a violência como instrumento se utiliza dos símbolos, do 
discurso, do apagamento e da exclusão. Estes elementos legitimam e promovem o ato 
físico, que se torna o mais visível. O fato (o ato físico) está inserido numa conjuntura e a 
conjuntura alimenta o fato. São partes de um todo que dialogam e se legitimam. 
No entanto, embora o poder e a violência estejam presentes em diversos âmbitos, 
a capacidade de apropriação de sua legitimidade, da justificativa e do próprio emprego 
do termo (é violência ou não é violência) se atrela aos poder com capacidade para tal. 
Pois este poder é fruto dos sistemas que o mantém capaz em sua dominação. A formação 
do discurso acerca da violência produz os regimes de verdade que excluem àqueles que 
não estão incluídos nestes regimes. 26 
A violência, como instrumento, é racional. Para Foucault 27 “o que existe de mais 
perigoso na violência é sua racionalidade. Certamente, a violência é em si mesma 
horrível, mas a violência encontra sua ancoragem mais profunda na forma da 
racionalidade que nós usamos”.28 O que notamos, na concepção de Foucault, é que a 
razão está na conduta humana e, portanto, a utilização da violência encontra uma maneira 
de ser. O poder que se utiliza da violência o faz pautado na razão, pois a prova cabal da 
racionalidade é a própria justificativa. O poder justifica a violência através de diversos 
dispositivos. De acordo com Foucault “entre a violência e a racionalidade não há 
incompatibilidade”. 29 No entanto, quando se fala da razão do poder que justifica o 
emprego desta violência é preciso a abordagem das “razões”, pois “a razão”, no singular, 
é incompatível com as propostas de Foucault. O uso de “razões”, no plural, visa a 
 
25 Ibidem, p.32. 
26 Cf. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996; 
27 FOUCAULT, Michel. étudie la raison d’État. Dits et écrits II- 1976-1988. Paris : Gallimard, 2001; 
28 Ibidem, pp-857-858; 
29 Ibidem, pp- 857-858; 
 
27 
 
 
compreesão do fenômeno como histórico, de acordo com as lógicas próprias de cada 
período. 
A violência e a capacidade de interpretá-la como tal, assim como sua utilização, 
varia conforme a episteme da época. São expressões diversas das razões que movimentam 
os poderes. Ou seja, “proeminentemente política, a violência não é uma ideia universal. 
É uma categoria histórica, variável, aberta a diferentes entendimentos do justo e do 
injusto, do aceitável e do repugnável, do útil e do nulo”. 30 
O poder que detém a autoridade se apropria do discurso e constrói uma verdade 
sobre o uso da violência, fazendo desta um instrumento, inclusive, na determinação de 
um ato como legítimo, ilegítimo, violento ou não violento. A compreensão da 
racionalidade existente nas práticas deste poder permite alcançar o âmago de seus 
objetivos. Um meio para um fim e não um fim em si mesmo. A violência é racional, e 
não um instrumento neutro e ilógico. Neste sentido, o uso e a capacidade de 
reconhecimento da violência não é inata ao ser humano e sim "resultado dos 
procedimentos políticos que predominam numa época, isto é, é efeito de formas 
difundidas de classificação das ações segundo as razões, os motivos e os interesses de 
certos grupos”. 31 
O controle da licitude de algo passa, muitas vezes, pela forma como se intitula 
determinadas ações. A não-percecpão de uma atitude, uma política ou uma relação social 
como violenta diz bastante sobre a época analisada e sua produção de verdades. Sendo 
assim, “o controle da legitimidade passa, em grande medida, pelos nomes que se dá à 
violência, pela definição que se impõe dos conflitos [...] qualificar um ato ou processo 
violento com um nome determinado implica outorgar um significado que não se pode 
entender separado das relações de poder e dominação que o produz”.32 
O discurso é uma destas instâncias de produção e legitimação do fenômeno em si. 
A difusão de um discurso acerca de uma realidade produz efeitos de verdade permeadas 
de efeitos de poder. O objeto do discurso não o funda, mas o jogo de regras que definem 
as transformações destes objetos. Ou seja, a existência do fenômeno da violência não 
 
30 RUST, Leandro Duarte. Bispos Guerreiros: violência e fé antes das Cruzadas. Petrópolis, RJ: Vozes, 
2018, p.115; 
31 Ibidem, p.114; 
32 ALFONSO, Antón Isabel. Introdução in: Alfonso Antón, Isabel - Escalona, Julio - Martin, Georges 
(Coords.), Lucha política. Condena y legitimación en la España medieval, Annexes des Cahiers de 
linguistique et de civilisation hispaniques médiévales, N° 16, 2004; 
 
28 
 
 
produz o discurso sobre esta, mas os discursos que qualificam o ato violento que tem a 
capacidade na construção de uma verdade acerca daquela. Esta vontade de verdade muda 
de acordo com a época. 
Como instrumentopolítico, a violência acaba tendo funções. O poder quando se 
utiliza do fenômeno acaba (de forma intencional ou não) desempenhando papeis para 
estas violências. Em sua tese de doutoramento intitulada Violencia y Dominación en La 
Baja Edad Media Castellana,33 a historiadora Cecilia Devia enumera sete funções da 
violência: função socializadora, função de troca, função econômica, função de justiça, 
função fundacional, função cultural, função simbólica. Em nossa pesquisa, utilizaremos 
das funções socializadora, de justiça, cultural e simbólica. Adiante aplicaremos 
devidamente estas funções ao nosso recorte. 
A função socializadora da violência promove junção e dispersão. O ser humano é 
um ser social e em suas relações a linguagem promove distintas interpretações a respeito 
daquilo que o cerca. As interpretações acerca de si e dos outros são construídas no âmbito 
desta socialização que gera certa coesão. A coesão não evita conflitos internos, mas a 
conduta em relação ao outro perdura através de uma construção que gera o rechaço. Todo 
grupo que se constitui uno diante dos outros promove sua própria identidade através do 
estabelecimendo daquilo que não é. A capacidade de se pensar como “nós” exclui o 
estranho. Esta exclusão se dá, muitas vezes, de forma violenta. De acordo com Cornelius 
Castoriadis34 decorre da instituição social uma necessidade no reforço de sua posição 
através de leis, valores, regras e significações próprias. Quando se verifica o encontro de 
uma sociedade com outras, geralmente, existem três possibilidades de avaliação. Estes 
“outros” são superiores, iguais ou inferiores. 
A constituição de uma unidade (por mais que haja fragmentações internas) 
pressupõe fronteiras. Embora estas fronteiras sejam voláteis, a distinção e a separação são 
partes da sociabilidade. A elaboração destas diviões separa e distingue. Na distinção, 
violências são infligidas tanto interna quanto externamente. Internamente através das 
divisões sociais e das hierarquias que se constituem pelo domínio material. Inclusive, 
muitas unidades são constituídas por imposição. Externamente, no plano perceptível do 
 
33 DEVIA, Cecília. Violencia y dominación en la Baja Edad Media castellana. - 1a ed. - Ciudad Autónoma 
de Buenos Aires : Editorial de la Facultad de Filosofía y Letras Universidad de Buenos Aires, 2014; 
34 CASTORIADIS, Cornelius. “Las raíces psíquicas y sociales del odio”, en Castoriadis, Cornelius, Figuras 
de lo pensable (Las encrucijadas del laberinto VI), Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2001, pp. 
183-196; 
 
29 
 
 
“outro”. Através do contato com o outro, pode haver recusa ou aproximação. Geralmente, 
algumas aproximações se efetuam com o intuito de empreender conflito diante de um 
terceiro grupo, que pode ser um rival em comum. A guerra implica em alianças, mesmo 
que estas se rompam em algum momento. No entanto, nem todas as relações sociais são 
baseadas completamente na violência. Porém, é possível uma reflexão sobre o fenômeno 
como um promotor de socialização. Conforme relata Muchembled “a brutalidade das 
relações humanas compõe uma linguagem social universal considerada normal e 
necessária no Ocidente até pelo menos o século XVIII ”.35 
As identidades estruturam um grupo através de políticas, lógicas, 
compartilhamento de ideias, cultura etc. Estas identidades impelem as diferenças. Ao se 
estabelecerem dessa forma, nas relações sociais, estes elementos se definem (identidade 
e diferença) discursivamente, linguisticamente e performaticamente. Para Tomás Tadeu 
da Silva36 tais definições estão sujeitas a vetores da força e relações de poder. Portanto, 
as identidades podem promover a violência. “O poder de definir identidade e de marcar 
a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder”.37 Poder que 
normaliza e hierarquiza. A promoção destas hierarquias não é feita sem a presença de 
violência. 38 
A função de justiça na aplicação da violencia está ligada ao que se considera justo 
no período em análise. Porém, justiça e direito são coisas distintas e muitas vezes 
associadas como o mesmo princípio. As justiças que promovem a violência estão ligadas 
às leis escritas ou ao costume. A execução da justiça e sua concepção para a sociedade 
que a produz e reproduz está atrelada aos elementos não fixados. Em outras palavras, 
aquele que cria e aplica a justiça pode ser uma pessoa, um grupo de pessoas ou um 
elemento abstrato, como o Estado. O Estado não é meta-histórico e sua criação é fruto 
das relações entre as pessoas. Ou seja, faz parte do social. No entanto, a justiça se aplica 
de forma diferente num Estado burguês, pois este detém configurações que atribuem o 
exercício da justiça ao poder responsável por sua constituição e o promotor, neste 
contexto, é um artefato “neutro”. Ou assim se constrói a imagem acerca desta 
neutralidade. O Estado não é neutro, mas o discurso o apresenta desta maneira. O 
 
35 MUCHEMBLED, Robert. Op.Cit., 2012, p.8; 
36 Cf. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu 
da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 11.ed.- Petrópolis, RJ: Vozes, 2012; 
37 Ibidem, p.81. 
38 A violência estrutural e cultural, que se encontram na base da legitimação da violência direta. Cf. 
GALTUNG, Johan. Op.Cit., 2003. 
 
30 
 
 
elemento da justiça se conecta com a ideia de reparação. Esta reparação busca uma 
recuperação ou equilíbrio de um mal perpetrado no seio de uma sociedade. Um mal que 
é avaliado por um grupo que, como tal, impõe o necessário para sua tentativa de 
superação. A justiça pode ser analisada como uma vingança institucionalizada. A justiça 
que executa assassinatos é vista, também, sob este ângulo. Uma justiça baseada na 
equidade está ausente em sociedades desiguais. Desta forma, o exercício dessa justiça 
encontra-se, em sua base, equivocada. O lado que detém a autoridade é quem comanda a 
aplicação da justiça. Sendo assim, a justiça tem um lado e esse lado constrói sua 
concepção de justo baseado na vingança. 
 O direito, que se distingue da justiça, não é aplicável sem a justiça. Por isso, 
conforme afirma Jacques Derrida 39, a relação justiça-direito é paradoxal já que a justiça 
tem necessidade do direito para ser efetiva. Ou seja, “se a justiça não é necessariamente 
o direito ou a lei, ela só pode tornar-se justiça, por direito ou em direito, quando detém a 
força, ou antes quando recorre à força”.40 A análise de Derrida estabelece a busca de uma 
justiça que não seria a pura aplicação das leis. Quando a justiça se atrela ao direito ela se 
torna violenta, pois a lei só é aplicada com o uso da força.41 Portanto, nossa análise de 
violência e justiça está atrelada à justiça quando utilizada para a aplicação do direito, que 
necessita se revestir de um caráter justo para a sua legitimidade e aplicabilidade. A justiça 
é uma das funções dos reis e da violência cristã nos séculos XI e XII, conforme será 
demonstrado adiante. 
A vingança foi, por muito tempo, unma das bases da honra. A honra ofendida 
deveria ser respondida de maneira equivalente até que a retratação da ofensa fosse 
alcançada. A reparação daquele que porta a vestimenta do justo se aplica, muitas vezes, 
na utilização da violência. Porém, esta violência pode ser chamada apenas de justiça. 42 
Tudo depende de quem determina um discurso integrado ao regime de verdade, 
nomeando os atos. Violência e justiça se combinam e se separam numa linha tênue de 
interpretações que variam conforme os detentores da “verdade”. 43 Um mesmo ato pode 
ser nomeado de justiça ou violência de acordo com a lógica temporal e regional, pois a 
violência não é um fenômeno dado. Existem outras lógicas e o entendimento das 
 
39 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. 
São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.17; 
40 Ibidem, p.17; 
41 Ibidem,p.08; 
42 Justiça que se atrela ao direito. Seja o direito natural ou o direito positivado. 
43 Aqui se aplica o regime de verdade foucaultiano. Cf. FOUCAULT, Michel. Op.Cit., 1996; 
 
31 
 
 
diferença é um exercício complexo na percepção de realidades distintas lidando com o 
que, aparentemente, é igual. Violência para uns e justiça para outros, pois a linguagem 
existe no tempo. Não é por acaso que a imagem da justiça é representada, desde tempos 
antigos, por uma arma (espada, lança, adaga etc). A ideia sobre ser um ou outro fica na 
dependência de alguém ter autoridade para torna-la verdadeira. Trata-se de uma criação, 
ligada aos interesses do poder dominante, ou que se pretende dominante. Verdade e 
realidade não são sinônimos na análise acima, mas dois aspectos distintos. Um discurso 
sobre uma realidade é a construção de uma verdade. Uma ideia só se torna verdade se 
estiver no regime de verdade.44 
Quando atrelamos justiça à paz relacionamos esta paz, muitas vezes, como o 
contrário da violência. Todavia, a análise não se dá desta maneira. A noção de paz 
vincula-se à violência conforme a sociedade. Abordamos acima o tema da representação 
imagética da justiça, onde há uma pessoa na posse de uma arma. A arma representa a 
força com a qual se exerce a justiça. A força não significa, necessariamente, violência. 
No entanto, quando se faz uso da força contra outra pessoa ou grupo de pessoas aí se 
encontra a violência. A forma como se aplica a justiça está atrelada ao uso da força e, 
desta maneira, é importante compreender qual a imagem existente em dada sociedade 
acerca da aplicação de ambas. 
A função cultural da violência estabelece a base que legitima os atos e as 
desigualdades. A vingança é um exemplo de um fenômeno que encontra legitimidade 
numa cultura que se engendra desta forma. Para vislumbrar esta função cultural da 
violência é necessário a compreensão que a violência cultural e seu estudo explica a 
violência direta e estrutural.45 Na análise de Johan Galtung “uma das maneiras de atuação 
da violência cultural é modificar a cor moral de um ato, passando do roxo/incorreto ao 
verde/correto ou, ao menos, ao amarelo/aceitável”.46 Para Galtung, a violência cultural 
faz da realidade algo opaco, pois diversas vezes alguns atos violentos não são vistos como 
tais. 47 
Johan Galtung aponta um quadro de quatro necessidades básicas da humanidade. 
Estas necessidades são garantias que se consolidam na ausência de certos tipos de 
 
44 Cf. FOUCAULT, Michel. Ibidem; 
45 GALTUNG, Johan. Op.cit, 2003, p.262; 
46 Ibidem, p.262; 
47 Ibidem, p.262; 
 
32 
 
 
violência .48 Ao contrário, quando um tipo de violação ocorre há a negação destas 
necessidades. Vejamos ( necessidades e violências): necessidade de sobrevivência, onde 
não pode ocorrer a violência da morte provocada nem a mortalidade; necessidade do bem-
estar, que só é possível sem o sofrimento físico ou mental e sem a falta de saúde; a 
necessidade da representação, que se dá na negação da violência da alienação ou 
exclusão; por último, a necessidade da liberdade que se dá onde não existe repressão. A 
negação destas necessidades ocorrem numa sociedade permeada pela violência cultural. 
Uma estrutura violenta, legitimada culturalmente, deixa marcas não apenas no corpo, mas 
na mente e no espírito. 49 
A função simbólica da violência se confunde, muitas vezes, com a cultural pois 
se encontra na linguagem e nas diversas instâncias sociais que legitimam os atos e 
políticas diversas. Para Cecília Sardenberg, é na linguagem que se manifesta e produz 
essa violência simbólica. Tais produções estão no âmbito da arte, da religião, das leis e 
“outros sistemas simbólicos, que reforçam as relações assimétricas e hegemônicas, 
desqualificações, preconceitos e violências de todo o tipo. A violência simbólica se 
infiltra por toda a cultura, legitimando os outros tipos de violência”.50 O poder também 
se mantém por meio destas lógicas simbólicas através do uso violento já que “a função 
simbólica da violência é também uma forma de construir poder, porém de uma maneira 
eufemizada, as vezes mais sútil, por meios de ritos etc”.51 
A manutenção das desigualdades e do acesso restrito aos privilégios materiais 
proprociona ao poder hegemônico a utilização desta função simbólica da violência. A 
dominação no âmbito do discurso e a busca por legitimação, fazendo uso dos arcabouços 
propícios, cria uma base que sustenta certos poderes e faz da violência simbólica um 
elemento de difícil percepção já que está interiorizada no social de tal forma que sua 
identificação não é sentida ou, ao menos, vista como necessária. Ou seja, é mister que um 
segmento social esteja no comando, exerça exploração e se mantenha assim através da 
circulação de símbolos, doutrinas, leis etc. Se constrói um poder pautado na necessidade 
deste poder para o bem de uma sociedade. 
 
48 São violências que se geram dentro da violência cultural, estrutural e direta. Para maiores detalhes ver: 
GALTUNG, Johan. Op.Cit., 2003; 
49 Ibidem, p.264; 
50 SARDENBERG, C.M.B. A Violência simbólica de gênero e a lei antibaixaria na Bahia. Observe: 
NEIM/UFBA, 2011. Disponível em http://www.neim.ufba.br/wp/wp-content/uploads/2019/08/violencia-
de-genero-repositorio.pdf. Acessado em 28/01/2022; 
51 DEVIA, Cecília. Op. Cit., 2014, pp.243; 
 
33 
 
 
As funções da violência que foram citadas serão apresentadas na análise da 
conquista de Lisboa. A investigação pauta-se num campo teórico moderno, do qual se 
apresentam concepções de violência que são vistas assim a partir de nossa 
contemporaneidade. Porém, um questionamento é necessário: como utilizamos, sem 
anacronismos, desta perspectiva teórica para os séculos XI e XII? 
A pesquisa em etnomodelagem aponta um caminho. A dialética entre o êmico e o 
ético descortinam uma cultura e suas categorias internas na observação e análise com as 
ferramentas teóricas propícias de investigação. Os termos em si (êmico e ético) são 
analogias em relação aos observadores de “dentro” e de “fora”. Em outras palavras, a 
abordagem ética é uma análise dos aspectos de uma cultura com as categorias daqueles 
que pesquisam (historiadores, antropólogos etc), geralmente com conceitos abrangentes 
e que traduzam para o âmbito acadêmico o que foi empiricamente verificado. A 
abordagem êmica visa a compreensão de uma cultura com base em suas próprias 
referências; ou seja, em sua interioridade. 52 
 Uma pesquisa em História Medieval que esteja ancorada em referenciais da 
própria sociedade analisada é baseada numa abordagem êmica. Por exemplo a análise da 
violência nos séculos XI e XII tendo por base apenas o que as pessoas do período 
entendiam como algo violento, faz da pesquisa um trabalho êmico. Porém, se sobrevém 
uma prioridade no uso de categorias modernas de violência o trabalho está situado na 
perpectiva ética. Não obstante, existe uma outra categoria de análise na etnomodelagem 
que coloca a dialética como uma possibilidade para o pesquisador. John Berry53 aponta 
que, mesmo que pareçam conflitantes, em alguns momentos, tais abordagens podem ser 
complementares. A partir deste raciocínio, em vez de um conflito entre as perspectivas, 
se realiza um salto qualitativo na compreensão sobre questões importantes na 
investigação.54 O que essa abordagem dialética torna possível é que os investigadores 
possam ser tanto observadores internos quanto externos de um contexto cultural.55 Ou 
seja “a especificidade cultural pode ser mais bem compreendida se embasada na 
comunidade e na universalidade de teorias e métodos”.56 
 
52 Cf. ROSA, Milton e OREY, Daniel Clark. Op.Cit., 2012; 
53 BERRY, John. Emics and etics: a symbiotic conception. Culture & Psychology, v. 5, p. 165-171, 1999; 
54 ROSA, Milton e OREY, Daniel Clark. Op. Cit, 2012, p.872. 
55 Ibidem, p.873; 
56 Ibidem, p.873; 
 
34 
 
 
Dentro do que foi dito, nossa análisefoca na perspectiva dialética. Com esta 
proposta dialética, entenderemos o fenômeno da violência atualmente, estabelecendo um 
diálogo com as noções percebidas em nosso recorte temporal e local. O estabelecimento 
deste diálogo a partir da atualidade na visualização das ideias em circulação no medievo 
nos auxilia na comprreensão daquilo que parece, muitas vezes, latente aos nossos olhos, 
mas tem uma lógica própria. Uma ressalva precisa ser estabelecida: a parte êmica da 
dialética demanda ser entendida dentro das limitações existentes. O acesso ao passado 
está condicionado pelos vestígios legados por uma parcela específica da sociedade. Na 
Idade Média Central significa uma parcela diminuta das pessoas. Estas pessoas, aqui, são 
os homens da Igreja. O medievalista, ao contrário do etnógrafo, não habita na sociedade 
que pesquisa. Sendo assim, como a violência era vista nos séculos XI e XII na Cristandade 
Latina? Como os poderes laicos e eclesiásticos percebiam o fenômeno e como ele era 
construído discursivamente nestas camadas abastadas do medievo? Buscaremos 
responder a seguir 
 
1.3 A violência nos séculos XI e XII 
Existia uma noção de violência entre as pessoas do medievo? A violência era 
normalizada e celebrada com um êxtase que chocaria qualquer pessoa do nosso tempo? 
As perguntas não são retóricas e a complexidade destas questões nos leva a um primeiro 
desdobramento: ser violento pro período em questão não significa, necessariamente, 
matar, mutilar ou derramar sangue. A capacidade de reconhecimento da violência não se 
atrela às moralidades atuais e sim conforme os interesses políticos em classificar algo 
como violento. O mesmo ato recebe, muitas vezes, nomes distintos. “Dilacerar o corpo 
não era o suficiente para caracterizar a violência”.57 A concepção cristã que o messias 
salvou a humanidade com o sangue que saiu de suas chagas faz deste mesmo sangue um 
elemento de purificação capaz de limpar o mundo dos pecados. Portanto, o derramamento 
do sangue de um inimigo poderia ser visto como um ato piedoso de salvação e expurgação 
do mal que pairava sobre a Cristandade. O problema não era o sangue, mas o motivo pelo 
qual foi derramado e de que forma ele banhou o chão. 
Antes de uma análise da violência nos séculos XI e XII um paralelo precisa ser 
traçado para que o trato com o tema não perpetue um estereótipo sobre o medievo. Afinal, 
 
57 RUST, Duarte Leandro. Op.Cit., 2018, p.114; 
 
35 
 
 
a violência estava em todo o canto e ditava as relações sociais? As pessoas do período 
dormiam e acordavam sem a certeza se ao fim do dia estariam vivas? As batalhas entre 
cavaleiros eram tão constantes que a morte cantava diariamente aos ouvidos destes 
combatentes? Vamos por etapas. A violência física nem sempre ditava as relações. A 
medievalística foi responsável pela perpetuação, por algum tempo, sobre esta visão da 
Idade Média como um período descontrolado e permeado de violências cotidianas que 
faziam da sociedade feudal um ambiente extremamente conturbado. 
Os ecos de Norbert Elias ainda estão presentes em muitos trabalhos que tratam da 
Idade Média. Para Elias “a vida na sociedade medieval tendia na direção oposta.58 A 
pilhagem, a guerra, a caça de homens e animais -todas essas eram necessidades vitais que, 
devido à estrutura da sociedade, ficavam à vista de todos”.59 A lógica de Elias atribui o 
controle das emoções a mecanismos dotados de racionalidade. A própria noção de 
racionalidade fica atrelada às instituições modernas, como se o período anterior não fosse 
capaz de produzir maneiras de contenção ou racionalização nas relações e na violência 
existente. Elias fala de uma desinibição em comparação aos tempos modernos acerca de 
uma alegria em relação a crueldade. 60 
 O sociólogo utiliza canções de gesta na sua comprovação sobre a existência de 
um descontrole da violência. Elias faz uso de crônicas que eram escritas na maior parte 
por religiosos. Primeiro, muitas chansons não retratavam, necessariamente, uma 
realidade, mas buscavam impor certos modelos, pois “os heróis das canções de gesta estão 
submetidos aos imperativos de uma moral da honra”. 61 A honra está atrelada ao 
comportamento violento? Algumas vezes sim, pois o emprego da força contra outras 
pessoas é, em diversos casos, condição sine qua non para os cavaleiros em conflito. 
Porém, a tentativa de imposição de um comportamento não significa a sua realização. O 
Segundo aspecto é sobre a documentação produzida pela Igreja que, muitas vezes, 
exagera sobre as espoliações da aristocracia laica. As espoliações são retratadas em níveis 
dramáticos em relação ao ocorrido, numa estratégia discursiva que aborda a violência e 
os assaltos como práticas constantes. ParaJean Flori “os pequenos senhores não fizeram 
reinar em todas as partes o terror de seus exércitos [...] como deploram tantas declarações 
 
58 Oposta ao controle social; 
59 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador/ Norbert Elias; tradução Ruy Jungman; revisão e apresentação 
, Renato Janine Ribeiro. – 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p.191; 
60 Ibidem, p.191 
61 BARTHÉLEMY, Dominique. A cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII; Tradução: Néri 
de Barros Almeida e Carolina Gual da Silva. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p.468; 
 
36 
 
 
conciliares”.62 Não negamos a existência dos confrontos como parte do cotidiano e, de 
certa forma, como uma maneira de reprodução daquelas sociedades. Porém, muitos 
relatos documentais exageram63 e foram levados ao pé da letra por alguns autores. 
A Sociedade Feudal de Marc Bloch, embora um clássico, também contribuiu na 
construção desta imagem do período: “havia por detrás de toda a vida social um fundo de 
primitivismo, de submissão aos elementos indisciplináveis, de contrastes físicos que não 
podiam ser atenuados”.64 No mesmo livro, Bloch fala de uma idade feudal impregnada 
de alto a baixo pelo gosto da violência 65 como marca de uma época e de um sistema 
social. 66 Bloch faz análises do direito, do convívio e das relações baseadas no caráter 
violento, atribuindo uma conturbação cotidiana às idades feudais que analisa. Essa 
violência como linguagem social está presente, mas não precisamos considerá-la ao pé 
da letra, como muitas vezes a documentação sugere. Ou seja, não existe um brusco 
descontrole ou ausência de contenção, conforme Norbert Elias situa, ao afirmar que não 
havia poder social punitivo.67 Transcorre um engano, de certa forma, ao imaginar que o 
período passa por um estado imanente de violência, descontrole e sem mecanismos que 
busquem a moderação. A lógica do “primitivismo” de Bloch não se sustenta pois até em 
sociedades ditas primitivas que a Antropologia68 analisa não há um estado de guerra de 
todos contra todos. 
Existe uma tendência em enxergar o sistema feudal cercado por descontrole cuja 
inexistência de regras levou à rudeza de espíritos instáveis que promoviam violência 
cotidiana. A tese da “anarquia feudal” que mergulha a Francia Ocidental em desordem e 
guerra civil promovida por cavaleiros desobedientes foi paradigmática por certo tempo.69 
Dominique Barthélemy nega esta anarquia. Para o historiador francês “a reputação de 
rudeza e de violência sem freios da primeira idade feudal (por volta de 880-1040) procede 
 
62 FLORI, Jean. La guerra santa – La formación de la idea de cruzada en el Occidente cristiano. Madrid: 
Editorial Trota, 2003, p.111; 
63 Jean Flori relata que era uma maneira da Igreja se preservar das espoliações que sofria. Porém, segundo 
o historiador francês, esses ataques não se resumiam apenas aos saques, mas também se referiam em 
contestações patrimoniais diante da justiça. Para maiores detalhes ver FLORI, Jean. La guerra santa – La 
formación de la idea de cruzada en el Occidente cristiano. Madrid: Editorial Trota, 2003; 
64 BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa, Edições 70, p.93; 
65 Ibidem, p.321;66 Ibidem, p.450; 
67 ELIAS, Norbert. Op. Cit., p.192; 
68 CLASTRES, Pierre. Arqueologia de la violência: la guerra em las sociedades primitivas. p.52 
69 Ver: BONNASSIE, Pierre – Cataluña mil años atrás (siglos X-XI). Barcelona: Península, 1978; 
GUIZOT, François. Histoire de la civilisation em France depus de la chute de l’Empire romain. Paris, 
Didier, 1846; 
 
37 
 
 
com frequência do fato que eles a creem diretamente refletida nas canções de gesta”.70 
Barthélemy não vê uma revolução feudal, mas uma espécie de mutação feudal. A 
tendência de pensar o mundo pós-carolíngio mergulhado em desordem é fruto da 
“idealização do Estado carolíngio” que estebelece uma leitura moderna demais para o 
período. A existência de um possível Estado e seu posterior desaparecimento lança 
lógicas contemporâneas que enxergam na ausência do poder estatal um mundo de caos, 
onde a falta de poderes que controlem uma sociedade lancem as comunidades em guerras 
de todos contra todos. Uma leitura hobbesiana do sistema feudal. 
Indo ao encontro das análises de Barthélemy, entendemos que ocorre um rearranjo 
no período situado entre os séculos X e XIII, mas não uma ruptura. A autoridade não 
cessa ou desaparece, mas se torna capilar. O sistema feudal se reproduz pela violência, 
muitas vezes, mas não faz reinar um pandemônio cercado pela ausência de contenções ou 
buscas pela moderação. Ou seja, Pierre Bonassie talvez tenha exagerado ao falar de “uma 
espiral de violência” 71 onde, a partir do ano mil, o sangue começou a fluir.72 
Stephen White73 e Abel López74 consideram inapropriado falar de instabilidade 
emocional já que as “manifestações de ira e ódio não produziam de forma automática atos 
irracionais de violência”.75 Embora a violência76 seja parte constitutiva da aristocracia, 
existem instrumentos que buscam o controle destes atos e que são, de certa maneira, 
eficazes. Além disso, o que chamamos de violência era visto como um direito a ser 
exercido por esta camada detentora do poder. Porém, não é desenfreada ou sem lógica. 
As assembleias de paz promovidas na região da Gália são expressões desta tentativa de 
controle e falaremos delas adiante. No entanto, a conhecida Paz de Deus visa ser um 
instrumento atenuante do “efeito colateral do regime feudal “77e não tem relação com um 
movimento antifeudal. Estas assembleias não negam os direitos dos senhores em fazer 
guerra, mas buscam a proteção do patrimônio eclesiástico das espoliações promovidas 
por aqueles. 
 
70 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, p.146; 
71 BONNASSIE, Pierre Op Cit, 1978, p.237; 
72 Ibidem; 
73 WHITE, Stephen. The Politics of Anger. Anger´s Past, editado por Barbara Rosenwein. Ithaca: Cornell 
Univerity Press, 1998; 
74 LOPEZ, Abel. Violência, paz e justiça na Idade Média. Mem. Soc. [online]. 2017. Disponível 
emhttp://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0122-51972017000100082. Acessado 
em 11/04/2021; 
75 WHITE, Stephen. Op. Cit, 1998, p.147; 
76 Violência como vemos hoje 
77 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, pp.190-196; 
http://www.scielo.org.co/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=article%255Edlibrary&format=iso.pft&lang=i&nextAction=lnk&indexSearch=AU&exprSearch=LOPEZ,+ABEL
http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0122-51972017000100082
 
38 
 
 
Além das assembleias, as imposições acerca de comportamento considerados 
lícitos ou ilícitos são muito difundidos nos miracula. Estas histórias falam acerca da 
moralidade e de algumas percepções que circulam em dada época. Estes relatos, muitas 
vezes anônimos, “são reunidos em coleções que são apanágio de estabelecimentos 
eclesiásticos (santuário, mosteiro) tem por função aumentar a reputação destes últimos 
pelos relatos dos acontecimentos miraculosos que ali se produziram”. 78 Os 
acontecimentos tem ligação, geralmente, com um santo local. Os participantes destes 
miracula são os mais diversos tipos sociais, demonstrando a tentativa de difusão de uma 
mensagem para a Cristandade no geral.79 Dentre os temas mais recorrentes identificamos 
as condenações de certos comportamentos. Dentre os castigos em relação às condutas 
reprováveis se manifestam muitas vezes ataques físicos, doenças das mais variadas, entre 
outras punições. 
Os textos hagiográficos têm aspectos diferentes: martirólogos, legendários, 
revelações, as vidas, os relatos de milagres, os processos de canonização, os relatos de 
transladação etc. As hagiografias misturam o maravilhoso com o real como forma de 
construção de uma verdade. Neste regime de verdade, se verifica um sistema de valores. 
A vida do santo divulga exemplos a partir das trajetórias narradas. Assim, “a hagiografia 
em geral [...] evidencia formas de pensamento não somente da Igreja enquanto instituição, 
mas também são expressões de uma instituição que intenta o controle sobre uma 
coletividade”. 80 Para Igor Teixeira “os relatos de vidas de santos têm sim relação com 
um sistema de valores normativos”. 81 
Os aspectos prosaicos presentes nas hagiografias, embora não constituam a 
intenção do autor, nos possibilita o acesso a certas práticas e formas de pensamento. “Na 
literatura hagiográfica, os biógrafos ao descreverem detalhadamente lugares, paisagens, 
modelos e costumes de uma dada região percebemos nas entrelinhas dados do cotidiano 
medieval”. Portanto, “através desta forma literária de discurso, a Igreja manifesta uma 
 
78 SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. / Jean-Claude Schmitt tradução 
Maria Lucia Machado. — São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.77; 
79Ibidem, p.85. Jean-Claude Schmitt analisa uma coleção de miracula de uso interno da comunidade 
monástica partindo da lógica da presença de apenas monges ou personagens estritamente ligados à 
comunidade. 
80 TEIXEIRA, Igor S.. Literatura, Tempo e Verdade: o Fazer Hagiográfico na Legenda Áurea. In: História: 
Questões & Debates, [S.l.], v. 59, n. 2, dez. 2013. ISSN 2447-8261. Disponível em: 
<https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/37039>p.212 
81 Ibidem, p. 200; 
 
39 
 
 
forma de controle, 82utilizando-se do discurso hagiográfico que vem carregado de moral 
cristã e exemplos de conduta”. 83 
A utilização dos miracula, como documentação secundária, nesta dissertação, 
justifica-se pelos seguintes argumentos: nesta região surge a Paz de Deus que sacraliza a 
defesa das igrejas a partir de uma concepção de violência como o rompimento de um 
direito ou contestação de uma ordem chamada, assim de violentia. A partir daqui, quando 
nos referimos à palavra “violência” a relacionamos com a concepção atual, sobre a qual 
teorizamos na primeira parte. Para a referência sobre a concepção dos séculos XI e XII 
utilizaremos o termo latino violentia. 
No artigo View of Muslims and of Jerusalem in miracle stories, ca. 1000-ca. 1200: 
reflections on the study of first crusaders’ motivations, Marcus Bull define as 
possibilidades de compreensão dos chamados às cruzadas, principalmente em Clermont, 
a partir do uso dos relatos de milagres.84 Para Bull, as motivações e ideias capazes de 
mobilizar certos segmentos sociais no contexto cruzadístico podem ser captados nos 
livros de relatos de milagres. De acordo com Bull, “este tipo de literatura desfrutou de 
uma popularidade particular entre os séculos X e XIII, especialmente na área 
correspondente a França e Bélgica atualmente”.85 
Certos temas como invasões de igrejas, ataques aos peregrinos, contestação de 
patrimônio eclesiástico e o impedimento do exercício de algum direito configuram pontos 
recorrentes nestes relatos. São as mesmas ideias presentes nas narrativas sobre Clermont 
em 1095. Logo, se o autor de De Expugnatione Lyxbonensi pretende ligar a conquista de 
Lisboa à cruzada, nos parece factível que o uso das mesmas temáticas possa estar presente 
em sua escrita. Além disso, é preciso demarcar que Raul é da região relatada peloslivros 
de milagres. Como afirma Maria João Branco ele era “presbítero e assumidaente 
franco”.86 
O cruzado que narra a invasão de Lisboa é o mesmo que doa, em 1148, uma 
propriedade para Santa Cruz de Coimbra. Maria João Branco analisou a maneira da 
 
82 Neste momento, um controle para auto preservação e não um domínio geral 
83 CARVALHO, Fabrícia A. T. O discurso de controle da Igreja no século XIII. In: SILVA, Andréia 
Cristina Lopes Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues. (Org.) Atas da VI Semana de estudos Medievais do 
Programa de Estudos Medievais da UFRJ. Rio de Janeiro: IFCS, 2006, p.119; 
84 Cf. BULL, Marcus. View of Muslims and of Jerusalem in miracle stories, ca. 1000-ca. 1200: reflections 
on the study of first crusaders’ motivations. 
85 BULL, Marcus. The miracles of Our Lady of Rocamadour : analysis and translation. St Edmundsbury 
Press Ltd, Bury St Edmunds, Suffolk, 1999, p.9; 
86 BRANCO, Maria João. A conquista de Lisboa revisitada In: Lisboa, encruzilhada de muçulmanos, 
judeus e cristãos. Lisboa: Edições Afrontamento, 2011, p.224; 
 
40 
 
 
escrita desta doação e concluiu que a sua característica é a mesma das documentações do 
Oeste da França. Ainda, conforme Branco: “tudo isto parece corresponder à área de 
proveniência do cruzado R. e do Raul que subscreve a doação a Santa Cruz”. Estas 
características são “apenas marca da fidelidade aos modelos a que estava habituado na 
sua pátria de origem”. 87 Raul é normando e está culturalmente situado na região citada 
acima. 
Jean Flori indica,88 através de um estudo de P.A. Sigal, que os relatos de milagres 
violentos operados pelos santos dão um salto entre os séculos XI e XII. “dos 3.318 
milagres realizados por santos [...] 12,6% eram milagres de castigos”. Desta porcentagem 
“mais de 34% contra a aristocracia”. Ou seja, grande parte destes milagres de castigos 
violentos eram destinados contra uma aristocracia que insistia em invadir ou contestar o 
patrimônio eclesiástico, configurando uma violentia. Não podemos ignorar o fato de que 
entre as outras categorias de milagres também existem intervenções violentas dos 
santos. 89 Desta forma, seguimos o caminho de Jean Flori e Marcus Bull em suas 
indicações acerca de alguns relatos de milagres para o entendimento desta violência dos 
santos e os temas recorrentes nestas narrativas. 
O liber miraculorum sancte fidis traz os relatos sobre as intervenções de Santa Fé 
de Conques. Esse relato foi “redigido por Bernardo de Angers entre 1013 e 1020 e depois 
por seus continuadores até 1050”. 90 Estas narrativas, conforme Flori, “refletiam os 
costumes do tempo, nas regiões nas quais nasceu a Paz de Deus”. 91 As versões utilizadas 
aqui são a tradução comentada de Pamela Sheingorn intitulada The Book of Sainte Foy92 
e a versão latina publicada pela Bibliothéque de Schlestadt.93 
Outro livro de milagres cujo o conteúdo de intervenções violentas é considerável 
é o de Nossa Senhora de Rocamadour. Este relato foi composto no final do século XII94 
e não se sabe o autor. Para Marcus Bull “com base nas características estilísticas como o 
uso recorrente de aliteração, é provável haver um único autor. Por outro lado, um esforço 
 
87 Ibidem, p.35; 
88FLORI, Jean. Op.Cit.,2013 P.111 
89 Dentre as outras categorias citadas,” mais de 61% consistem em curas diversas e ressurreições [...] depois 
intervenções favoráveis (6,9%), proteções contra perigos (5,8%), visões (5%), libertações de prisioneiros 
(4,6% em média, porém mais de 10% para a aristocracia) e milagres gratuitos destinados apenas à 
glorificação do santo (3,4%).” In: Ibidem; 
90 Ibidem, p.110; 
91 Ibidem, p.112; 
92 The Book of Sainte Foy / translated with an introduction and notes by Pamela Sheingorn ; the Song of 
Sainte Foy translated by Robert L. A. Clark. University of Pennsylvania Press, 1995; 
93Liber Miraculorum Sancte Fidis. Ed. A. Bouillet, Paris, 1897; 
94 De acordo com Marcus Bull Provavelmente entre 1172 e 1173 
 
41 
 
 
colaborativo não pode ser totalmente descartado”.95 Utilizaremos duas versões. A versão 
comentada de Marcus Bull intitulada The Miracles of Our Lady Of Rocamadour96 e a 
versão bilingue em francês e latim Les Miracles de Notre-Dame de Roc-Amadour97 de 
Ernest Rupin e Edmond Albe. 
Por fim, São Privato de Mende também teve seu liber miraculorum cuja maioria 
dos milagres tem relação com castigos destinados às aristocracias que espoliam a terra do 
santo. A versão usada nesta pesquisa é a versão bilingue francês-latim de nome Les 
Miracles de Saint Privat98 publicada por Clovis Brunel. O uso da violência pelos santos 
não é exclusivo do período, mas o aumento deste tipo de relato entre os séculos X e XIII 
coincide com o período da expansão feudal. Para Jean Flori: 
Esta cadeia de identificações conduzia evidentemente à sacralidade da 
ação, às vezes violenta, exercida a favor daquelas comunidades 
religiosas, dizendo assim respeito ao nosso tema. O próprio santo, de 
fato, não se limitava a aliviar as misérias dos homens que acreditavam 
nele. Para impressionar seus adversários e aterrorizar os ímpios, ou 
simplesmente se vingar, também lançava mão da força e não hesitava 
em ferir ou mesmo matar os inimigos, sacralizando assim em certos 
casos o uso da violência. Pode-se então falar de violência sagrada dos 
santos. Essa forma de religiosidade constituiu uma etapa importante na 
formação da ideia de guerra santa.99 
Portanto, percorrer os relatos de milagres nos possibilita os seguintes pontos: 
primeiro, situar certas representações existentes na região destes eventos para 
entendermos a qual discurso Raul se vincula para construir a campanha afonsina como 
sagrada. Segundo, qual noção de violentia 100se construiu para aquela parcela do clero 
que tentava se proteger dos efeitos colaterais das guerras feudais e como, a partir disso, a 
participação dos santos na violência possibilitou sua sacralização. As histórias de 
milagres apresentam “um retrato das ansiedades e problemas” 101 que as pessoas 
enfrentam. 
Estes modelos e noções que transitam na região que a Paz de Deus se difunde são 
compartilhados por Raul por este ser o seu ambiente cultural. De acordo com a 
metodologia das trigger words, os chamados às cruzadas utilizam destas noções 
difundidas nos miracula da região. São nos locais das assembleias que se constroem uma 
 
95 BULL, Marcus. Op.Cit., 1999, p.20; 
96 BULL, Marcus. The miracles of Our Lady of Rocamadour : analysis and translation. St Edmundsbury 
Press Ltd, Bury St Edmunds, Suffolk, 1999; 
97 Les Miracles de Notre-Dame de Roc-Amadour. Académie des Inscriptions et Belle-Lettres. Paris, 1905; 
98 Les Miracles de Saint Privat. In : Colection de Textes. Publicado por BRUNEL, Clovis. Paris,Librairie 
Alphonse Picard et Fils, Libraire des Archives Nationales et de la Sociéte de l’École des Chartes, 1912; 
99 FLORI, Jean. Op.Cit., 2013, p.110; 
100 Trata-se de uma ideia de violentia edificada no contexto do sistema feudal da Gália; 
101 BULL, Marcus; Op.Cit., 1999, p. 14 
 
42 
 
 
verdade sobre guerra santa, honra e violência. Partindo da premissa que De Expugnatione 
Lyxbonensi é uma crônica de propaganda afonsina, torna-se possível uma reflexão sobre 
os mecanismos que aproximam a tomada de Lisboa com os miracula e que incluem a 
utilização das mesmas trigger words dos chamados às cruzadas. As trigger words são 
ideias que remetem a certos ideais caros aos quem recebem o discurso. São estratégias 
de aproximação, pois se Raul pretende associar, em muitos momentos, a guerra de Afonso 
Henriques com as políticas papais, ele o faz recorrendo às ideias que conectam Lisboa à 
cruzada e a cruzada, por sua vez, conecta-se com a defesa da igreja, da Cristandade e de 
Cristo. Todas as ideias aqui utilizadas estão presentes nos miracula. Além disso, os 
castigos das santas e santos instituem condenações a certos tipos de comportamento, 
imputando um freio nas ações violentas.Vejamos, um centro de peregrinação no século XII era a Igreja de nossa senhora 
de Rocamadour que ficava no caminho de Compostela para quem vinha da Gália. Os 
milagres da virgem auxilia na percepção de certas visões acerca do condenável, do justo 
e do injusto, do admirável e do virtuoso para o período. Dentre estes milagres, por 
exemplo, existem os castigos destinados contra aqueles que atacavam os peregrinos. As 
pessoas punidas iam de anônimos vagantes até cavaleiros nominalmente referenciados. 
Um desses cavaleiros, chamado de Hardouin de Mailéé foi punido com ergotismo após 
ter “sido incapaz de conter sua violenta paixão” , ferindo um peregrino que tinha recusado 
lhe vender uma proteção de cabeça. O cavaleiro perdeu as duas pernas e ficou mutilado, 
de acordo com o miracula. 102 
Em outro caso, a virgem de Rocamadour puniu com cegueira e paralisia das mãos 
alguns ladrões que roubaram três peregrinos que iam à igreja da santa. 103 A importância 
da peregrinação e o valor dado a ela é um dos temas que está presente na chamada da 
primeira cruzada. O tema da figura do peregrino que sofre violentia é recorrente. No 
concílio de Clermont de 1095, relatado por Guibert de Nogent, o papa pede que se 
considere a situação daqueles que empreendem “aquela peregrinação, e vão aquele país 
através das terras [...] sofrendo exações e violências”. 104 O comportamento de afronta à 
Igreja também é condenado nos milagres através dos mais variados exemplos. Dentre 
estes, havia um homem que foi excomungado por desobedecer “aos decretos da Igreja”105, 
 
102 Ibidem, p.117; 
103 Ibidem, p.146; 
104 GUIBERT DE NOGENT, Histoire des Croisades, II, Éd. Guizot, 1825, Paris, pp. 46-52. Trad. al francés 
por José Marín R. Web Med; 
105 Ibidem, pp. 104-105; 
 
43 
 
 
pois “costumava reivindicar para si os dízimos da igreja local, guardando-os consigo”.106 
Esse homem foi possuído e gritava constantemente durante as missas. Espumava pela 
boca e rangia os dentes. Ao final, se curou quando voltou para sua terra e se reconciliou 
com seu sacerdote. 107 A santa também aparece punindo os cachorros de um 
“estrangeiro108 que estava caçando perto de sua igreja. 109 A senhora de Rocamadour 
ficou “indignada e golpeou os cães, atirando-os para a morte no penhasco”.110 
Em alguns dos casos citados acima podemos ver a condenação de assédio ao 
peregrino, ao desvio das rendas da Igreja e à invasão de terras da santa. Notamos uma 
busca pela contenção de comportamentos considerados inadequados. Na Idade Média 
Central houve um boom em relação a uma prática já existente: a peregrinação. A elevação 
de casos desta forma de piedade mais ativa é verificável com a difusão dos centros de 
devoção. A figura do homo viator provoca sensações ambíguas à sociedade medieval. 
Embora o ser humano seja uma criatura destinada a vagar rumo a salvação, o ideal de 
pertencimento a determinado local provocava a visão do peregrino como um 
“estrangeiro” por onde ele passava rumo a um destino específico.111 Porém, a figura do 
peregrino é dignificada, pois é uma prática valorizada nas religiões abraâmicas. 
Valorizada e protegida, como vimos em alguns castigos que o santo padroeiro de um 
centro de peregrinação infringe contra quem molesta seus peregrinos. 
O desvio das rendas da Igreja e a invasão de suas terras, punida pela santa, são 
temas constantes, verificando-se uma preocupação, além da condenação, em relação à 
uma tendência de senhores laicos de apropriação e disputa constante em relação aos bens 
eclesiásticos. Isso nos leva a um tema tão debatido e, de certa forma, controverso: as 
assembleias de paz, conhecidas como Paz de Deus e Trégua de Deus. André Vauchez, 
partilhando da tese da “anarquia feudal”, vê nestas assembleias a tentativa dos bispos em 
assumir o controle local, pois não havia uma autoridade efetiva após o fim do império 
carolíngio. Compartilhamos de algumas noções do autor francês acerca da Trégua de 
Deus sobre a legitimação da guerra por parte da Igreja. Vauchez considera que o “uso da 
 
106 Ibidem, pp.104-105; 
107 Ibidem, pp.104-105. 
108 O estrangeiro é Gerard da vila de Mayrinhach. Cf. BULL, Marcus. Op.Cit., 1999, p.162; 
109 Ibidem, p.162; 
110 Ibidem, p.162. 
111 Ver ZUMTHOR, Paul. La Medida del Mundo: Representación del Espacio en la Edad Media. Madrid: 
Cátedra, 1994 
 
44 
 
 
força era justificável quando fosse utilizado para fins benéficos para a sociedade cristã 
sob sua direção”. 112 
No entanto, Vauchez chega nesta conclusão partindo de uma percepção que 
entendemos sob outro prisma. Em nossa visão a“anarquia” não ocorreu como se pensou 
por muito tempo na medievalística, fruto das teses mutacionistas.113 Portanto, a Paz de 
Deus não é uma tentativa de controle de toda a sociedade. As igrejas não tinham o 
objetivo, naquele momento, de ser as condutoras da ordem, partindo da ideia que não 
havia nenhum mecanismo de regulação. Jean Flori também também não vê uma anarquia 
que “resultou no desaparecimento total de toda autoridade política”. 114 Nosso 
entendimento é que as assembleias surgem como um mecanismo de defesa destas igrejas 
locais contra o que chamam de violações e atos de violentia. 
Na compilação dos miracula de São Privato de Mende 115 relata-se uma 
preocupação do bispo de Puy, por volta de 1036, na convocação dos bispos vizinhos para 
o juramento da paz diante das relíquias do santo.116 “No altar de santa Maria [...] o bispo 
da capital ordena que se convide os bispos vizinhos em nome do conselho de paz”. 117 A 
mesma compilação demonstra um ambiente conturbado onde existem diversos relatos de 
punição aos assediadores das terras que estão sob os cuidados do santo, como um 
cavaleiro de nome Gaucelmus que devastava as terras da santa e mesmo assim foi 
enterrado naquela igreja. Como castigo, o corpo do cavaleiro foi consumido por chamas 
que saíram do chão. 118 O recado é nítido, havia espoliação e esta era punida, pois, 
condenável. Assim como o homem que foi castigado pelos desvios dos dízimos da Igreja 
nos relatos de Rocamadour. Conforme Luis Kruss, “a narrativa não veicula apenas 
valores, mas também cria preceitos e modelos de comportamento”. 119 
Esses casos pululam e os poderes eclesiásticos necessitam de proteção com que 
tem em mãos: o acesso ao sagrado. Por isso, ao olharmos para a Paz de Deus precisamos 
 
112 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: 
Jorge Zahar Editor, 1995, pp.60-61. 
113 Georges Duby é um outro expoente destas teses que enxergam no ano mil uma mudança. Para maiores 
detalhes ver DUBY, George. A Sociedade Cavaleiresca/G.Duby; Tradução Antônio de Pádua Danesi, - 
São Paulo: Martins Fontes, 1989; 
114 FLORI, Jean, Op.Cit., 2003, pp.110-111; 
115 Les Miracles de Saint Privat. In : Colection de Textes. Publicado por BRUNEL, Clovis. Paris,Librairie 
Alphonse Picard et Fils, Libraire des Archives Nationales et de la Sociéte de l’École des Chartes, 1912; 
116Ibidem, pp.14-16; Neste relato um paralítico é curado após chegar perto da imagem da santa. 
117Ibidem, p.14; 
118 Ibidem, pp.4-5; 
119 KRUS, Luis. A Construção do Passado Medieval, Lisboa: IEM, 2010. 
 
45 
 
 
entendê-la situada no ambiente de ataques, de níveis variados, ao patrimônio eclesiástico. 
Acima citamos um caso de pilhagem, mas, muitas vezes, a violência relatada se dava no 
plano jurídico, no confisco das terras, revogação de direitos e outros bens materiais. As 
descrições sobre os ataques inseriam termos que “nem sempre implicavam ações de 
natureza guerreira [...] e sim ações de todo tipo, incluindo o jurídico, que contribuíram na 
debilitação dos interesses econômicos dos estabelecimentos eclesiásticos”. 120 
O confisco de terras como uma atitude violenta aparece nos milagres de Santa 
Fé.121 No relato onze, do primeiro livro de milagres, Bernardo de Angers analisa as 
práticas laicas em vigor: 
Aqui está outromilagre da vingança divina que foi operado em um 
tempo, antes de chegar a Conques. Deve intensificar a dedicação ao 
divino adoração nos homens da Igreja e naqueles que servem com 
devoção na casa de Deus, mas deve assustar profundamente aqueles que 
violentamente 122 roubam bens da santa Igreja de Deus, ou aqueles que 
se apropriam, como se fosse legalmente seus, propriedade que os santos 
herdaram e reivindicam injustamente as rendas e serviços devidos aos 
seus proprietários. Pois neste momento há muitas pessoas que merecem 
ser chamadas de anticristos. Cegos por sua ganância, eles atrevem-se a 
apreender o que pertence por direito à Igreja.123 
A palavra usada na qualificação dos roubos e nas apropriações indevidas de renda 
é violenter e esta introdução fala do caso de um senhor do castelo de Penne, em Albigeois, 
que confiscou uma propriedade que sua avó deixou à abadia de Conques. Esse senhor de 
nome Hildegaire é chamado também de “violento 124 saqueador” 125 pelo miracula. 
Hildagaire é violento por contestar a posse das terras. Ao final do milagre, Bernardo dá o 
tom do que espera os contestadores dos bens eclesiásticos: “Ouvi, vocês saqueadores de 
propriedades cristãs, quão inevitáveis são os flagelos e os justos julgamentos de Deus. 
Sua vingança não cede a nenhum poder [...] Se não houver punição neste mundo, uma 
forma mais dura e eficaz de castigo espera por vocês no fogo eterno”.126 
 Jean Flori compreende que muitas das violências relatadas implicam nas 
discussões das doações feitas às igrejas ou quando “não se respeitava as imunidades e os 
 
120 FLORI, Jean, Op.Cit, 2013, p.112 
121 The book of Sainte Foy / translated with an introduction and notes by Pamela Sheingorn ; the Song of 
Sainte Foy translated by Robert L. A. Clark. University of Pennsylvania Press, 1995. 
122 Violenter, p.88 in: Bernardo de Angers. Liber Miraculorum Sancti Fidis, 1, 26, Ed.A. Bouillet, Paris, 
1887 
123 The book of Sainte Foy, Op.Cit., 1995; 
124 Ibidem, p.40. O termo usado no latim é Violentissimi. In: Bernardo de Angers, Op.Cit., 1887, p.41; 
125The book of Sainte Foy, Op.Cit., p.72; 
126 Ibidem, pp.72-73; 
 
46 
 
 
bens dos monastérios”.127 Tratava-se, então, na designação dos leigos que questionavam 
o patrimônio eclesiástico. 128 Além disso Stephen White afirma que “os escritos dos 
clérigos e de outros cronistas sobre a conveniência de reprimir a violência da aristocracia 
ou civilizar a nobreza não devem ser consideradas como representações exatas das 
práticas políticas dos laicos”. 129 
Vejamos outro exemplo: Raul Glaber foi um monge que retratou em sua obra 
Historiarum Libri Quinque130 suas impressões sobre o ano mil e foi visto como uma 
testemunha dos “terrores” do período. Os escritos de Raul Glaber, embora não seja um 
miracula, nos demonstra uma concepção da época acerca da violência. Concepção que se 
assemelha aos dos relatos de milagres citados. Além disso, aborda os pactos de paz que 
ocorrem no período. No liber quartum,131 o monge escreve que “no milésimo ano da 
paixão do Senhor, primeiro nas regiões da Aquitânia, os abades e outros homens 
dedicados à santa religião reuniam todo o povo em assembleias”.132 Para a reunião eram 
levados “numerosos corpos de santos e relicários cheios de santa relíquia”.133 O anúncio 
da reunião dos “prelados e grandes de todo o país que iam se reunir em assembleias para 
o restabelecimento da paz e para a instituição da santa fé” 134 se espalhou por toda a região 
e, conforme Raul Glaber, a partir daí “irradiaram pela província de Arles, depois pela de 
Lyon; e assim, por toda a Borgonha e até nas regiões mais recuadas da França” .135 Na 
assembleia foi elaborado “um documento, dividido em capítulos, que continha ao mesmo 
tempo o que era proibido fazer e os compromissos sagrados que se tinha decidido tomar 
para com o Deus todo-poderoso. A mais importante destas promessas era a de observar 
uma paz inviolável”. 136 Além disso ficou decidido que: 
 O ladrão ou aquele que tinha invadido o domínio de outrem estava 
submetido ao rigor de uma pena corporal. Aos lugares sagrados de todas 
as igrejas devia caber tanta honra e reverência que, se um homem, 
punível por qualquer falta, aí se refugiasse, não sofreria nenhum dano, 
salvo se tivesse violado o dito pacto de paz; então era agarrado, retirado 
do altar e devia sofrer a pena prescrita. Quanto aos clérigos, aos 
 
127 FLORI, Jean. Op.Cit, 2003, p.110; 
128 Ibidem, p.110. 
129 WHITE, Stephen. Op. Cit, 1998; 
130 A versão aqui utilizada foi Rodulfus Glaber. The Five Books of the histories. Edited and translated by 
John France. Historiarum Libri Quinque. Rodulfus Glaber, Oxford: Clarend, 1989; 
131 Ibidem, p.194; 
132 Ibidem, p.194; 
133 Ibidem, p.194; 
134 Ibidem, p.194; 
135 Ibidem, p.194 
136 Ibidem, pp.194-196. 
 
47 
 
 
monges, e às monjas, aquele que atravessasse uma região na sua 
companhia não devia sofrer nenhuma violência de ninguém.137 
Analisemos alguns aspectos do trecho acima. Percebemos que, assim como nos 
milagres de Rocamadour (os milagres são posteriores ao relato de Raul Glaber), existe 
uma ideia de punição para quem invade o domínio da santa. No pacto citado está prevista 
uma pena corporal. A maioria dos relatos de São Privato são sobre castigos direcionados 
aos invasores das terras do santo. Além disso, fala-se da aplicação de uma pena para 
quem tivesse “violado o dito pacto”. Analisando o livro de Raul Glaber direto do latim a 
palavra usada é violasset. 138 A seguir dar-se a proibição da prática de violência contra os 
clérigos, monges ou monjas que passem pela região. O termo empregado para violência, 
neste caso, é vim. 139 Vim é uma declinação de caso acusativo (é o passivo, quem sofre a 
vim) do substantivo vis, que significa força. Uso de força feroz, injustificada e injusta, 
que rompe uma ordem e é qualificada como violentia. Eis o ponto nevrálgico de nossa 
análise. A violência nos séculos XI e XII significa o rompimento de um direito ou uma 
ordem estabelecida. A palavra violência deriva do termo latino violentia, da qual se radica 
no substantivo vis “cuja etimologia é comum ao do grego is (força). A violentia é “uma 
forma de expressão da vis”. 140 
A violentia que deriva da vis é o uso da força desmedida, ilícita e condenável. 
Além disso, “associado com estes dois termos está ainda o verbo viollo, cujo significado 
é tratar com violência, fazer violência, ultrajar, ofender, transgredir”.141 Partindo destas 
concepções podemos entender que para o período aqui pesquisado a noção de violentia 
está ligada com a ideia de uma transgressão ou excesso cometido contra uma norma, 
padrão ou costume. 142 
Doravante, quem tem a capacidade na caracterização da violentia? O poder que 
domina o discurso. Qual é o poder que domina o discurso nos séculos XI e XII? Não 
existe um poder completamente dominante, mas as elites laicas e eclesiásticas são dois 
poderes em conflito e ao mesmo tempo em acordo em relação ao processo de dominação. 
 
137 Ibidem, p. p.196 
138 pacis uiolasset. Ibidem, p.196; 
139 clericis similiter omnibus, monachis et sanctimonialibus, ut, si quis cum eis per regionem pergeret, 
nullam uim ab aliquo pateretur. Ibidem, p.196. 
140 PIMENTEL, Maria Cristina de Sousa e RODRIGUES, Nuno Simões.. Auidissima caedis et uiolenta 
fuit: scires e sanguine natos. Introduzindo reflexões sobre a problemática da violência na Antiguidade e 
no Medievo. Apresentação, eClassica 2: Violência no mundo antigo e medieval, 2016, p.10; 
141 Ibidem, p.10; 
142 Ibidem, pp.7-18; 
 
48 
 
 
Eles se embatem, se contradizem, se reforçam e se legitimam. Além disso, o poder 
eclesiástico também não é uníssono. Há conflitos dentro da própria Igreja e é comum que 
bispos se voltem contra seus cabidos. Constantemente, um grupo acusa o outro de 
violentia. No entanto, a construção para o período em questão acerca da noção do que é 
ou não violento gira emtorno do caráter de rompimento de uma lógica, de costumes, das 
práticas e dos direitos atrelados a uma elite. Por isso, a roda da fortuna ilustra bem quem 
um dia está por cima (e tendo a capacidade na determinação de algo) e que logo poderá 
se ver em situação inversa (sendo acusado daquilo que já acusou). 
O bispo que acusa um cônego de ser violento pode, em breve, ser acusado de 
violentia pelo mesmo cônego, caso as relações sociais assim permitam, conferindo poder 
para quem um dia não tinha. “A violência como processo tem a ver com representação e 
mediação, uma vez que se trata de gestos reais envolvidos, e a representação da violência 
depende muito de sua definição por aqueles que têm o poder de delineá-la”.143 
Vejamos como a roda da fortuna agiu com Aimon, arcebispo de Bourges. Por 
volta de 1038, o arcebispo “quis estabelecer a paz em sua diocese mediante um 
juramento”.144 Assim, convoca todos os maiores de quinze anos a se submeterem ao 
seguinte compromisso “iriam se dirigir unanimemente contra todos os violadores do 
pacto prescrito [...] se fosse necessário se comprometeriam a atacar e fazer-lhes frente 
com as armas”. Este caso é um exemplo sobre o valor dado aos atos. Aimon foi 
responsável na organização de uma hoste guerreira que tinha como objetivo a manutenção 
da paz na sua região. Estes “milicianos da paz”145 se juntaram para a prática de “boas 
ações” vistas e retratadas por André de Fleury, “ inicialmente seu entusiasta e logo 
preocupado com elas”.146 O grupo formado para as batalhas incluía homens do clero. “Os 
próprios ministros do culto não seriam isentos. Depois de se equiparem com as bandeiras 
depositadas em santuários do senhor, eles marchariam com a multidão do povo contra os 
violadores da paz juramentada”. 147 
Esse inimigo contra quem Aimon marcha é “somente o opressor de bens da Igreja 
e do clero”. 148 A marcha é “celebrada por André de Fleury, com grande apoio de 
 
143 SKOODA, Hannah. Op.Cit, 2013, p.6; 
144 André de Fleury. Miracula Sancti Benedicti, libro y, 12, ed. E. de Certain, Paris, 1858. 
145 Termo empregado por Jean Flori. In FLORI, Jean. Op.Cit., 2003; 
146 BARTHÉLEMY, Dominique. Op. Cit, 2007, p.194; 
147André de Fleury, Op.Cit., 1858; 
148BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2007, p.195; 
 
49 
 
 
versículos bíblicos”.149 No entanto, o arcebispo se excede e ultrapassa a linha tênue entre 
lícito/ilícito. De instrumento de Deus, Aimon vira alvo da cólera divina. Cruzando a 
maleável fronteira que separa o aceitável do inaceitável, o eclesiástico acaba 
transformando o conflito em algo condenável. Essa condenação ocorre no momento em 
que Aimon comete um massacre contra a esposa e os filhos de um senhor que havia fugido 
de seu castelo em Beneciacum. Neste momento “o referido bispo foi tocado pelo aguilhão 
de Mamom”.150 A partir disto, “André de Fleury, cheio de repugnância, só espera a 
vingança de Deus contra a paz de Deus”. 151 
A “liga de Bourges”, que nasce sob o juramento da dignidade divina, logo se torna 
um problema e pratica atos condenáveis: “assim o justo assumiu a responsabilidade pelo 
crime do iníquo e o justo pereceu no lugar do ímpio”.152 André de Fleury lamentava 
como “os cruéis vencedores dificilmente se comoviam com os lamentos dos moribundos, 
não tinham pena das mulheres batendo no peito e a multidão de crianças agarradas aos 
seios das mães”.153 Foi então que, segundo André de Fleury, “Deus todo-poderoso quis 
vingar o sangue de seus servos e colocou o referido bispo contra Eudes”.154 O conde 
Eudes de Deóls foi responsável pela derrota da hoste de Aimon e “o julgamento mais 
moderado de Deus fez aquelas pessoas – que recusaram obedecer a qualquer pedido de 
misericórdia, e não foram movidos pelo cheiro de seus irmãos sendo queimados [...] – 
perderem suas vitórias”.155 
O caso de Aimon e sua milícia de paz demonstra a capacidade que existe nas 
relações socias de ser considerado piedoso e, numa virada repentina, transformar-se em 
alguém violento. Notamos como é possível, num súbito instante, passar da piedade 
misericordiosa à violentia. Basta não ter mais a capacidade na dominação da produção do 
discurso acerca da realidade, fazendo uma ideia inserir-se no regime de verdade. O 
exemplo citado fala do endurecimento da guerra feudal, típico daquele momento. A Paz 
de Deus não nega a possibilidade da pilhagem efetivada pelos senhores ou a reivindicação 
do que entendem como seus direitos. As assembleias promovem a tentativa de defesa dos 
 
149 Ibidem, p.195. 
150 Andrew of Fleury. Miracula s. Benedicti, 5.1-4 edited in Eugène de Certain, Les miracles de Saint 
Benoît écrits par Adrevald, Aimoin, André, Raoul Tortaire et Hugues de Sainte Marie moines de 
Fleury (Paris, 1858), pp. 192-198. 
151 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit,, 2007, p.195; 
152 Andrew of Fleury. Op.Cit, 1858, pp.192-198; 
153 Ibidem, pp. 192-198; 
154 Ibidem, pp.192-198; 
155 Ibidem, pp. 192-198. 
 
50 
 
 
bens da Igreja. Porém, essas assembleias se davam, muitas vezes, numa união entre os 
poderes laicos e eclesiásticos. 
Os bispos necessitavam da beligerância dos leigos para a proteção dos 
patrimônios. A hoste de Aimon evidencia bem isso. Embora, não se tenha certeza sobre 
o caráter daquele exército: se era apenas um grupo “voluntário” reunido sob juramento 
da liga de paz ou um exército feudal sob o signo das prestações vassálicas, já que Aimon 
era arcebispo e senhor. Pode parecer estranho o fato de um homem, responsável pelo 
sagrado, ter costumes beligerantes como se fosse um combatente do século. Essa 
estranheza faz parte de nós, indivíduos do século XXI. Para aquelas pessoas do século XI 
liderar um exército na promoção da paz, como vontade de Deus, era agir no mundo com 
os instrumentos que o momento permitia a eles. Muitas vezes enxergamos estes homens 
como senhores laicos se apoderando de cargos eclesiásticos para proverem a defesa de 
seus interesses mundanos. Não negamos que essas intenções possam existir, mas 
necessitamos refletir além destas ideias tão rigídas. Para uma pessoa da Idade Média 
Central, armar-se de espada e lança pode e deve ser função do sagrado em diversos 
momentos. Na perspectiva de Leandro Rust “psicologicamente enjaulado, socialmente 
remodelado, assim era o clero. Sobretudo bispos, protagonistas da imersão da Igreja no 
mundo. [...] Eles podiam demandar e justificar uma batalha como artigo de fé”.156 
A espiritualidade é histórica e atrelada ao seu tempo. Cada época tem suas 
concepções de sagrado, contato com Deus e interpretações de como agradá-lo ou 
desagradá-lo. As pessoas que compreendem a mensagem de uma determinada fé estão 
inseridas nas relações sociais correspondentes. Um homem da Igreja nos séculos XI e XII 
caso não esteja no campo em batalha, está promovendo, em grande parte das 
oportunidades, discursos que incentivam a batalha. Ou seja, a belicosidade socializava e 
era usada na defesa da Cristandade. Seja qual for a arma (espada ou voz), “essas funções 
basicamente simbólicas e intelectuais eram o que a fé cristã deixava ao seu alcance”.157 
O exemplo de Aimon desembaraça parte dessas relações. A própria promoção da paz nos 
auxilia nesta percepção. 
No entanto, ocorre uma ambiguidade no seio desta sociedade. O discurso da Igreja 
é de condenação ao porte de armas por parte de seu clero. Porém, a veemência da 
 
156 RUST, Leandro Duarte. Op.Cit, 2018, p.15; 
157 Ibidem, p.15. 
 
51 
 
 
reprovação está atrelada ao momento em que se dá a suposta transgressão da norma. 
“Portar armas é, de fato, o que vários bispos fazem quando são verdadeiros senhores 
regionais e vão à guerra contra os senhores vizinhos, cercados por seus vassalos”.158 
Novamente, o exemplo de Aimon demonstra isso. De uma hoste que agradava a Deus, os 
os homens do arcebispo se transformaram num mal que precisava de castigo. Erguer a 
espada pelo “bem da Igreja” não era visto como violência e a visão desta,assim como a 
espiritualidade, está caracterizada por sua inserção no tempo, pelo domínio do discurso e 
pela epísteme da época. O entendimento sobre o processo que produz uma verdade é 
fundamental para a compreensão do regime que a engendra. Desta forma é possivel a 
observação dos efeitos destas produções, ou seja, a verdade sobre a violentia e sua 
delimitação. 
Sendo assim, a qualificação de um ato nos diz sobre a realidade em que se dá o 
ato. Afinal, os bispos que guerreavam praticavam violentia? Depende de sua posição 
naquele momento. Vejamos um outro exemplo trazido até nós por Bernardo de Angers, 
autor dos milagres de Santa Fé de Conques. Bernardo relata sobre um “tal monge que não 
podia conter no mosteiro o ardor guerreiro que o animava quando estava no mundo”.159 
O monge defendia o local “quando vinha um ataque de espoliadores e de saqueadores e 
assumia em seguida a função de defensor e conduzia pessoalmente a tropa armada”. Em 
seu comentário sobre os atos deste monge guerreador, o autor elabora a seguinte 
interpretação: 
[...] É certo que Gimon (aquele monge prior) portava as armas durante 
as expedições guerreiras. Porém, se examinarmos corretamente o 
assunto, se compreenderia que atuar assim contribuía melhor para 
aumentar a glória da regra monástica e que não a debilitaria. Não 
deveria se emitir juízo de valor sobre ele, e sim atentar para a intenção, 
que levava-o a atuar desta maneira. 160 
Ou seja, temos um monge portando armas e combatendo. Porém, combate por 
uma boa causa, o que torna o ato em si digno de admiração pois “aumentava a glória da 
regra monástica”. Era uma guerra entre cristãos embora os espoliadores fossem vistos 
como “falsos cristãos que atacavam a lei cristã”. 161 Os tratados da Paz de Deus falam 
sobre esses casos: cristãos que atacam a Igreja. Busca-se, nas assembleias, de acordo com 
Dominique Barthélemy, um comedimento dos abusos e dos “danos colaterais da guerra 
 
158 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, p.293; 
159 Bernardo de Angers. Op.Cit,1887, pp.66-67; 
160 Ibidem, pp.66-67; 
161 Ibidem, pp.66-67; 
 
52 
 
 
feudal”. 162 Do midi francês, esses tratados se expandiram por toda a região até a 
Normandia, criando uma concepção de violência, justiça, misericórdia e piedade. 
Podemos ir mais longe, embora não seja o foco aqui, numa análise destas 
percepções em toda a Cristandade Latina. Afinal de contas, a análise de Leandro Rust, 
em Bispos Guerreiros, tem como recorte a região do império, numa investigação sobre o 
comportamento dos bispos itálicos ao longo dos séculos X e XI. A noção de violência 
analisada por Rust, circunscrita à região citada, é “o ato ou a ideia que ameaçava relações 
patrimoniais e cravava a contestação da autoridade pública nas entranhas da vida em 
sociedade. Era, sobretudo, uma noção permanentemente em disputa”. 
Portanto, as relações de poder determinavam sobre a qualificação do que é 
violentia. A disputa de narrativas incluía a disputa pela qualificação dos atos. “Seu 
alcance e sua aplicação oscilavam conforme as relações de força e de interesses 
mudavam”. 163 A noção de violência muda, inclusive, no mesmo período de análise.164 
Essa noção era “deslocada, com frequência, pela fortuna política de grupos e facções, 
afetadas por seu sobe e desce nos espaços da dominação social. Um súdito ideal poderia 
amanhecer como um celerado violento. A violência de um bispo poderia ser a honra 
reparada do reino”.165 
A violentia aparece nas assembleias de paz qualificada como um rompimento aos 
tratados ou nos ataques ao patrimônio da Igreja. Dominique Barthélemy166 analisou os 
concílios da Aquitânia imbuídos de preocupações referentes à simonia e ao concubinato 
do clero. Essas preocupações são anteriores, inclusive, às reformas do século XI, 
chamadas de Reforma Gregoriana. A simonia era uma violentia contra as coisas da Igreja 
e também precisava ser combatida. Porém, as trocas de acusações acerca de quem 
praticava tais crimes ultrapassavam, muitas vezes, a esfera do ocorrido, pois a 
legitimidade de um bispo se dava pela deslegitimação de seu concorrente. “O concubinato 
é um problema de paróquias rurais, e a simonia do alto clero (bispos e abades) é bem real, 
sem dúvida, mas talvez exagerada ao longo de polêmicas eleitorais, quando o tom 
aumenta entre os candidatos e suas facções”.167 
 
162BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2007, p.191. 
163 RUST, Leandro Duarte. Op.Cit, 2018, p.115; 
164 Inclusive no nosso recorte temporal; 
165RUST, Leandro Duarte. Op.Cit, 2018, p.115; 
166 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2018, p.291; 
167 Ibidem, p.292. 
 
53 
 
 
A violentia praticada contra o patrimônio eclesiástico e denunciada pelo clero se 
refere a outros atos e não, necessariamente, a ataques físicos ou derramamento de sangue. 
O livro de milagres de Santa Fé, é repleto de casos acerca de práticas condenáveis e 
castigadas pela santa por serem considerados ataques aos bens da senhora de Conques. 
Vejamos um exemplo que demonstra a violentia sofrida e repreendida através da ação 
santificada da benfeitora. No milagre seis do primeiro livro, Bernardo de Angers fala 
sobre Hugo, senhor do castelo de Cassagnes. O castelo ficava a treze quilômetros de 
Conques. Este senhor exigiu que dois de seus servos roubassem vinho dos monges “que 
estava sendo mantido na propriedade rural de Molieres”. 168 Estes servos teriam se 
separado em direções opostas para a prática do roubo. Benedicto e Hildebert (os servos) 
tiveram destinos desafortunados: o primeiro foi advertido por um camponês de Santa Fé, 
ao ser flagrado pegando um carrinho que seria utilizado no transporte do vinho. Benedicto 
então pronuncia as seguintes palavras, conforme a narrativa do milagre: “Santa Fé bebe 
vinho? Que bobagem!”. 169 O que se segue é uma série de moléstias que acometem seu 
corpo, pois agindo daquela forma ele tinha ofendido a santa e os servos dela. De acordo 
com Bernardo de Angers, “aqueles que ofendem os servos dos santos, insultam os 
próprios santos”.170 O relato de ofensa ao patrimônio da santa e o castigo como punição 
demonstra a condenação ao roubo que significa o rompimento dos direitos dos monges 
como senhores e, consequentemente, o de Santa Fé. Benedicto teve seu corpo enrijecido 
e ficou paralisado no chão, com “sua boca esticada para trás até as orelhas”171. Após dois 
dias acabou morrendo. 
O destino do outro servo, de nome Hildebert, não foi diferente. Porém, seu castigo 
foi mais detalhado e a sua prática qualificada pelo miracula como algo violento. Bernardo 
de Angers relata o ocorrido: “Agora que a morte do primeiro servo foi descrita eu passo 
nesta parte para o outro, que se chamava Hilderbert. Ele usou de violência172 no roubo 
de um ombro de porco de um camponês e se recusava a devolvê-lo”. Hilderbet morreu de 
uma inflamação na garganta quando consumiu a carne do animal. O senhor Hugo, que 
ordenou o roubo aos seus dois servos, ficou sabendo do ocorrido e foi por conta própria 
praticar a rapina. No entanto, quando estava indo de cavalo, caiu e quebrou duas costelas. 
 
168 The book of Sainte Foy / translated with an introduction and notes by Pamela Sheingorn ; the Song of 
Sainte Foy translated by Robert L. A. Clark. University of Pennsylvania Press, 1995, p.60; 
169 Ibidem, p.60; 
170 Ibidem, p.60; 
171 Ibidem, p.60; 
172 O termo utilizado no latim é Violentur. Ver: Bernardo de Angers. Op.Cit, 1887, p.28; 
 
54 
 
 
Hugo permaneceu por dias num foço. Ao ser resgatado, se arrepende e faz uma 
peregrinação até o santuário da virgem. Quando volta, não é mais rebelde.173 
O relato de intervenção da santa nos aponta algumas noções da época em que 
escreve Bernardo de Angers. Primeiro, um senhor de castelo que invade as terras de um 
monastério para a prática de rapina. Aqui neste caso não é, necessariamente, um ato de 
guerra feudal, com combates corpo a corpo, cerco de castelos ou sequestro de notáveispara um possível resgate. O milagre fala de uma invasão que foi castigada. Vimos em 
Rocamadour um cachorro sendo morto por um caso semelhante. Em Santa Fé há invasão 
e roubo de uma propriedade eclesiástica. Eis contra o que se insurge a Paz de Deus: este 
tipo de violentia. Roubo, invasão de terra, contestação de posse etc. A violentia do 
documento não é sempre a violência da guerra, do sangue e de lanças atravessando os 
corpos. A própria batalha entre senhores convidava mais para uma negociação do que 
para um embate perigoso que levava à morte de príncipes, condes e de uma aristocracia 
que não era tão indômita como se pensou por muitos anos. 
Se verifica um engano no pensamento acerca dos cavaleiros como pessoas que 
não tinham medo da morte. O mito da cavalaria repercute uma lógica que emprega um 
caráter inumano ou até romântico ao extremo às pessoas de épocas afastadas, como se 
elas não trouxessem consigo angústias, medos ou aflições. Como relata Barthélemy, “por 
meio da Igreja, e para além dela, toda a sociedade feudal é ambivalente a respeito da 
guerra de príncipes.174 [...] Desejam-se belas batalhas, mas sem efusão exagerada de 
sangue”. 175 
A Paz de Deus foi uma tentativa de controle daquela sociedade? Em partes sim. 
Em nossa percepção, os movimentos na Gália buscam a contenção da depredação das 
igrejas mais que o controle de toda a Cristandade Latina. A apresentação destas 
assembleias faz parte do nosso argumento na negação, em associação com os miracula 
expostas, de que a Idade Média era alheia a mecanismos de contenção. A espiritualidade 
convocava a um freio nas atitudes, como verificamos nas condenações de determinados 
atos. O castigo divino era um importante promotor de ordem, visto que o anátema foi um 
instrumento de coerção importante do clero. O temor do sagrado está presente e não 
 
173 The book of Sainte Foy. Op.Cit, 1995, pp.61-63; 
174 Dominique Barthélemy chama de príncipes os grandes condes e senhores de castelos que se 
autonomizam em finais do século IX. Para maiores detalhes ver: BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 
2010, pp.145-225; 
175 Ibidem, pp.203-204. 
 
55 
 
 
podemos ignorar esta concepção de mundo marcante pro período aqui pesquisado. Se 
havia instrumentos de controle, quer dizer que a violência no período não é endêmica? 
Afinal de contas, ela é um meio de reprodução ou não? 
A consideração das nuances evita posições situadas nos extremos. Entre o preto e 
o branco há mais cinzas que imaginamos e a análise das ambiguidades do ser humano nos 
coloca, inevitavelmente, inseridos mais nos tons cinzas do que, propriamente em 
extremos. Notamos que a violência, em nosso recorte, tem um caráter circunscrito ao 
rompimento de uma ordem ou de um direito e que não se atrela, necessariamente, ao ato 
em si do derramamento de sangue. Os príncipes são os perpetuadores de um modo de 
vida que convida ao conflito. Pilhagens, exploração do campesinato, cercos aos castelos 
rivais e tumultos dos mais variados são elementos utilizados para a reprodução dos 
costumes de um conjunto de homens que fazem de seu estilo um ideal. 
A honra move estas práticas e é tão refém das circunstâncias quanto a sorte 
permite. A fuga pode ser prudência ou vergonha. O homicídio pode ser digno ou 
repugnante. Ter honra significa ser positivo ou negativo diante dos atos comentados, de 
acordo com o momento. Não é preto ou branco e sim acinzentado. A honra movimenta 
e dita as relações desta classe de guerreiros mais que a violência. Buscamos o 
entendimento das relações aristocráticas a partir da perpetuação da honra. A violência, 
como a vemos hoje, é endêmica se for parte do “agir com honra”. A negação da batalha 
pode ser mais honrosa e virtuosa para duas hostes que um combate. A violência não dita 
as relações socias desta aristocracia e sim a honra. A honra está atrelada à violência? 
Muitas vezes sim, outras não. 
Honor: eis o que move estes homens de guerra, de paz, de contenção e de ação. 
Uma sociedade da vingança, mas também uma sociedade da honra. Trata-se do que 
Barthélemy chama de cavaleiro cavaleiresco: “ele quer sobrepujar seu adversário de 
mesmo estatuto sem matá-lo, demonstrando em relação a ele ímpetos de 
generosidade”.176 Não negamos que a violência fazia parte do cotidiano, porém é preciso 
a compreesão de sua racionalidade. Nesta leitura, excluí-se a ideia de barbarismo e de 
primitivismo de uma sociedade sem instrumentos de controle. As condutas não estão 
 
176 BARTHÉLEMY, Dominique. Violência guerreira e cortesia: o que a cavalaria medieval pode nos 
ensinar a respeito das “sociedades de vingança”. Entrevista concedida à Néri de Barros Almeida. 2011. 
pp.167-168. Disponível em http://www.abrem.org.br/revistas/index.php/signum/article/view/51. Acessado 
em 11/04/2021. 
http://www.abrem.org.br/revistas/index.php/signum/article/view/51
 
56 
 
 
ausentes de lógica e Foucault aponta isso quando afirma que “a racionalidade é o que 
programa e orienta o conjunto da conduta humana. [...] Há uma racionalidade mesmo nas 
suas formas mais violentas”. 177 Para Foucault, há uma razão que se liga às práticas. 
A lógica dos conflitos no medievo tem uma racionalidade que nem sempre tem 
como um fim a morte. Porém, as racionalidades não são imóveis e se vinculam ao 
momento e respondem pela necessidade. A racionalidade de um conflito intrassocietário 
(entre cristãos) não é a mesma de uma guerra intersocietária (como cristãos e 
muçulmanos) e veremos isso adiante. Afinal de contas, os massacres da primeira cruzada 
perpetuados pelos cristãos demonstram isso: violentos ao extremo, mas com sua 
racionalidade. Os massacres não são irracionais e tratá-los desta maneira isenta o discurso 
cristão na elaboração do “outro”. 
A honra, da qual nos referimos, não tem um significado único e muda de sentido 
conforme o contexto. Por exemplo: no século X, honra estava atrelada à posse de um 
bem. “Possuir honra” significava, se empregada positivamente, a designação de terras 
(feudo ou senhorio), ou, se preferirmos, baronias. 178 Não é desta honra que estamos 
tratando aqui. Dentre as várias interpretações existentes partimos do dicionário Mediae 
Latinitas Lexicon 179 que elenca as seguintes definições para a honor: honra como 
competência e poder,180 honra como posição social181 (tendo a posição e reproduzindo as 
formas de vida que conferem esta posição), honra como um importante papel público182 
e honra como privilégios. 183 Além do sentido de respeitável atrelado ao termo 
honorabilis.184 O dicionário lista vinte e seis definições para honor, das quais muitas 
atreladas a posse de cargos, funções eclesiásticas e competências na cobrança de taxas. 
As definições por nós escolhidas se atribuem a categorias mais universais que guiem 
comportamentos e se coloquem como um fio condutor nas motivações das relações e 
ideais de vida. O uso do termo e seu significado está atrelado ao local, período e contexto. 
 
177 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução Maria Ermantina de Almeida P. Galvão. São 
Paulo: Martins, Fontes, 2010, p.319; 
178 Cf. BARTHÉLEMY, Dominique, Op. Cit. , 2010, p.151 
179 NIERMEYER, Jan Frederik, and C. van de Kieft. Mediae Latinitatis lexicon minus. A medieval Latin-
French/English dictionary. Leiden: Brill, 1976, pp.495-498; 
180 Definição 3: Competence, power 
181 Definição 4: social rank 
182 Definição 8: an important public office 
183 Definição 25: Privilege 
184 Definição de honorabilistas que se refere à respected 
 
57 
 
 
No entanto, utilizamos as definições citadas pois se relacionam com uma gama de 
comportamentos pretendidos e que guiam as relações aristocráricas nos séculos XI e XII. 
Em milagres de Santa Fé, por exemplo, identificamos alguns usos da honor para 
nomear diversos comportamentos citados acima. Vejamos alguns exemplos: no milagre 
onze do Liber Primus Bernardo de Angers discorre sobre os crimes dos leigos:“Vi [...] 
monges e abades colocados fora de suas posições, 185 privados de seus bens e 
violentamente massacrados”.186 Estas posições das quais os abades estão excluídos, são 
referidas no miracula como honore. O sentido empregado faz alusão ao afastamento dos 
abades de uma propriedade, que confere poder, posição social e importante papel público 
aos seus detentores, que agora estavam retirados de tal competência. O sentido de poder, 
competência, posição social e privilégios, encontra-se, também, no mesmo milagre 
quando se fala das posses de Hildegaire, que tinha herdado da filha de sua avó, Doda, 
“grande riqueza e posição social 187 elevada”. 188 No entanto, Hildegaire usurpa os 
territórios de Santa Fé e é punido pela prática. A honra como respeitabilidade também 
está presente no relato do milagre dezessete no Liber Tertius, que mostra como um 
guerreiro de nome Siger, conhecido pela excelência de sua linhagem “diminuiu a 
dignidade de seu status189 por sua grande hostilidade com Santa Fé”.190 
Ser portador da honra, buscá-la, promovê-la e o medo de perdê-la movimenta a 
aristocracia. A violência, como vemos hoje, faz parte da honra pois se refere a capacidade 
do exercício da autoridade, do estabelecimento de uma posição social, de ter pra si um 
papel público (as hostes das assembleias de paz não são isso, afinal?) e ter privilégios na 
concretização de sua competência de taxação, guerra e exploração. Todo esse conjunto 
se dá, afinal, na utilização das mais variadas violências. Porém, na maioria das vezes não 
é violentia. Parece paradoxal, mas a violência não era, necessariamente, violentia. 
 A compreensão da forma como uma sociedade vê seus atos é o primeiro passo 
para a dialética entre o êmico e o ético, e a escrita de um trabalho em História. 
Principalmente, em História Medieval. Um outro ponto de análise pertinente se trata do 
 
185 sive monachos abbatesque et ab honore depositos In: Bernardo de Angers. Op.Cit, 1887 p.39; 
186 The book of Sainte Foy. Op.Cit, 1995, p.71; 
187 Huic cum successisset tam in divitiarum opulentia quam in reliquo dignitatum honore nepos ejus 
Hildegarius, filie sue filius, a quo castrum valde opinatum in pago Albigensi regitu, vocábulo Penne. In: 
Bernardo de Angers. Op.Cit, 1887, p.40; 
188The book of Sainte Foy, Op.Cit, 1995, p.72. O milagre fala que o mesmo Hildegaire era senhor de um 
famoso castelo chamado Penne, situado em Albigeois; 
189 honoris sui dignitatem in: Bernardo de Angers. Op.Cit, 1887, p.157; 
190 The book of Sainte Foy, Op.Cit, 1995, p.166; 
 
58 
 
 
sistema de vinganças. As vendetas sempre foram um dos argumentos para quem vê o 
período permeado de assassinatos e ciclos de vinganças intermináveis. Observemos como 
era. 
 
1.4 Vingança: violência ou composição? 
A Idade Média como um período de vinganças sem fim e da honra que precisava 
ser recuperada após um parente ou aliado morto permeou o imaginário das pessoas (e 
ainda permeia) por muito tempo. Afinal de contas, até o santo se vinga. Porém, o santo 
se vinga e ao mesmo tempo perdoa o alvo de sua vingança, desde que haja arrependimento 
por parte do castigado. Arrependimento seguido de peregrinação ao santuário onde está 
guardada a relíquia da santa ou santo. Estamos diante de um acordo, uma composição. A 
composição é uma chave de leitura para o entendimento das relações existentes no 
sistema de vinganças e auxillia na percepção dos interesses, entre as partes envolvidas, 
na resolução do assunto sem derramamento excessivo de sangue. 
Vejamos um exemplo nos milagres de nossa senhora de Rocamadour:191 Philip 
era um cavaleiro de Cerro, na Itália, que costumava zombar daqueles que saíam da 
Península Itálica em busca de ajuda em Rocamadour. “Seu argumento era o fato da Itália 
ser notável por suas renomadas e grandes igrejas dedicadas à mais elevada Senhora e 
rainha”.192 Acontece que, certa noite, a virgem aparece diante dele com um exército de 
demônios para ameaçá-lo. As ameaças de morte feitas pelos demônios eram uma 
demonstração do que o esperava caso ele não fosse até a igreja da santa em peregrinação, 
pois com os demônios “as ações dos ímpios são desnudadas e os culpados lançados na 
confusão.” O cavaleiro Philip concorda e conforme a narrativa “foi movido pela 
admoestação da virgem suprema e pelo terror dos espíritos imundos”. Philip parte em 
peregrinação para agradar a virgem e ser perdoado das ofensas que tinha proferido aos 
peregrinos da santa e à própria santa. Eis uma composição. Uma vingança sem morte, 
feita através de acordos. 
A santa também negocia seu perdão e este perdão encerra a possibilidade de 
revanche, desde que o perdoado não incorra em novo erro. Embora as vinganças e as 
guerras feudais não sejam tão promotoras de combates cruentos e se busque, mais os 
 
191 BULL, Marcus. Op.Cit., 1999, p.144; 
192 Ibidem, p.144. 
 
59 
 
 
acordos, que assassinatos, esta maneira de reprodução da honra tem relação com o 
aumento da esfera de autoridade. Os príncipes buscavam a expansão de seu raio de ação 
(usando, inclusive, argumentos de vendetas) a partir dos mais variados mecanismos: se 
aliando com campesinos ou vassalos de um senhor rival, corrompendo um aliado deste 
senhor etc. 
Abel López trata das composições como um dos fundamentos do sistema de 
vendetas. López analisa as manifestações públicas de ira, que envolvem acusações contra 
supostos praticantes de algum crime: “a agressividade verbal é, geralmente, uma resposta 
a uma agressão passada. Tem alcance legal já que é pública. A pessoa insultada assume 
que uma responsabilidade está sendo atribuída a ela, que ela causou danos a um terceiro, 
então ela acredita que é seu direito ficar com raiva”. 193A partir disso, existe a busca pela 
vingança. Os conflitos resultantes destas vinganças e suas resoluções passam por uma 
lógica que precisa ser compartilhada pelas partes em disputa. Hanna Skooda194 afirma 
que a violência física é uma espécie de linguagem, mas para ser interpretada como tal 
necessita de entendimento por parte dos envolvidos, pois “nenhuma comunicação pode 
ser significativa na ausência de normas e convenções compartilhadas”.195 
Para a ilustração do sistema faremos uso da sociologia do conflito de Lewis 
Coser. 196 Coser diferencia os conflitos institucionalizados, também chamados de 
conflitos internos, dos conflitos externos a um determinado grupo. Os conflitos internos 
e institucionalizados são os sistemas de vinganças e as próprias guerras feudais em si. Os 
adversários compartilham um sistema simbólico e uma linguagem que permite a 
apreensão do encerramento da contenda, por exemplo. “Entres os conflitos 
institucionalizados, alguns têm pontos de término inerentes e previamente estabelecidos. 
É o caso das ordálias, duelos e outras lutas de caráter agonístico, cujos desenlaces 
simbólicos se assimilam, de certa maneira, com jogos determinando o resultado”. 197 
No caso das vinganças, o desfecho pode ser variado. Ocorre através do 
apaziguamento das tensões mediante acordo ou num conflito corpo a corpo. Numa 
“sociedade de vingança, tudo é questão de dosagem entre o rigor e a benevolência, e a 
 
193 LÓPEZ, Abel. Op.Cit, 2017, p.85; 
194 SKOODA, Hannah. Op.Cit, 2013; 
195 Ibidem, p.18; 
196 COSER, Lewis, Las funciones del conflicto social, México, Fondo de Cultura Económica, 1961 y 
Nuevos aportes a la teoría del conflicto social, Buenos Aires, Amorrortu, 1970. 
197 DEVIA, Cecília. Op.Cit, 2014, p.162; 
 
60 
 
 
dificuldade é conceder a paz sem vergonha, renunciando uma legítima reposta quando se 
recebeu o golpe mais recente”. 198 Em fundamentos teóricos do conflito social, o 
sociólogo Pedro Luis Lorenzo define conflitos sociais deste tipo como “uma interação 
social contenciosa entre atores sociais que compartilham orientações cognitivas, 
mobilizados com diversos graus de organização e que atuam coletivamente de acordo 
com expectativasde melhora, de defesa de uma situação pré-existente ou propondo um 
contraponto social”.199 O autor busca a compreensão destas hostilidades num quadro 
amplo e não apenas relacionado à contemporaneidade, visto que também analisa a 
modernidade e o medievo. Os conflitos sociais nem sempre objetivam a implosão de um 
sistema mas, muitas vezes, ajudam na sua manutenção e reprodução. 
A sociologia do conflito e a antropologia da vingança auxiliam no estudo do 
fenômeno das vendetas. O conflito social é, conforme Pedro Lorenzo, melhor 
compreendido se nos atentarmos aos seguintes aspectos: um conflito não é apenas um 
movimentos de massa e pode partir de um ato individual que visa uma oposição; pode 
estimular a mudança, mas também a permanência e ser utilizado como promotor da 
consevação de um status quo. Além disso, os fatores econômicos não são os únicos que 
estimulam o conflito, pois existe, também, uma importância cultural e psicológica. Por 
fim, entende-se melhor um conflito social quando não consideramos que ele seja apenas 
um promotor de mudanças ou um meio de alteração da ordem vigente. O conflito também 
pode ser estudado de forma autônoma, como qualquer outro fenômeno social, político ou 
cultural, conceitualizando sua dinâmica interna de uma forma puramente teórica. Além 
disso, não são conflitos apenas mobilizações que se concretizam em atos violentos. 200 
Estes conflitos fazem parte de um sistema social que compartilha certos valores, 
permitindo uma composição, um acordo, mesmo que uma das partes saia em desvantagem 
desta negociação. A vendeta, como conflito social, é um mecanismo que mantém um 
status quo, que mantém um sistema de valores calcados na honra. Daí em diante, o 
conflito pode ser violento ou não. Tudo depende das partes envolvidas e do ambiente que 
proporcione um desfecho sanguinário ou nem tanto. Trata-se, muitas vezes, de um embate 
que convida à resolução. Para melhor observação das nuances avaliemos o verbete 
Venganza no Dicionário de Antropologia de Thomas Barfield.201 Barfield entende a 
 
198BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2010, p.485; 
199 LORENZO, Pedro Luis. Fundamentos teóricos del conflicto social. Madrid, Siglo XXI, 2001, p.12; 
200 Ibidem; 
201 BARFIELD, Thomas. Dicionário de Antropología. México (MX) : Siglo XXI, 2000, p.666; 
 
61 
 
 
vendeta como uma “instituição de resolução de conflitos não apenas de forma agressiva, 
mas contendo elementos de controle social deliberado”.202 O autor fala de uma “represália 
dosada”203 para designar as vendetas como uma relação de controle. A possibilidade de 
uma vingança é, conforme o verbete, um mecanismo que atenua os ânimos, a partir do 
medo de ser um alvo, em potencial, de ataque, caso se pratique um ato considerado 
injurioso. Porém, o verbete parte destas vendetas como instituições de controle num 
âmbito da ausência de um governo central. 
O objetivo não é o questionamento acerca da existência de um Estado central no 
período estudado aqui, mas entendemos que existem as manifestações da presença de 
autoridades atuando e exercendo certo controle. Não tem relação com um Estado, 
necessariamente, central. Porém, nos séculos XI e XII no recorte regional trabalhado 
neste capítulo, não ocorre ausência de controle ou poderes dominantes. As forças 
centrífugas alimentam o poder central ao mesmo tempo que o fragmentam. As células 
necessitam do centro para a sua própria legitimação e o contrário também acontece. No 
entanto, as relações de poder se exercem de maneira local e se verificam principados com 
verdadeiras capacidades monárquicas. Assim, em nível local, os senhores estabelecem 
distintos mecanismos de controle. Não se realizam ciclos intermináveis de acertos de 
contas que ocasionariam uma ruptura, provocando conflitos que não permitiriam, por 
exemplo, algumas guerras do tipo cruzada. 
O estudo antropológico da vingança estabelece uma divisão oportuna para quem 
pesquisa o fenômeno: vendetas intrassocietárias e vinganças intersocietárias. Como o 
próprio nome já diz, a primeira compete ao ocorrido no interior de uma mesma sociedade 
ou numa parentela; a segunda entre duas sociedades distintas. Dito isto, existem as feuds 
e as guerras de vingança. A noção de feud está bem presente em antropólogos anglo-
saxões e se relaciona com os feudos de sangue ou vendetas que ocorrem no interior de 
um mesmo grupo. As guerras de vingança são perpetradas contra outro grupo social. O 
problema nesta análise é o recorte. Quais os critérios para a designação de uma feud e 
uma guerra de vingança? Como se estabelece o recorte de uma sociedade? Quais são as 
escolhas? O exercío é complexo e depende das prioridades do pesquisador e de seu 
 
202 Ibidem, p.666; 
203 Ibidem, p.666; 
 
62 
 
 
trabalho. O que pode ser uma sociedade? A Cristandade? Um reino? Uma baronia? A 
cavalaria? 
A escolha de uma sociedade em nossa pesquisa é cavalaria cristã. Dominique 
Barthélemy afirma que existe um mundo social de guerras e justas que “tende a 
transcender as etnicidades até então sublinhadas (francos, aquitanos, normados, 
flamengos)”.204 Para Barthélemy essa sociedade é uma Cavalaria-mundo.205 Porém, não 
pode ser dissociada do Cristianismo, que cimenta estas relações. Por isso, uma feud ou 
vendeta, como instituição interna de controle se aplica, em nossa análise, à essa 
sociedade, que é repleta de comunidades distintas. Porém, nosso recorte não impede que 
se realizem outros, em âmbitos mais reduzidos. As blood feuds fazem parte de uma 
análise clássica de Evans-Pritchard que as enxerga inseridas numa concepção de controle 
para que uma sociedade não mergulhe numa guerra civil, ocasionando sua implosão. 
Percebe-se, desta maneira, que “os conflitos que se desenrolam num conjunto de relações 
em um espectro social mais amplo ou por um longo período de tempo, levam à 
restauração da coesão social”.206 As vendetas que se pensa conduzir ao banho de sangue, 
na verdade, têm a capacidade de promover uma ordem, pois “os conflitos fazem parte da 
vida social e os costumes parecem exacerbar esses conflitos, mas ao fazer isso eles 
também restringem os conflitos que levam a destruição da ordem social mais ampla”. 207 
Eis nosso recorte de análise: existem as vendetas ou blood feuds que são internas 
a uma sociedade. A sociedade, nesta pesquisa, é a cavalaria cristã como parte constituinte 
da Cristandade. Existem, também, as vinganças externas ou guerras de vingança que são 
destinadas às sociedades exteriores. 208 Tendo esta divisão marcada para a nossa análise, 
destacamos o seguinte: no interior desta cavalaria cristã se sucedem mecanismos que 
buscam a contenção dos conflitos para que estes não se exacerbem e levem ao descontrole 
de uma guerra sangrenta. A lógica das blood feuds se aplica em recortes restritos (como 
comunidades locais) e ampliados (os cavaleiros cristãos).209 No entanto, a busca pelo 
controle não significa, necessariamente, que se logre êxisto neste aspecto. O descontrole 
 
204 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit.,2010, p.256; 
205 Ibidem, p.256; 
206 DEVIA, Cecília. Op.cit, 2014, p.92; 
207 Ibidem, p.92. 
208 A referência é não ser cristão. 
209 Os cavaleiros cristãos formam um grupo que, ao travarem combates, seguem as lógicas de vendetas pois 
se acusam constantemente de algum crime passado. Porém, o objetivo destas batalhas não é matar o 
adversário, pois pertencem à mesma sociedade. Ver: BARTHÉLEMY, Dominique, Op.Cit., 2010; 
 
63 
 
 
faz parte do processo e as mortes ocorrem nestes embates aristocráticos. São estes 
conflitos que as igrejas condenam e canalizam. 
A Trégua de Deus é uma das formas de direcionamento dos guerreiros para o 
enfrentamento dos inimigos da Cristandade que são construídos como tais. Esta Trégua é 
um prolongamento da Paz de Deus e, da mesma maneira, não recusa a guerra feudal 
totalmente. Podemos entendê-la num caráter normativo e circunstancial como 
instrumentoadicional na acusação de quem pratica violentia, pois aquele que faz um 
ataque condenável nos dias que a Trégua de Deus proíbe é sentenciado “a pagar uma 
multa, e pode agravar o caso de um homem acusado de violência. Cavaleiro ou não”.210 
A proibição do assassinato de um cristão também fazia parte dos decretos desta 
Trégua de Deus. Durante a promulgação de uma destas tréguas no ano de 1054, em 
Narbona, há a seguinte cláusula: “que nenhum cristão mate outro cristão; pois aquele que 
mata um cristão derrama o sangue de Cristo; se, no entanto, mata-se um homem 
injustamente, o que nós não queremos, será necessário pagar por isso uma retratação 
segundo a lei”.211 Uma destas retratações é a penitência. O derramamento de sangue 
cristão poderia ser perdoado desde que fosse efetuado um ato penitente. A Trégua nasce 
na Catalunha, por volta de 1027, e “esta forma catalã se desloca em direção ao Norte, e 
cada província eclesiástica ou principado faz alguns ajustes a ela”.212 Porém, a existência 
desta trégua não foi responsável por um momento de calmaria interna, que promove a 
guerra externa. A Trégua de Deus não tem tal alcance, como por tanto tempo se viu. Uma 
leitura recorrente sobre o tema é a de Franco Cardini.213 Para Cardini, estes movimentos 
tem por função conter um descontrole provocado pelos cavaleiros: 
“Foram, precisamente, os chefes de certas dioceses, em breves apoiados 
por aristocratas e por milites que tinham conseguido converter ao seu 
projecto e por leigos de condição subalterna preocupados com o caráter 
endêmico de um estado de violência que impedia que se iniciasse ou 
retomasse o comércio e a vida econômica que deram início ao 
movimento da pax e da tregua Dei”.214 
Além disso, para Cardini os movimentos de paz são uma resposta para impor a 
pacificação “aos tyranni que continuavam obstinadamente a ensanguentar a Cristandade 
 
210 Ibidem, p.319. 
211 BARTHÉLEMY, Dominique. L’na mil et la paix de Dieu. La France chrétienne et féodale, 980-1060. 
Paris, Armand Colin, 1999, p.507 Apud BARTHÉLEMY, Dominique. Ibidem, p.319; 
212 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2010, p.317; 
213 CARDINI, Franco. O guerreiro e o cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques. O homem medieval. Editorial 
Presença, Lisboa, 1989; 
214 Ibidem, p.59; 
 
64 
 
 
com as suas lutas privadas [...]”. 215 Esta visão, geralmente, associa a Trégua como um 
mecanismo de pacificação que direciona uma mentalidde beligerante para a cruzada. 
Alguns pontos precisam ser abordados a partir das noções de Cardini. Primeiro, já 
tratamos sobre o suposto estado endêmico de violência e como a Paz de Deus protegia os 
patrimônios das igrejas mais detidamente. Segundo, as lutas privadas (vendetas) não 
significavam embates sanguinários e incontroláveis entre uma aristocracia guerreira, 
visto que existiam momentos de negociação e composição. 
 As próprias miracula apontam e convidam ao entendimento quando a santidade 
não pune ou cura um malfeitor, desde que haja arrependimento seguido, muitas vezes, de 
peregrinação. A composição faz parte desta dinâmica, tanto quanto os combates de 
sangue. Logo, é preciso atenção à visão estereotipada que certas leituras oferecem do 
período. Terceiro, a Trégua de Deus estabelece proibições de conflito aos dias que 
considera sagrado, buscando mais a penalização ou negociação do que, propriamente, a 
exclusão. A penalização traz para a órbita da Igreja a possibilidade do perdão e da 
imposição do que precisa ser feito para o alcance da remissão divina. Ou seja, visa uma 
concórdia que satisfaça os interesses tanto do poder eclesiástico quanto dos leigos. 
Com isto, talvez, possamos relacionar a Trégua de Deus à futura cruzada. Não 
apenas associando a proibição dos dias de combate com a automática permissão de 
quando guerrear e sim ver a cruzada como uma possibilidade de penitência para quem 
rompe as proibições. Como constataremos mais a frente, a capacidade da convocação de 
Urbano II de movimentar parte da Cristandade latina não se ligava apenas a uma causa, 
mas, sim a várias que permitiram a marcha para Jerusalém. Raul Glaber narra o 
movimento da Trégua de Deus da seguinte maneira: 
Aconteceu neste tempo que, sob inspiração da graça divina, e em 
primeiro lugar na região da Aquitânia, depois pouco a pouco, em todo 
o território da Gália, se concluiu um pacto, ao mesmo tempo por medo 
e por amor de Deus. Proibia a todo mortal, de quarta-feira à noite, à 
madrugada de segunda-feira seguinte, ser suficientemente temerário 
para ousar tomar pela força o que quer que fosse a alguém, ou para usar 
da vingança contra algum inimigo, ou mesmo para se apoderar das 
garantias do fiador de um contrato. Aquele que fosse contra esta medida 
pública, ou o pagaria com a sua vida, ou seria banido da sua pátria e 
excluído da comunidade cristã. Agradou a todos chamar este fato, em 
língua vulgar, a trégua de Deus. Com efeito, não gozava apenas do 
apoio dos homens, como ainda foi muitas vezes retificada por temíveis 
sinais divinos. Por que a maior parte dos loucos que na sua audaciosa 
 
215 Ibidem, p.59; 
 
65 
 
 
temeridade não recearam infringir este pacto foram castigados sem 
demora, quer pela cólera vingadora de Deus, quer pelo gládio dos 
homens. E isto deu-se em todos os lugares tão frequentemente que o 
grande número de exemplos impede de os citar um por um; Além disso, 
tratou-se apenas de justiça.216 
Raul fala de um castigo que seria efetuado “pelo gládio dos homens” aos que 
infringissem a Trégua. A resposta pela espada, segundo o monge, é “apenas justiça”. Aqui 
temos a defesa nomeada como justiça e não violentia. “A cólera vingadora de Deus”217 
se manifesta pelo combate. A vingança é cobrada com iuste218 e esta se reveste, neste 
contexto, de cota de malha, cavalo e lança. Deus, assim como um senhor feudal, também 
exige vingança e ela deve ser efetuada pelos seus guerreiros. O uso de uma palavra e não 
de outra está compreendido na busca da construção de uma ideia do que é ou não é um 
ato violento. A ausência do termo violentia no discurso é um procedimento de exclusão, 
do qual a interdição é o mais latente. Não tratar como violência um ato é construir uma 
verdade acerca do real. Essa verdade que separa e rejeita faz parte do discurso e “por mais 
que o discurso seja, aparentemente, bem pouca coisa, as interdições que o atingem 
revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder”. 219 
As reparações se davam também em acordos e escaramuças. Além disso, muitas 
vendetas eram indiretas. Ou seja, se pilhava o campesinato e não exatamente um castelo. 
A opressão contra os camponeses acentuava-se em momentos assim, mas o conflito entre 
senhores ocorria em escala mais reduzida do que, propriamente, num combate feroz de 
castelo em castelo. Dominique Barthélemy afirma, inclusive, que na segunda idade feudal 
as relações se abrandaram ainda mais e muitos inimigos dividiam o mesmo espaço nas 
cortes, se comportando de forma amigável e prodigiosa. 
A violência está presente em várias instâncias e é instrumentalizada por diversas 
categorias sociais. No entanto, a presença da violência não significa, neste contexto, uma 
desordem. O poder se utiliza da violência como um mecanismo nas relações cotidianas 
para alcançar certos objetivos. Inclusive, na manutenção da ordem. Assim, como o poder 
circula em várias camadas da sociedade, a violência segue caminho paralelo. Portanto, o 
uso político da violência faz desta algo distinto do poder. Poder e violência não são a 
 
216 Raul Glaber. Histories, Ed. E tradução: Marthieu Arnoux. Turnhout, 1996, pp.237-239; 
217 diuina uindex;In: Ibidem, p.238 
218 “Et hoc passim tarn frequenter contigit ut pre sui multitudine singulatim non queant adnotari, et hoc 
satis iuste.” In: Ibidem, p.238; 
219 FOUCAULT, Michel. Op.Cit, 1970, p.10; 
 
66 
 
 
mesma coisa, pois aquele se utiliza desta para a sua reprodução. Porém, a violêncianão 
é condição intrínseca ao poder. 
Apresentamos três categorias abrangentes do fenômeno da violência: violência 
direta, violência estrutural e violência cultural. Além disso, a violência também tem 
funções para o poder, que apresentamos como a função socializadora, de justiça, cultural 
e simbólica. Estas funções precisam ser entendidas em conjunto com as três categorias 
gerais e se relacionam no cotidiano como um instrument do poder. Porém, são categorias 
de análise do pesquisador que necessitam de um diálogo com as percepções que circulam 
na sociedade que o historiador investiga através de uma perspectiva dialética entre o 
êmico e o ético. No entanto, uma análise de “dentro” é limitada, pois o acesso ao passado 
medieval como tal é impossível, visto que existem apenas vestígios legados por uma 
parcela diminuta e abastada. No caso dos séculos XI e XII, esta parcela era pertencente 
aos homens da Igreja. 
O recorte de análise desta noção de violentia é a região da Gália e da Francia 
Ocidental pois, além do autor de De Expugnatione Lyxbonensi ser um anglo-normando e 
suas percepções estarem relacionadas com sua região de origem, esse discernimento 
sobre a violentia como rompimento de uma ordem, é atrelado, em nossa pesquisa, ao 
ambiente de intensas espoliações sofridas pelas igrejas da Gália. Estas igrejas utilizam as 
assembleias de paz em associação com os leigos para sua auto proteção. As assembleias 
constroem uma lógica de guerra sacralizada para aqueles que defendem os bens da Igreja. 
Um outro aspecto na justificativa desta escolha regional para ilustrar a lógica da 
crônica da conquista de Lisboa é a busca por Raul em aproximar a expansão afonsina das 
cruzadas. Marcus Bull afirma que as motivações daqueles que se lançam nas cruzadas 
podem ser captadas nos miracula através da metodologia das trigger words que aponta 
um caminho que conecta o ambiente de espoliações com o fenômeno cruzadístico. Ou 
seja, para propagandear Afonso Henriques, Raul constrói a imagem do rei e da conquista 
de Lisboa inseridas nas lógicas cruzadas. A estratégia é apresentar um rei que atende às 
necessidades da Igreja, tal qual os defensores que agem nos combates santos. 
Ainda neste primeiro capítulo procuramos a desmitificação da imagem de uma 
Idade Média feudal cercada de violência e barbárie, beirando o sadismo. Demonstramos 
que existiam mecanismos de controle. Além das assembleias de paz, a formação de hostes 
de pacificação e as constantes ameaças de excomunhão, apontamos o sistema de vendetas 
que regulava as comunidades no interior da Cristandade impedindo-as de mergulharem 
em combates intensos que levariam ao caos. 
 
67 
 
 
Com certa regularidade e controle interno os guerreiros cristãos foram colocados 
para agir no mundo em proteção da Igreja num combate contra os inimigos da 
Cristandade. Com estes elementos, a guerra se torna santa e é direcionada para fora. A 
noção de estar “fora” (intersocietária) da sociedade cristã possibilita aos homens de guerra 
se livrarem dos pecados cometidos e expandir a Cristandade diante do outro. 
 Dentro do que foi abordado até agora, sobrevém a seguinte reflexão sobre a 
violência no período: existe uma noção do que significa ser violento. Esta noção se atrela 
a um caráter específico, que é difundido de algumas formas, além de documentações 
normativas. As literaturas das mais variadas reforçam uma percepção do que é uma 
atitude de violência. Trabalhamos os miracula com seu tom pedagógico e propositivo 
acerca dos comportamentos condenáveis e piedosos. Estes relatos são importantes 
instrumentos na capacidade de discernimento da experiência daquele que a escreve, 
inserido num contexto social. “Os miracula nos aproximam o suficiente para vislumbrar 
operações de alguns valores e percepções culturais importantes”. 220 
No próximo capítulo direcionaremos nossa visão para o estudo do emprego da 
violência nas guerras cristãs em contextos locais e adaptados. A adaptação do discurso 
sobre o “outro” se adequa às circunstâncias e transfere a lógica do conflito intersocietário 
do mau cristão, que espoliava as igrejas, para os muçulmanos. As populações islâmicas 
que habitavam a Península Ibérica serão alvo deste discurso cristão no recrudescimento 
da expansão das monarquias ibéricas. Expansão que passa a ser descrita como sagrada, 
principalmente, com o surgimento do fenômeno da cruzada
 
220 BULL, Marcus. Op.Cit, 2003, p.31; 
 
68 
 
 
 
Capítulo 2 
As Guerras Cristãs: Violência Sacralizada 
 
Em Guerra Santa: Formação da Ideia de Cruzada no Ocidente Cristão, Jean Flori 
se questiona como o Cristianismo se torna propenso na disseminação da violência através 
das guerras, visto que, em seu surgimento, a mensagem era de recusa às práticas 
consideradas belicosas. Flori faz um longo percurso do Baixo Império até a Idade Média 
Central e as lentas transformações ocorridas no contexto do fim do Império Carolíngio. 
O autor explica como a recusa à violência se modifica e faz desta mesma violência um 
instrumento cristão. Talvez as condições na terra realmente movimentem os céus, pois 
necessitando de proteção contra a espada, a Igreja se defende com a espada. 
Neste segundo capítulo será realizada uma análise do discurso cristão que 
incentiva a violência e a positiviza como uma forma de proteção no ambiente de rapinas 
e de contestações aos seus patrimônios. Nomeando violência de outras maneiras, os 
teóricos da Igreja direcionam a belicosidade dos cavaleiros para as guerras sagradas. A 
partir da noção de guerra sacralizada, abordaremos a guerra santa em sua pluralidade. O 
discurso do combate santo que surge no ambiente da Paz de Deus é apropriado em outras 
regiões da Cristandade. Dentre estas, a Península Ibérica. A presença do Islã na região 
fez do muçulmano o “outro” que precisa ser combatido, conforme a lógica cristã. A guerra 
santa hispânica se efetua, principalmente, após o surgimento da cruzada. As monarquias 
ibéricas utilizam o discurso do combate sagrado como uma ferramenta de propaganda, 
visando a sua própria legitimidade. O período é de intensas movimentações políticas, pois 
o papado também busca aliados fora da Península Itálica. Os poderes se movimentam em 
suas lógicas particulares. As alianças e conflitos ocorriam entre estes poderes que, ora se 
legitimavam, ora se deslegitimavam. 
Na última parte do capítulo, uma análise do surgimento da cruzada será efetuada. 
A finalidade é a compreensão das ideias presentes nos relatos feitos acerca do sermão de 
Urbano II no concílio de Clermont. As trigger words de Marcus Bull apontam que a 
chamada do papa reune elementos presentes nos miracula ambientadas no contexto das 
assembleias de paz que analisamos no capitulo anterior. Elementos que também estarão 
presentes na crônica do cruzado Raul, já que ele era um anglo-normando. O uso da 
 
69 
 
 
violência no combate da violentia é uma apropriação do Cristianismo para sua própria 
serventia. 
 
 
2.1 A guerra santa cristã: violência permitida 
Efetuamos, até aqui, uma análise do que é violência num escopo atual e ampliado 
e o que era considerado violentia na região da Gália durante os séculos XI e XII. 
Doravante, nossa proposta de leitura parte das concepções internas daquela sociedade 
junto às noções modernas, para a apreensão de como a guerra cristã possibilita aos 
cavaleiros transformarem seus costumes bélicosos em práticas justas e sagradas. A 
primeira questão é sobre o caráter desta guerra santa. Podemos chamar de guerra santa, 
no singular? Ou talvez ‘guerras santas’ seja mais adequado? Existe uma fórmula 
específica, através de elementos distintivos que nos permita, a partir destes, uma 
identificação do fenômeno? Primeiro, existem vários tipos de guerras santas e não apenas 
uma. Segundo, não há fórmulas milagrosas. A literatura sobre o tema é ampla, sem 
consenso e segue em buscas de novasabordagens. Neste tópico, guiaremos nosso 
caminho através de uma discussão bibliográfica no que diz respeito ao tema e como se 
tem trabalhado o assunto. Seguidamente, estabelecer nossa visão. 
Uma reflexão inicial se faz necessária. A ideia cristã sobre o uso da violência 
considerada justa e sua manifestação através da guerra como forma de enfrentamento com 
outros povos advém do Velho Testamento. Não só a guerra, mas outros atos de violência 
também estão presentes e são justificadas pela vontade de Javé. “A própria ideia de guerra 
santa permeia boa parte do Antigo Testamento. Aí Deus é chamado com muita frequência 
de Senhor dos exércitos‘ (Adonai sevaoth), e a guerra é muitas vezes apresentada como 
guerra do Senhor”.1 
Alguns livros do Antigo Testamento, por exemplo, Êxodo, Números, 
Josué, Deuteronômio, Juízes e outros, descrevem a guerra realizada por 
Israel como santa ou justa na medida em que é determinada por Iahweh, 
que estabelece os objetivos, determina as conquistas, intervém nas 
operações, ordena as repressões e matanças, dispõe do butim e dos 
despojos. São vários os relatos de violência, de massacre, de genocídio, 
de guerra de conquista com intervenção direta de Iahweh em favor do 
povo de Israel.2 
 
1 TESSORE, Dag. A Mística da Guerra: espiritualidade das armas no Cristianismo e no Islã. São Paulo: 
Nova Alexandria, 2007, pp.27-28; 
2 p.41; 
 
70 
 
 
Os exemplos se multiplicam: Abraão, Moisés, Josué. A tradição judaico-cristã em 
relação ao uso da violência é ambígua, mas a ideia gira em torno de que “a Providência 
se serve das guerras, mesmo conduzidas por homens malvados, para corrigir seus fiéis e 
punir seus pecados, e para mostrar ao mundo inteiro o poder e a imperscrutável soberania 
de Deus”.3 
Dito isto, como surge a guerra santa cristã? As assembleias de paz seguida da 
Trégua de Deus são tratadas pela grande maioria dos historiadores como elementos que 
contribuem para a sacralização do combate efetuado pelos leigos a partir do momento em 
que estes prestam o serviço de proteção das igrejas contra a espoliação de “maus cristãos”. 
Muito se fala da guerra santa como um legado da guerra justa, que foi teorizada por 
Agostinho e que, numa longa duração, perpetrou os combates santos no decorrer da Idade 
Média Central. Jonathan Riley-Smith afirma que esta herança agostiniana no século XI 
ocorre quando “os papas estavam recorrendo aos eruditos para justificar o uso da força 
em prol da Igreja”. 4 Assim, “as citações dos escritos de Agostinho foram reunidas 
convenientemente em antologias, deixando de fora as contradições”. 5 Nota-se uma 
premissa nestas teorizações de que a violência é neutra6 e “a intenção dos praticantes que 
lhe forneciam uma dimensão moral”. Esta moralidade implicava na consideração da 
violência como algo bom ou ruim. 
Portanto, a resposta aos chamados das igrejas locais para defendê-las não era 
violentia. Muito pelo contrário. Tinha relação com justiça e, ao mesmo tempo, com uma 
obrigação daqueles que nasceram para a guerra. Era o reconhecimento da função 
guerreira e uma maneira de agir no mundo em prol da Igreja e da Cristandade. A defesa 
do sagrado, na emergência da guerra santa, parte de uma ação reativa aos ataques sofridos. 
Essa é a ideia que melhor se adequa ao aparecimento desta concepção de combate santo. 
A defesa do patrimônio eclesiástico proporcionou uma teorização dos combates e uma 
maior aceitação em relação aos discursos da Igreja para a defesa dos bens de Cristo. Com 
 
3 TESSORE, Dag. Op.Cit., 2007, pp.30-31; 
4 RILEY-SMITH, Jonathan. As Cruzadas: uma história/ Jonathan Riley-Smith; tradução de Jonathas de 
Castro – Campinas, SP: Eclesiae, 2019, p.56; 
5 Ibidem, p.56. 
6 Analisamos que a violência tem uma racionalidade e não é, jamais, neutra. A lógica da violência está 
atrelada ao poder que faz desta um instrumento conforme os interesses do período. A proposição da 
neutralidade da violência é um discurso com intuitos posicionados. Para questões de racionalidade e 
violência ver: FOUCAULT, Michel. Omnes et singulatim. Towards a Critique of Political Reason. In 
Power. Essential Works of Foucault: 1954-1984, ed. James D. Faubion, 298-325. New York: New Press, 
2000 e FOUCAULT, Michel . Em defesa da sociedade. Tradução Maria Ermantina de Almeida P. 
Galvão. São Paulo: Martins, Fontes, 2010; 
 
71 
 
 
a violência moralmente aceita a Igreja partiu para a guerra e incentivou o combate. “Os 
séculos centrais da Idade Média europeia, especialmente o período compreendido entre 
finais do século XI e fins do século XIII, foram um tempo de crescimento e exaltação da 
ideia de Guerra Santa [...]”.7 Essa ideia está realmente atrelada a algo específico ou se 
produziu numa diacronia? Esta diacronia para a compreensão envolveu um ponto inicial? 
O ponto inicial é sempre um problema quando estamos analisando as sociedades e suas 
imprevisibilidades. 
A guerra justa, que estaria na base da guerra santa, é um ponto de partida pros 
historiadores que analisam o tema. Um amplo leque é aberto e recua-se até a Antiguidade 
na captação desta noção. Geralmente, a qualificação da guerra como justa é identificada 
quando se dá a junção entre Cristianismo e Estado e os argumentos defensivos que 
derivam após esse momento. Não consideramos inapropriada esta análise e ainda é válida 
para a sacralização dos embates que surgiram a partir do século XI. No entanto, é preciso 
uma distinção: a Bellum Iustum agostiniana responde uma circunstância distinta e distante 
do que foi a necessidade de teorização dos combates em defesa das igrejas em contextos 
de pilhagens e dilapidações. 
Vejamos os argumentos de Jean Flori em seu livro Guerra Santa: formação da 
Ideia de Cruzada no Ocidente Cristão: Flori recua até o Baixo Império e investiga a 
adoção do Cristianismo pelo império romano. Neste momento, se inicia uma transição do 
pacifismo pregado pela Igreja Primitiva para uma belicosidade calcada no discurso de 
defesa. Para o historiador francês “a brusca mutação que transformou o império romano 
pagão em império cristão mudou de maneira radical os elementos que concernem a 
atitude dos cristãos com a guerra”. 8 
Essa mudança de atitude se articula ao instante experimentado pelo Império. 
Agostinho é utilizado posteriormente como recurso doutrinário legitimador. Notamos 
traços de Agostinho adaptados à conjuntuta em que é utilizado. Por este motivo nos 
referimos ao plural em relação às guerras santas. Pois, o discurso que legitima, utilizando-
se dos escritos do Bispo de Hipona, é adaptável. A Guerra Santa Hispânica usa os escritos 
 
7 GONZÁLEZ, David Porrinas. Guerra Santa y Cruzada en la literatura del Ocidente peninsular medieval 
(siglos XI-XIII). In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos de (dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y PALACIOS 
ONTALVA, J. Santiago (dir.). Orígenes y desarrollo de la guerra santa en la Península Ibérica: Palabras e 
imágenes para una legitimación (siglos X-XIV). Nueva edición [en línea]. Madrid: Casa de Velázquez, 
2016; 
8 FLORI, Jean. Op. Cit, 2003, p.23. 
 
72 
 
 
de Agostinho no combate ao muçulmano, visto que também auxilia na legitimação das 
monarquias peninsulares com o surgimento da cruzada. Neste caso, são discursos de 
guerras específicas, que recorrem a um teórico da Igreja para, inclusive, contar com as 
hostes cruzadas nas campanhas de expansão dos reinos ibéricos. Então Agostinho acaba 
sendo um ponto de partida? De certa forma sim, mas não só ele. A guerra justa também 
é bíblica e muito presente no Antigo Testamento, como dito acima. Não só a guerra, mas 
assassinatos são justificados como piedosos, desde que com anuência divina e para 
cumprir seus desígnios. 
O caso de Abraão que oferece seu filho em holocausto é, inclusive, citado pelo 
em Cidade de Deus. O episódio de Moisés também demonstra certas especificidades. 
Quando desce do monte Sinai com as tábuas da lei, que inclui o “nãomatarás”, o profeta 
acaba ordenando a matança de todos que estavam adorando um bezerro. As doutrinas 
agostinianas estão presentes de forma específica. Ele é dito e citado em muitos discursos. 
No entanto, de maneira adaptada, dito de outra forma e inserido no ambiente que é 
pronunciado. Significa “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito 
e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia sido dito jamais”. 9 
A percepção do combate justo está presente antes de Agostinho e pode ser tão 
antiga como o próprio fenômeno da guerra. “Agostinho de Hipona (354-430) vincula esta 
teoria ao Cristianismo, e suas ideias serão herdadas pelos teóricos eclesiásticos medievais, 
adaptando-as às suas próprias necessidades e circunstâncias”. 10 Portanto, por mais que 
Agostinho seja usado muitas vezes em diversas racionalizações da guerra, as justificativas 
dos séculos XI e XII estão inseridas em seus devidos tempos e lugares, se adaptando, 
inclusive, aos que recebem o discurso. As justificativas e as motivações são dois pilares 
básicos para a movimentação daqueles que praticam a atividade bélica. 
Dito isso, definimos guerra santa como todo conflito que tenha contato com 
elementos do sagrado e seja justificada para a defesa de uma sacralidade, contando com 
o seu auxílio para a proteção dos fiéis. A guerra santa usa do argumento da Bellum Iustum, 
muitas vezes, na justificava de um combate que busca “reaver” algo que foi tomado. Esses 
elementos do sagrado são variados e envolvem objetos, símbolos, liturgias etc. Alexander 
Pierre Bronisch caracteriza o fenômeno da seguinte maneira: “o que está em contato 
 
9 FOUCAULT, Michel, Op.Cit, 1970, p.25; 
10 GONZÁLEZ, David Porrinas. Op.Cit, 2016, p.70; 
 
73 
 
 
direto com a divindade pode ser considerado santo, e não importa se é um objeto, um 
sinal ou uma ordem divina”. 11 Ou seja, o contato com o sagrado e a a sua defesa fazem 
de combate algo santo. A sacralidade pode ser representada por bens da Igreja, por 
exemplo. 
Sendo assim, é possível a identificação destes traços e, ao mesmo tempo, não 
atrelá-los apenas ao Cristianismo, embora nossa atenção aqui se volte para estas guerras 
santas cristãs especificamente. Contra quem estes conflitos santos se levantam? Os 
adversários variam e as fundamentações se adaptam, muitas vezes, de acordo com o 
“inimigo”. O inimigo pode vir de dentro e notamos a guerra sendo sacralizada justamente 
contra quem está, aparentemente, no interior da sociedade. Então, era um conflito 
intrassocietário? Não avaliamos desta maneira, pois o mau cristão é visto como um 
problema que o coloca fora da sociedade. Como se dá esta exclusão do mau cristão? Pela 
excomunhão, interdito e outras práticas que visam a vexação dos praticantes de condutas 
errôneas. Bernardo de Angers12 já dizia a respeito do monge Gimon que anunciava o 
combate aos falsos cristãos como superior meritoriamente, pois eles “atacavam a lei 
cristã” ao contrário dos pagãos, “dos quais nunca tinham conhecido a Deus”.13 
Por que Gimon não agia de erroneamente utilizando-se da espada na defesa do 
mosteiro? Ele era um monge, embora tenha vivido no século antes de sua conversão. 
Explicamos anteriormente que agir com violentia é uma condição relacionada ao jogo de 
poderes. O monge defensor agia, conforme Bernardo de Angers, de forma piedosa, já que 
protegia a abadia. “Ninguém poderia duvidar de que sua bravura foi agradável aos olhos 
de Deus”, pois ele combateu uma “grande força inimiga que caiu violentamente14 sobre 
o mosteiro”. Eis a palavra qualificando os atos de quem atacava o mosteiro: violentia. 
Gimon era servo de Deus e instrumento divino para a defesa dos bens da Igreja. “Se a 
onipotência vingadora 15de Deus empregar a mão de qualquer um de seus próprios servos 
 
11 BRONISCH, Pierre Alexander. La (sacralización de la) guerra em las fuentes de los siglos X y XI y el 
concepto de guerra santa. In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos de (dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y 
PALACIOS ONTALVA, J. Santiago (dir.). Orígenes y desarrollo de la guerra santa en la Península Ibérica: 
Palabras e imágenes para una legitimación (siglos X-XIV). Nueva edición [en línea]. Madrid: Casa de 
Velázquez, 2016, p.28. 
12 Bernardo de Angers. Op. Cit. ,1897, pp.66-67; 
13 Ibidem, pp.66-67 ; 
14 Hostium violentia. In: Ibidem, p.67. 
15 Vindex, In: Ibidem, p.68; 
 
74 
 
 
para derrubar e massacrar um destes anticristos, ninguém poderia chamar isso de 
crime”.16 
Examinemos detalhadamente o caso citado acima. Gimon trava um combate justo 
pois era, nas palavras de Bernardo de Angers, um “trabalhador da verdadeira justiça”. 17 
A defesa da abadia e o combate efetuado pelas forças de Gimon estavam em contato com 
o sagrado, não apenas por defender uma propriedade de Santa Fé, mas porque o próprio 
monge combatente se direcionava para as relíquias da santa, pedindo proteção e vingança 
contra aqueles que atacavam. Indo até o túmulo da mártir “ele jurou seu caso diante de 
Santa Fé em sua maneira realista de se dirigir a ela. [...] Pois ele ameaçou açoitar a 
imagem sagrada e até mesmo jogá-la em um rio ou poço, a menos que Santa Fé se 
vingasse do malfeitores imediatamente”.18 O ritual de humilhação das relíquias ou de 
ameaça era habitual em muitas abadias e uma forma de negociação com a santa ou santo. 
Bernardo de Angers segue o relato e diz que após os apelos do monge combatente os 
“malfeitores morreram devido a vários infortúnios”. 19 
A vingança da santa se efetiva e os relatos deste tipo de intervenção são habituais 
a partir do século XI. “A violenta intervenção dos santos conduziu, pois, a uma verdadeira 
sacralização dos combates que seus fiéis empreendiam pelo interesse das igrejas”.20 O 
caso de Gimon não tinha relação com a recuperação de um bem ou terra perdida. O caso 
teria ocorrido por volta de 960. Ou seja, a guerra santa ainda não estava plenamente 
estabelecida, mas é possível a identificação desta consciência. Gimon é do século X mas 
sua história é contada por volta de 1010. Bernardo de Angers lança seus olhos ao passado 
com as visões de seu próprio tempo e as impressões do século XI. 
Jean Flori 21entende que a Paz de Deus contribui para a moralização da ação 
guerreira. As narrativas dos santos que castigam, frequentemente, quem atenta contra seu 
patrimônio, contribuem para uma visão de justiça que se pratica na proteção do sagrado. 
Ocorrem dois caminhos que se alimentam mutuamente. A necessidade da defesa da Igreja 
pela espada com o auxílio dos laicos e de sua beligerância, e a proliferação dos relatos de 
milagres com intervenções violentas dos santos. A literatura reflete seu tempo e o 
 
16 The book of Sainte Foy. Op.Cit, 1995, p. 95 
17 Ibidem, p.95; 
18 Ibidem. 
19 Ibidem. 
20FLORI, Jean. Op.Cit, 2013, p.123; 
21 Ibidem, pp.120-123; 
 
75 
 
 
cotidiano se legitima por essa literatura. O discurso é propositivo e coloca a violência 
como um instrumento ao alcance dos homens do século para agradar a Deus. Os santos 
eram violentos e este artifício foi utilizado muitas vezes nas assembleias de paz quando 
as relíquias eram levadas como forma de atemorizar àquele que rompessem o juramento 
efetuado. A violência era um instrumento no combate da violentia. Aqui nos referimos a 
violência proporcionada pelos símbolo que coagem. As relíquias impõe respeito e temor. 
As assembleias usam da violência como forma de se defender da violentia. Jeróme 
Baschet em seu clássico manual A Civilização Feudal do ano mil à colonização da 
América afirma que “é-se cristão porque se nasce no Cristianismo”.22 Adaptando a frase 
do medievalista francês, podemos dizer que as assembleias eram violentas por nascerem 
num ambiente de violentia. A princípio parece uma ideia determinista e que coloca a 
violência como única saída para um ambiente, aparentemente, violento. Não é 
determinismo e sim a compreensão que a linguagem deuma aristocracia guerreira se dá 
a partir das concepções que envolvem a violência como uma parte constituinte da honra. 
As assembleias se comunicam com estes senhores através de imagens que os mesmos 
compreendam. No nível da linguagem, as assembleias são simbolicamente violentas para 
dialogar com uma aristocracia belicosa. Porém, note-se que a violência da qual nos 
referimos não é apenas a violência física. Caso contrário, estaríamos perpetuando um 
imaginário de uma sociedade anárquica. 
A presença do santo, por intermédio de sua relíquia ou imagem, tem um 
significado e o símbolo presente dá sentido na relação com o sagrado e na imposição que 
se pretendia através da paz ou ameaça de quem rompesse o trato. “Os símbolos 
constituem o núcleo dos sistemas culturais, pois são com eles que formamos 
pensamentos, ideias e outras maneiras de representar a realidade para os outros e para nós 
mesmos.” 23 A presença daqueles símbolos busca, em sua essência, uma conciliação, um 
consenso. O símbolo, em seu âmago e quase na origem de seu termo, é unificador de 
pares opostos.24 “Seria a faculdade de manter unido o sentido consciente que capta e 
recorta precisamente os objetos e a matéria-prima que emana do fundo do inconsciente.” 
Ou seja, “o símbolo seria uma mediação entre a realidade concreta e uma abstração, um 
 
22 BASCHET, Jérome. A Civilização Feudal: do ano mil à colonização da América. Tradução de Marcelo 
Rede. Rio de Janeiro: Globo. 2006; p. 167; 
23 JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia:guia prático da linguagem sociológica/ Allan G. 
Johnson; Tradução: Ruy Jungman; Consultoria: Renato Lessa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp.206-
208; 
24 DURAND, G. A Imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix, EDUPS, 1988, p.61; 
 
76 
 
 
conceito, implicando uma função de comunicação. O símbolo é sempre algo que 
representa alguma coisa para alguém.” 25 
O símbolo, como união e consenso, promove uma obrigação. Esta obrigação 
representa a capacidade de apreensão que se desenvolve nas pessoas diante da forma 
simbólica. A forma, ao produzir sentido, também promove coerção. Num cotidiano 
cristianizado, onde os costumes, ações e simbolismos remetem ao sagrado e ao 
sobrenatural, era usual que as coisas que remetessem ao espiritual promovessem um misto 
de admiração e medo. A presença do santo patrono do mosteiro nas assembleias traz ao 
plano da realidade uma representação daquele que castiga os prevaricadores e combate 
não só os infiéis como também os maus cristãos, que insistem nas práticas violentas de 
espoliação do patrimônio eclesiástico. “Quando falamos de imagens, devemos considerar 
que essas funcionam como símbolos, repletos de significados, que embora não pertença 
a linguagem propriamente discursiva, expressam ou geram conceitos.” 26 Desta forma, 
busca-se uma anuência pela imposição, através de juramentos que determinam o respeito 
em relação às coisas da Igreja. 
O consenso, via imposição, ignorava as discordâncias. O que era decidido entre 
as camadas abastadas numa aliança entre as aristocracias laicas e eclesiásticas apagavam 
a existência de outros, excluindo a voz dos que não tinham o acesso ao discurso. Sendo 
assim, detectamos a violência estrutural e cultural nestas assembleias. Estrutural, pois se 
realiza a exclusão de forma simultânea ao que é imposto de maneira vertical. As decisões 
da comunidade sendo tomadas entre os detentores de alguma autoridade. As relíquias que 
manifestam devoção e pavor movimentam as decisões e a ameaça de excomunhão coloca 
o clero como um elemento necessário na condução da mão daqueles que portam o gládio, 
direconando-os para a verdadeira justiça: a defesa da Igreja e da Cristandade. “A função 
simbólica da violência é também uma forma de construir poder por meio de ritos”.27 Estes 
ritos são armas próprias da Igreja (em particular a excomunhão e interdição).28 Existe 
uma racionalidade nestas assembleias e a razão da violência está ligado a esta 
 
25 CRUXEN, Edilson. Castelo Medieval: elementos simbólicos e representações. In: Reflexões Sobre o 
Medievo II, Prática e Saberes no Ocidente Medieval. / Organizado por Carlinda Maria Fischer Mattos, 
Edilson Bisso Cruxen e Igor Salomão Teixeira – São Leopoldo: Oikos, 2012, p.156. 
26 Ibidem, p.156; 
27 DEVIA, Cecília. Op.Cit., 2014, p.243; 
28 Ibidem, p.243; 
 
77 
 
 
racionalidade. Existe razão nesta práticas. Compreender o esquema nos jogos de poder e 
qual o tipo de racionalidade envolvida, permite analisar se está ou não ligada à violência.29 
A guerra santa surge, então, das definições que se manifestam nos 
desdobramentos da Paz e da Trégua de Deus? Na região da Gália e Catalunha sim. 
Cogitamos que estas assembleias tem papel determinante para a desproblematização da 
violência e seu redirecionamento para causas pias. Então é uma especificidade da região 
citada? A guerra santa não é especificidade de uma região da Cristandade, mas sim de 
toda a Cristandade latina e suas divisões regionais. Sendo assim, existem discursos e 
guerras santas específicas, com inimigos que também são específicos, mas que são 
colocados num quadro de exterioridade ao conjunto cristão. Talvez esta seja uma 
constante para a definição de uma guerra santa: ter como inimigo quem está fora da 
sociedade; além dos aspectos citados, como o contato e a defesa do sagrado, a proteção 
aos fiéis e a retomada de algo que foi tirado com violentia (O que caracteriza uma guerra 
justa). 
Doravante, quem está fora da sociedade é uma variável de acordo o local. A 
percepção de guerra santa que advém da Gália tem como variável, geralmente, o mau 
cristão. Notamos como o mau cristão é visto e caracterizado: promovendo invasões, 
contestando as propriedades da Igreja, represando o dizimo, assediando os peregrinos de 
algum santo ou santa etc. Se nos atentarmos, por exemplo, ao livro de milagres de São 
Privato de Mende,30 veremos que dos treze milagres relatados, oito falam sobre castigos 
aos invasores da terra do santo. Ou seja, era uma tônica que se pretendia combater na 
região de Mende mostrando as punições contra quem atacasse a propriedade. 
A Bellum Iustum é uma base importante de legitimação e identificação de uma 
guerra santa. Por exemplo, os critérios na identificação de uma guerra justa são a 
auctoritas (apenas uma autoridade reconhecida poderia declarar a guerra), a res (o 
objetivo do conflito deveria ser a reivindicação de alguma injúria do tipo recuperação de 
bens, propriedade etc), causa (somente a extrema necessidade poderia justificar a guerra), 
animus (nunca ódio ou cobiça deveria inspirar quem fosse ao conflito).31 Embora, muitas 
 
29 COSTA, Helrison Silva. Poder e Violência no Pensamento de Michel Foucault. Sapere Aude, 9(17), 153-
170, 2018. https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2018v9n17p153-17. Acessado em 12/04/2021; 
30 Les Miracles de Saint Privat. In : Colection de Textes. Publicado por BRUNEL, Clovis. Paris,Librairie 
Alphonse Picard et Fils, Libraire des Archives Nationales et de la Sociéte de l’École des Chartes, 1912; 
31 GUIMARÃES, R.D. O papel da violência na ordem pública: estratégias discursivas 
eclesiásticas. BIBLOS, 22(1), 69–82. Disponível em: https://periodicos.furg.br/biblos/article/view/857 
pp73-74. Acessado em 11/04/2021; 
https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2018v9n17p153-17
https://periodicos.furg.br/biblos/article/view/857%2520pp73-74
https://periodicos.furg.br/biblos/article/view/857%2520pp73-74
 
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vezes, a motivação dos combatentes passe longe destas premissas. Geralmente, 
Agostinho é usado nestas justificações sendo adaptado ao momento, ao local e ao grupo 
de pessoas que serão combatidas. Talvez a justificativa mais latente utilizada e que reforce 
o discurso que se emprega, na legitimação, seja o livro primeiro da Cidade de Deus que 
pondera sobre os homicídios não considerados criminosos. No capítulo XXI Agostinho 
argumenta que “algumasvezes, seja como lei geral, seja por ordem temporária e 
particular, Deus ordena o homicídio”.32 O bispo disserta, ainda, a respeito de quem 
comete um homicídio e aponta o autor deste ato como um instrumento, “como a espada 
com que fere”.33 Deste modo, segundo Agostinho, “não infringiu o preceito quem, por 
ordem de Deus, fez guerra ou, no exercício do poder público e segundo as leis, quer dizer, 
segundo a vontade da razão mais justa puniu de morte criminosos”.34 
Além disso, “Agostinho era o mais positivo quando escrevia a respeito da intenção 
correta que era exigida de quem autorizasse a violência e participasse dela. Essas pessoas 
deviam ser motivadas por amor, o que significa que a força só seria empregada na medida 
necessária”. 35 Esta força empregada nos séculos XI e XII não é vista como violentia. O 
discurso dispersa e regulariza. O discurso sobre guerra santa não se dá pela existência 
desta guerra em si, mas a guerra santa foi constituída como discurso pelo que se disse ao 
seu respeito. 36 Agostinho fala sobre uma guerra justa, não porque esta exista, mas porque 
ele fala sobre ela. Ou seja, o discurso produz um efeito de verdade e isto se dá como um 
processo histórico, relacionado ao seu tempo. A Igreja se apropria da guerra justa para a 
legitimação de sua guerra santa. O uso de Agostinho é adaptado pois, “o novo não está 
no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. 37 
A teorização do assassinato autorizado e das guerras piedosas como praticas em 
favor de Deus cristalizam o ideal de combate santo e permitem aos laicos agradar aos 
céus dentro de suas possibilidades. Afinal, a partir do século XI, se vê uma mudança na 
espiritualidade leiga que dá à aristocracia guerreira a capacidade de agir no mundo pelo 
bem da Cristandade. “O sentimento cristão pode ter-se tornado mais vivo e mais exigente, 
 
32 Agostinho de Hipona. A Cidade de Deus. Ed. Petrópolis, RJ; Vozes , 2002, p.70 
33 Ibidem, p.70; 
34 Ibidem, p.70; 
35 RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.55; 
36 Para uma melhor compreensão sobre dispersão e regularidade do discurso ver FOUCAULT, A 
arqueologia do saber; Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves – 3ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense –Universitária, 
1987 
37 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., 1970, p.26; 
 
79 
 
 
em toda a sociedade, devido à reforma que se desenrola na Europa ocidental entre 1049 
e 1122”.38 Conforme Girolamo Arnaldi,39 esta “energia reformadora” da Cristandade 
estava presente inclusive nos leigos. Afinal, o item XXVII do Dictatus Papae autoriza 
“que por ordem e permissão sua seja lícito aos subordinados formular acusações”.40 A 
busca pelo retorno à Igreja primitiva era pedra de toque das reformas. Porém, essa noção 
de retorno para uma comunidade que seria mais pura encontra uma contradição em sua 
partida pois a moralização dos costumes hierarquiza a importância dos poderes e busca 
“submeter mais o clero ao papado e os laicos ao clero”.41 
Geralmente o chamado espírito da reforma que atinge não apenas a Igreja, mas 
toda a sociedade, é associado a Cluny e o movimento resulta, inclusive, num papado 
monástico, tendo no trono de Pedro alguns papas vindos das fileiras monacais. 
Ponderemos sobre alguns autores clássicos como André Vauchez e Brenda Bolton. 
Bolton em seu livro intitulado A Reforma na Idade Média analisa a participação de Cluny 
no período como uma “atividade necessária para mudanças no papado e na hierarquia da 
Igreja, as quais viriam a se concretizar no tempo de Gregório VII”.42 Essa preocupação 
na contenção de um clero simoníaco e iletrado das Gálias geralmente é uma política muito 
associada ao movimento cluniacense. Nossa abordagem reconhece a importância de 
Cluny mas destacamos que não podemos generalizar o corpo eclesiástico da Gália como 
um clero rude, simoníaco e imerso num estilo de vida que perpetua o concubinato. 
Vauchez, aponta que a “Reforma Gregoriana” retoma as concepções de Cluny sobre a 
necessidade da pureza daqueles que são responsáveis pela eucaristia e a consagração da 
hóstia. 43 Precisamos matizar esta concepção. 
A importância de Cluny pode ser contrastada pela existência de concepções 
reformadoras em alguns bispados e leigos que ajudaram na promoção dos movimentos 
de paz. Alguns bispos eram rigorosos em sua visão de celibato e concordavam com a 
visão de cluniacense, embora não fossem alinhados com a Sé de Roma. Compartilhamos 
do panorama sobre os bispos da Gália não serem tão “indignos” quanto se acreditou por 
 
38 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2010, p.290 
39Cf. ARNALDI, Girolamo. Igreja e Papado In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (eds.). 
Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006, 567-589; 
40 Dictatus Papae. In: Documentos Históricos Selectos de La Edad Media. 
https://sourcebooks.fordham.edu/source/es-g7-dictpap.asp. 
41 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, p.290; 
42 BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Tradução de Maria da Luz Veloso. Edições 70, Lisboa, 
1983, p.47; 
43 VAUCHEZ, André. Op.Cit, 1995, p.46; 
 
80 
 
 
um tempo e que a chegada das reformas não foram o início de uma mudança brusca no 
comportamento do clero da região. Dominique Barthélemy afirma que os concílios de 
paz da Aquitânia eram obras de bispos “que se ocupavam, desde 1018 com a heresia 
simoníaca e, antes de 1038, com o concubinato dos padres”. Estes bispos prezam pelo 
comportamento do clero e “as iniciativas de seus concílios em favor dos pactos de paz, 
depois da trégua de Deus a partir de 1033, provam bem que eles levam seu papel a sério”. 
Alguns arcebispos44 serão vistos em conflito aberto com os legados papais durante o 
período da reforma. Os bispos aliados destes arcebispos serão acusados de práticas 
seculares. No entanto, as acusações envolvem o porte de armas. “Poucos são nicolaístas. 
Sua simonia não é sempre evidente ou fácil de detectar. [...] recai frequentemente sobre 
os prelados antirromanos a acusação de portarem as armas do século”.45 
A guerra, como atividade da aristocracia, era responsável por uma socialização e 
a guerra santa promove coesão entre os iguais contra os que não pertencia à sociedade. 
“De um modo geral, a guerra medieval46 possuía esse caráter lúdico – pressupunha a 
existência de regras limitativas, e seus participantes consideravam-se uns aos outros como 
iguais”. 47 Pedro Lorenzo Cadarso48 analisa as principais formas de conflito social e 
destaca a guerra em seus aspectos fundamentais. O pesquisador recorta três pontos, dos 
quais destacamos dois para a nossa análise: primeiro: o caráter cultural da guerra. Ou seja, 
“a belicosidade humana e a forma que esta se canaliza se desenvolvem condicionadas por 
parâmetros infra estruturais e sociopolíticos”.49 O segundo aspecto é o caráter utilitário: 
“Se um grupo ataca outro é porque considera que tem recursos suficientes para obter a 
vitória e, com ela, benefícios que justifiquem o esforço”.50 Os parâmetros infra estruturais 
e sociopolíticos já tratamos anteriormente. Uma aristocracia guerreira que se 
movimentava pela honra no quadro das disputas senhoriais que se direcionavam, também, 
para a proteção da Igreja. Os ganhos que justifiquem os esforços em relação ao caráter 
utilitário pode ser entendido como ganhos espirituais, manutenção de um status e o butim. 
 
44 Os referidos arcebispos são os de Narbona, Reims e Tours; 
45 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2010, p.262. 
46 Guerra intrasocietária.; 
47 COSTA, Ricardo da. A Guerra na Idade Média: um estudo da mentalidade de cruzada na Península 
Ibérica, 1998, pp.41-42; 
48 CADARSO, Pedro Luís Lorenzo. Op.Cit., 2001; 
49 Ibidem, p. 59; 
50 Ibidem, p.60; 
 
81 
 
 
Nestes conflitos é possível a visualização de uma dupla face da violência. Por um 
lado é legítima quando estabelecida dentro das normas em circulação e pela própria 
Igreja. Por outro lado é ilegítima quando “se exerce individualmente de encontro às leis 
eà moral”. 51 A face ilegítima pode ser chamada de violentia. Hubert Carrier52 trabalha 
esta espécie de tipologia binária da violência entre aceita e reprovada. “Dentre os 
conceitos de violência que manejam os grandes, existe a dialética entre violência aceita e 
violência reprovada, que se relaciona estreitamente com um valor fundamental por 
excelência: a honra”. 53 A perpetuação desta honra está no âmago da aristocracia 
guerreira. O combate pela Igreja é uma condição da honra, pois Cristo é o maior dos 
senhores. O cristão que ataca a Cristo pratica uma felonia da fé. No discurso cristão se 
alguém está contra a Igreja, está contra a harmonia universal, justificando assim sua 
eliminação. 
Segundo o verbete “Guerra”, elaborado por Elizabeth Hallam no Dicionário da 
Idade Média,54 a teoria da “guerra justa”, desenvolvida pelos canonistas, estabeleceu que 
a guerra sustentar-se-ia através dos leigos, em prol de uma causa justa e necessária, que 
não pudesse ser vitoriosa por outros meios. A guerra é uma categoria da violência. 
Embora existam inúmeros autores dentro da sociologia, das relações internacionais e da 
antropologia que trabalhem as diferenças conceituais no tocante aos termos guerra e 
conflito, entendemos que ambas são fenômenos violentos que resultam de hostilidades 
entre coletividades. As duas ideias se relacionam, em nosso entendimento, com “os 
conflitos internos dentro de uma nação, tribo ou comunidade”.55 O termo “conflito, no 
sentido tradicional, é empregado de forma mais adequada pra uma luta por valores, poder, 
recursos materiais ou posição social”. Essa definiçao se aplica, também, para a guerra. 
Os objetivos de um conflito ou guerra, neste caso, geralmente visam “neutralizar, lesar 
ou destruir o “outro”: inimigo, rival, opositor”.56 
O ambiente em que surge a noção de combates sagrados é este: conturbado, 
constante, paradoxal e tendo nas igrejas locais grandes canalizadoras em consonância e 
 
51 MUCHEMBLED, Robert. Op.Cit., 2012, p.11; 
52 CARRIER, Hubert, Les dénominations de Jean sans Peur: entre violence accepté et réprouvée, Foronda, 
François; Barralis, Christine; Sère, Bénédicte (Dirs.), Violences souveraines au Moyen Âge. Travaux d’une 
école historique, Paris, Presses Universitaire de France, 2010, pp. 113-122. 
53 DEVIA, Cecília. Op. Cit., 2013, pp-170-171. 
54 Dicionário da Idade Média / organizado por Henry R. Loyn; tradução, Álvaro Cabral; revisão técnica, 
Hilário Franco Júnior. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997; 
55 VIEIRA, Isabel Maria de Carvalho. A violência e a guerra: uma abordagem sócio-psicanalítica. Tese 
de doutorado. Brasília: UnB, 2007, pp.36; 
56 Ibidem, p.37; 
 
82 
 
 
discordância com o papado. No entanto, é possível detectar um fenômeno: a guerra santa. 
Na Gália, um movimento de paz se expande. Nesse processo, criam-se discursos 
adaptados da guerra justa em associação com uma espiritualidade combativa. Desta 
maneira, os leigos situam-se em duas frentes de batalha: os conflitos internos à sociedade, 
ou seja, aqueles embates entre senhores dos quais não se busca tanto derramamento do 
sangue adversário, pois este é visto como um “igual”. À estes embates se juntam os 
conflitos externos, destinados contra aqueles que atacam a Deus e colocam em perigo a 
Cristandade. Na Gália, onde surgem as assembleias de paz, o perigo é o mau cristão. Na 
Península Ibérica “o outro” não segue a Cristo, embora o respeite. Estes “outros” seguem 
Maomé. 
 
2.2 As conquistas cristãs na Península Ibérica: a guerra santa hispânica 
A Trégua de Deus nasce na Catalunha e ao Oeste os embates entre cristãos e 
muçulmanos ocorrem em âmbitos variados. Entre 711 e 714 a Península Ibérica foi 
tomada pelas forças muçulmanas em pleno processo de expansão que ocupou parte do 
Ocidente. A monarquia visigótica pouco pôde resistir diante da onda expansionista. A 
partir daí se iniciou um processo de ocupação que só termina com a tomada de Granada 
em 1492. Este início genérico situa o que vamos analisar neste tópico: a Guerra Santa 
Hispânica. As guerras na ibéria tem um caráter tão diversificado que a dificuldade em 
identificá-las exige um exercício intenso de análise dos detalhes e contextos. 
A identificação do início desta guerra santa é quase tão problemática quanto a 
tentativa em situar o que por muito tempo se chamou (e ainda se chama) de Reconquista 
Cristã. Para García Fitz57 o termo Reconquista sofre de uma evidente contaminação, pois 
as batalhas e escaramuças do período são usadas como espelhos deformantes para tempos 
atuais. A utilização desta expressão tem relação com, primeiramente, uma historiografia 
positivista58 que via nas documentações do período que analisa uma fonte de verdades 
incontestáveis. Portanto, entravam na lógica do próprio documento, servindo como uma 
caixa de ressonância das doutrinas daquelas monarquias. Além disso, a Reconquista foi 
utilizada com forte tom nacionalista durante o período franquista na Espanha. Para 
Manuel González Jimenez a ideia de Reconquista é um mito criado e reforçado pelo 
 
57 FITZ, García. Cruzados en la Reconquista. Madrid, Marcial Pons, 2015, p.24; 
58 É o caso de SÁNCHEZ-ALBORNOZ. España um enigma histórico. Barcelona, Edhasa, 2000; 
 
83 
 
 
franquismo quando o fascismo espanhol visava impor um modelo estatal de pretensões 
“uniformizadoras, de forte carga católica e castelhana”. Esta ideia liga a Reconquista a 
Pelágio e Covadonga criando uma narrativa de um passado visigótico. O que não se 
sustenta historicamente.59 
Embora grande parte da historiografia sobre o tema ainda use o termo de forma 
reconstruída, retirando-o das ideologias dos séculos XIX e XX, compreendemos que a 
ideia de reconquistar traz consigo uma lógica de pertencimento, como se as monarquias 
cristãs estivessem recuperando algo que lhes fosse de direito. Assim como houve a 
conquista muçulmana no século VIII, também ocorre a conquista cristã nos séculos 
posteriores. 
Outro ponto é que o uso de um conceito com características de unicidade para 
abarcar mais de oito séculos de história desconsidera os avanços e recuos dos diferentes 
poderes hispânicos e seus ideais muitas vezes conflitantes. Por exemplo, a expansão 
portucalense, embora cristã, tem uma lógica referente ao seu próprio contexto, diferindo 
de Leão e Castela. 
Na presente dissertação, portanto, utilizaremos outra nomenclatura na abordagem 
deste processo dos reinos cristãos peninsulares. Os nomes “expansões cristãs” ou 
“conquistas cristãs” talvez englobem mais as guerras efetuadas no bojo de certas 
características. Embora, nem sempre o discurso do embate santo seja a justificativa para 
alguns conflitos, é indubitável que as autoridades se constituíam como cristãs e não 
estavam reconquistando, mas efetuando um outro processo. 
Sendo assim, a abordagem numa ordem cronológica dos acontecimentos 
referentes à Península Ibérica parece ser a melhor maneira de iniciarmos este tópico. O 
solo peninsular tem um histórico de ocupações de diferentes povos em tempos distintos. 
Durante o domínio muçulmano, no século VIII, se desenha um período de tentativas de 
unidades e intensas fragmentações tanto por parte cristã quanto muçulmana. Os poderes 
centrais precisavam dos poderes locais e estes, muitas vezes, se legitimavam pela 
associação com o centro. Nas áreas de marca, haviam os poderes que não se associavam 
com nenhum lado e mantinham certo grau de independência. 60 Sendo assim, muitas 
 
59 Para maiores detalhes ver MATTOSO, José & SOUZA, Armindo de. História de Portugal. Antes de 
Portugal. Lisboa: Editora Estampa, 1993; 
60 José Mattoso ao analisar a fragmentação do Al-Andaluz.fala sobre a situação das fronteiras e como estas 
regiões não se ligavam a ninguém, promovendo a existência de caudilhos: “A realidade concreta implicava 
que o grau de sujeição ou de autonomia, e consequentemente, de fidelidade, para com as autoridades 
 
 
84razias de fronteira tinham caráter de pilhagens com pouca ou nenhuma ligação em relação 
a combates que serão teorizados numa lógica sagrada. 
Dito isto, a busca pelo inicio do processo de avanço cristão, de fato, é um tema 
sem consenso pela historiografia correspondente. José Mattoso situa o começo desta 
expansão com Fernando, o Magno: “A verdadeira reconquista começa, afinal, 
propriamente, com as agressivas campanhas de Fernando, o Magno de que se resultou a 
ocupação definitiva de Coimbra”.61 Na visão de Mattoso, a “fronteira se deslocou de 
maneira decisiva para além do vale do Douro e se iniciaram expedições de grande 
envergadura com o propósito de ocupar definitivamente as primeiras cidades do território 
andaluz e os seus respectivos alfozes”.62 Portanto, a conquista de Coimbra em 1064 frente 
aos muçulmanos seria a partida de um movimento que durou por mais quatro séculos. 
Para Adeline Rucquoi com a “tomada de poder por Fernando há o princípio da 
reconquista”. 63 Esse processo de expansão começou em meados do século XI, quando o 
rei tomou “Lamego em 1057 e Viseu no ano seguinte; a seguir, Coimbra em 1064”.64 
O movimento expansionista foi visto, em Fernando, como um deslocamento de 
cunho sagrado? Precisamos expender algumas nuances dentre as quais olhar em qual 
direção apontam os discursos sobre os feitos de Fernando. Em Orígenes y desarrollo de 
la Guerra Santa em la Península Ibérica65 no capítulo intitulado A Guerra contra os 
muçulmanos nos diplomas castelhano-leoneses – séculos XI-1126, a historiadora Hélène 
Sirantoine faz uma análise da noção de guerra santa no levantamento de setenta e seis 
diplomas régios de Fernando I. Destes, cinco fazem referências aos muçulmanos. Sendo 
 
políticas, variava na exacta medida do acordo que com elas se estabelecia. Ora esse acordo dependia 
enormemente dos poderes de caráter social ou econômico que se detinham no local. Havia Sempre uma 
concorrência entre estes poderes centrais e, consequentemente, um jogo de forças que nem sempre permitia 
aos segundos prevalecerem sobre os primeiros. Esta realidade explica a frequência com que se verifica o 
aparecimento de caudilhos procedentes do mundo árabe que se refugiam junto dos monarcas cristãos do 
Norte, ou o inverso, e de comunidades de fronteira que mantêm durante muitos anos um estatuto de 
independência.” Para maiores detalhes ver: Autonomias fronteiriças e formação nacional. In: MATTOSO, 
José. Autonomias fronteiriças e formação nacional. In: Naquele Tempo: ensaios de História Medieval. 
Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2009, pp.449-453. 
61 MATTOSO, José & SOUZA, Armindo de. História de Portugal. Antes de Portugal. Lisboa: Editora 
Estampa, 1993, p.473; 
62 Ibidem, p.473. 
63 RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995, p.162; 
64 Ibidem, p.162; 
65 AYALA MARTÍNEZ, Carlos de (dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y PALACIOS ONTALVA, J. 
Santiago (dir.). Orígenes y desarrollo de la guerra santa en la Península Ibérica: Palabras e imágenes 
para una legitimación (siglos X-XIV). Nueva edición [en línea]. Madrid: Casa de Velázquez, 2016; 
 
85 
 
 
que, dos cinco, três são falsificações elaboradas a posteriori. Sendo assim, dos dois que 
restam o que se percebe neles é o papel do rei como combatente dos muçulmanos. 
A tarefa monárquica neste combate se apresenta, por exemplo, num elogio ao 
período de Afonso V, representado como uma figura aguerrida que “ao longo de sua vida 
esteve decapitando aos muçulmanos, aumentando as igrejas e enriquecendo-as com todos 
os seus bens”. O referido diploma é datado por volta de 1046. Fernando “confirmou à 
igreja de Astorga a possessão da vila de Matanza”. Neste diploma há uma “larga 
exposição” que remete a Afonso V. O que se percebe é uma reflexão sobre as funções 
reais, dentre as quais o combate ao Islã e o auxílio à Igreja. “Assim pois, este diploma 
desenha uma espécie de retrato [...] onde a luta contra os muçulmanos e o amparo dos 
estabelecimentos religiosos são apresentados como missões fundamentais para o rei”.66 
Aqui não se fala de contato com sagrado ou defesa de divindade, conforme o 
levantamento feito pela historiadora, embora o amparo às igrejas seja um amparo ao 
sagrado. 
 O outro diploma abordado por Sirantoine, que data de 1059, é uma confirmação 
por parte de Fernando e Sancha “à igreja de Palencia de todas as possessões e direitos 
outorgados anteriormente por Sancho III de Navarra”. Esta confirmação de posses relata 
a chegada do Cristianismo à Península através de Tiago, apóstolo de Cristo. A restauração 
do Cristianismo na Ibéria está ligada, neste diploma, ao combate contra o muçulmano: 
“reinando o piedosíssimo Rei Afonso V, quem graças a Deus restaurou a Cristandade e 
destruiu o povo dos ismaelitas, os bispos vizinhos dividiram entre si por sorteio as 
dioceses Palentinas”. 67 No entanto, Hélène Sirantoine afirma que este último diploma 
também tende a ser uma possível falsificação com o intuito de legitimação das 
propriedades da igreja palenciana e que a maneira como se constrói a narrativa, 
praticamente como uma crônica, tem traços de uma retórica posterior, mais associada ao 
final do século XI e começo do XII. 
O discurso que caracteriza os muçulmanos como invasores e adversários da 
Cristandade está presente de forma constante e sólida após o reinado de Fernando I. “De 
fato, esta vinculação entre as lutas contra os muçulmanos e a restauração cristã 
 
66 Ibidem, p.55. 
67 FERRAN I, & BLANCO LOZANO, P. (1987). Colección diplomática de Fernando I, 1037-1065 . 
Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro.”; 
 
86 
 
 
corresponde melhor ao que vamos observar durante a época posterior”. 68 Nos cento e 
noventa e seis diplomas de Afonso VI (1065-1109), dezenove citam os muçulmanos e se 
percebe “uma sacralização da atividade guerreira do rei, ou pelo menos insistem na 
relação entre a guerra contra os sarracenos e a restauração cristã”. 69 Ao final do século 
XI a concepção de um embate sagrado se agudiza e entra no século XII sendo promovida 
como uma condição das monarquias que vão se constituindo. Condição que, com a 
reforma e a cruzada, fazem do conflito algo além do que vinha sendo realizado pelos 
cristãos do Norte. “A reforma gregoriana e o apelo à cruzada [...] iam, porém, mudar o 
sentido da reconquista, na medida em que a luta contra os infiéis se tornava prioritária e 
se sobrepunha a uma ‘proteção’ lucrativa”. 70 
Afonso VI, rei de Leão e Castela é o responsável pela conquista de Toledo em 
1085; a partir disto, se nota um recrudescimento do discurso. Cada vez mais a função real 
é combater o Islã e esse combate é relatado nos documentos como “remédio da alma” 
para que seja outorgado ao rei “neste século e no presente uma vida larga e vitória sobre 
os inimigos, os ismaelitas, e que no futuro o vejam sentado junto a Cristo”.71 Afonso VI 
se diz envergonhado de ver Toledo em mãos de infiéis e faz guerra para “devolver a 
cidade aos que honram a fé de Cristo”. 72 Esta referência demonstra um monarca lutando 
contra quem, conforme a narrativa, retirou algo de Cristo e, consequentemente, dos 
cristãos. Portanto, a luta empregada é colocada como uma luta para o Senhor. “Ademais, 
essa luta já não é simplesmente uma tarefa do rei cujo exercício o faz digno de sua função 
e sim uma missão sagrada”.73 
O processo de um discurso que sacraliza a guerra na Península Ibérica é fruto, 
muitas vezes, dos interesses dos próprios poderes locais, em consonância com as 
contingências que se desenham no período supracitado. Abordamos os traços das 
 
68Ibidem, p.56; 
69Ibidem, p. 57; 
70 RUCQUOI, Adeline. Op.Cit., 1995, p.162. 
71 GAMBRA, Andres. Alfonso VI: Cancilleria, cúria e império. I Estudio, León, Centro San Isidoro, 1997, 
p.336. 
72 Ibidem, p. 227. Ainda de acordo com este diploma, Hélène Sirantoine aborda em nota que “é certo que 
o diploma, datado de18 de dezembro de 1086, apresenta irregularidades que apontam para uma possível 
interpolação posterior.” Ainda de acordo com a autora: “Andrés Gambras sublinha, sem dúvida, que sua 
fisionomia externa se encaixa adequadamente aos originais do notário que o subscreveu. Assim, que haveria 
sido elaborado pela chancelaria real após 1086; Para maiores detalhes ver: SIRANTOINE, Hélène. La 
Guerra contra los Musulmanes em los Diplomas Castellanoleoneses. In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos de 
(dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y PALACIOS ONTALVA, J. Santiago (dir.). Orígenes y desarrollo de 
la guerra santa en la Península Ibérica: Palabras e imágenes para una legitimación (siglos X-XIV). Nueva 
edición [en línea]. Madrid: Casa de Velázquez, 2016 
73SIRATOINE, Hélène. Op.Cit., 2016, pp.59-60. 
 
87 
 
 
reformas, mas estas chegam ao solo hispânico de maneira gradual e sofrem resistências 
significativas. A chegada de uma nova concepção de guerra para a região não deve ser 
vista, unicamente, como uma influência externa de um movimento “francês.” A reforma, 
na Península Ibérica, se dá com dificuldades e adaptando-se às possibilidades da região, 
negociando a todo momento as maneiras que vão se constituir. Uma das vias pela qual as 
ideias reformistas se instalam na Hispânia é pelas ordens monásticas e com estas, uma 
concepção sobre àqueles que se situam fora da Cristandade. Cluny tem um papel neste 
processo. 
A ordem cluniacense surge com a fundação de sua abadia em 910 na região da 
Borgonha. Cluny se liga ao papado na busca de sua isenção frente aos poderes dos bispos 
e dos leigos. Ou seja, Cluny busca sua libertas. A noção de libertas aqui referida se 
relaciona com a isenção, ou evadir-se ao máximo do regionalismo que proporciona aos 
senhores certa interferência nos assuntos da Igreja (inclusive mosteiros). Além da criação 
de uma espécie de comunidade, que segue uma regra própria, se estabelece um ideal de 
vida que busca o afastamento das coisas mundanas. Em 1080, no concílio de Roma, o 
papa Gregório VII “ratifica o privilégio e a autoridade da Sé apostólica em conceder plena 
e total imunidade aos monges cluniacenses”.74 Porém, se o objetivo era uma fuga do 
mundo, o que se vê, com o tempo, é Cluny como um elemento participativo do século, 
criando bases para posteriores críticas. Cluny cresce, da Borgonha se expande e com o 
tempo se torna “vítima” de sua expansão. Os mosteiros fundados e colocados em sua 
órbita estabelecem sua própria interpretação das regras. Por volta do século XI e, 
principalmente do XII, Cluny se depara com as dificuldades proporcionadas por esta 
expansão e “o vasto número de mosteiros que criara ou que se lhe tinham associado 
actuavam com independência, não só uns em relação aos outros, mas também 
relativamente a Cluny”. 75 Esta “independência” promove, em contextos locais, uma 
política de acordo com o momento. Para Brenda Bolton os mosteiros “tinham 
desenvolvido as suas próprias regras internas de acordo com as suas próprias 
circunstâncias externas”.76 
As circunstâncias externas da Ibéria modificam as ações de Cluny na região 
quando ocorre a chegada do movimento por lá. Sinei Galli fala desta chegada no século 
 
74 GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, p.25; 
75 BOLTON, Brenda. Op.Cit., 1983, p.47; 
76 Ibidem, p.47; 
 
88 
 
 
X com Sancho, o Grande (970-1035), que reuniu os reinos de Navarra, Castela e Aragão. 
Posteriormente, “aproximou-se de Guilherme – duque de Aquitânia, que, de pronto, o pôs 
em contato com o movimento religioso de Cluny”77. Sancho, então, “teria enviado o 
monge Paterne a Cluny para estudar a organização cluniacense”78 e trazê-la ao seu reino. 
Passado o tempo de estadia na abadia, o monge foi então “colocado à testa do convento 
de S. Juan de Peña, em Aragão, que foi dotado de privilégios análogos aos dos conventos 
cluniacenses”.79 Assim, os bispos de Aragão foram escolhidos entre os monges de S. 
Juan. “A penetração dos monges de Cluny, iniciada na região da Catalunha, atinge a 
abadia de S. Juan de Peña (Aragão), os conventos de Oña e Cardeña (Castela)”.80 Então, 
com o tempo os mosteiros da região “vão sendo absorvidos por essa ordem”. Todavia, tal 
absorção não é um ponto pacífico em todos os locais e interpretado da mesma forma. 
Existem conflitos, reinterpretações e variações. O que é destacável aqui é a chegada da 
noção de guerra santa através desta reforma à ibérica. 
A iniciativa de Sancho, porém, não foi determinante embora tenha, 
aparentemente, iniciado um processo. A doutrina expansionista de Cluny e sua concepção 
de guerra santa encontra um ambiente propício dentro de uma política igualmente 
expansionista visto que a monarquia estava, também, num processo cujo objetivo era 
encontrar legitimação semelhante em relação ao seu expansionismo. Sendo assim, 
embora Sancho o Grande, proporcione uma penetração cluniacense em terras hispânicas, 
é com Fernando I e Afonso VI que o movimento ganha força. As conquistas e os discursos 
sobre estas conquistas se sacralizam num encontro de interesses e não numa “influência 
francesa”, stricto sensu, na Península. Hilário Franco Jr. tratou dessas questões em Cluny 
e a Feudo-Clericalização de Castela.81 Para Franco Jr. uma “aliança castelhano-leonesa 
com Cluny começou com Fernando I” 82, e foi reforçada “por Afonso VI que precisava 
do apoio de Cluny para manter a soberania frente às reivindicações de Gregório VII, então 
senhor de Aragão, para enfrentar o perigo Almorávida e para superar a crise sucessória 
que se esboçava”.83 Notamos que Cluny, na Hispânia, é um processo que atende também 
 
77 GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, p.40 
78 Ibidem, p.40; 
79 Ibidem, p.40; 
80 Ibidem, p.40. 
81 FRANCO JR, Hilário. Cluny e a Feudo-Clericalização de Castela,1985. Disponível em 
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/36148/18992. Acessado em 
11/04/2021; 
82 Ibidem, p.10; 
83 Ibidem, p.10; 
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/36148/18992
 
89 
 
 
aos interesses locais pois “entre 1054-1065 estaria o ponto crucial da história hispânica, 
pois então começava a expansão imperial castelhano-leonesa e nisso a aliança com Cluny 
revelou-se essencial”.84 
 A chegada de figuras em âmbito secular, também ligadas a Cluny, demonstra um 
movimento de inserção de uma cultura além-Pirineus na Hispânia. Houve uma “política 
casamenteira” que colocou a dinastia de Borgonha em solo ibérico: 
 D. Raimundo, filho de Guilherme – conde de Borgonha e sobrinho do 
abade Hugo de Cluny casou-se com D.Urraca, filha legítima de D. 
Afonso VI, que lhe concedera o governo da Galiza e a parte Ocidental 
do Tejo (1094). Pela mesma época, D. Henrique, quarto filho de 
Henrique, neto de Roberto, rei da França, recebe como esposa D. Teresa 
ou Tarasia ou Tareja, filha bastarda de D. Afonso VI com uma nobre 
dama chamada Kimena Nunes ou Muniones.85 
A presença borgonhesa se fez sentir em muitas instâncias sociais e nas políticas 
de aliança que se estabeleceram através de casamentos e da adoção de certas perspectivas 
cluniacenses. Para Mattoso, “os costumes religiosos da época criaram, com efeito, uma 
íntima união entre a nobreza local e os mosteiros que ela protegia”. Sendo assim, “o 
mosteiro desempenhava função de mediador social, de amplificador de interesses, no 
tempo e no espaço, de transmissor de ideias e noções culturais, do ponto de encontro entre 
diversas camadas sociais”. Dentre estas ideias e noções transmitidas pelos mosteiros e 
pela reforma em âmbito peninsular está a guerra santa destinada contra quem se encontra 
fora da Cristandade. O “outro”, na Hispânia, não é o “mau cristão”, mas quem pratica 
outra fé. 
Os príncipes que se embatiam na Península promoviam, segundo a Sé romana, um 
problema frente ao que seria a função primordial deles: o combate aos muçulmanos da 
região. As guerras entre os cristãos doNorte caracterizava uma fragmentação de forças 
que deveriam, na concepção papal, se unir. Veremos isso, posteriormente, com Afonso 
VII e suas pretensões imperialistas para a Hispânia e a relutância do papado no 
reconhecimento do reino de Afonso Henriques. De acordo com José Mattoso “a estratégia 
da Santa Sé consistiu sempre em procurar o fortalecimento do trono leonês, e não em 
criar forças autónomas, mesmo hipoteticamente mais agressivas”.86 
 
84 Ibidem, p.10; 
85 GALLI, Sidinei. Op. Cit., 1997, pp.27-28. 
86 MATTOSO, José. Cluny, crúzios e cistercienses na formação de Portugal. In Actas do Congresso 
Histórico de Guimarães e sua Colegiada, Vol. V, Guimarães, 1982, pp. 288-294 1982, p.286; 
 
90 
 
 
A rivalidade entre os senhores cristãos precisava ser superada, principalmente, 
frente aos Almorávidas que haviam se instalado na região. Essa retórica de embate galga 
a necessidade da guerra diante de um poder que desestabiliza a Cristandade, de acordo 
com o discurso cristão. Frente às reformas, à presença de muçulmanos em antigos centros 
cristãos e à uma teorização do conflito intersocietário pôde se estabelecer um processo 
de expansão cristã na região. 
Os reis ibéricos, entre alianças e rivalidades, souberam suscitar a guerra cotidiana 
de suas fronteiras, frente ao papado, como uma luta cristã. A justificativa de guerra justa, 
como um dos pontos fundamentais da guerra santa, se desenha numa lógica que relaciona 
a Hispânia como local de evangelização por parte de Tiago e também com o mito do 
passado visigótico. De acordo com Carl Erdmann,87 para compreendermos uma guerra 
santa é preciso vê-la como um ato espiritual ou em relação direta com a sacralidade e a 
religião, pois é proclamada por uma autoridade espiritual ou por interesses espirituais”. 
As conquistas cristãs dos reinos ibéricos com caráter sagrado é uma construção 
que passa a ser perpetuada com esta dimensão na segunda metade do século XI quando 
“o interesse do papado por esta reconquista, depois de 1050 [...] contribuiu para reforçar 
seus traços de sacralização”. 88 Antes disso, as guerras não eram “suscitadas 
principalmente por motivos religiosos, pois os reis do Norte tiveram antes objetivos 
políticos e econômicos: 89afirmar seu domínio, acrescentar seus territórios, enriquecer 
com o butim tomado aos vizinhos muçulmanos”.90 Embora seja problemático definir 
exatamente o tom das razias, é possível detectar padrões anteriores e posteriores aos 
processos citados até aqui. 
Ao optar por transformar sua expansão num conflito sagrado, os reis buscam a 
superação das desavenças externas com o papado para seu fortalecimento interno e frente 
à própria Cristandade. Demonstrando que eram monarcas combatendo um inimigo, as 
expansões peninsulares foram um instrumento de legitimação condizente com o 
momento. Esta guerra feita pelos reis em favor de Cristo, no entanto, não envolve, 
necessariamente, o extermínio do outro. A “guerra total” era um problema para a 
expansão dos cristãos na região. A admissão das populações muçulmanas nos reinos 
 
87 ERDMANN, Carl. The origin of the idea of crusade. Princeton, N.J. : Princeton University Press, 1977. 
88 FLORI, Jean. Op.Cit., 2003, p.143; 
89 A visão do outro, baseada na espiritualidade, poderia estar presente visto que atrelar funções puramente 
econômicas pode ser problemático. Porém, não tão intensa quanto o período da expansão cristã. 
90 FLORI, Jean. Op.Cit., 2003, p.143. 
 
91 
 
 
conquistados é uma política destas monarquias cristãs da Península Ibérica, tanto que a 
tensão no uso de cruzados (que trazem uma outra concepção de guerra) se faz presente 
sempre que monarcas hispânicos recorrem às forças além-Pirineus. A guerra de 
dominação e conquista se faz com o discurso da guerra santa. Porém, a situação 
peninsular requer negociações com os muçulmanos, moçárabes e judeus que vão sendo 
dominados. Isso não significa tolerância. A assimilação de parte dos conquistados não 
demarca a ausência de violência. Muito pelo contrário e veremos com mais detalhes 
posteriormente. 
No percurso do século XII notamos uma presença maior de forças externas e de 
discursos que busquem a utilização da política de aproximação com o papa, visto a 
importância de uma aliança com esta figura naquele período. No entanto, não existe um 
fio condutor uniforme que nos demonstre uma constante permanência de elementos 
sagrados das guerras contra os muçulmanos. Elementos que, as vezes, surgem até mesmo 
antes do século XI, em prováveis manipulações posteriores, numa flagrante concepção 
de uma época distinta. Veja o caso de Sancho o Grande de Pamplona, que introduziu 
Cluny na região. Num diploma de Leyre91 há atribuição da ajuda de Deus na tomada do 
vale de Falces frente aos muçulmanos.92 Nesse combate houve a participação dos santos93 
e orações dos servos de Deus. No entanto Fermín Miranda García94 analisa o diploma 
como uma manipulação a posteriori. Ainda, segundo o historiador essa “referência aos 
muçulmanos como bárbaros que introduz um matiz mais pejorativo que o de simples 
estrangeiros da etimologia latina e seguramente de caráter mais religioso, nos remete a 
textos posteriores”.95 A chegada de Cluny, as expansões Almorávidas e Almóadas, a 
presença das cruzadas na Cristandade latina, a importância em alianças com o papa e as 
pretensões imperiais dos reis de Leão e Castela de certa forma promovem uma mudança 
de perspectiva nas guerras entre cristãos e muçulmanos na Península Ibérica. 
A presença cluniacense perde força e possibilita a ascensão de um monasticismo 
renovado em terras ibéricas, que tem em Cister seu ponto de representação. Os 
 
91CIRIZA, Luís Javiier Fortún. Documentacion medieval de Leire (siglos ix a xii), nº 17, año 1015; 
92 Ad expellendam gentem barbaricam In: Ibidem; 
93 Intercedentibus sanctis In: Ibidem; 
94GARCÍA, Fermín Miranda. Memoria Verbal y Memoria Visual: El Lenguaje de la Guerra Santa em el 
Pirineo Occidental (siglos X-XIII) in: AYALA MARTÍNEZ, Carlos de (dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y 
PALACIOS ONTALVA, J. Santiago (dir.). Orígenes y desarrollo de la guerra santa en la Península 
Ibérica: Palabras e imágenes para una legitimación (siglos X-XIV). Nueva edición [en línea]. Madrid: 
Casa de Velázquez, 2016, p.284 
95Ibidem, p.284; 
 
92 
 
 
cistercienses serão uma ponta de lança, junto com as ordens militares na colonização 
frente às conquistas cristãs e, em especial, no reino português que surgiria num 
desmembramento de Portucale, em relação a Castela. Portucale ficaria sob o comando 
de um borgonhês: o conde Henrique, pai de Afonso Henriques. 
A Guerra Santa Hispânica difere, então, na construção do inimigo. Embora as 
forças cristãs dos reinos peninsulares se acusem de maus cristãos e os conflitos se deem 
também, em alguns momentos, num discurso de bençãos ao vencedor destas tensões 
internas. A estratégia é deslegitimar para legitimar. Nas contendas que se vence existe a 
colaboração divina. Quando se perde se nota a busca por explicação de que forma o 
castigo de Deus serve como alerta para que se retorne ao caminho considerado correto. 
Após a correção do curso, a humilhação de uma derrota se torna a exaltação de uma 
vitória. 
Na Península Ibérica, a guerra contra os muçulmanos era uma função dos reis e 
estes se viram na iminência de transformar esta batalha num significado maior, em 
consonância com o poder da Sé que destinava parte de suas políticas no embate contra o 
islã e no estabelecimento da universalidade cristã, fazendo dos guerreiros os promotores 
desta expansão da Cristandade. Conforme Alexander Bronisch, “há diferentes formas de 
guerra santa”96 e estamos aqui tratando da guerra santa ibérica. Porém, o uso deste termo 
específico é necessário? Depende da análise que se busca. Na presente pesquisa, a 
distinção das guerras santas é uma apreensão que considermos necessária para a leitura 
dassimetrias e assimetrias em relação aos discursos empregados em algumas 
circunstâncias. 
A guerra santa que se apresenta na Gália adapta o tom perante àquele que se 
combate. A lógica aplica-se nas expansões cristãs na Península Ibérica. Sendo assim, 
quando Urbano II convoca a primeira cruzada, notaremos a retórica presente nos autores 
que colocam por escrito a chamada do papa de maneiras distintas, porém iguais. A 
cruzada como guerra santa tem sua legitimação baseada em elementos que analisamos e 
a utilização deles é uma das explicações que Marcus Bull 97 encontra para a 
fundamentação das mobilizações do fenômeno. 
 
96 BRONISCH, Pierre Alexander, Op.Cit., 2016, p.29; 
97 Cf. BULL, Marcus. View of Muslims and of Jerusalem in miracle stories, ca. 1000-ca. 1200: reflections 
on the study of first crusaders’ motivations. In: BULL, Marcus, e HOUSLEY, Norman (eds.), The 
experience of crusading.Western approaches, Cambridge: Cambridge University Press, 2004, Vol. I 
 
93 
 
 
Portanto, se analisamos as distintas guerras santas que interessam ao nosso 
recorte, direcionaremos nossa atenção para a mais santa de todas as guerras cristãs: a 
cruzada. 
 
2.3 As cruzadas: a desmedida não condenada 
1095 é, geralmente, o ponto inicial de investigação de um fenômeno que é visto 
como resposta de uma agressão sofrida pelos cristãos gregos, que a Cristandade latina 
visa redimir. Assim, exércitos e mais exércitos partiriam no ano seguinte (1096) para uma 
jornada que se repetiria outras vezes durante séculos. Esta linha sucessória de eventos que 
encontra em Clermont seu ponto de partida é tratada muitas vezes, como se refere Marcus 
Bull,98 de forma tão evenementiele quanto algumas Histórias do século XIX. O concílio 
de Clermont realizado por Urbano II foi representado por alguns contemporâneos que 
teriam presenciado as palavras do papa. Os relatos dos escritores presentes no momento 
do chamado apresentam uma reflexão sobre a diferença entre fazer cruzadas e escrever 
sobre as cruzadas. A distinção, que parece um truísmo, coloca um ponto de orientação 
importante para quem se debruça sobre o fenômeno: “a dinâmica entre a experiência 
sequencial vivida e a narrativa dessa experiência”. 99 Esse referencial destacado por 
Marcus Bull ainda carece, segundo o próprio historiador, de uma investigação 
aprofundada. 
 As reflexões das crônicas elaboradas no bojo destas campanhas se organizam 
muitas vezes como tratados justificadores e legitimadores que apresentam uma 
sociabilidade marcada por certa homogeneidade, onde existe, na realidade, um ambiente 
cercado de tensões e significações distintas. Ou seja, na escrita das cruzadas ocorre uma 
tentativa de uniformidade de elementos dispersos que estão presentes na Cristandade. A 
ocultação das tensões por uma causa maior faz das narrativas destas campanhas uma linha 
sucessória de eventos correlacionados que acaba sendo repetido por muitos historiadores 
modernos. Afinal de contas, a enumeração das cruzadas de maneira sequencial não 
promove esta narrativização que faz de Clermont seu ponto de origem? Clermont seria, 
então, uma reunião de elementos que já figuravam numa sociedade estritamente belicosa, 
 
98Ibidem; 
99 Ibidem; 
 
94 
 
 
que responde ao apelo do papa para que se pratique no Leavante o que já se faz em 
conflitos feudais. 
Se a assertiva acima é tão simples necessitamos nos questionar porque, então, a 
maioria das pessoas não parte para a cruzada (embora os contingentes das primeiras 
tenham sido consideráveis). Outro questionamento é por qual motivo a chamada para a 
campanha tenha feito ecos em algumas regiões mais que em outras. O conceito aqui 
abordado é fruto de intensos debates por décadas e até séculos e o consenso acerca do 
fenômeno é reduzido, embora haja a identificação, por parte dos especialistas, 100 de 
determinadas escolas historiográficas: tradicionalistas, pluralistas e materialistas são três 
das mais destacadas vertentes e que Jonathan Riley-Smith aborda em seu livro Cruzadas: 
uma História. 
A primeira “limitava o movimento a um só teatro de operações – o Oriente 
Próximo – e a um só período da história – de 1097 a 1291 – foi formulada pelo historiador 
inglês Thomas Fuller”. 101 O livro The Historie of Holly Warre de 1639 traz esta 
perspectiva e que acabou sendo uma abordagem utilizada por Steve Runciman102 no 
início do século XX em obra de três volumes que aborda diversos aspectos quantitativos 
do fenômeno e pouca problematização. Para José Manuel García, 103 Runciman nos 
deixou “um livro muito ameno, rigoroso e cheio de dados, mas que não entra ao fundo do 
debate”. 104 Para Runciman, a convocação de 1095, resulta num episódio trágico e 
destrutivo.105 Este episódio é a única e verdadeira cruzada. Esta lógica tradicionalista teria 
como primeiros perpetuadores os pensadores iluministas do século XVIII dentre os quais 
David Hume, Diderot e Voltaire. A concepção do fenômeno é tão restrita que estes 
pesquisadores “restringiriam as cruzadas às campanhas para o Oriente e à Idade Média 
Central”.106 Jean Flori também faz parte deste grupo. A definição de Flori é quase 
sectária: “cruzada é uma guerra santa que tem por objetivo a libertação de Jerusalém”.107 
 
100 Ver GARCÍA, José Manuel. Historíografia de las Cruzadas. In : Espacio, Tiempo y Forma, Serie III, 
H.» IVIedieval, t. 13, 2000; 
101 RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.38 
102 RUNCIMAN, Steven. História das Cruzadas. Rio de Janeiro: Imago, 2002 
103 GARCÍA, José Manuel. Historíografia de las Cruzadas. In : Espacio, Tiempo y Forma, Serie III, H.» 
IVIedieval, t. 13, 2000; 
104 Ibidem, p.361; 
105 RUNCIMAN, Steven. Op.Cit; 2002; 
106RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.39; 
107 FLORI, Jean. Op.Cit., 2013, p.360; 
 
95 
 
 
A abordagem pluralista acaba sendo a mais utilizada e tem como vanguardista 
Carl Erdman, embora José Manuel García 108 aponte o inglês Giles Constable com o 
trabalho The Second Crusade as Seen by Contemporaries como um dos primeiros 
científicos da teoria pluralista. O iniciador é irrelevante. Esta visão foca na cruzada como 
uma categoria de guerra santa realizada em locais distintos e não apenas em Jerusalém ou 
como foco a proteção do local. A vinculação com o papa é um ponto crucial para os 
pluralistas. Para Erdman, a cruzada era qualquer guerra penitencial em nome de Deus. 
Ou seja, via o movimento como uma penitência. Segundo Erdman, há uma conexão entre 
os movimentos de paz, a Trégua de Deus, a reforma da Igreja, e o militarismo da 
aristocracia na explicação desta transformação da guerra defensiva na “guerra santa 
ofensiva que é a cruzada”. 
Paul Rousset desconsidera a cruzada como uma guerra santa e fala de 
protocruzadas quando analisa suas origens. Para Jonathan Riley-Smith, um dos expoentes 
desta categoria, é preciso ter em consideração menos os objetivos finais e mais alguns 
aspectos que comprovam o status de uma campanha como cruzada. Entre os ditos 
aspectos desta comprovação e identificação estão “a proclamação do papa em nome de 
Cristo, incluindo uma associação explícita com a libertação de Jerusalém ou da Terra 
Santa, mesmo quando o objetivo imediato era outro”.109 Além disso, se associa a esta 
primazia do papa “os votos de um tipo especial que eram feitos pelos combatentes, os 
quais, por conseguinte, desfrutavam de certos privilégios temporais e espirituais, em 
especial a indulgência”.110 
A vertente materialista vê nas cruzadas uma espécie de protocolonialismo dos 
estados europeus que se lançam ao Levante para saciar sua sede de riquezas e butins. O 
livro Historia de las Cruzadas111 de Zavarob é um destes exemplos de uma historiografia 
marxista que atrela aspectos puramente socioeconômicos às campanhas. Para o autor, o 
século XI foi uma época de fortes tensões sociais tanto na classe senhorial quanto no 
campesinato. O gosto dos senhores pelo luxo teriam sido responsávelpor uma maior 
pressão por rendas e essa pressão criou diversos cenários no embate entre as classes. Além 
disso, a tensões intraclasse na aristocracia fez do aumento demográfico um problema em 
relação aos filhos secundogênitos que se entregaram às rapinas e violência, trazendo 
 
108GARCÍA, José Manuel. Op.Cit., 2000, p.362; 
109RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, pp.47-48; 
110Ibidem, p.48; 
111 ZAVAROB, M., Historia de las Cruzadas, Madrid; 1978; 
 
96 
 
 
problemas para a Igreja. Esta, então, direciona a cavalaria impetuosa para o combate 
contra o Islã. Para Zavarob, “a guerra seria orientada ao Oriente tanto por motivos 
econômicos (riquezas) como políticos (pelo controle da Igreja Oriental)”.112 
Três vertentes, três abordagens distintas. A nossa ideia de cruzada é enxergar o 
fenômeno como um elemento que promove a violência intersocietária também associada 
como uma manifestação da espitirualidade. Em nossa visão, o caráter multifacetado do 
fenômeno proporciona uma leitura que não seja engessada. A cruzada, como um 
componente histórico, necessita de uma leitura complexa que, invariavelmente, torna 
certas investigações reducionistas e insatisfatórias. Um objetivo estritamente econômico 
das campanhas utiliza uma racionalidade moderna que se atrela ao pós revolução 
industrial e a uma falácia economicista já tratada por Karl Polanyi 113 como a 
universalização das relações em aspectos puramente econômicos a partir de uma ideia 
atrelada à lógica capitalista e transportada para períodos anteriores de forma pouco crítica. 
Portanto, a vertente materialista está descartada de nossa análise. 
O problema, em nossa visão, da vertente tradicionalista é o enrijecimento de um 
processo histórico ao atrelá-lo a condições muito específicas e presas em características 
que desconsideram a pluralidade das relações políticas do período. Se as campanhas para 
Jerusalém fossem as únicas a serem consideradas, ignoraríamos as menções presentes em 
documentos do século XIII, quando o termo em si passou a figurar, de fato, na escrita. 
Era uma tentativa de uniformização das guerras santas que se realizavam. O significado 
da palavra crozoada difere do termo moderno, que os historiadores utilizam, mas 
simboliza uma noção que vê as lutas em Jerusalém, no Báltico ou na Península Ibérica 
sob um mesmo prisma. 
No capítulo intitulado El Término Cruzada y sus Usos en la Idade Media: la 
Assimilación Linguistica como Processo de Legitimación114 Benjamin Weber trabalha o 
surgimento do termo crozoada e seu uso para a legitimação de um movimento que visa 
unificação. Para Benjamin o emprego da palavra a partir de uma determinada época serve 
para estabelecer, num mesmo patamar, diversas guerras realizadas e aproximar as 
 
112 GARCÍA, José Manuel. Op.Cit., 2000, p.365; 
113 Cf. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Trad. Fanny Wrobel. 
Rio de Janeiro: Campus, 2000 e POLANYI, Karl. Our obsolete market mentality. In: COMMENTARY, v. 
3, Feb. 1947, p 109- 117. 
114 WEBER, Benjamin. El Término Cruzada y sus Usos en la Idade Media: la Assimilación Linguistica 
como Processo de Legitimación. In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos de (dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y 
PALACIOS ONTALVA, J. Santiago (dir.). Op.Cit., 2016, pp.221-233; 
 
97 
 
 
conquistas dos reinos ibéricos das campanhas destinadas ao Levante. Portanto, “o termo 
foi um elemento de resposta. Não nasceu quando apareceu o que chamamos de cruzada e 
sim quando se diversificou esta realidade, quando se levantaram perguntas sobre as 
relações entre todas estas formas de guerra santa”. 115 
 A circulação da palavra crozoada nos anos 1200 aponta uma percepção sobre 
aquela guerra santa específica como a mais meritória, podendo ser realizada em diversos 
teatros de operações e não apenas tendo Jerusalém como destino. Embora seja uma 
construção (que sofria resistências) do século XIII a referência apontada demonstra a 
complexidade do fenômeno. Enquadrá-lo apenas numa região e, muitas vezes, numa 
perspectiva temporal reduzida, ignora também, a capacidade de mobilização das ligações 
que se estabelecem em séculos posteriores. Embora esse “espírito” da cruzada que possa 
ter sobrevivido já não tenha relação com nosso recorte. 
Portanto, a pesquisa aqui presente vai ao encontro da vertente pluralista, pois se 
relaciona de forma mais condizente com nossa percepção. A cruzada, como 
prolongamento da guerra santa (ancorada nesta), é a luta travada através da guerra contra 
aqueles que o discurso cristão vai construir como o outro. Esse “outro” insere-se numa 
lógica de embates travados contra àqueles colocados do lado de fora da sociedade. Ou 
seja, é uma violência intersocietária. A cruzada foi, então, uma guerra de vingança 
penitencial. Não tem relação com uma blood feud ou um conflito lúdico, cujo objetivo é 
a captura do adversário. O discurso cruzado não é de negociação, de convite a uma 
composição. Trata-se de uma violência aplicada em seus diversos âmbitos como uma 
impositiva de uma sociedade sobre outra. A partir de agora quando estivermos tratando 
destas campanhas precisamos compreendê-las numa lógica de recusa ao outro. 
Esta recusa atinge pontos tão extremos que a diferença entre homens, crianças, 
mulheres ou idosos passa desapercebida de tal forma que Steven Runciman se espanta 
com tamanha matança. Porém, compreender até onde o poder chega na busca por 
uniformização, na exclusão do outro e na imposição a este de uma imagem que perpetue 
aversão para alcançar seus intentos é uma chave no auxílio do desvendamento das mais 
diversas facetas deste mesmo poder. A busca por homogeneidade visa, inclusive, ignorar 
as tensões internas. Assim, se perdura uma causa que faça das pessoas que participam 
soldados atuantes da piedade divina e da honra cavaleiresca. 
 
115 Ibidem, p.228; 
 
98 
 
 
Parte da Cristandade latina se lançou, a partir de 1096, em sucessivas campanhas 
ao Levante. O deslocamento destes contingentes era visto com aflição por parte dos 
cristãos gregos a ponto de Ana Comneno relatar na Alexíada o temor natural que sentia 
com “a chegada de inumeráveis exércitos francos” pois “se conhecia seu incontível 
ímpeto, seu instável e volúvel temperamento e [...] igualmente se sabia como se 
paralisavam pelo brilho do dinheiro”. 116 A ida até Bizâncio ocorre com o chamado de 
Urbano II, após o pedido de ajuda do próprio império bizantino. Depois de 1096, grandes 
hostes se deslocaram deixando estragos pelo caminho e praticando pogroms contra as 
comunidades judaicas que habitavam no império germânico. 
O historiador Nachman Falbel traduziu as crônicas hebraicas em seu livro Kidush 
Hashem: Crônicas Hebraicas sobre as Cruzadas.117 Falbel traça o rastro de mortes e 
violências deixadas por estes exércitos. Para o autor, a violência que se perpetuou 
naqueles ataques foi, além dos assassinatos, uma violação ao direito de reconhecimento 
por aqueles que eram atacados. “No morticínio em massa, a individualidade encontra-se 
ameaçada, mormente quando a mutilação, a queima dos corpos das vítimas dificulta a sua 
identificação”. Conforme Falbel, “[...] para o homem medieval a individualidade define-
se pela alma e não pelo corpo material, o que é confirmado pela sua visão teológica 
monoteísta, e, sendo assim, a alma reclama a sepultura, o último repouso e a identificação 
de seu corpo”.118 
Ainda segundo Nachman Falbel, na espiritualidade asquenaze “o mundo dos vivos 
e dos mortos não se encontram separados [...] o sonho é a ponte que liga ambos”.119 Em 
muitos sonhos, de acordo com tal espiritualidade, os mortos previnem os vivos, exigindo 
a perpetuação de seus nomes. Estes pogroms bem relatados e a negação de uma 
identificação causada pela pilha de corpos incendiados ou colocados em covas coletivas, 
onde a homenagem fúnebre se suspende, relaciona-se com a percepção de Johan 
Galtung 120 apresentadana primeira parte deste capítulo, que aponta essa violência 
cultural imposta. Na negação das necessidades básicas para a sobrevivência de uma 
sociedade ou um grupo de pessoas há a recusa da capacidade de existência partindo de 
 
116 Ana Comnemo. La Alexiada. X, V, 1-10; X, VI, 1-7; X, VIII, 7-8; X, X, 6; XIV, 5-7, Trad. de E. Díaz 
Rolando, Editorial Universidad de Sevilla, 1989 
117 FALBEL, Nachman. Kidush Hashem: Crônicas Hebraicas sobre as Cruzadas. São Paulo: Editora 
Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001; 
118Ibidem, p.17; 
119Ibidem, p.17 
120 GALTUNG, Johan. Op.Cit. , 2003, p.262; 
 
99 
 
 
uma formulação fundamental que preserve aquela sociedade como tal. Para Galtung, um 
grupo que se auto identifique tem a necessidade de representação para a sua constituição 
e manutenção. Na composição de sua identidade, uma comunidade precisa reafirmá-la 
através de ritos, práticas e símbolos. Quando se nega essas maneiras de reafirmações e 
performances, verifica-se a prática da violência, pois no impedimento do acesso aos 
elementos de autoafirmação suscita-se um ato violento. 
As crônicas hebraicas tratam nominalmente muitos dos que foram mortos como 
maneira de reviver e honrar àqueles através da escrita de seus nomes. Direito negado nos 
morticínios gerados pelos cruzados e pelas documentações cristãs que narram os 
deslocamentos. Das três traduções feitas por Nachman em relação às campanhas de 1096 
temos as perseguições de 1096 121 que há citações de cinquenta e cinco nomes distintos e 
que se repetem ao longo da narrativa. A crônica intitulada As Perseguições de 4856 122 
traz referência a dezenove nomes diferentes. Por último, na crônica anônima ou 
Acontecimentos das Antigas Perseguições 123 constam vinte e nove nomes. “A 
recuperação do nome está associada à subjetividade e à sua inclusão no rol dos mártires 
(kedoshim), que o Memorbuch124 deve preservar”. 125 Para Falbel é justamente isto que 
fazem os cronistas, registrando nominalmente vários dos casos de Kidush Hashem. 
As comunidades judaicas pereceram diante das primeiras ondas que iam por terra 
até o império bizantino. As comunidades de Espira, Worms, Mogúncia, Colônia, Trier, 
Metz, Ratisbona, Veselí e Praga estão entre algumas das que mais sofreram com os 
 
121 Reunida por R’ Salomão Bar Sansão. Conforme Nachman Falbel “Pouco se sabe a respeito da vida e da 
obra de Salomão Bar Sansão, a não ser pela Crônica, em 1140, de acordo com o que ouviu dos “mais 
velhos” que presenciaram os fatos por eles narrados em suas comunidades. A crônica que foi preservada 
omite os acontecimentos sucedidos em Worms e em Spira, que deveriam estar no início do texto, mas o 
autor volta a eles resumidamente. Certas passagens da Crônica levam à suposição de que o autor tenha 
também se utilizado de Crônicas ou narrativas latinas relativas à Primeira Cruzada.” In: FALBEL, 
Nachman. Op.Cit.,2001, p.73; 
122 O autor desta crônica é o Rabi Eliezer Bar Nathan. “Rabi Eliezer bar Nathan foi o autor do livro Even 
Haezer (a pedra de fundação, ou de Escora), e viveu em Mogúncia. Além de autor de pyutin, escreveu essa 
Crônica baseado em testemunhos orais e apontamentos escritos. Os pyutin de sua autoria que acompanham 
essa Crônica também se referem aos acontecimentos da Primeira Cruzada. Neles, ele se dirige a Deus 
pedindo vingança pelo que aconteceu a Israel, ao mesmo tempo em que invoca a redenção de seu povo, 
retornando às suas recordações sobre as perseguições em forma poética (zulat e slichá).” In: Ibidem, p.126; 
123 Para Nachman Falbel “esta crônica anônima sobre a Primeira Cruzada, segundo alguns estudiosos, 
parece ser anterior às outras duas, ainda que seja difícil estabelecer com certeza a ligação entre todos esses 
textos. Nada sabemos a respeito de seu autor, que provavelmente anotou impressões de testemunhos orais 
e, talvez, em parte, tenha usado documentos escritos.” Ainda de acordo com o historiador “o manuscrito é 
da Biblioteca Nacional de Darmstadt, Codex orientalis 25, fólio 17 coluna 2-fólio 22 colunas 1.” In: Ibidem, 
p.141. 
124 Relação de nomes e lugares feitos em memória dos mártires no ritual asquenaze. 
125 FALBEL, Nachman. Op.Cit.,2001, p.166; 
 
100 
 
 
ataques cruzados. No entanto, em Colônia, acontece uma dispersão visto as notícias dos 
acontecimentos que se anteciparam à chegada daquelas tropas. Pedro, o Eremita é um 
nome bem conhecido deste primeiro grupo. Jonathan Riley-Smith menciona o grupo de 
Pedro como integrante da primeira onda. Guibert de Nogent relata que os ataques 
começaram ainda em Rouen : 
os homens que, [...] tomaram a cruz [...] começaram a murmurar entre 
si nesses termos: nossa intenção é atacar os inimigos de Deus no Oriente 
[...] enquanto aqui mesmo, sob os nossos olhos, temos os judeus, e não 
pode haver raça mais hostil a Deus.126 
Segundo o monge, os cruzados “colocaram a espada sobre eles, indistintamente, 
sem diferenciar sexo ou idade, deixando sair somente os que se submetiam ao 
Cristianismo sob a ameaça das espadas”. Independente dos ataques terem começado em 
Rouen ou posteriormente, a violência contra as comunidades judaicas foi promovida por 
esta primeira onda. 
O grupo comandado pelo conde Emicho de Flonheim, na região do Reno, parece 
ter sido o que mais causou danos por onde passou. Mesmo com a proibição estabelecida 
por Henrique IV no tocante as pilhagem das comunidades judaicas habitantes do império, 
Emicho não se viu compelido em atacar Espira em Maio de 1096. No mesmo mês 
espoliou a cidade de Worms e “matou todos os quinhentos judeus que lá se 
encontravam”. 127 Em Mogúncia, dois dias de massacres e incêndios de sinagogas 
resultaram, segundo Nachman Falbell, em cerca de mil e trezentos judeus mortos. 
Voltando para Colônia, o exército de Emicho massacrou “os judeus que se haviam 
refugiado em Neuss, Wevelinghofen, Eller e Xanten, conforme narram as Crônicas 
Hebraicas”.128 
 O mesmo Emicho, posteriormente, foi derrotado em Viselburgo, “onde após levar 
seis semanas para construir uma ponte sobre o rio em frente à cidade, seu primeiro ataque 
se dissolveu em pânico e fuga”.129 De acordo com a crônica de Salomão Bar Sansão o 
conde Emicho, em sua passagem pelo reino da Hungria, sofreu grande revés com seu 
exército: “e os gregos perseguiram-nos em todas as direções até o rio Donau (Danúbio), 
onde tentavam fugir pela ponte que Pedro, o Eremita havia construído. [...] E afogaram-
 
126 Guiber de Nogent. Autobiographie. Ed. e trad. de Edmond- René Labande, Paris, Les Classiques de 1ª 
Histoire de France au Moyen Âge, 1981, pp.246-248; 
127 FALBEL, Nachman. Op.Cit., 2001, p.50; 
128 Ibidem, p.51; 
129 RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.96; 
 
101 
 
 
se milhares e milhares e muitas dezenas de milhares, ao ponto de se pisar sobre eles como 
se fosse sobre terra”.130 
Um mito que se construiu sobre esta primeira onda é que era constituída, 
majoritariamente, por grupos de despossuídos que viam na cruzada a saída de uma vida 
sem possibilidades em sua terra de origem. Esta multidão, movida pela selvageria de 
pessoas pouco dadas aos bons modos, praticaram todo tipo de barbaridades. Tal narrativa 
não se mantém e é fruto de um estereótipo. Para Cecile Morrison131 “o apelo de Clermont 
recebeu também grande difusão entre as camadas populares”. A pregação popular 
movimentou diversos grupos que marcharam antes da data estipulada pelo papa e o que 
se viu foi “ao lado da cruzada dos barões hierarquizada e estruturada, que também incluía 
numerosos não-combatentes, surgiu uma espécie de cruzada selvagem”. Hilário Franco 
Jr.132 também escreveu sobre o fenômeno e abordou esta primeira onda como “bandos de 
franceses e alemães que, sem condições materiais adequadas, partiram separadamente 
para o Oriente”. Ainda de acordo com Franco Jr., “estes grupos de pequenos cavaleiros, 
camponeses, clérigos, aventureiros, maltrapilhos e desenraizadostinham dificuldades em 
obter previsões, e chegavam muitas vezes ao limite da fome, passando então a roubar e 
saquear”. 
As interpretações apresentadas acima necessitam de uma revisão. Primeiramente, 
haviam cavaleiros abastados que tomaram o caminho do Levante na primeira parcela de 
cruzados e estes não eram compostos unicamente por grandes grupos de despossuídos 
que, no limite do desespero material e de uma vida cercada de miséria, se entregaram aos 
saques. O saque no caminho era condição latente para exércitos em marchas tão longas 
quanto a jornada até Jerusalém. Sejam os barões, ou os despossuídos. Logo, as pilhagens 
não ocorrem porque os pobres são maioria nesta primeira onda. A ausência de 
suprimentos enfrentada por esse primeiro grupo tem relação com o período em que eles 
se lançam para a campanha. A data estipulada pelo papado, em acordo com os guerreiros, 
era Agosto de 1096. Ou seja, após a época da colheita. 
A primeira onda se moveu antes da colheita e, sendo assim, os recursos ficaram 
escassos e isso gerou desabastecimento constante, o que levou aos saques pelo caminho 
que muitas vezes fugiram do controle. Por isso, “uma das razões para as catástrofes que 
 
130Salomão Bar Sansão. In: FALBEL, Nachman. Op.Cit., 200,1 p.122; 
131 MORRISSON, Cecille. Cruzadas. Tradução de William Lagos, 2009, p.14; 
132 FRANCO JR., Hilário. As Cruzadas, São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p.39; 
 
102 
 
 
acometeram essa primeira onda de cruzados foi que ela deixou a Europa antes da data 
estipulada pelo papa, 15 de Agosto de 1096”. 133 Ou seja, “antes da colheita maravilhosa 
daquele verão, os cruzados tinham pouca comida desde o princípio”.134 Outro ponto é a 
nomenclatura de “cruzada popular”. Ela só pode ser chamada assim se o nome for 
relacionado com o fato de ser realizado por pessoas. Pois, se não for assim, ela não atende 
ao epiteto. Muitas narrativas mostram poderosos condes participando do grupo inicial. 
Tomas de Marle estava presente nesta primeira onda, assim como o conde Emicho. Além 
disso, parte deste grupo se juntou a Hugo de Vermandois, irmão do rei francês. 
Outra questão é que os pogroms não foram realizados por pobres que praticaram 
um “fanatismo quase ingênuo”.135 O discurso antijudaico existia e era propagado por um 
clero letrado e consciente de suas palavras. Os assassinatos cometidos contra judeus por 
essa primeira onda estavam inseridos numa racionalidade que ligava necessidade material 
e doutrina belicosa contra o povo judaico. A existência destes “outros” que se situam fora 
da Cristandade e a elaboração do discurso sobre eles não é monolítico e nem sempre se 
encontra de forma nítida nos textos. O trato com o judeu é diversificado, complexo e, 
muitas vezes, atrelado aos interesses econômicos de determinada região. 
Embora a doutrina cristã estabeleça um papel importante aos judeus, não podemos 
enxergar isto como fruto de uma tolerância pacífica e inclusiva desta sociedade no seio 
cristão. “No final dos séculos XI e XII [...] a figura do judeu assume maior urgência. O 
número e a veemência dos tratados antijudaicos aumentam agudamente [...] novos 
elementos são adicionados”. 136 Sara Lipton cita a entrada em cena da imagem do 
“usurário judeu” e daqueles que provocaram o “sofrimento de Cristo [...] ou simplesmente 
permaneceram indiferentes à sua dor”. Ainda de acordo com a historiadora as 
“representações visuais e literárias de judeus exageraram sua provocação e hostilidade, e 
as narrativas de paixão atribuíram culpa coletiva e trans histórica” 137 aos judeus. Afinal, 
dentre os relatos que narram o discurso de Urbano II, em Clermont, o que se mostra é um 
papa que chama os cristãos à vingança: “precisamente à vocês (cristãos), porque Deus 
lhes conferiu sobre todos os povos pagãos [...] a insígnia da honra e das armas”. 
 
133 RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.96; 
134 Ibidem, pp.96-97. 
135 FRANCO JR., Hilário. Op.Cit., 1981, p.39 
136 LIPTON, Sara. Christianiy and Its Others: Jews, Muslims and Pagans. In: The Oxford Handbook of 
Medieval Christianity Edited by John H. Arnold. Oxford University Press, 2014, p.416; 
137 Ibidem, p.417; 
 
103 
 
 
A mensagem do sacrifício de Cristo e seu sofrimento na cruz para a salvação dos 
cristãos está presente nos relatos de Clermont e mostra a obrigação que estes homens de 
armas tinham em atender ao chamado de auxílio e vingança contra quem atacava a Cristo. 
A mensagem recebida e o forte peso dado aos judeus como deicidas tinham a capacidade 
de estimular naqueles exércitos uma possibilidade de inclusão no ramo dos “infiéis” a 
serem combatidos não apenas os muçulmanos: “Se eles estavam sendo chamados, 
segundo entendiam, a vingar o dano à honra de Cristo pela perda de seu patrimônio para 
os muçulmanos, indagaram-se, não deveriam também vingar o dano à sua pessoa pela 
crucificação”. 138 
Logo, a presença judaica entre comunidades cristãs coloca em questão como 
ocorrem as relações destas sociedades. Estas relações variavam, mas nunca em campo de 
igualdade. Nos pogroms das cruzadas, a exacerbação de uma visão que fez do judeus os 
assassinos de Cristo atinge níveis extremos provocando conversões forçadas, enorme 
quantidade de assassinatos e pilhagens desenfreadas. 
A primeira onda não durou muito e os exércitos se dissolveram no caminho ou 
quando atingiram Constantinopla e resolveram seguir sem o reforço da segunda onda, 
que era constituído por um grande número de cavaleiros. O movimento que se deu após 
1096 ainda é um grande ponto inicial e de referência para o estudo das motivações e dos 
elementos característicos das cruzadas. Como dito anteriormente, Clermont é o ponto 
primário que deu a largada a um fenômeno que se prolongou por séculos. Porém, o 
concílio de 1095, surgiu em narrativas posteriores de alguns cronistas que inseriram em 
seus escritos pontos chaves para uma aguçada ilustração do contexto. 
Dentre estas narrativas, as mais antigas e próximas do concílio de Clermont fazem 
parte de uma primeira categoria, que envolve quatro autores: “se compõe dos quatro 
participantes da primeira cruzada que escreveram pessoalmente seus relatos em começos 
do século XII”.139 São estes Fulquério de Chartres, Raimundo de Aguillers, Pedro de 
Tudebode e o escritor anônimo da Gesta Francorum. A Gesta foi vista, por um tempo, 
como sendo a base para escritores posteriores. O alemão Heinrich Hagenmeyer “em sua 
edição de 1890 da Gesta Francorum [...] lançou a tese [...] que Pedro Tudebodo havia 
 
138 RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.91; 
139 SEFAMI, Daniel Paz. Fulquero de Chartres y Roberto el monje. Dois versiones del sermón de Urbano 
II em Clermont: um comentário de texto.México, Universidad Nacional Autónoma de México, Cordinácion 
de Estudios de Posgrado: Programa de Maestría y Doctorado em Letras, 2018, p.22; 
 
104 
 
 
copiado o anônimo”. A partir daí “a tendência geral é crer nisto”.140 Embora Jean Flori141 
compreenda que tanto a Gesta quanto Pedro Tudebodo tenham utilizado um documento 
em comum e que tenha se perdido. 
Nestes quatro primeiros escritores citados, o único que aborda o sermão de Urbano 
II, de fato, é Fulquério. O autor anônimo e Pedro Tudebodo fazem uma referência ao 
concílio, mas não se aprofundam na chamada de Clermont como uma peça formalizada 
e teatral ao modo de Fulquério. Raimundo de Aguiller não faz menção ao ponto inicial 
de Clermont já que “sua obra começa com os padecimentos dos francos quando estes 
estão passando pelos Balcãs”.142 Raimundo acompanhou a comitiva do conde Raimundo 
de Tolosa. Existem, também, outros três autores que escreveram sobre a cruzada de 1095 
e que tem em comum a característica de serem monges beneditinos. São eles Roberto, o 
monge, Guibert de Nogent e Baldrico de Bourgueil. Estes autores apresentam elementos 
possíveis de circunscrever num conjunto semelhante: “os três tem um prólogo em que se 
identificamcomo autores e criticam sua fonte. Os três escrevem desde seu centro 
religioso[...] e parecem tentar gerar uma versão oficial da cruzada, baseados na ideia de 
que é necessária uma compreensão verdadeira da empresa”.143 Os três trazem em suas 
narrativas o sermão de Urbano II de maneira estilizada. 
Todos esses autores citados são clérigos e escreveram suas crônicas 
temporalmente próximos. A crônica anônima foi escrita por volta de 1099 e reeditada 
entre 1105 e 1106. Hierosolymitano itinere de Pedro Tubebodo foi terminada antes de 
1111; já a Historia Francorum qui Ceperunt Jerusalem escrita por Raimundo Aguilers 
foi elaborada em data próxima a 1105 e Fulquero de Chartres escreve também por volta 
deste ano. Roberto, o monge escreve sua Historia Iherosolimitana em torno de 1110. 
Baldrico de Bourgueil narra a campanha em Historia Ierosolimitana, feita em 1105 e por 
último, A Gesta Dei per Francos de Guibert de Nogent é composta entre 1104 e 1108, 
além de uma revisão realizada por volta de 1111.144 Conforme investigação de Jean Flori 
 
140 Ibidem, p.23; 
141 Cf. FLORI, Jean. Pedro El Ermitaño y el Origen de las Cruzadas. Barcelona/Buenos Aires: Edhasa, 
2006; 
142 SEFAMI, Daniel Paz. Op.Cit., 2018, p.24; 
143 Ibidem, p.24; 
144 EDGINTON, Susan. The First Crusade: Reviewing the evidence. Ed. J Philips. The First Crusade: 
Origins and Impact. Manchester/Nueva York: Manchester University Press, 1997, pp.55-57; FLORI, Jean. 
op.Cit., 2006; HIESTAND, Rudolf. Il cronista medievale e il suo publico: alcuini osservazioni in margine 
ala storiografia delle crociate. Anali della Facultá di lettere e Filosofia Universitá di Napoli 25 (1984), 
pp.207-227 ; RILEY-SMITH, Joanathan. The First Crusaders , 1095-1131. Cambridge: Cambridge 
 
 
105 
 
 
é Guibert de Nogent que usa o termo “guerras santas” (praelia sancta) de forma inédita 
em Dei Gesta Per Francos.145 No entanto, para o historiador francês a noção não era 
nova. O que ocorreu foi a nomeação de algo que já se conhecia a existência. A guerra 
santa “ganhava direito de cidadania entre os monges que, refletindo sobre a cruzada pouco 
depois de seu sucesso, elaboravam sua interpretação teológica”.146 
A maneira como estes clérigos escrevem sobre o sermão de Urbano nos permite 
alguns apontamentos, dentre os quais a presença de temas recorrentes nessas descrições 
do concílio. Vejamos o discurso do papa na narrativa de Fulquero de Chartres: 
Oh, filhos de Deus! Pois se prometeste a Deus sustentar, de uma forma 
mais viril do que de costume, a paz, que deve ser mantida entre vós, e 
os direitos da Igreja, que devem ser fielmente preservados, então 
também é eminente agora, que acaba de ser revitalizadas pela emenda 
de Deus, para que voltem o poder de sua coragem para outro dever seu 
e de Deus [...] apressem a viagem e socorram a seus irmãos que estão 
no Oriente e que estão necessitados de seu auxílio, pelo qual clamam 
com frequência. Pois, tal como já se disse à maioria de vocês, os turcos, 
raça pérsica, que ocupando mais e mais terras dos cristãos [...] matando 
ou capturando a muitos, destruindo igrejas, devastando o reino de Deus. 
147Por esta razão, com apelo suplicante, os exorto, não eu, e sim o 
Senhor, para que vocês, pregoeiros de Cristo, persuadam com 
frequentes decretos, a todos de qualquer ordem.148 
Fracionando o discurso detectamos alguns temas que já trabalhamos nos liber 
miraculorum, por exemplo. Primeiramente, a introdução do concílio coloca-o na lógica 
dos juramentos da Paz de Deus. Clermont era uma assembleia com este intuito e, por 
mais que se pense que a Paz de Deus perde força no fim do século XI, ela ainda está 
presente em algumas regiões. Na convocação dos cristãos latinos para irem até Bizâncio 
em auxílio dos cristãos gregos há o tema recorrente da igreja violada (ecclesia 
subvertendo, regnum Dei vastando) e a sua profanação. Este assunto está presente aqui 
e em outras versões do sermão. 
A metodologia de análise das trigger words usada por Marcus Bull 149 estabelece 
a ligação entre as ideias transmitidas por estas narrativas de Clermont com os miracula. 
 
University Press, 2002; SWEETENHAM, Carol. Robert the Monk’s History of the First Crusade. Historia 
Iherosolimitana. Surrey/Vermont: Ashgate, 2011; RUNCIMAN, Steven. Historia de las cruzadas. Madrid: 
Alianza, 2008 
145 Guiberto de Nogent. Dei Gesta Per Francos. RHC, Hist. Occ., IV, p.124; 
146 FLORI, Jean. Op.Cit.,2013, p.334; 
147 Multos occidendo vel captivando, ecclesias subvertendo, regnum Dei vastando. In: HAGENMEYER, 
Heinrich (ed.). Fulcheri Carnotensis historia Hierosolymitana (1095-1127). Heidelberg: Carl Winters, 
1913, p.134; 
148Ibidem, pp.132-134; 
149 BULL, Marcus. Op.Cit., 2004; 
 
106 
 
 
Bull descreve estas “palavras-gatilho” como a durabilidade das imagens diretas e 
poderosas, que provocam respostas emocionais e associações das mais distintas quando 
se ouve certas palavras ou temas que despertam reações e sentimentos. Conforme George 
Lakoff 150 a utilização destes símbolos transporta as imagens visuais reais com efeitos 
emocionais e expressam, simultaneamente, valores, pressupostos culturais e processos 
mentais. 151 A ideia gatilho da igreja sendo devastada e ferida está presente, por exemplo, 
em muitas histórias de milagres já citadas e também é tema em Roberto, o monge que 
aponta o “povo dos persas derrubando as igrejas de Deus e utilizando-as para as suas 
cerimônias”.152 A convocação de Urbano II é de auxílio e de vingança, se utilizando de 
ideias e discursos em circulação que tivessem a capacidade de movimentar uma gama de 
processos internos adequados a responder aquele apelo. 
A cruzada aparece, então, como uma defesa da Igreja. Em muitas dessas 
oportunidades, notamos uma lógica semelhante com a proteção que deveria ser efetuada 
no âmbito das espoliações realizadas pelos maus cristãos durante a formação de exércitos 
protetores como o de Aimon de Bourges. Porém, aqui, talvez se encontre uma concepção 
nossa oposta à de Dominique Barthélemy. Concordamos com Barthélemy na referência 
ao apelo de Urbano ser uma chamada de vingança e em relação aos ataques sofridos por 
cristãos serem “exagerados por um tipo de cálculo”.153 No entanto, o historiador francês 
coloca esta guerra de vingança dentro do mesmo parâmetro das feuds internas. Para 
Barthélemy, os discursos “não são forçosamente compreendidos como chamados ao 
extermínio puro e simples do adversário, uma vez que, no mundo da vingança, 
primeiramente se inflama com grandes palavras, começa-se com atos de inimizade, mas 
logo se passa à arte da negociação e da transação”. 
A lógica da vingança interna presente na relação entre cristãos não é transferível 
para o embate contra o outro. O confronto é distinto, pois a guerra de vingança não é um 
convite de negociação. O trato com o “outro” é de apagamento, de exclusão e da negação 
 
150 LAKOFF, George, e JOHNSON, Marc. Metaphors We Live By, Chicago: Chicago University Press, 
2003; 
151 “Metaphor is not just a matter of language, that is, of mere words [...]. The human conceptual system is 
metaphorically structured and defined. Metaphores as linguistic expressions are possible because there are 
metaphores in a person’s conceptual system. In: Ibidem, p.6; 
152 Ecclesiasque Dei aut funditus everterit aut suorum ritui sacrorum mancipaverit. Altaria sui feditatibus 
inquinata subvertunt In: KEMPF, Damien and BULL, Marcus. (eds.) The Iherosolimitana of Robert the 
Monk. Woodbridge: The Boydell Press, 2013. Roberti Monachi historia Iherosolimitana, RHC Occ, III, 
pp.717-882; 
153 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, p.331; 
 
107 
 
 
ao direito de existência. Isto é perceptível nos massacres dos cruzados efetuados em 
Maara e Jerusalém. Os relatos cristãos não condenam. As condenações destes massacres 
contra os muçulmanos são mais exceção que regra e o próprio Dominique Barthélemy se 
questionasobre esse “Cristianismo do ano 1100 que fala em seguir a Cristo, que não 
impede semelhante massacre, e que não impõe penitência a seus autores”.154 As vendetas 
que se praticam em conflitos intrassocietários ocasionam mortes e, até certo ponto, 
descontrole (embora não seja o objetivo). No entanto, penitências são impostas e a própria 
partida para a cruzada é uma forma de absolvição dos exageros ocorridos em conflitos 
feudais. 
O público ao qual o papa se destina são os cavaleiros. A chamada da Cristandade 
para o auxílio de Bizâncio necessitava da utilização de imagens reconhecíveis e de 
símbolos que provocassem a reação pretendida. Estas “imagens universais” que 
provocam reações operam nas relações entre a imagem, o símbolo e o signo. Estes 
elementos, para Claude Dubois agem no imaginário, remetendo àqueles ouvintes às 
“ligações entre a experiência cotidianas e os sistemas metafóricos, baseando-se na 
experiência física, sendo definida em termos de imagens concretas”.155 Estas imagens, 
em forma de palavras estão presentes em Clermont e nos discursos convocatórios para a 
cruzada. 
Os milagres de São Privato de Mende são contemporâneos 156 aos relatos de 
Clermont feitos pelos clérigos que citamos. Vejamos como o tema da Igreja agredida está 
presente na maioria dos milagres. Todas as agressões às igrejas são punidas através da 
intercessão vingativa do santo. Toda violação às terras do santo é punida. Oito milagres 
 
154 Ibidem, p.342 
155 LAKOFF, George, e JOHNSON, Marc., Op.Cit.,2003, pp.40-45 
156 “A suposta tumba de São Privat era, no entanto, um famoso local de peregrinação e milagres que 
aconteciam em Gevaudan, no século XI, o que engajou um autor anônimo em transmitir a história para a 
posteridade. Este autor fala de um milagre ocorrido em seu tempo, sob o episcopado de Adalberto e declara 
que fará saber de outro milagre da boca do mesmo bispo. Dois prelados com esse nome ocuparam a sé 
episcopal de Mende no século XI. Adalberto I, cujos vestígios podem ser encontrados ao longo dos anos 
de 1053 e 1095, e Adalberto II, sobrinho do anterior, que aparece em documentos de 1099 e 1109 [...] É de 
fato provável que o conselho de Mende realizado pela Paz de Deus, do qual o milagre corresponde ao 
encontro dos prelados ocorre entre 1102 e 1112 e relatado por Adalberto III em seu relato da invenção das 
relíquias de São Privat . Três arcebispos e dois bispos foram encontrados então em Mende, e tudo sugere 
que esta reunião importante era aquela que tinha por objetivo a Paz de Deus. Como o autor do miracula 
sobreviveu ao bispo Adalberto II, a composição desta história remonta provavelmente à primeira metade 
do século XII.” In: Introduction. Les Miracles de Saint Privat. Op.Cit., 1912, pp.XIX-XX; 
 
108 
 
 
fazem referência direta a este tema.157 O castigo para quem viola a igreja faz parte da 
retórica utilizada no sermão de Urbano II. Este e outros temas muito recorrentes em 
Clermont são, conforme Marcus Bull158, elementos “que se adequavam particularmente 
à internalização e à identificação empática” daquelas pessoas. 
As palavras de Urbano falaram alto a partir do uso destes temas e imagens em 
particular. Estes discursos teriam a capacidade de fomentar naqueles grupos uma reação, 
visto que eles estavam ambientados com os gatilhos difundidos pelos miracula. Além da 
utilização de uma “sequência de substantivos abstratos evocativos”, tais como “sujeira, 
poluição, perfídia, desonra, maldade, infâmia, luxúria, crueldade, tirania, violência, 
violação, destruição, opressão, paganismo [...]” 159 
Por isso, a escrita das cruzadas para aqueles homens tinha como objetivo a criação 
de uma narrativa coerente, que precisasse de um ponto inicial e esse ponto é Clermont, 
em 1095. Situando as ideias que circulavam cria-se a possibilidade de se travar um 
combate santo com ganho espiritual e que possibilitou um movimento tão intenso de 
pessoas para Jerusalém. A análise da conquista de Lisboa vai tratar mais destas 
concepções utilizadas pelo autor da crônica dentro da política afonsina de aproximação 
com a cruzada. 
Nosso objetivo não é a descrição de todo o caminho percorrido pelos cruzados até 
a conquista de Jerusalém e as campanhas posteriores, mas sim a visualização das 
possibilidades e das ideias que mobilizaram o fenômeno para a reflexão da concepção de 
violência existente na Cristandade latina dos séculos XI e XII. Examinemos o relato de 
Guilbert de Nogent sobre o sermão a respeito da situação dos peregrinos: 
Se o que é dito nas escrituras não os impulsiona e nem nossas reflexões 
penetram em seus ânimos, ao menos que os impulsione a grande miséria 
daqueles que desejam ir aos lugares santos. Pensem naqueles que 
peregrinam e vão até lá pelo Mediterrâneo e, sem efeito, ficam mais 
ricos. A quantas cobranças, a quantas violências160 são submetidos, 
posto que quase a cada milha são obrigados a desembolsar pagamentos 
e tributos. Nas portas de cada cidade, nas entradas das igrejas e dos 
templos são obrigados a pagar recompensas; em cada peregrinar de um 
 
157 Milagre 2 [fol. CLII vº.], pp.4-5; Milagre 3 [fol.8(m)], pp.5-8; Milagre 4, p.8; Milagre 5, pp.8-11; 
Milagre 8, p.16; Milagre 9, pp.16-18; Milagre 10, p.18; Milagre 11, pp.18-19. In: Les Miracles de Saint 
Privat. Op.Cit., 1912. 
158 BULL, MARCUS. Op.Cit., 2003, p.23; 
159 Ibidem, p.23; 
160 Violentiis. In Guiberto de Nogent. Gesta Dei Per Francos, edita a venerabili Domno Guiberto, abbate 
monasterii Sanctae Mariae Novigenti, em Académie des Inscriptions et Belle-Lettres (ed.): Recueil des 
historiens des croisades: Historiens Occidentaux, V vols., Paris, 1844, pp.113-263; 
 
109 
 
 
lugar a outro, lhes impondo qualquer tipo de acusação, são empurrados 
a pagar recompensas [...] A crueldade dos nefastos é levada até as 
últimas consequências, de maneira que, pensando que os miseráveis 
ingeriram ouro ou prata lhes é dado escamonéia para beber até que 
vomitem ou mesmo são instados a extrair seus órgãos vitais com a 
espada, o que resulta mais nefasto, cortando o ventre, esticando as 
envolturas dos intestinos; abrem com um terrível incisão qualquer coisa 
que a natureza mantenha oculta.161 
Independentemente do exagero do relato, Guibert narra os sofrimentos dos 
peregrinos diante dos muçulmanos; notamos neste trecho o tema do peregrino assediado. 
Embora alguns miracula que observamos sejam de um período após os relatos do concílio 
de 1095, a ideia de assédio ao peregrino é um tema constante, que evoca o auxílio dos 
cavaleiros na proteção destes despossuídos que marcham até Jerusalém. Estes homini 
viatores sofrem violentiis, que é o termo do plural dativo que significa o ato de dar alguma 
coisa. Ou seja, os peregrinos são submetidos pela violência muçulmana. Aqui, esta é 
encarada como cobranças excessivas de tributos ou a dilaceração pela espada. “Parece, 
entretanto, que houve algum exagero com respeito às dificuldades criadas pelos califas 
omíadas e abássidas à peregrinação para Jerusalém”.162 
A proteção e a vingança contra os males que atingem essas pessoas que rumam a 
Jerusalém é uma tarefa piedosa que o bom cristão deve efetuar. Neste contexto, a marcha 
feita em auxílio aos peregrinos, aos bizantinos e para a conquista de Jerusalém é uma 
penitência sobre a qual Urbano discorre como uma maneira para que aqueles homens de 
armas sejam perdoados pelos males que proporcionam em suas terras. Dentre estes males, 
as batalhas contra outros cristãos, a incessante busca por riquezas e, posteriormente, a 
prática de se tornear. Sobre isso, Barthélemy em entrevista a professora Néri de Barros 
Almeida, aponta que os torneios, condenados pela Igreja, preparavam os cavaleiros para 
as cruzadas e ao mesmo tempo os fazia cair em pecado, necessitando, depois disso, partir 
em cruzada para se penitenciar.163 
O beneditino Guibert prossegue com o relato do sermão de Urbano: “[...] queridos 
irmãos,devem se esforçar para que a santidade da cidade e glória do sepulcro, que é 
manchada com demasiada frequência pela presença dos gentis, seja purificada [...] Deus 
 
161 Guiberto de Nogent. Dei gesta per Francos et cinq autres textes, éd. R. B. C. Huygens, Turnhoult: 
Brepols, [CCCM 127A], 1996, pp.139-140; 
162 SOT, Michel. Peregrinação. In: Dicionário Analítico do Ocidente Medieval: volume 2/ Jacques Le Goff, 
Jean-Claude Schmitt (Orgs.); tradução coordenada por Hilário Franco Júnior. – São Paulo: Editora Unesp, 
2017, p.398; 
163 BARTHÉLEMY, Dominique, Op.Cit., 2011, p.174; 
 
110 
 
 
será seu guia e lutará por vocês”.164 A seguir, pede para que os cristãos interrompam suas 
matanças internas: “Até agora fizeram guerras indevidas, se voltaram para matanças 
mútuas [...] pela avidez ou soberba pela qual hão merecido morte eterna e a destruição 
segura da condenação”. 165 Assim, se destinariam às causas dignificantes: “Agora, em 
troca, te propomos guerras que em si mesma tenham a recompensa gloriosa do martírio166 
[...] e o título do louvor eterno”.167 A retórica da guerra contra o outro é uma construção 
do “nós” (cristão) contra “eles” (muçulmanos). Esta busca pela identidade coloca no outro 
a diferença daquele que não participa da sociedade. 
Conforme Marcus Bull afirma, é preciso atenção na maneira como estes autores 
descrevem o sermão de chamada às cruzadas por parte do papa e como estes clamores 
estão ligados às ideias em circulação nas experiências proporcionadas e vinculadas nos 
miracula. Doravante, estas histórias de milagres “não são uma rota direta para a paisagem 
mental dos leigos e falam apenas sobre alguns aspectos de sua experiência vivida, mas os 
miracula nos aproximam o suficiente para vislumbrar operações de alguns valores e 
percepções culturais importantes”. 168 Dentre elas “ideias que podem estar relacionadas à 
motivação da cruzada”.169 Isso nos ajuda na explicação, inclusive, do porquê a grande 
maioria não foi. Devemos rever a ideia sobre as cruzadas movimentarem pessoas que 
estavam ali preparadas para isso, pois estas peregrinações armadas responderiam a todas 
as expectativas, políticas e sentimentos da Cristandade latina dos século XI e XII. As 
condições culturais e materiais auxiliaram, mas estas não encontraram na chamada de 
Urbano o ponto final de uma linha de acontecimentos cuja resposta óbvia seria a cruzada. 
Da mesma forma que estas mesmas cruzadas precisam ser pesquisadas e analisadas em 
outras possibilidades além de uma série de eventos numerados. 
A escrita da cruzada feita por beneditinos estabele o evento como parte da história 
que é guiada por Deus. Nesta lógica, a mão divina conduz os acontecimentos. 
Principalmente, a segunda onda na qual a conquista de Jerusalém se efetiva. Esta maneira 
de escrever a cruzada é “desenvolvida por uma segunda geração de comentadores, 
particularmente [...] Guibert de Nogent, Baldrico de Bourgueil e Roberto, o Monge, os 
quais, escrevendo dez anos mais tarde situaram a cruzada no contexto da história da 
 
164 Guiberto de Nogent. Op.Cit., 1844, p.138 
165Ibidem, p.138. 
166 Gloriosum martyrii; 
167 Guiberto de Nogent. Op.Cit, 1844, p.138. 
168 BULL, Marcus. Op.Cit., 2003, p.31; 
169 Ibidem, p.31; 
 
111 
 
 
providência”.170 Para estes escritores das passagens armadas “a ideia de cruzada como 
uma guerra por Cristo, a qual fora mal elaborada pelos próprios cruzados, ganhou uma 
expressão teológica própria”.171 
Os votos de cruzado e os mais variados sentimentos acarretariam numa tendência 
na qual se transferia “as ideias e a linguagem extravagantes da cruzada para qualquer 
conflito pelo qual os promotores ou os participantes nutriam grandes sentimentos”.172 
Nesse período é difícil diferenciar exatamente a peregrinação desarmada para as armadas, 
pois a documentação não é muito nítida a este respeito. Em 1105, Fulquerio de Chartres 
que estava em Jerusalém fala sobre o receio de uma invasão muçulmana vinda do Egito 
e justifica o seu medo da seguinte maneira: “porque nós éramos muito poucos e estávamos 
sem a ajuda dos peregrinos habituais”. 173 Além disso, o mesmo Fulquerio fala de 
exércitos cristãos crescendo com a chegada destes peregrinos. 
Após as três primeiras ondas e a tomada de Jerusalém, em 1099, 174 os 
movimentos prosseguiram em fluxo constante, mas de maneira diminuta e talvez menos 
armada.175 Assentamentos foram criados na região e as relações locais entre cristãos 
vindos do continente, os cristãos locais e os muçulmanos se deram das mais variadas 
formas. Haviam acordos de não-agressão, cobranças de taxas para o “outro” e distintas 
formas de impor pela força o domínio que se buscava exercer. 
A conquista de Edessa efetuada por Zengi, em 1144, foi o motivo usado pelo papa 
Eugênio III na convocação de um novo auxílio dos cavaleiros cristãos latinos. Eles 
partiram para o que ficou conhecido como segunda cruzada, realizada em 1147. Esta 
convocação contou com as pregações de Bernardo de Claraval. Porém, no caminho de 
parte destes cruzados haviam as negociatas e interesses de um infante que se pretendia 
 
170 RILEY-SMITH. Op.Cit., 2019, p.124; 
171 Ibidem, p.124; 
172 Ibidem, p.212; 
173 Fulquero de Chartres. Hagenmeyer, Heinrich (ed.) Fulcheri Carnotensis historia Hierosolymitana 
(1095-1127). Heildelberg: Carl Winters, 1913. Historia Iherosolymitana. Gesta Francorum Iherusalem 
expugnation, ab anno Domini MXCV, auctore Domno Fulcherio Carnotensi. pp.311-485; 
174 A conquista de Jerusalém foi efetuada pela segunda onda de cruzados; 
175 Jonathan Riley-Smith aborda que após a conquista de Jerusalém, para as pessoas do século XII, a 
peregrinação com intuitos menos belicosos parece ser uma tendência. Embora, ao completar o percurso, 
cujo a cidade santa era o ponto final, muitos destes viajantes, ajudava em conflitos no Oriente: “Assim, os 
peregrinos do século XII se comportaram de forma precisamente oposta àqueles primeiros cruzados que 
haviam conscientemente revertido a um estado sem armas uma vez que haviam liberado o Santo Sepulcro.” 
In: RILEY-SMITH, Ibidem, p.214; 
 
112 
 
 
rei diante da Cristandade. Esse Infante precisava da cruzada e a cruzada ampliava sua 
política de conflito, combatendo em outros teatros de operação. 
A sacralização dos combates fez parte da doutrina cristã. A lógica da guerra santa 
ascendeu na região da Gália com as igrejas estabelecendo discursos sobre a sua defesa e 
como esta causa convertia o combate efetuado pelos leigos num combate santo. Assim, 
num ambiente hostil, o clero usa de hostilidade para a manutenção de seus privilégios. O 
uso das doutrinas agostinianas, geralmente, são uma premissa para o estudo dos combates 
sagrados. Porém, o emprego do bispo de Hipona é ressignificado conforme a lógica local 
e temporal. Assim, a guerra santa também se adapta ao momento que é pregada. Os 
embates feudais, fruto da lógica expansionista do sistema atingiu a Igreja, que também 
detinha um poder senhorial. Ou seja, o efeito colateral do sistema senhorial colocou as 
duas aristocracias (laica e eclesiástica) em constante conflito. 
Tendo seus patrimônios e direitos cotestados, o clero da Gália desenvolve uma 
ideia de violentia. Para a sua proteção usaram da violência daqueles que estavam dipostos 
a defendê-los. É possível, inclusive, ver bispos pegando em armas para o resguardo de 
seus bens. Aqui, as condições materias são latentes. Embora, elas não esteja descoladas 
da religiosidade. Estes homens do clero viam na defesa dos bens sagrados, uma defesa a 
Deus. Assim, se difundiu a noção de embates sagrados. Estas guerras santas foram 
utilizadas e reapropriadas por algumas regiões da Cristandade de acordo com as 
necessidades circunscritas à lógica local. 
Um dos possíveis recortes para a guerra santa é a região da Península Ibérica, onde 
o processo de expansão cristã assume um caráter sagrado a partir do surgimento do 
fenômenocruzadístico. O recrudescimento do discurso hispânico é uma estratégia de 
legitimação das monarquias ibéricas, visto a importância, naquele momento, de uma 
aliança com o papa. Os reis hispânicos fizeram uso de seus atritos contra os muçulmanos, 
fruto da expansão feudal, para seu auto fortalecimento. Assim, no decorrer dos séculos 
XI e XII, a guerra na Península Ibérica se sacraliza de lado a lado. 
A cruzada é uma guerra santa e uma guerra de libertação. Com esta guerra era 
possível se penitenciar. O caminho, as provações e o combate ao muçulmano fazia da 
campanha um movimento que conjugava diversos elementos. A cruzada é, também, uma 
guerra de vingança e as pregações falam desta como uma forma de honrar à Cristo. 
Analisamos como as narrativas de chamadas da cruzada se utilizam das ideias presentes 
 
113 
 
 
nos miracula vislumbradas no primeiro capítulo. As ideias destes milagres, que estão na 
chamada da cruzada, também estão presentes em De Expugnatione Lysbonensi. Raul faz 
uso destas ideias, em nossa visão, por esse ser seu ambiente cultural 176 (Raul era anglo-
normando) e, também, para transmitir uma imagem da expansão de Afonso Henriques 
que faça dele um rei cristão e defensor da Igreja. 
Assim, quando uma nova cruzada é convocada pelo papa em 1146, o líder do 
condado portucalense, em aliança com seu clero, entra em cena e movimenta coalizões 
com os cruzados para tornar sua expansão feudal num alargamento das fronteiras da 
Cristandade. Afonso presta homenagem vassálica ao papa, e este se vira para estas 
monarquias nascentes para seu próprio fortalecimento. Estes elementos apontam a 
importância da elaboração de uma memória referente aos feitos do duque que se pretendia 
rei e que veremos no capítulo a seguir. 
 
 
176 As noções de violentia dos milagres se constroem no contexto das assembleias de paz e das espoliações 
sofridas pelas igrejas da Gália, região da qual Raul é oriundo. 
 
 
114 
 
 
 
Capítulo 3 
Lisboa e a Cruzada: a Conquista de 1147 
 
Nesse capítulo apresentaremos a conquista de Lisboa percebendo sua construção 
como uma tentativa de aproximar o expansionismo de Afonso I com a cruzada. A 
constituição da imagem dos muçulmanos como um “outro” e a maneira como são 
caracterizados na crônica tem por objetivo a justificativa da violência que se comete 
contra eles. Violência que está presente em sua amplitude e que não é vista como tal pelos 
cristãos. Esta violência que também se pauta pela edificação de uma identidade que tem 
em seu âmbito a busca no estabelecimento de um “diferente”, o outro. Conforme Jacques 
Derrida, este tipo de binarismo visa a hierarquização. Hierarquização que promove a 
violência. 
Para a apreensão desta proposta, iniciaremos a explanação através do processo 
expansionista portucalense com Afonso Henriques e como este encontra na aliança com 
o papa e seus projetos políticos (inclusive a cruzada) uma maneira de legitimação como 
rei frente aos outros monarcas peninsulares e à Cristandade no geral. Situando o contexto 
da formação portucalense, o próximo ponto será a investigação do ambiente de produção 
da crônica intitulada De Expugnatione Lysbonensi. A crônica é assinada por ‘R’ que seria 
um provável Raul, cruzado anglo-normando, que escreve a Osberno de Bawdsey com a 
intenção de relatar todos os acontecimentos daquela campanha. A tese que indica Raul 
como autor da narratva foi elaborada por Livermore, a qual explicaremos adiante, 
partindo de uma doação feita ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra por um homem que 
se diz participante do cerco de Lisboa. Feita a análise do ambiente de produção da crônica, 
buscaremos sua associação com a política afonsina dentro de uma tradição da literatura 
crúzia de exaltação do rei português, que constrói sua imagem como um monarca cristão 
que expande a Cristandade. As conquistas de Afonso I foram utilizadas como estratégia 
de legitimação frente ao papado. 
Assim, faremos uma investigação do fortalecimento afonsino em associação com 
o papa numa aliança de via dupla: o papa que busca aliados fora do conturbado ambiente 
da Península Itálica e Afonso Henriques que pretende sua legitimação a partir de sua 
vassalidade ao herdeiro de Pedro. A busca pelo reconhecimento como rei era uma forma 
 
115 
 
 
de estabelecimento perante as monarquias ibéricas e aos outros reinos da Cristandade. 
Logo, a conquista de Lisboa precisa ser analisada também sob este prisma. 
Após esse percurso, nosso propósito é detectar a violência existente na crônica. A 
busca de uma construção da identidade cristã em contraponto aos muçulmanos e as 
descrições destes permitem uma leitura inserida na lógica do binarismo hierarquizante. O 
uso da violência com o “outro” se liga à prática de situá-lo fora da sociedade. Sendo, 
assim, um perigo para a existência dos cristãos. O comportamento dos muçulmanos e a 
sua descrição é visto como justificativa para as diversas violências aplicadas na conquista 
de Lisboa. Violência que não é apenas a violência direta (embora esta esteja presente) 
mas também outras formas. Por isso, a teorização sobre o conceito realizado no primeiro 
capítulo nos permitirá uma verificação da crônica neste escopo. 
Por fim, na parte final do capítulo constataremos como De Expugnatione 
Lyxbonensi se conecta com a cruzada enquanto exalta a figura de Afonso. Lançando mão 
das trigger words comprovaremos que a crônica tem o objetivo de transmitir a imagem 
de uma guerra santa por excelência, estabelecendo um paralelo que faça da expansão 
afonsina um episódio agregador da Cristandade latina. Conjugando representações 
presentes nos relatos de milagres e nas convocações de cruzadas, o autor Raul se move 
nas razões existentes no período. 
 
3.1 A construção afonsina: o rei e o reino 
O condado portucalense nasce de um desmembramento da Galiza com o intuito 
de proteção frente aos avanços islâmicos vindos do sul. Após as derrotas sofridas pelo 
conde D. Raimundo diante dos Almorávidas, o condado passa ao poder do conde D. 
Henrique da Borgonha, esposo de dona Teresa, filha bastarda de Afonso VI. Esse 
desmembramento não pode ser visto, mesmo com a posterior autonomia que vai 
adquirindo, como um esforço de uma suposta “identidade portuguesa” que advém de 
períodos recuados em demasia. O mito da identidade lusitana por trás de certas 
concepções historiográficas 1 que enxergam o domínio de Afonso Henriques, 
principalmente, como o desepertar de um sentimento português necessita ser rechaçado 
 
1 Um dos clássicos casos é o de Oliveira Martins que coloca a conquista de Lisboa como o nascimento da 
nação portuguesa. In: OLIVEIRA MARTINS, J. P. História de Portugal. 10.ed. Lisboa: Parceria, 1920. 
v.I; 
 
116 
 
 
ou ao menos problematizado, acrescentando ao tema todas as possibilidades nocivas que 
tais concepções podem trazer. 2 
Maria João Branco 3 analisa estas noções identitárias que pautam a história do 
reino portucalense. Para a historiadora, a constituição de uma identidade referente a 
Portugal é uma construção posterior e que não tem relação com um espírito presente em 
Afonso Henriques. “Um território para o qual se construiu uma identidade, para o qual 
foi construída uma identidade, num trabalho bem concertado e continuado”.4 Quer dizer 
que não existe uma noção de identificação no período? Até pode existir. Porém, era “a 
consciência de pertencer à Hispânia e não a um reino em particular. E, nesse contexto, 
não pode servir como base de reivindicação de particularismos que pudessem ter 
originado as diversas formações políticas que o século XII patenteia”.5 
Ninguém no século XII pauta a formação do reino portucalense dentro de uma 
“lusitanidade” ou “portugalidade” que, tendo entendimento de suas particularidades 
culturais, busca sua “independência” de Castela. Não se pretendeu “associar o nascimento 
do reino de Portugal a um qualquer sentimentode identidade específica da população que 
habitava este fluído território, ele próprio, em permanente estado de mudança [...] ao 
sabor dos progressos da reconquista”.6 
Não havia uma identidade portuguesa naquele momento. Podemos falar de 
identidade hispânica e, mais que isso, notamos uma busca por homogeneização do 
contingente cristão na maneira como Raul narra o ocorrido. Nota-se uma estratégia 
discursiva na criação da imagem do outro. O reino português visa sua legitimação como 
reino cristão, dentro de uma hispanidade que se associa com um passado que justifique 
 
2 Certa narrativa histórica produzida no âmbito da Academia Portuguesa de História criada em 1936 tinha 
como função a releitura da história portuguesa com funções ufanistas de promover uma imagem 
nacionalista, atrelado ao regime ditatorial salazarista: “o ensino de História foi um dos instrumentos na 
caracterização das mitologias nacionais, incorporando diversos lugares comuns da história oficial. A 
glorificação das grandes figuras históricas – Afonso Henriques, Nuno Álvares, Camões, Antônio Vieira, 
Infante D. Henrique,, D. João IV, Alexandre Herculano etc – foi central no seio dessas narrativas. Estas 
figuras históricas foram usadas como modelos míticos, exemplos para o presente.” Cf. MATOS, Sérgio 
Campos. História, Mitologia, Imaginário Nacional: A História no Curso dos Liceus (1895-1939) ,Lisboa: 
Livros Horizonte, 1990, p. 166. Tratou-se da busca por uma lógica identitária no que seria a origem da 
fundação de Portugal a partir da imagem de Afonso Henriques, por exemplo. 
3 BRANCO, Maria João. Elites eclesiásticas e construção de uma identidade: do rei ao reino (secs.XII e 
XIII). In: Nação e Identidades: Portugal, os portugueses e os outros. (orgs). FERNANDES, Hermegenildo; 
HENRIQUES, Isabel Castro; HORTA, José da Silva. MATOS, Sérgio Campos. Caleidoscópio, 2009, 
pp.135-155; 
4 Ibidem, p.139; 
5 Ibidem, p.143; 
6 Ibidem, p.143. 
 
117 
 
 
também a guerra justa, visto que se pretende retomar algo que era preteritamente cristão. 
Afonso Henriques quer construir sua imagem como um rei cristão, assim como os reinos 
peninsulares vizinhos. Desta forma, estabelece uma aliança com seu corpo eclesiástico 
no intento da construção desta imagética. 
Com a ascensão de Afonso VII, primo de Afonso Henriques, como imperador da 
Hispânia, o condado portucalense busca a afirmação como região autônoma usando uma 
série de mecanismos que podemos colocar como a construção de um rei e sua imagem. 
Esta ascensão se deu na aliança entre senhores e clero, numa complexa rede de políticas 
entre monarquias, bispos, arcebispos, cônegos, monges e papas. Vejamos, por exemplo, 
o caso de Santa Cruz de Coimbra, mosteiro agostiniano fundado no ano de 1131. O 
fortalecimento desta instituição, com o apoio de Afonso Henriques e da ligação crúzia 
com o papado proporcionou ao jogo de interesses de todas estas instâncias uma 
cristalização de distintos objetivos em razão da perpetuação destes poderes. O mosteiro 
de Santa Cruz tem um papel significante na elaboração desta imagem do rei e do reino. 
Após assumir o controle do condado portucalense, Afonso Henriques se lança em 
campanhas de expansão. Estas campanhas contam com a elaboração de uma significativa 
cronística que constrói a imagem de um rei justo e cristão que expande a Cristandade. A 
importância da literatura crúzia7 demarca o crescimento da instituição e o mosteiro fica, 
inclusive, responsável pela chancelaria régia. 
Existe uma união de interesses por parte das três vias no estabelecimento do 
mosteiro como um importante centro de difusão cristã, visto que o mesmo tinha por 
objetivo seguir um referencial de vida apostólica e pastoral.8 Os cônegos não praticavam 
a fuga mundi. Deixando-se envolver no ambiente citadino, o programa crúzio era de ir ao 
encontro daqueles que habitavam a cidade, agindo de forma missionária, numa inspiração 
nos primeiros cristãos de Jerusalém. 9 
A historiografia situa a fundação do mosteiro no ano de 1131. A ideia em si se 
baseia na narrativa encontrada na Vita Tellonis, de Pedro Alfardo. Nestes escritos consta: 
 
7 Dentre algumas obras produzidas no âmbito crúzio podemos citar Annales Portugalenses Veteres, Vita 
Martini Sauriensis, Vita Tellonis, Vita Theotonii, De Expugnatione Scalabis e Analles Domni Alfonsi 
Portugallensium Regis. 
8 A criação do mosteiro em ambiente urbano provocou contendas com a Sé de Coimbra pela obra pastoral 
que se desenvolvia no ambiente urbano. 
9 Cf. MARTINS, Armando Alberto. O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média. Lisboa: Centro 
de História da Universidade de Lisboa, 2003, pp.564-565; 
 
118 
 
 
“Foi assim, no ano de 1131 da incarnação do Senhor [...]. o Arcediago Telo, agregando a 
si uma falange de homens de primeiro plano em número igual ao dos doze apóstolos, 
começou a lançar os fundamentos do mosteiro de Santa Cruz nos arrebaldes de Coimbra”. 
10 Neste mesmo ano Afonso Henriques transferie a sede administrativa da cidade de 
Guimarães para Coimbra. 
As associações a Afonso Henriques e ao papado permitiram ao mosteiro um 
fortalecimento considerável. Além disso, Santa Cruz de Coimbra recebe uma quantidade 
volumosa de doações das famílias abastadas da região e do próprio Afonso. Como 
estratégia de fundamentação da monarquia, a chancelaria do mosteiro produz, a partir da 
segunda metade do século XII, diversos textos apologéticos que apontam o rei como um 
instrumento divino e, portanto, autêntico. Os cônegos regrantes legitimam, 
discursivamente, o reino e mostram o apoio de Deus nas batalhas travadas por Afonso. 
No combate aos “inimigos” da Cristandade, o avanço feudal afonsino era visto como um 
avanço cristão. Notamos na Chronica Gottorum, escrita no âmbito crúzio em fins do 
século XII, a ajuda dos céus: 
[...] anotaremos a maneira como conquistou o reino, os castelos e as 
fortalezas que aí construiu e também as cidades e os castelos que aos 
Sarracenos tomou, porque ninguém podia descrever as batalhas que 
travou, pois foram muitas e inumeráveis não só com pagãos, mas 
também com Cristãos que, demasiado cobiçosos, lhe queriam arrebatar 
e invadir o reino, a todos sendo superior e sempre ficando vencedor, de 
todos triunfando sempre, ajudado da bondade divina.11 
O trecho da crônica demonstra as batalhas de Afonso perante os “sarracenos” e 
também diante dos outros reis peninsulares. Ao apontar estes “cristãos demasiado 
cobiçosos” a Chronica Gottorum faz referência ao que parece ser o reino castelhano-
leonês que em diversas oportunidades trava combate com os exércitos portucalenses.12 A 
 
10 “Ab incamatione igitur Domini anno millesimo centesimo tricesimo primo [...], archidiaconus Tello, sibi 
adiuncta procerum iuxta apostolorum numerum duodenarium manu, monasterii Sancte Crucis in suburbio 
Colimbrie iacere adorsus est fundamentum.” VITA Tellonis. In: NASCIMENTO, Aires A. do. Hagiografia 
de Santa Cruz de Coimbra: Vida de D. Telo, Vida de D. Teotónio, Vida de Martinho de Soure. Lisboa: 
Edições Colibri, 1998 - pp.54-56. 
11 “Qualiter autem Regnu sit adeptus, castella, & munitiones quas ibi fecit, sed & ciuitates & castella quae 
à Sarracenis accepit breuiter annotabimus, nam praelia quae gessit nemo poterat annotare, fuerunt 
namque multa & innumerabilia non solum cum Paganis, sed etiam cum Christianis, qui nimium inuidentes 
ei uolebant diripere & inuadere Regnum eius, in omnibus quidem superans, & semper victor existens, & 
de omnibus triumphans diuina clemencia semper adiutus.”. CHRONICA Gottorvm. In: BRANDÃO, 
António. Monarquia Lusitana: parte III. Lisboa: Imprensa Nacional – casa da moeda, 1973. Parte III, 
f.272v-273r. 
12 OLIVEIRA, Jonathas Ribeiro. A cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no século XII: reflexões 
sobre o priorado de D. Teotônio. In: Fato e versões- Revista de História, 2018; 
 
119 
 
 
função régia de combate aos muçulmanos estápresente na escrita desta literatura, assim 
como o rei que age em consonância com os desígnios de Deus, sempre auxiliado por 
ajuda divina. 
As reformas da Igreja nos séculos XI e XII dão a ela e ao papa as possibilidades 
que proporcionam a cruzada. Tal movimento ocorria simultaneamente a outro processo: 
o das conquistas dos reinos cristãos ibéricos frente aos territórios islâmicos. Embora dois 
processos distintos, notamos a tentativa de aproximação, por parte dos reinos hispânicos, 
com a cruzada e uma maior atenção do papado com essas monarquias em constante 
conflito contra os muçulmanos. A alargamento das fronteiras do condado portucalense, 
inicialmente com D. Henrique, e depois com seu filho, Afonso, se deu em lutas endêmicas 
contra os muçulmanos e as outras monarquias cristãs. 
A estabilidade do poder no condado dependia de um delicado equilíbrio nas 
relações locais e exteriores. Afonso Henriques, após a vitória sobre a sua mãe, Dona 
Teresa, na batalha de São Mamede é, posteriormente, reconhecido como rei por seu 
primo D. Afonso VII. Em 1143, ambos se reúnem num colóquio em Zamora e “o 
resultado deste colóquio foi o reconhecimento do título de rei pelo imperador Afonso VII 
a D. Afonso Henriques”.13 Esse reconhecimento ocorreu após duas batalhas que alçou a 
figura de Afonso como uma autoridade proeminente na região: a batalha contra a sua mãe 
em 1128, como dito acima, e a batalha contra os muçulmanos em Ourique no ano de 
1139. A batalha de Ourique, principalmente, foi narrada cercada de elementos sagrados. 
Inclusive, teria ocorrido no dia de São Tiago de Compostela: 25 de julho. 
A construção da imagem afonsina segue fazendo deste rei uma figura mítica, pois 
existem algumas versões sobre o monarca. A que chegou até nós serve, ainda hoje, como 
base para muitos historiadores. A historiografia difundiu “apenas uma dessas correntes 
narrativas sob formas mais ou menos exaltadas, mas sempre altamente elogiosas, 
iluminando ora a faceta da santidade e de instrumento da providência divina [...], ora a 
faceta do guerreiro ousado e indomável ou de prudente, ora a sua capacidade de hábil 
político ou de genial herói”. 14 No entanto, José Mattoso escreve sobre as três faces de 
Afonso e aborda as outras duas que teriam sido colocadas no esquecimento. Estas outras 
 
13A presença do cardeal Guido de Vico, legado do Papa Inocêncio III, deu importância ao acontecimento. 
No entanto, Afonso Henriques ainda não detinha o título de Rex pelo pontificado. Cf. GALLI, Sidinei. 
ibidem, p.34 
14 MATTOSO, José. A nova face de Afonso Henriques. In: Naquele Tempo. Ensaios De História Medieval, 
Lisboa, 2000, p.460; 
 
120 
 
 
duas facetas são as dos companheiros de guerra de Coimbra e dos ricos-homens do Norte, 
oriundos da aristocracia da Galiza. 
 A imagem do chefe de bando guerreiro era retratada em Gesta de Afonso 
Henriques. Esta face do rei é uma prosificação de um texto poético de caráter jogralesco 
que constituía numa apologia de Afonso Henriques. Nesta tradição, o monarca se 
apresenta como um senhor repleto de obrigações com seus vassalos. Nesta Gesta, era 
valorizada a imagem do chefe militar, que se exaltava e que era humano. Imagem esta 
que se difundiu além das fronteiras de seu reino. Na segunda metade do século XII, a 
crônica de Rogério de Hoveden demonstra como Afonso Henriques reage à intromissão 
de um legado papal em seu território: 
Neste mesmo ano o cardeal Jacinto então legado papal para toda a 
Hispânia, depôs muitos abades, quer por causa dos seus méritos quer 
pelo seu comportamento temerário. Querendo também destituir o Bispo 
de Coimbra, Afonso, Rei de Portugal, não permitiu que ele o destituísse. 
Pelo contrário, mandou que o dito cardeal abandonasse a sua terra 
imediatamente, porque de contrário cortar-lhe-a um pé. Ouvindo isto, 
esse legado regressou imediatamente a Roma, e o Bispo de Coimbra 
ficou com a sua diocese em paz.15 
O trecho citado realça uma das imagens em divulgação na época. A imagem de 
um guerreiro que detinha intensa capacidade militar e, de acordo com José Mattoso, 
possuía “uma rude independência com os poderes clericais do que sobre-humanas 
virtudes morais que não lhe conheciam e uma submissão ao clero que não podiam 
aceitar”.16 A outra imagem é a tentativa de detração que se fazia construindo um rei fraco, 
passivo e submisso. Essa tradição vem dos livros de linhagens e, segundo José Mattoso, 
se explica pela baixa estima que os senhores do Norte tinham em relação a Afonso. Além 
disso, relatavam os casos incestuosos de sua mãe, Teresa, para demonstrar a índole de 
seus antepassados. Se os relatos são verdadeiros ou não, é o de menos. O que 
identificamos é a inimizade que os homens do Norte tinham com o futuro rei. Portanto, 
pelo menos três imagens de Afonso circulavam. “Afinal, cada uma deles à sua maneira 
traçava do primeiro rei de Portugal a imagem que convinha ao seu grupo e que, marcando 
uma posição face ao monarca, exprimia uma forma de identificação do próprio grupo 
[...]”.17 
 
15 Chronica Magistri Rogeri de Hovedene (ed. William Strubbs), Rerum Britanincarum medii aevi 
scriptores, II, Londres, 1871, pp. 333-334. 
16 MATTOSO, José. Op. Cit., 2000, p. 465; 
17 Ibidem, p. 469; 
 
121 
 
 
Ao longo dos séculos se constrói uma origem baseada na sacralidade régia e 
virtuosidade de Afonso Henriques: “A nação precisava do mito que aquela tradição 
transmitia para se rever como protegida por Deus através da proteção que Ele concedera 
ao seu primeiro rei”. 18 Esta imagem transmitida pelos cônegos de Santa Cruz de 
Coimbra levou um tempo para ser tratada como a única, deixando as outras esquecidas. 
Parece ser no momento em que as funções de cronista-mor são entregues aos monges de 
Alcobaça, no início do século XVII, que a imagem “clerical de Afonso Henriques se 
impusesse como o único e verdadeiro e apagasse o que os outros grupos sociais dele 
tinham traçado quatro séculos antes”.19 
Sendo assim, a expansão da Cristandade levada a cabo pelo monarca foi 
intensamente propagada por estes escritos feitos em âmbito crúzio. A intermediação do 
arcebispo de Braga, João Peculiar, em suas idas a Roma, também foi um aspecto 
importante: “Aquele que seria o personagem mais carismático da luta pelo 
reconhecimento de Afonso Henriques como rei, a nível diplomático, ascendeu ao 
arcebispado de Braga, em 1137, e parece ter começado, desde logo cedo, a procurar 
assessorar o futuro monarca nas suas tarefas [...]”20 
A claves regni 21 buscava a transformação de Afonso em miles petri. De acordo 
com Maria João Branco “a oferta de enfeudamento e a intenção de integrar o rol dos 
reinos censitários da Santa Sé são argumentos a favor do caráter do rei e da finalidade do 
exercício da sua autoridade”.22 Ou seja, o texto da claves “é obra de pessoas que não só 
sabiam o que estavam fazendo, como estavam a fazer de forma deliberada e 
programada”.23 Para os escritos crúzios produzidos na segunda metade do século XII a 
figura do rei é a do “vitorioso rei cristão, ornado de piedade e sedento de justiça e 
sangue”.24 
 Os textos de Santa Cruz de Coimbra “projetam, em uníssono, uma imagem quase 
idêntica de um rei que em tudo se assemelha ao protótipo ideal”. 25 Um monarca que tem 
honra e busca, constantemente, reproduzi-la. Um rei que combate o outro. Um rei que 
 
18 Ibidem, p .469; 
19 Ibidem, pp.469-470; 
20 BRANCO, Maria João. Op.Cit., 2009, p.146. 
21 Carta datada de 13 de Dezembro de 1143 que busca a legitimação de Afonso Henriques como rei 
solicitando a Santa Sé a vassalidade do infante perante o papado; 
22 BRANCO, Maria João. Op.Cit., 2009, p.147; 
23 Ibidem, p.147; 
24 Ibidem, p.147; 
25 Ibidem, p.147; 
 
122 
 
 
expande a Cristandade e protege os cristãos guerreando contra o Islã e praticando o que 
a Igreja chama de atos piedosos. O processo de edificação da realeza se assenta na “ideia 
de um poder legitimadopela graça de Deus e [...] o entendimento de que o poder régio é 
uma incumbência divina faz parte da idealização da monarquia. A Igreja mediatizava o 
poder concedido aos monarcas por Deus”.26 
A literatura feita em ambiente crúzio apresenta a monarquia portucalense da 
maneira que foi citada acima. Porém, o reconhecimento de Afonso Henriques como rei 
só se deu com a bula Manifestum Probatum, em 1179, e a produção literária de Santa 
Cruz de Coimbra a partir da segunda metade do século XII fica imbuída da propagação 
de uma imagem que se adeque aos interesses em questão. A importância das ordens 
religiosas na formação de Portugal já foi bem trabalhada por José Mattoso em Cluny, 
crúzios e cistercienses na formação de Portugal.27 A colaboração destas instituições se 
dá no processo de legitimação e elaboração de uma imagem monárquica. Além da 
colonização realizada ao sul peninsular conforme se avançava territorialmente as 
conquistas diante dos muçulmanos. A chegada de Cluny em terras hispânicas, sendo 
ressignificada em contexto local, acabou perdendo força, posteriormente, e a presença de 
Cister se tornou efetiva. No entanto, o recuo de Cluny não é condição sine qua non para 
a presença de Citeaux. Elas se dão em paralelo e de formas distintas. 
 Os cistercienses tiveram um papel importante nas regiões de marca, conforme 
avançava a fronteira do reino português, além da promoção do caráter santo dos conflitos 
travados frente ao Islã. “A subida de Afonso Henriques ao trono deu ensejo a que os 
monges cistercienses interviessem nos assuntos portucalenses e se expandissem por terras 
lusitanas”. 28 Afonso Henriques é o rei peninsular que combate o “outro” muçulmano e 
assume este papel que está presente na retórica da Guerra Santa Hispânica como vimos 
anteriormente. 
A autoridade do monarca se exerce fazendo guerra e proporcionando ganhos aos 
seus companheiros de batalha. A sustentação desses instrumentos reforçam sua figura e 
as lutas contra os muçulmanos não eram mais proporcionada pelos cavaleiros 
borgonheses, mas pela organização militar-religiosa dos monges de Cister. Um dos 
 
26 FREITAS, Judite Gonçalves Freitas. O Estado em Portugal (séculos XII-XVI). Modernidades Medievais. 
Alêtheia Editores, Lisboa, 2011, p.16. 
27 MATTOSO, José. Cluny, crúzios e cistercienses na formação de Portugal. In: in Actas do Congresso 
Histórico de Guimarães e sua Colegiada, Vol. V, Guimarães, 1982, pp. 288-294 
28 GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, p.45; 
 
123 
 
 
personagens proeminentes de Cister era Bernardo de Claraval, que também foi 
propagandista da ordem dos Templários. Bernardo e João Peculiar, arcebispo de Braga, 
farão intensas movimentações políticas com o objetivo de trazer a cruzada em auxílio de 
Afonso Henriques e promovê-lo perante o papado. De acordo com Sidinei Galli, no 
condado portucalense “as condições favoreceram o florescimento de Citeaux. Proteger os 
reinos cristãos contra o perigo mouro, defender as propriedades conquistadas nas guerras 
contínuas e ampliar o limes portugalense implicava necessidades militares”. 29 
Constantes doações eram feitas a Cister para arroteamento, povoamento e 
proteção das áreas limites. As ligações feitas pelos mosteiros fundados aos cistercienses 
podem ser vistas em concessões de forais, como a que promoveu a construção do mosteiro 
de Alcobaça, fundado em 1153. Esta fundação foi feita em “carta de doação e couto de 
8 de abril, concedida a São Bernardo, abade do Mosteiro de Claraval, a qual estabelecia 
que no território coutado fosse fundado um mosteiro cisterciense no lugar de Alcobaça, 
que promovesse o povoamento e o arroteamento das terras conquistadas aos 
muçulmanos.”30 Bernardo de Claraval “em nome da ordem de Cister, recebe de D. 
Afonso Henriques o foral de doação que dá origem ao mosteiro de Alcobaça, após o 
combate aos mouros em Santarém”. Conforme análise do códice Alcobacense feitas por 
Leite de Vasconcelos, o rei “em 1153, concedeu ao abade Bernardo de Clairvaux e aos 
seus monges cistercienses uma hereditas que possuía o locus de Alcobaça e no qual o 
mosteiro se edificou em honra da Virgem”. 
Os privilégios concedidos por Afonso aos cistercienses podem ser percebidos, por 
exemplo, através “da isenção do pagamento de portagem em todo o reino”, através de 
uma carta de couto - Vobis abati alcobatiae et monasterio vestro - . 31 A presença cada 
vez mais intensa de Cister a partir da década de quarenta do século XII 32 e o 
 
29 Ibidem, p.47; 
30 "Documentos Medievais Portugueses". Lisboa : Academia Portuguesa de História, 1958- . 2 vol.; 38 cm. 
v. 1, t. 1: "Documentos Régios: documentos dos Condes Portucalenses e de D. Afonso Henriques A.D. 
1095-1185. 1962; 
31 Cf. Documentos Medievais Portugueses". Lisboa : Academia Portuguesa de História, 1958-, Op.Cit. 
1962; GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, pp.62-63; "Ordens religiosas em Portugal: das origens a Trento: guia 
histórico". Dir. Bernardo de Vasconcelos e Sousa. Lisboa: Livros Horizonte, 2005. ISBN 972-24-1433-X. 
p. 102-105; 
32 Em Portugal existiram muitos agrupamentos erimíticos que acabaram se associando a Citeaux e estas 
relações acabaram confundindo quando da chegada de Cister e sua expansão. No entanto, de acordo com a 
perspectiva de Sinei Galli, se apoiando em Maur Cocheril (Les Abbayes Cistercienes Portugaises du XII 
Siècle), o ano de 1144 parece ser o mais provável. A base do argumento é “a clausula de doação de Afonso 
Henriques ao mosteiro de Tarouca, em 1144, gravada no eremitério de Santa Eulália – secundum ordinem 
 
 
124 
 
 
fortalecimento de Santa Cruz de Coimbra, coetaneamente, dá as bases do reino em sua 
promoção, em seu papel de combate e como pontes de ligação com o papado. A doutrina 
cisterciense da guerra santa encontra na associação com o reino português um campo 
frutífero aos interesses de ambos. De acordo com José Mattoso “os monges brancos estão 
constantemente presentes na orientação da cavalaria ao serviço da cristandade”. 33 
Dentre os cistercienses, Bernardo de Claraval foi um dos grandes propagandistas 
da cruzada convocada em 1146 e do combate como uma causa pia. Teorizador da 
violência, o abade acabou concebendo uma nova maneira de atuação da cavalaria na 
escrita do De Laude Novae Militae, elaborando a imagem ideal da cavalaria cristã e 
transformando os assassinatos dos inimigos da cruz 34 em causas divinas. Segundo 
Bernardo, “o cristão se glorifica na morte35 de um pagão”36 pois “em vista disso, o justo 
se alegrará vendo a vingança ser executada nele”. As palavras desta figura controversa 
trazem ao combate travado contra o muçulmano uma causa justa de vingança. Para 
Bernardo de Claraval se o cristão mata “ele o faz a Jesus Cristo, porque [...] não leva em 
vão a espada ao lado, porque ele é ministro de Deus para vingar-se do mal e defender a 
virtude do bom”. 37 
A caracterização do homicídio como malicídio é outra das estratégias discursivas 
deste propagandista da guerra santa. A ideia de movimentar os leigos dentro de suas 
funções para o combate por Cristo é um das estratégias presentes no discurso do 
cisterciense de Claraval. O discurso de Bernardo tem um lugar, como todo discurso de 
autoridade. Bernardo é um abade compromissado na pregação da cruzada. Discursa de 
 
cisterciensem deo servientibus. Esta é a primeira vez que Citeaux é mencionada em Portugal. Alguns outros 
autores apontam datas distintas. Fortunato de Almeida (História da Igreja em Portugal) aponta 1120, 
Antônio Saraiva (História da Cultura em Portugal) sustenta que a fundação de Tarouca ocorreu em 1139. 
Embora haja divergências, as primeiras décadas do século XII vê a chegada cisterciense na região. 
33 MATTOSO, José. Op.Cit., 1982, p.296; 
34 Inimicos Crucis. In: S. Bernardus Claraevallensis. Liber Ad Milites Templi de Laude Novae Militae 
(A.D. MCXXIX). Disponível em: https://www.thelatinlibrary.com/bernardclairvaux.shtml. Acessadoem 
11/04/2021; 
35 Aqui fica um questionamento sobre o termo “morte”. A morte tratada por Bernardo parece ser aquela 
causada em combate. No entanto, uma possibilidade também pode se referir à conversão de um pagão, pois 
a conversão pagã acarretaria no fim do paganismo e sua, sequente, morte. No entanto, ainda no elogio feito 
aos templários o abade de Claraval coloca da seguinte maneira: “é verdade que não se deve exterminar os 
pagãos se houver qualquer outro meio de impedir os maus tratos e opressão violenta exercida contra os 
cristãos.” A frase segue ambígua, mas partimos do pressuposto que a morte referida por Bernardo é aquela 
exercida pela violência que ele tanto prega como piedade. Pois segundo o mesmo Bernardo “é muito mais 
justo combate-los agora que não sofrer sempre a dominação dos pecadores sobre a cabeça dos justos para 
que os justos não cometam a iniquidade com eles”. A retórica é de guerra e de desproblematizar o uso da 
violência por parte dos cristãos. 
36 Bernardo de Claraval. Elogio de la nueva milicia templaria. Madrid: Siruela, 2005 
37 Ibidem; 
https://www.thelatinlibrary.com/bernardclairvaux.shtml
 
125 
 
 
sua posição privilegiada de mentor de diversas figuras proeminentes (inclusive o papa), 
para imbuir os espíritos cristãos da doutrina de um monasticismo renovado e fala para 
uma Cristandade heterogênea visando incluir os guerreiros, em sua condição de leigos 
portadores de armas, na proteção e expansão do Cristianismo frente aos seus inimigos 
construídos. 
Porém, Bernardo de Claraval atende ao mesmo tempo às demandas da 
espiritualidade leiga. O entendimento deste aspecto é salutar, inclusive, para a 
interpretação de outros movimentos, como as reforma, pois conforme afirma Leandro 
Rust: “religião e sociedade penetravam-se mutuamente de maneira capilar”. 38 
Leandro Duarte Rust em seu livro Colunas de São Pedro: a política papal na 
Idade Média Central,39 analisa as reformas do século XI e afirma que “longe de ter 
constituído uma matéria essencialmente clerical, as reformas medievais foram realidades 
de traçados anônimos, móveis e multifacetados; arranjos de práticas disseminadas por 
toda a sociedade senhorial [...]”.40 Partindo do raciocínio de Rust, podemos colocar que 
o discurso de Bernardo de Claraval também pode ser visto desta forma. Antes de enxergar 
sua teorização da violência como uma pedra fixa do eclesiástico, é preciso vislumbrar 
todo esse movimento como uma lógica que alimenta e, ao mesmo tempo, é alimentada 
pelo social. 
As ideias de Bernardo não penetram de cima para baixo no interior das pessoas. 
Estas pessoas significam e reproduzem esse ideal Bernaditino, muitas vezes, fora dos 
próprios planos do abade.41 Porém, o ideal assumido pela posição que o cisterciense 
ocupa permite ao discurso deste, inserido numa lógica de autoridade, a construção da sua 
verdade. Verdade que se impõe na negação ao acesso de outros ao discurso. Esta 
interação, promovida pelo discurso, cria e proporciona a capacidade de reconhecimento 
entre aqueles que se identificam como “iguais” e, ao mesmo tempo, promove o 
reconhecimento das diferenças. 
Analisar os elementos de dispersão e de regularidade é trabalhar, conforme 
Foucault aborda, de maneira arqueológica. No entanto, análise dos discursos não deve se 
 
38 VIOLANTE, Cinzio. Chiesa Feudale e Riforme in Occidente: introduzione a un tema storiografico. 
Spoleto. 1999, p.45; 
39 RUST, Leandro Duarte. Colunas de São Pedro: a Política Papal na Idade Média Central. São Paulo: 
Annablume, 2011. 
40 Ibidem, p.150; 
41 Um exemplo é a crítica que Bernardo de Claraval faz aos pogroms realizados contra os judeus; 
 
126 
 
 
fechar no próprio discurso, mas ao contrário, compreender o acontecimento não 
discursivo. Desta maneira, busca-se estabelecer uma relação com acontecimentos de 
outras ordens sejam elas sociais, políticas, econômicas e técnicas. 
A compreensão do que está ao redor do discurso e o entendimento deste “em 
torno” nos permite a visualização da forma como o poder tem a capacidade de exclusão, 
inclusão, propagação, significação e promoção de sua doutrina de controle social. 
Controle efetuado pela capacidade de dominação do discurso, que diferentemente do fato, 
promove uma imagem distinta deste. A imagem promovida se reproduz e é aceita como 
verdade. Afinal de contas, a violência cultural está presente, também, no consenso que, 
ignorando as tensões sociais promovidas por desigualdades de acesso às instâncias 
abaastadas, se corporificam as vontades das camadas privilegiadas da sociedade. 
Inclusive, em muitas ideias transmitidas pelas formações discursivas. Dentre elas, a 
própria concepção de violência. 
 Fundador da abadia de Claraval, Bernardo exerce papel fundamental em Cister e 
na Cristandade neste momento. “De um simples monge, transformou-se num conselheiro 
e censor de prelados e príncipes; árbitros dos concílios, guardião da doutrina, artífice dos 
papas e oráculo de toda a Igreja. Será o mesmo Bernardo que, junto ao papa, advoga a 
independência de Portugal”.42 
O papel do abade cisterciense nas ligações pelo reconhecimento de Afonso 
Henriques é notável. As vinculações entre Cister, o rei e o mosteiro de Santa Cruz tecem 
uma teia importante para compreendermos, por exemplo, como foi necessário a criação 
de uma memória de todos estes elementos em movimento. Esta memória esteve a cargo 
dos eclesiásticos aliados ao futuro rei portucalense. Memória que está no bojo da literatura 
crúzia,43 que vamos nos ater para perceber a produção da crônica da conquista de Lisboa. 
“O ar de grandeza é um dos atributos da figura de D.Afonso Henriques que mais é 
 
42 GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, pp.52-53; 
43 Foi um instrumento legitimador importante. Porém, há outros locais de produção memorialística acerca 
da monarquia. Aires de Nascimento ao analisar a gesta da conquista de Santarém aponta que a Sé de 
Coimbra também tinha interesse em celebrar as ações do rei, visto os embates que esta Sé tinha em relação 
aos cônegos Regrantes de Santa Cruz de Coimbra. Para maiores detalhes ver: NASCIMENTO, Aires. O 
Júbilo da Vitória: Celebração da Tomada de Santarém aos Mouros (A.D.1147). In: Actes del X Congrés 
Internacional de l'Associació Hispánica de Literatura Medieval / edició a cura de Rafael Alemany, Josep 
Lluis Martos i Josep Miquel Manzanaro. - Alacant : Institut Interuniversitari de Filologia Valenciana, 2005. 
 
127 
 
 
retomado pela historiografia portuguesa , o que, de certa forma, remonta a cronística 
medieval sobre esse rei”.44 
Conforme Kátia Michelan, podemos falar de uma espécie de trilogia apologética 
do rei que se atrela a Santa Cruz de Coimbra. Estas produções são o Annalis Domini 
Alfonsi Portugallensium Regis, a Vita Sancti Theotonii e De Expugnatione Scallabis. No 
entanto, outras produções podem ser deste ambiente e ainda precisam de investigação. O 
que se sabe é que esta tríade foi produzida na segunda metade do século XII e mostram 
Afonso de maneira similar: um rei cristão honrado e constantemente auxiliado por Deus 
para seus feitos. 
 
3.2 Vassalo da Sé Romana: o rei, o papa e as alianças 
 
 
Em 1143 o legado apostólico Guido de Vico esteve na Hispânia e participou do 
tratado de Zamora. 45 Neste mesmo tempo recebeu de Afonso Henriques uma carta 
direcionada ao papa Inocêncio. 
Conhecendo que as chaves do reino dos céus foram concedidas por 
Nosso Senhor Jesus Cristo ao Bem-Aventurado Pedro [...] Eu, Afonso, 
rei portugalense pela graça de Deus, por mão do senhor Guido [...] 
Legado da Sé Apostólica, fiz homenagem ao senhor e meu pai o papa 
[Inocêncio]. Submeto minha terra ao Bem-Aventurado Pedro e a Santa 
Igreja Romana, sob um censo de quatro onças de ouro.46 
O trecho citado é parte de uma das traduções da Claves Regni na qual Afonso 
Henriques, em 1143, oferece seu reino e sua pessoa a Sé de Roma. No encerramento da 
carta o monarcacita que “como cavaleiro que sou do Bem-Aventurado Pedro e do 
Pontífice Romano, [...] tanto em mim próprio quanto na minha terra, ou nas coisas que 
concernem à dignidade e à honra da minha terra, tenha a defesa e a consolação da Sé 
Apostólica [...]”.47 O documento tem como testemunhas João Peculiar, arcebispo de 
Braga e Pedro, bispo do Porto. Ambos são personagens de relevo na crônica da conquista 
 
44 MICHELAN, Kátia Brasilino. Um rei em três versões: a construção da história de D. Afonso Henriques 
pelos cronistas medievais portugueses. 1ª Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p.86; 
45 Tratado assinado nos dias 4 e 5 de outubro de 1143 onde se buscava conter as tensões entre Afonso 
Henriques e Afonso VII. O legado Guido foi testemunha do acordo representando o papa. No presente 
tratado Afonso VII reconhecia Afonso como rei, mas o conde portucalense ainda seria vassalo do soberano 
de Leão e Castela, pois ficou ligado à este através de Astorga. Além disso, Afonso VII era o imperador da 
Hispânia; 
46 MONUMENTA HENRICINA, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do 
Infante D. Henrique, vol. I, Coimbra, Com. Executiva das Comem. do V Cent. da Morte do Inf. D. 
Henrique, 1960, pp. 1 e 2; 
47 Ibidem; 
 
128 
 
 
de Lisboa. Qual o motivo da aliança com a Sé Apostólica neste momento? Antes de nos 
atermos ao tema, demarcamos que havia um interesse recíproco do papado na busca de 
aliados. Principalmente, ao estar situado num ambiente de intensos conflitos, onde o trono 
de Pedro se via constantemente cercado por interesses das aristocracias locais. Dito isto, 
ter como aliado o papa, naquele momento, era uma fonte de legitimação considerável 
visto o fortalecimento do poder pontifício e sua capacidade de lidimar forças de âmbito 
regional. 
O fortalecimento tem relação com as reformas iniciadas no século XI e que se 
chama genericamente de Reforma Gregoriana? De certa maneira sim. Porém, o 
fortalecimento 48 não parece uma imposição estritamente vertical de um clero, 
supostamente purificado, cansados dos desmandos leigos e da corrupção dos simoníacos, 
que se coloca como o bastião da salvação da Igreja. Leandro Duarte Rust em seu livro A 
Reforma Papal (1050-1150) resume a tradicional visão deste período: 
Durante os séculos XI e XII o papado tornou-se o centro difusor de uma 
nova atitude perante o mundo. A novidade estava no objetivo assumido: 
corrigir, de modo rigoroso e integral, os comportamentos que 
diariamente violavam os preceitos da religião cristã. Algo de grande 
envergadura histórica teria se passado em Roma, onde alguns homens 
do clero teriam decidido tomar as rédeas do poder e fundar um governo 
eclesiástico que regesse a sociedade, já que sua capacidade de 
influenciar os reis e instruir os nobres encontrava-se reduzida. Era 
preciso regê-los, corrigi-los, limitar-lhes o raio de ação, fazê-los 
obedecer diretamente à voz eclesiástica, sem intermediários ou 
barganhas.49 
Talvez grande parte da historiografia50 ainda beba, de certa forma, desta visão, 
inteiramente ou em partes. As armadilhas da documentação legada pela parcela 
supostamente reformista e vencedora é responsável pelos tropeços de alguns historiadores 
que entram na lógica de quem legou esta memória. A imagem de Afonso Henriques 
trilhou caminho semelhante, visto que a mais perpetuada ainda segue sendo a do rei 
honrado, fundador da “nação portuguesa” e defensor da Igreja. Portanto, a visão clássica 
é que contra um clero corrupto, simoníaco e mergulhado nas coisas mundanas surge uma 
ala guardiã de um Cristianismo puro, que via a função clerical bem delineada, livre de 
 
48 Chamado comumente de centralismo papal; 
49 RUST, Leandro Duarte. A Reforma Papal (1050-1150): Trajetórias e Críticas de uma História. Mato 
Grosso. EdUFMT, 2013, p.19; 
50Cf. FLICHE, Augustin. La Réforme Grégorienne: la formation des idées grégoriennes. Louvain: 
Spicilegium Sacrum Lovaniense, 1924; BARROS, José D’ Assunção. Papas, imperadores e hereges na 
Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012; ARNALDI, Girolamo. Igreja e Papado In: LE GOFF, Jacques; 
SCHMITT, Jean-Claude (eds.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC 567-589; 
 
129 
 
 
corrupção, intolerante quanto à simonia e ao nicolaísmo.51 Nesta concepção, Cluny foi a 
ponta de lança da moralização da cúpula apostólica. 
Esta visão tradicional exclui um ponto crucial: estas duas parcelas antagônicas se 
consideravam inseridas no que entendiam por ortodoxia. Ou seja, de acordo com cada 
segmento, a outra parte era considerada corrupta, simoníaca e desviante. A imputação de 
um crime deste porte era uma das formas de deslegitimação conforme a contenda. Logo, 
o discurso dos gregorianos acabou se difundindo e se mantendo com o tempo e criando 
um antes e depois, que a historiografia acabou reproduzindo com a criação de termos 
como Reforma Gregoriana. O discurso do “antes” que os gregorianos estabelecem tem 
relação com moralidade. Porém, existe um “antes” que observamos por um aspecto mais 
objetivo e ligado às buscas por estabelecimentos senhoriais na Península Itálica. 
Qual seria o aspecto objetivo do “antes e depois” referido acima? Primeiro, um 
desligamento do papado da órbita dos poderes das aristocracias da região do Lácio. A 
busca na desvinculação das famílias locais promove uma reconfiguração do alto escalão 
clerical que serviria de suporte e apoio ao papado “estrangeiro” que se estabeleceria. As 
questões envolviam acerca de quem girava em torno de quais alianças políticas. Alianças 
que tinham suas próprias convicções de estarem mantendo a pureza da Igreja e 
defendendo-a dos maus clérigos, além da manutenção de privilégios que compunha uma 
rede de relações envolvidas nos arranjos peninsulares. A liberdade da Igreja tão visada 
pelos gregorianos envolvia um fator que, muitas vezes, é obliterado das análises: o 
domínio territorial e a capacidade de exercer um direito latente numa sociedade 
mergulhada em relações feudais.52 Algumas leituras criam uma característica antifeudal 
 
51 Tal clero vem de uma tradição fortemente marcada pelo monasticismo cluniacense; 
52 A lógica senhorial que se dá no fenômeno do encelulamento ou incastellamento. Esses fenômenos foram 
trabalhados por vários historiadores, dos quais destacamos Robert Fossier, Jeróme Baschet, Georges Duby 
e Jacques Le Goff. As células principais deste fenômeno, segundo Le Goff, são o castelo, o senhorio, a 
paróquia e a aldeia.) Na concepção de Baschet, o sistema senhorial que se estabelece demonstra mesmo ser 
uma ordem social notavelmente eficaz. Articulado à estruturação da rede paroquial e a formação das 
comunidades aldeãs, ele se beneficia de um enquadramento tão estrito dos dominados que o chamamos 
“encelulamento”, e o controle assim exercido sobre os produtores pode ser medido pelo excepcional 
crescimento dos séculos XI e XII. Este controle se trata do dominium, exercido pelo dominus. Com a 
fragmentação, o dominus deixa de ser uma nomenclatura destinada apenas ao rei, bispo ou Deus e passa a 
ser usada pelo senhor local, que agora detém tal potestas. O dominium é a relação de dominação exercida 
sobre o homem e as terras. Tal dominação é legitimada pela Igreja. Apesar da fragmentação de poderes 
locais, a unidade existe a partir do universalismo cristão. Portanto, não podemos desvincular essas relações 
do Cristianismo. Para Baschet, a rede paroquial é um fundamento indispensável para a afirmação do poder 
sacerdotal e uma das engrenagens principais do encelulamento. Para Le goff, o senhorio designa o território 
dominado pelo castelo e engloba as terras e os camponeses. Ou seja, o senhorio compreende, portanto, as 
terras, os homens, as rendas, ao mesmo tempo que a exploração das terras e a produção dos camponeses, e 
também um conjunto de direitos que o senhor exerce em virtude de seu direito sobre o corpo da nobreza 
 
 
130 
 
 
da chamadaReforma. Pelo contrário, é necessário a compreensão dos variados elementos 
que compunham a Cristandade do período, além do exercício de poderes e a busca em 
mantê-los dentro dos quadros circunstanciais. 
Sendo assim, os confrontos pela moralização do clero, pelo domínio do trono 
pontifício e pela primazia no seio da Cristandade movimentou os séculos XI, XII e XIII. 
A guinada “estrangeira” se dá quando Henrique III intervém nas lutas internas das 
aristocracias romanas e impõe Suidger de Bamber, que se torna Clemente II (1046-1047). 
Com isso, inicia-se uma era de papas vindos de fora do Lácio. A interferência do 
imperador não significou, naquele momento, uma transferência do papado para a órbita 
do império. 
Para José Orlandis, os papas instituídos por Henrique “prepararam o caminho para 
a Reforma Gregoriana”.53 De acordo com Orlandis, é com Leão IX (1049-1054) que 
ocorre um “programa de saneamento do clero, depondo os prelados simoníacos e 
impondo a lei do celibato”.54 Não questionamos a importância destes personagens, e sim 
a maneira como se construiu a ideia de um programa revolucionário por parte dos 
gregorianos. Esse clero “saneador” do qual trata Orlandis também pode ser visto por outro 
prisma: uma alteração nas relações de poderes locais. Ou seja, a incorporação de figuras 
de fora da região modifica uma lógica local. O centro busca descentralização. A partir de 
Leão IX houve “uma necessidade de projetar suas ações para fora do Lácio”.55 Para isso, 
“proeminentes postos de poder eclesiástico eram reservados para homens vindos de 
fora”. 56 Papas antisimoníacos já podem ser percebidos anteriormente 57 e não é 
exclusividade desta política de meados do XI. A diferença do período é o predomínio de 
uma cúpula papal vinda do exterior após décadas de um domínio exercido por forças 
 
feudal. Tais relações de dominium (termo utilizado por Alain Guerreau) e a violência das pilhagens internas 
são responsáveis por movimentos como os da “paz de Deus”. Cf. BASCHET, Jérome. A Civilização 
Feudal: do ano mil à colonização da América. Tradução de Marcelo Rede. Rio de Janeiro: Globo. 2006; 
DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 
1982; FOSSIER, Robert. In: Schmitt Jean-Claude. Robert Fossier, Enfance de l'Europe (Xe-XIIe siècle. 
Aspects économiques et sociaux, I. : L'homme et son espace ; II : Structures et problèmes. In: Annales. 
Économies, Sociétés, Civilisations. 38ᵉ année, N. 1, 1983; LE GOFF, Jacques. As Raízes Medievais da 
Europa. Petrópolis/RJ: Vozes, 2007. 
53 ORLANDIS, José. El Pontificado Romano em la Historia. Madrid: Palabra, 1999; p.116; 
54 Ibidem, p.116; 
55 RUST, Leandro. Op.Cit., 2011, p. 168; 
56 Ibidem, p.167; 
57 Cf. BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, p.290; “A preocupação de reformar os mosteiros e a 
Igreja secular, desde o bispo com seus cônegos até o padre da paróquia rural, era já bastante viva nos tempos 
carolíngios”. O historiador francês tece uma crítica aos “velhos manuais” sobre a ideia de uma Igreja 
preocupada com a simonia, concubinato e corrupções do clero, principalmente, com as reformas do século 
XI; 
 
131 
 
 
locais. O discurso de saneamento com estes “reformadores” é parte da propaganda 
gregoriana a posteriori. 
Os simoníacos, inclusive, estavam dos dois lados, e os que bradavam contra a 
simonia também. A moralização e a exigência de uma atitude “condizente” com as 
posições dos prelados vinham de todos os partidos em disputa. A questão gira em torno 
de qual poder submete o outro. O poder espiritual sobre o temporal ou o temporal sobre 
o espiritual? 58A divergência colocou alas eclesiásticas em confronto e o ápice deste 
embate foi a dupla excomunhão: Gregório VII excomunga Henrique IV e o imperador 
repete o gesto, destinando ao papa. Embora Gregório VII tenha sido deposto 
posteriormente e terminado seus dias no exílio, geralmente, há a ideia que suas doutrinas 
venceram. 59 As reformas da Igreja avançaram e o papado buscou alianças fora da 
Península Itálica para a sua proteção, utilizando forças atuantes na defesa do herdeiro de 
Pedro. 
Neste sentido, os legados papais tiveram uma importância considerável na política 
pontifícia. Eram estes personagens que se moviam pela Cristandade Latina com o intuito 
de promover alianças e transmitir a voz papal nas contendas regionais. Além do reforço 
na manutenção do contato pontifício com os reis, príncipes e distintos poderes no Oeste 
cristão. Conforme Orlandis afirma “os legados percorreram o Ocidente reunindo sínodos 
e concílios onde se impuseram os princípios reformistas”.60 A questão do “princípio 
reformista” nessas viagens, como característica principal, precisa ser conectada com uma 
outra necessidade objetiva: “a consolidação de uma correlação de forças pautadas na 
identificação do bispo romano com círculos senhoriais exteriores”. Um dos exemplos é a 
luta pela imposição do rito romano na Península Ibérica e que encontrou resistência das 
populações locais, ambientadas no rito moçárabe.61 Os reis hispânicos reconheciam a 
primazia papal, inclusive, como forma de legitimação própria. Eles reconheciam o poder 
ao qual recorriam para seu fortalecimento particular. Os acordos são multilaterais e o 
reconhecimento alimenta o fortalecimento do outro, e vice-versa. Para Leandro Rust 
 
58 O que não impede que, em muitos momentos, o papa reconheça que em certos lugares a dominação 
secular se sobrepunha ao sagrado e busque arranjos condizentes com o contexto político; 
59 Cf. BARTHÉLEMY, Dominique. A cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII; Tradução: 
Néri de Barros Almeida e Carolina Gual da Silva. Campinas: Editora da Unicamp, 2010; FLORI, Jean. 
Guerra Santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão / Jean Flori; tradução: Ivone Benedetti; 
Campinas: Editora da Unicamp, 2013; ORLANDIS, José. El Pontificado Romano em la Historia. Madrid: 
Palabra, 1999; 
60 ORLANDIS, José. Op.Cit.,p.122; 
61 O legado Hugo Cândido foi um dos responsáveis pela implantação do ritual romano em Aragão. “Entre 
1077 e 1080, sendo Gregório VII o papa e com o apoio de Afonso VI, a liturgia romana, pese a resistência 
popular, foi introduzida em Castela e Leão”. Cf. ORLANDIS, José. Ibidem; 
 
132 
 
 
em meados do século XI, o bispo de Roma passou a manter laços 
clientelares com interesses que existiam do outro lado dos Alpes. Isso 
aconteceu precisamente na época em que tais relações eram cada vez 
mais percebidas não somente como laços de prestígio, mas como 
garantias suficientes para o exercício de certos direitos feudais e a 
conservação da estabilidade patrimonial dos poderes senhoriais.62 
Guido de Vico foi um legado que esteve na Península Ibérica e reconheceu os 
acordos, sendo a voz do papa, estabelecidos entre Afonso Henriques e seu primo Afonso 
VII. “O resultado deste colóquio foi o reconhecimento do título de rei pelo imperador 
Afonso VII a D. Afonso Henriques e a permanência da vassalagem do soberano 
português, ao receber o senhorio de Astorga”.63 A presença do papa, através do legado, 
fortalecia as políticas assumidas por Afonso I desde sua assunção para o comando do 
condado portucalense. Para Leandro Rust “aos olhos dos próprios contemporâneos, os 
legados continham o pontífice em si”.64 A presença da voz pontifícia 65 em Zamora 
reforçou o poder afonsino na Hispânia. Porém, a resposta da Claves Regni dada por Lúcio 
II (1144- 1145) refere-se a Afonso como dux portugalensis, e não como rex. 
Lúcio, Bispo, servo dos servos de Deus. Ao dilecto filho em Cristo, 
Afonso, ilustre duque, deseja saúde [...] dedicado à expugnação dos 
pagãos e ocupado com os muitos negócios seculares não podias visitar 
os limiares dos Apóstolos, por mão do nosso dilecto filho Guido, 
Cardeal diácono, então legado da Sede Apostólica nessas partes, 
fizestes homenagem com louvável devoção ao nosso predecessor de 
feliz memória,o Papa Inocêncio, ofereceste a terra que Deus te confiou 
ao bem-aventurado Pedro e humildemente entregaste a tua pessoa e a 
tua própria terra ao patrocínio de Pedro, príncipe dos Apóstolos.66 
Inúmeras possibilidades podem ser levantadas sobre o motivo do papa não ter se 
referido a Afonso Henriques como rei naquele momento e apontamos alguns 
anteriormente. 67 A manutenção de boas relações com Afonso VII também seria uma 
explicação para não se reconhecer o condado portucalense como reino. A política de 
reconhecimento poderia ser recebida com desagrado por Leão e Castela. 
Os príncipes normandos já tinham prestado homenagem ao papado na época de 
Nicolau II (1059-1061), demonstrando a rede de alianças que vinha se estabelecendo na 
cúria e sua expansão de cunho igualmente feudal. O papado estava descentralizado na sua 
 
62 RUST, Leandro. Op.Cit., 2011, p. 158; 
63 GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, p.34; 
64 RUST, Leandro. Op.Cit., 2011, p.190; 
65 No entanto, é preciso considerar que entre o papa e os legados nem sempre existia concordância das 
ideias. O que não impede que a presença dos legados fosse vista como a voz papal nos ambientes; 
66 Bula Devotionem Tuam. Tradução de AMARAL, Diogo Freitas. In: Em que momento se tornou Portugal 
um País Independente. In 2º Congresso Histórico de Guimarães: A política portuguesa e as suas relações 
com o exterior. Guimarães: Município de Guimarães, 1996. Vol. 2, 139-181. Disponível em 
https://www.amap.pt/p/hist-afonso-henriques-dux-que-se-fez-rei; Acessado em 14/02/2022; 
67 Ver p.103 desta dissertação; 
https://www.amap.pt/p/hist-afonso-henriques-dux-que-se-fez-rei
 
133 
 
 
região e a aliança além-Alpes era uma política de sobrevivência. As relações vassálicas 
abarcavam essa rede estabelecida pelo poder pontifício. Para Rust, no Lácio surgiu uma 
“realidade que muitos estudiosos consideram incomum para o século XI: Roma tornou-
se uma igreja privada de ancoragem senhorial, alheia às principais reservas locais de 
proteção militar e sustentação material”.68 
Em 1046 o papado sai da órbita das famílias romanas após um período de 
dominação,69 custando àquelas aristocracias um corte em sua “identificação com a igreja 
local”. 70 O “antes” e “depois” da versão gregoriana se forma com a representação de um 
papado, a partir de então, reformador. Nesta visão, os papas restaurariam a ecclesia e 
estabeleceriam a sacralidade perdida após anos de dominação secular. 71 Nada mais que 
retórica dos gregorianos. O objetivo não é a negação dos movimentos do período, que 
agitaram, de certa forma, a Cristandade Latina, mas a compreensão da complexa rede de 
interesses em torno do poder pontifício. Os conflitos na Sé Apostólica na Idade Média 
Central não se resumiram na dicotomia entre quem era a favor da reforma e um clero 
reacionário e corrupto. 
Identificando esta política papal de alianças e fortalecimentos, podemos retomar 
o caso específico de Afonso Henriques e seu círculo de apoio clerical. Primeiro, a busca 
pela primazia de Toledo sobre as outras sés da Península Ibérica criou um ambiente de 
conflitos, especialmente com a arquidiocese de Braga, restaurada em 1071. “Braga estava 
fortemente projetada pela ascensão ao condado portucalense do conde borgonhês D. 
Henrique e posteriormente por Afonso Henriques”.72 Para Maria João Branco, Afonso se 
interessava em “encontrar um metropolita cabeça da província eclesiástica que o pudesse 
apoiar e proporcionar-lhes os serviços e o prestígio de que necessitava”.73 Braga recebe 
de Afonso Henriques, inclusive, o direito de cunhagem e uma chancelaria própria. Eram 
forças internas que se alimentavam e se direcionavam para Roma, na busca de uma teia 
de relações favoráveis para todos. João Peculiar, arcebispo de Braga entre 1139 e 1175, 
é uma figura de atividades intensas em prol destas alianças: 
 
68 RUST, Leandro. Op.Cit., 2011, p.156; 
69 Período ao qual havia um controle de famílias romanas sobre a Sé Apostólica. Podemos citar a alternância 
entre Crescenzi e os Tusculanos no trono petrino. Entre 1003 e 1046 havia uma tradição de papas locais. 
Cf. RUST, Leandro Duarte. Ibidem; 
70 Ibidem, p151; 
71 Visão difundida pelos gregorianos e que grande parte da historiografia ainda utiliza, partindo das 
concepções de Augustin Fliche. Cf. FLICHE, Augustin. La Réforme Grégorienne. Louvain: Spicilegium 
S. Lovaniense, 3 vol, 1937; 
72 BRANCO, Maria João. Op.Cit., 2018, p.19; 
73 Ibidem, p.22; 
 
134 
 
 
A forma como João Peculiar, no futuro, havia de apresentar as 
reivindicações do seu rei e da sua arquidiocese junto à Santa Sé, quase 
sempre na dupla qualidade de arcebispo e emissário do rei, testemunha 
essa forma de conceber o seu papel. Na agenda das suas visitas a Roma, 
às questões eclesiásticas parecem sempre estar apensas manobras 
diplomáticas, tal como parece ser o caso das deslocações cujo 
calendário se pode quase sobrepor ao ritmo dos sucessos régios na 
guerra de reconquista.74 
A conquista de Lisboa é um destes sucessos que apresenta os esforços de Afonso 
e João Peculiar na dilatação da Cristandade diante do outro. O papa sempre via nas 
nascentes monarquias hispânicas uma possibilidade de proteção e fortalecimento, afinal 
um vassalo protege seu senhor (ou assim deveria) e os monarcas peninsulares se tornavam 
homens do papa. Portanto, no caso afonsino 
a estratégia seguida basear-se-ia muito mais na tentativa de alicerçar as 
bases para um reconhecimento pontifício na prossecução vitoriosa de 
uma luta de conquista bem sucedida, que serviria os interesses da 
monarquia nascente, porque lhe conferia uma legitimidade 
inquestionável, e serviria também os interesses do papado, que 
necessitava de afirmar a sua superioridade sobre os poderes 
temporais.75 
Portanto, esses são os elementos que também estão presentes na conquista de 
Lisboa e na sua escrita. Afonso Henriques estabelecia movimentações políticas que 
permitissem o seu reconhecimento, contando com parte de seu corpo eclesiástico como 
aliado. Estes aliados queriam, igualmente, sua desvinculação do domínio que Toledo 
pretendia como primaz da Hispânia. A busca pelo apoio papal foi uma possibilidade 
naquele momento, visto o movimento que a Sé de Roma faz para fora do Lácio. Este 
movimento era uma tentativa de fortalecimento do papa perante as forças romanas. Com 
o tempo, esta descentralização papal se transformou, no discurso gregoriano, num intenso 
combate pela recuperação da sacralidade pontifícia e da moralização do clero que 
resultaria na monarquia papal, onde o sumo pontífice vira um centro de difusão da 
reforma. No entanto, necessitamos a compreensão que estes conflitos, alianças e 
discursos da sacralização se insere na esfera das relações feudais. A lógica de aliança 
papal e afonsina, revestidas pelo sagrado, nada mais é que um dos elementos destas 
sociedades baseadas em laços senhoriais. 
 
 
 
 
 
 
74 Ibidem, p.25; 
75 Ibidem, p. 27; 
 
135 
 
 
3.3 Lisboa à vista: a violência cristã na conquista 
 
 
Após assumir o domínio do condado portucalense, ao longo dos anos 30 do século 
XII, Afonso Henriques se lança em campanhas de expansão e assume seu papel de rei 
conquistador para a Cristandade. Não só assume como faz conhecer suas campanhas. A 
expansão das fronteiras cristãs é algo que se quis propagandear. A política na busca por 
reconhecimento de seu poder fez o movimento expansionista estabelecer associações 
destas campanhas com elementos em voga na Cristandade de então. Quais elementos? Os 
que trabalhamos até aqui: guerra santa, guerra santa hispânica e cruzadas. Fenômenos que 
utilizam da violência em sua reprodução. 
Em 1146, o papa Eugênio III chamou os guerreiros cristãos às armas novamente. 
O motivo? Edessa havia sido conquistada pelos muçulmanos. A comoção desta ocasião 
movimentou um grande número de combatentes que se colocou em marcha. Assim como 
em 1096, houve uma divisãoem distintos contingentes, que partiram por caminhos 
diferentes. Um dos grupos, formado por homens do Norte, sai de Dartmouth, conforme 
nos relata a crônica De Expugnatione Lyxbonensi: “No porto de Dartmouth reuniram-se, 
pois, uns cento e sessenta e quatro navios com homens de diversas nacionalidades, 
costumes e línguas”. 76A crônica é assinada por R. e muito se discutiu e ainda se discute 
sobre a autoria deste relato. Ainda é aceito que o assinante é Raul, cruzado anglo-
normando, ligado ao ciclo dos Glanville,77 visto sua maior proximidade e afeição a 
Hervey de Glanville, um cruzado encarregado pelos homens de Norfolk. 78 A tese de R. 
como Raul é de H. V. Livermore79 que acaba sendo corroborada por Maria João Branco 
e outros historiadores. 80 
Livermore aponta que R. é o mesmo que doa, em 1148, ao mosteiro de Santa Cruz 
de Coimbra, suas possessões adquiridas após ter participado da conquista da cidade de 
Lisboa no ano anterior. Segundo esta doação, logo em seu início, há a apresentação do 
doador como “Eu, Raul, sacerdote, juntamente com meus companheiros, ao tomar parte 
 
76 A Conquista de Lisboa aos mouros. Relato de um cruzado, Ed. Aires A. Nascimento, 2ª ed., Lisboa, Nova 
Vega, 3ª Edição, 2018, p.57 
77 Em nota explicativa da tradução da crônica Aires Nascimento afirma que o nome dos Glanville provém 
de uma povoação na Normandia: “Relacionado com esta família parece estar o presumível autor da crônica, 
cujo pai seria homónimo do comandante do contingente inglês dos cruzados”. In: Ibidem, p.155. Aires 
Nascimento se baseia no estudo de Charles W. David. Cf. De Expugnatione Lyxbonensi, The conquest of 
Lisbon, ed. Charles Wendell David, Columbia University Press, N. Y., 1936. 
78 Cf. A Conquista de Lisboa aos mouros. Relato de um cruzado. Op.Cit, 2018, p.57; 
79 LIVERMORE, Harold. The ‘Conquest of Lisbon’ and its Author. In: Portuguese Studies, 6 (1990) 1-16. 
80 Além do próprio Aires Nascimento In: Ibidem; WILSON, Jonathan. Op.Cit., 2016; COSTA, Ricardo da. 
Op.Cit., 1998; 
 
136 
 
 
no cerco de Lisboa, ao tempo em que a cidade com todo o seu território ainda se 
encontrava na posse dos sarracenos [...]”. 81 Este Raul que se coloca como um dos 
participantes da conquista é, de acordo com Livermore, o autor da narrativa que apresenta 
a campanha desde a saída dos portos do Norte. Porém, se considerou a possibilidade de 
tal doação ser uma falsificação dado os escassos documentos 82 e vestígios da Lisboa logo 
após a conquista e nos anos que se seguiram à esta. No entanto, partindo da concepção de 
Livermore e de Maria João Branco, a tese de R. sendo Raul ainda é verossímil e tem 
sentido se considerarmos os apontamentos feitos por Branco em sua introdução da versão 
da crônica traduzida por Aires Nascimento. 
Maria João Branco coloca cinco pontos de análise que corroboram a autoria da 
crônica a Raul. Primeiro ponto: a doação feita a Santa Cruz de Coimbra tem um 
preâmbulo pouco comum em documentos deste tipo. Este preâmbulo da identificação 
pormenorizada do doador seria uma demonstração do falseamento, pois foca-se mais em 
quem doa do que no bem doado ou a quem se doa. De acordo com Maria João Branco, 
este argumento não é válido pois “a documentação anglo-francesa dos séculos XI e XII 
está povoada de cartas de doação com essas características, e os preâmbulos narrativos 
longos são especialmente comuns na documentação do Oeste da França”.83 Ou seja, é 
marca de sua cultura. 84 
Segundo ponto: existem duas formas de escrita na doação, o que apontaria um 
indício de falsificação “pouco cuidadosa”. No entanto, não é um argumento sólido visto 
que este elemento pode “derivar apenas do simples fato de o documento ter sido elaborado 
por uma pessoa e sancionado por outra, tendo em vista que de fato a mão da autenticação 
e penalidades é diferente da que escreveu todo o resto”.85 Ainda de acordo com Branco, 
a segunda mão na escrita se referia à “validação por um conhecido notário de Santa Cruz, 
 
81 Doação do cruzado Raul a Santa Cruz de Coimbra. In: A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de 
um Cruzado. Op.Cit., 2018, p.203; 
82 Cf. BRANCO, Maria João. A conquista de Lisboa revisitada. “A ausência quase total de documentação 
entre 1147 e a década de setenta do mesmo século, tem dado origem a teorias que tomam essa ausência 
como sinal de erradicação de todas as estruturas de produção e de devastação para lá do imaginável, 
assumindo a Lisboa de 1147 como uma cidade desertificada, despovoada e desmoronada por cinco meses 
de cerco destruidor. Cinco meses de cerco que, a acreditar na narrativa do cruzado, teriam feito alguns 
danos nos arrabaldes, mas não tinham conseguido senão derruir um pano de muralha importante e tinham 
apenas levado a que a empresa terminasse, não numa vitória estrondosa, mas numa rendição com 
condições... No entanto, a tese da ruptura total não parece resistir face a uma análise mais aturada da escassa 
documentação, e do que sabemos da restruturação da cidade logo após a sua conquista. 
83 BRANCO, Maria João. A Conquista de Lisboa na estratégia de um poder que se consolida. In: A 
Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um Cruzado. Op.Cit., 2018, p.35. 
84 Assim como as concepções de Raul acerca da violência vir da região que citamos nos miracula e 
correspondem ao local demarcado por Maria João Branco. 
85 Ibidem, p.35; 
 
137 
 
 
atestado nessa época, serviria assim para conceder os elementos de autenticação de que a 
primeira forma carecia”.86 Portanto, o fato de duas pessoas distintas elaborarem a escrita 
da doação, por si só, não comprova a falsificação. 
O terceiro ponto é o fato de um bem régio estar na posse de um cruzado, algo 
demasiado estravagante se considerarmos o pacto estabelecido entre o rei e os cruzados, 
pelo qual o monarca ficaria com a totalidade do território conquistado e os cruzados com 
os espólios e os saques. Porém, era política afonsina doar propriedades não só às ordens 
militares como aos que tomassem parte em suas campanhas, como fica demonstrado nesta 
doação em si. O patrimônio régio em posse de um anglo-normando não contraria ou 
ofende a lógica régia, mas se trata da política do próprio monarca e da lógica feudal. Não 
é estranho que “numa situação extraordinária como era a do cerco de Lisboa, alguns dos 
cruzados se pudessem ter apossado de territórios”.87 A situação em si explicaria certas 
questões pois “mesmo que tal prática fosse demasiado ofensiva dos direitos régios sobre 
os territórios conquistados muitas das situações reais, são sempre mais flexíveis que na 
teoria”.88 
O quarto ponto é a probabilidade de ligações entre Raul e Santa Cruz de Coimbra 
a ponto de o clérigo anglo-normando doar algo para a instituição, visto a possibilidade de 
rivalidades entre os regrantes e a Sé de Lisboa, da qual poderia ter se vinculado Raul visto 
sua terra de origem e o bispado restaurado da cidade ficar a cargo de Gilberto de Hastings. 
Porém “as relações entre os cruzados e os crúzios parecem vir já de longe e terem sido 
cimentadas por uma ação comum, em Lisboa”.89 
O quinto e último ponto não é exatamente uma teoria fundamentada, mas, de certa 
maneira, é factível. Não é comum um a existência de um documento de 1148 ligado à 
Lisboa (visto a escassa presença documental desta época). Porém, isso não é garantia de 
falsificação. De acordo com Maria João Branco: “Temos de aceitar a possibilidade de que 
um capricho do acaso tenha permitido que, na estranha voragem que suprimiu todos os 
vestígios de Lisboa dos anos 40 e 50, um desses testemunhos tenha escapado incólume”.90 
Portanto, compartilhamos da hipótese de Raul ser o autor da crônica que narra a 
campanha de Afonso Henriques em acordo com os cruzados. A conquista de Lisboa 
parece ter estado no radar do monarca, pelo menos, desde o início da década de 1140, 
 
86 Ibidem, p.35; 
87 Ibidem, p.36; 
88 Ibidem, p.36. 
89 Ibidem, p.36; 
90 Ibidem, p.36;138 
 
 
visto a primeira tentativa que não obteve êxito em torno de 1142. Além da diferença entre 
estas duas campanhas de Lisboa,91 houve também, em ambas, acordos com tropas de 
além-Pirineus. O acordo de 1147 resultou na tomada da cidade que, prontamente, foi 
documentada e valorizada. Muito se especula sobre a participação destes homens que 
rumavam ao Levante e os motivos de sua presença na campanha afonsina. 
O documento original não tinha título e, posteriormente, foi chamado De 
Expugnatione Lyxbonensi92 por William Stubbs. A única cópia da versão original se 
encontra no Corpus Christi College de Cambridge. 93 O manuscrito foi estudado por 
Charles David, que afirmou que este não era um texto produzido no âmbito da conquista 
em si. A carta era um escrito corrigido da segunda metade do século XII. Conforme Ruy 
de Azevedo, “David fez um profundo estudo do MS. nos seus aspectos externos e 
internos” 94 e com “base nas características paleográficas, o MS. deve atribuir-se à 2ª 
metade de século XII”.95 Porém, Charles David também aponta que é um ponto sensível 
e que não se pode descartar a possibilidade de que o documento seja uma produção in 
loco.96 Portanto, a crônica data deste tempo: entre a data da conquista e a metade final do 
século XII. Além disso, se tem conhecimento de outras seis edições: A primeira é uma 
cópia feita por Alexandre Herculano e publicada nos Portugaliae Monumenta Historica, 
97 em 1856. Posteriormente, José Augusto de Oliveira elabora uma cópia em português 
direto do latim, em 1935. A tradução de José Augusto ainda foi publicada anos depois, 
em 1982 e 1989, por Alfredo Pimenta e José da Felicidade Alves, respectivamente. 98 Na 
pesquisa aqui apresentada utilizaremos a versão bilingue traduzida direto do latim por 
Aires Nascimento que está presente em A Conquista de Lisboa aos Mouros: Relato de 
um Cruzado, edição de 2018.99 
 
 
 
91 A de 1142 falha e a de 1147 logra êxito; 
92 A partir de agora, cada vez que houver referência à crônica a sigla DEL será utilizada; 
93 Ms.470, fols.125r-146r; 
94 AZEVEDO, Ruy de. A Carta ou memória do cruzado inglês para Osberto de Bawdsey sobre a conquista 
de Lisboa em 1147. In: In: Revista Portuguesa de História. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 
1957, p.344; 
95 Ibidem, p.344; 
96 Para Aires Nascimento, a redação da narrativa foi elaborada ainda em Lisboa logo após sua conquista. 
Provavelmente durante o inverno. Cf. A Conquista de Lisboa aos mouros. Relato de um cruzado, Ed. Aires 
A. Nascimento, 2ª ed., Lisboa, Nova Vega, 3ª Edição, 2018; 
97 http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/investigacao/varia/foral-afonsino/lisboa-em-1147; 
98 Cf. AZEVEDO, Ruy de.Op.Cit., 1954; 
99 A Conquista de Lisboa aos mouros. Relato de um cruzado, Ed. Aires A. Nascimento, 2ª ed., Lisboa, Nova 
Vega, 3ª Edição, 2018; 
 
139 
 
 
3.3.1 A função socializadora da violência 
 
O que a crônica nos mostra é uma miscelânea de elementos que dialogam e, ao 
mesmo tempo, parecem contrários. Afonso Henriques provavelmente tinha noção da 
instabilidade que a ajuda dos cruzados geraria em sua empreitada, pois a inconstância de 
um grupo repleto de rivalidades regionais e, muitas vezes, cheios de motivos pouco 
condizentes com as políticas papais tinha a capacidade de atrapalhar mais que colaborar. 
De acordo com Jonathan Wilson “o reforço dos cruzados atendia aos interesses de Afonso 
Henriques. No entanto, os cruzados do Norte podiam ser brutais e indisciplinados, 
portanto, a sua contribuição para a reconquista portuguesa teve de ser, na medida do 
possível, controlada”. 100 
O combate aos muçulmanos era costume monárquico e uma luta endêmica, pois 
eram guerras travadas de acordo com os avanços e recuos das fronteiras portucalenses. A 
crônica demarca esta constância quando em fala atribuída a Afonso o mesmo coloca que 
“quem vive permanentemente inquieto por causa dos mouros nunca tem oportunidade de 
juntar dinheiro”.101 Além disso, na chegada dos cruzados, a ausência do rei em recebê-
los se deve ao fato de ele estar “com seu exército, a enfrentar os mouros”.102 O texto que 
relata a fundação do mosteiro de São Vicente de Lisboa também coloca, em seu início, o 
costume das campanhas constantes contra os muçulmanos: “No ano, pois, da Encarnação 
do Senhor de 1147, o cristianíssimo rei de Portugal, Afonso [...], extraordinário e decidido 
exterminador dos inimigos da cruz de Cristo [...] reuniu o seu exército contra os 
sarracenos, como era seu costume todos os anos [...]”.103 Aqui notamos a imagem de 
Afonso Henriques como um rei que combate o muçulmano, tal qual os antigos reis 
hispânicos desde que a conquista dos reinos ibéricos ganhou o caráter de sacralidade. A 
própria entrada de Afonso em Lisboa após a conquista coloca a relação dele com os 
símbolos sagrados e a celebração litúrgica que cerca a tomada simbólica do espaço: 
À frente, pois, ia o arcebispo e os outros bispos com a bandeira da Cruz 
do Senhor e a seguir entram os nossos chefes juntamente com o rei e os 
que para este efeito tinham sido escolhidos. Oh! Quanta não foi a 
alegria de todos! Oh! Quanta não foi a honra especial que todos 
sentiam! Oh! Quantas não foram as lágrimas que afluíam em 
testemunho de alegria e de piedade, quando todos viram colocar no 
mais alto da fortaleza o estandarte da Cruz salvífica em sinal de sujeição 
 
100 WILSON, Jonathan. Op.Cit.,2016; 
101DEL. Op.Cit, 2018, p.85; 
102 Ibidem, p.63. 
103 Notícia da Fundação do Mosteiro de S. Vicente de Lisboa. In: A Conquista de Lisboa aos mouros. Relato 
de um cruzado. Op.Cit, 2018, p.179; 
 
140 
 
 
da cidade, para louvor e glória de Deus e da Santíssima Virgem Maria. 
O arcebispo e os bispos com o clero e todos os outros, não sem lágrimas 
de júbilo, cantavam o Te Deum laudamus com o Asperges me e orações 
de devoção.104 
Vejamos alguns pontos: a utilização dos símbolos sagrados, especificamente da 
cruz, na tomada do espaço. Não parece ser ao acaso a vinculação da imagem do rei junto 
do corpo eclesiástico na entrada da cidade. Assim como também não é ao acaso que esta 
entrada solene e sagrada se contraponha à dos flamengos e colonienses (desordenada e 
sangrenta) da qual falaremos adiante. A figura do rei está associada aos elementos 
sagrados e também a honradez guerreira. Se relaciona com o papel que um rei ibérico 
desempenha (ou deveria) na luta contra aqueles construídos como inimigos da 
Cristandade. Um rei justo e moderado, dentro do que se considera como tal no período. 
Isso faz da entrada destes homens algo plácido e sem violência? Não. A tomada simbólica 
é repleta de violência. Notamos um ritual com “caráter de júbilo e de purificação, sendo 
isso expresso nos cantos que se entoam”.105 A cidade está submetida à novos senhores. 
Senhores cristãos que impõem o símbolo da cruz. Para Jean Chevalier, a bandeira da cruz 
simboliza a vitória de Cristo ressuscitado. O símbolo elevado cria uma conexão e 
apresentava uma Lisboa ressuscitando para a Cristandade. A cruz vencia os inimigos, 
Cristo triunfava e seus seguidores gozariam dos espólios daquela campanha. 
A presença destes símbolos, adentrando pela parte dianteira da cidade, transmite 
a ideia de domínio, de sujeição e, ao mesmo tempo, de sacralidade. A espiritualidade traz 
consigo aspectos duros e suaves.106 O Cristianismo seria, então, portador de concepções 
brandas e duras. Uma concepção predomina mais que outra conforme o contexto político-
social. A violência cultural e simbólica encontra na imposição dos símbolos um campo 
de manifestação. As linguagens perpetuam esta manifestação da violência e a presença 
da cruz e dos cânticos na tomada simbólica da cidade aponta tal aspecto. A violência 
simbólica está presente “no uso de bandeiras e outros símbolos de poder, nos alardes das 
tropas para impressionar o inimigo, em cativeiros de personagens destacados [...], na 
presença de Deus nas batalhas”.107A violência também pode ser utilizada para a construção de uma unidade. A 
sociabilidade através da junção de alguns elementos que possibilitem uma união em torno 
 
104DEL. Op.Cit, 2018, pp.139-141 
105 Nota de Aires de Nascimento In: A Conquista de Lisboa aos mouros: Relato de um Cruzado. Op.Cit., 
2018, p.173; 
106Cf. GALTUNG, Johan. Op.Cit., 2003; Galtung relata sobre estes aspectos ao analisar a violência cultural 
relacionada às doutrinas religiosas 
107 DEVIA, Cecília. Op.Cit., 2014, p.243; 
 
141 
 
 
do uso da violência. Nos deteremos no tema mais pausadamente no próximo capítulo a 
respeito de uma análise inserida na construção da identidade e da diferença. Porém, a 
função socializadora pode ser previamente colocada para auxílio no entendimento da 
campanha de Lisboa. 
Os símbolos são elementos que possibilitam esta investigação. Estes símbolos tem 
a capacidade da promoção de uma violência que submete o outro lado do conflito, 
enquanto une quem os utiliza para benefício próprio. Notemos o caso da cruz, expressão 
máxima da salvação para os cristãos. Cristo foi crucificado e pagou pelos pecados da 
humanidade na cruz. Símbolo da redenção, da promessa e da proteção. Capaz de unir nas 
piores provações. Raul a utiliza para a construção da união dos cruzados com Afonso 
Henriques. O elemento que é capaz de romper com as animosidades e que promove a 
união. Somente com esta união seria possível a derrota dos muçulmanos. Um exemplo é 
o uso da cruz feita com a mesma madeira da cruz na qual Cristo foi crucificado. Um 
símbolo semelhante motivou os cruzados na primeira campanha, em fins do século XI. A 
cruz que promove a união antes do conflito. A união interna que fomenta a violência 
externa. 
Eis, meus irmãos, eis o Lenho da Cruz do Senhor! De Joelhos em terra, 
mantende-vos inclinados, batei no peito como réus e invocai o auxílio 
do Senhor. Ele virá, de facto, sim, virá. Vereis o auxílio do Senhor a vir 
sobre nós. Adorai o Cristo Senhor que nesse salvífico Lenho da Cruz 
estende as mãos e os pés para a vossa salvação e glória. Com esta 
bandeira, não hesiteis um só momento, vencereis. Pois mesmo que 
aconteça que alguém venha a morrer assinalado com ela, segundo 
acreditamos, não lhe será tirada a vida, mas não duvidamos de que será 
mudada para melhor. Viver aqui, pois, é motivo de glória e morrer é um 
ganho.108 
A fala acima foi proferida por João Peculiar, numa missa campal, antes da invasão 
de Lisboa. Após o sermão do arcebispo de Braga, de acordo com a crônica, “todos caíram 
de bruços com gemidos e lágrimas nos seus rostos”.109 Passada a catarse “todos se 
levantaram e foram abençoados pela venerada relíquia da Cruz do Senhor, 110em nome 
do Pai e do Filho e do Espírito Santo”.111 Após a vitória e domínio da cidade, a cruz 
adentra o ambiente com os líderes daquela campanha numa demonstração de união cristã. 
 
108 DEL, Op.Cit., 2018, p.125; 
109 Ibidem, p.127; 
110 A relíquia com os fragmentos da cruz de Cristo se espalhou pela Cristandade desde que Helena, mãe de 
Constantino empreendeu a busca de elementos sagrados. Na primeira cruzada é possível ver o apelo às 
relíquias ligadas à Cristo (como a santa lança). Antes da conquista de Lisboa, a cruz do santo lenho é usada 
como símbolo de motivação para os cruzados. Para maiores detalhes ver: COSTA, Ricado da. A Guerra na 
Idade Média: estudo da mentalidade de cruzada na Península Ibérica, 1998; 
111 DEL. Op.Cit., 2018, p.127; 
 
142 
 
 
À entrada vitoriosa da cruz somamos alguns aspectos presentes na narrativa da 
conquista em que este mesmo símbolo é vilipendiado pelos muçulmanos, conforme 
afirma o autor da crônica. Os adversários da cruz, que zombaram da cruz, foram 
dominados por esta mesma cruz. Esta linearidade que parece causa e efeito, traz uma lição 
que Raul quer transmitir através do castigo perpetuado contra quem se coloca contra um 
símbolo sagrado. Vejamos como durante o cerco, um grupo de anglo-normandos é 
provocado pelos guerreiros muçulmanos que guardam a muralha da cidade: 
Em gracejos, por palavras injuriosas e torpezas, afrontavam sem cessar 
Santa Maria, a mãe do Senhor, amesquinhando-nos por venerarmos 
com tanto respeito, como se fosse Deus, o filho de uma pobre mulher, 
e por dizermos que Ele é Deus e Filho de Deus, quando é sabido que 
Deus há só um [...] Além disso, com grande irrisão, alçavam para os 
nossos o sinal da cruz e cuspindo-lhe limpavam com ele as partes 
traseiras de sua fealdade e, por fim, urinando sobre ela , em gesto de 
opróbrio, arremessavam-nos a nossa cruz. Para nós , isso parecia-nos 
que era Cristo estar de novo a ser blasfemado em nossos dias por 
incrédulos, saudado com genuflexões falsas, molhado com cuspidelas 
de malvados , apertado com cordas, zurzido com açoites, pregado no 
opróbrio da cruz. Sentindo tudo isto, como nos competia, mais 
acirrados nos tornávamos contra os adversários da cruz. 112 
Na descrição acima notamos como a cruz, ofendida, se associa às ofensas sofridas 
pelo próprio Cristo na sua crucificação. A cruz que, posteriormente, adentra vitoriosa à 
cidade. A cruz que derrota os adversários da cruz. O termo adversários da cruz é 
empregado em De Expgunatione Lyxbonensi em quatro oportunidades 113 e esses 
adversários que são vencidos, podem ser, inclusive, os mesmos que pedem perdão à cruz 
após a cidade ser dominada enquanto reconhecem a bondade de Maria, que também foi 
alvo de injúrias, de acordo com a citação acima. Os muçulmanos, assolados pela peste 
abraçavam-se ao sinal da cruz e beijavam-no, confessavam que Maria, 
cheia de bondade, é a bem-aventurada Mãe de Deus, de tal modo que 
em tudo que fazem ou dizem, mesmo nos momentos extremos, 
misturam invocações à Maria boa, boa Maria e lhe dirigem apelos 
angustiados.114 
Esta conversão instantânea pode ser vista sob dois prismas. Um deles é abordado 
por Aires Nascimento em nota explicativa em sua tradução da crônica, que coloca a 
possibilidade de serem moçárabes que não relutaram em abraçar suas confissões cristãs. 
De acordo com Aires “não é possível dirimir se este comportamento pertence apenas a 
cristãos moçárabes que se encontravam na cidade ou se é assumido também por outros”. 
 
112 Ibidem, p.107; 
113 Adversariis Crucis, p.72; Crucis adversários, p.106; Crucis adversários, p.108; Crucis adversários, 
p.144; In: Ibidem; 
114 Ibidem, pp.143-145; 
 
143 
 
 
115 A segunda possibilidade é que se tratavam de muçulmanos que in extremis não viram 
outra possibilidade senão a adesão ao Cristianismo. Antônio Borges Coelho116 não admite 
que fossem comunidades moçárabes. O autor aponta que “uma boa parte eram 
muçulmanos de conversão não muito antiga, falantes de língua árabe, e que partilhavam 
ou pelo menos usavam expressões da língua galaico-portuguesa. Arrastados pela 
necessidade extrema, inclinavam-se, como sempre acontece, perante o gládio vencedor”. 
117 A conversão forçada118 não era permitida embora a prática cruzada não se alinhasse à 
esta teoria. Sabe-se de conversões forçadas nos pogroms e não seria estranho o mesmo 
modus operandi na conquista de Lisboa. 
 
3.3.2 A conquista de Lisboa como uma guerra de vingança 
 
Portanto, as ofensas que foram proferidas, conforme o narrador, foram revidadas 
dentro de uma lógica reativa, pois o ataque foi respondido frente a um comportamento 
considerado aviltante. Os adversários que ofendem o símbolo são vencidos por ele e 
também perdoados, ao se converterem. A cruz também é utilizada como um símbolo de 
união, de sociabilidade e aqueles que combatem sob este signo se enxergam num quadro 
de pertencimento. A intenção é a demonstração que a cruz, aqui, é a marca de uma 
imposição e da sacralidade que confere uma coerção simbólica àqueles que são derrotados 
por ela. O recado pode ter certa variação, mas geralmente, promove adesão ou recusa. 
Independente da escolha daqueles (não-cristãos) que se encontram diantede tal símbolo 
não qualificamos como algo pacífico ou de livre escolha. O momento é extremo. O 
abandono da fé é a única saída para a sobrevivência. 
A maneira como esse caso é colocado pode ser analisado dentro, também, de uma 
concepção de vingança? Em nossa perspectiva sim. A ofensa sofrida pela cruz foi 
respondida. Susanna A. Throop escreve sobre como a vingança pode ser inserida num 
contexto cronológico pois, segundo a historiadora, “um ato de vingança nunca é o início 
da história, sempre se segue a pelo menos um outro evento”. 119 Ou seja, “para descrever 
 
115 Ibidem, p.174; 
116 COELHO, Antônio Borges. Lisboa nos Primeiros Séculos Após a Reconquista. In: Lisboa, 
Encruzilhada de Muçulmanos, Judeus e Cristãos. Actas do Colóquio. Porto: Edições Afrontamento, 2001, 
pp.235-242; 
117 Ibidem, p.235; 
118 O cânone 57 do IV Concílio de Toledo, de 633, proibia as conversões forçadas. Cf. NASCIMENTO, 
Aires. Op.Cit., 2018, p.167; 
119 THROOP, Susanna A. Crusading as an Act of Vengeance, 1095-1216. Ashgate, 2011, pp.13-16; 
 
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um ato como vingança era preciso se questionar ‘vingança porquê?”.120 A vingança 
contra aqueles que estão fora da Cristandade se efetua como um ato de justiça divina121 e 
piedade. Afinal de contas, a vingança vem para a correção de algo considerado injusto. 
Sendo assim, a violência se reveste de vingança e justiça. 
A vingança com o emprego da violência não condenada difere daquelas blood 
feuds internas que buscam, muitas vezes, a composição. Portanto, temos um paralelo de 
comparação se atentarmos para a análise realizada anteriormente. A busca pela resolução, 
muitas vezes através de composições, pelas partes envolvidas numa vendeta tem como 
lógica a participação destas partes numa sociedade. No caso aqui analisado, a sociedade 
é a Cristandade. Porém, isso não impede, necessariamente, que desmedidas sejam 
cometidas e muitas situações saiam do controle, gerando mortes que serão condenadas 
pela Igreja. Sendo assim, caso a vendeta fuja do controle ou as batalhas entre príncipes 
gerem mortes em demasia, há a necessidade da penitência. Aqui está um contraponto para 
os ataques aos muçulmanos e os homicídios perpetuados contra eles: não há imposição 
de penitências. Por isso, a guerra de vingança (intersocietária) é uma característica 
marcante no discurso da crônica. 
As “regras” de uma vendeta interna não se aplicam na conquista de Lisboa, pois 
como coloca o professor Ricardo da Costa “no caso específico da reconquista se travou 
um tipo de guerra que excluiu o caráter lúdico do belicismo cavaleiresco [...] a guerra 
medieval pressuponha a existência de regras limitativas, e seus participantes 
consideravam-se uns aos outros como iguais”.122 Não era o caso de como o muçulmano 
era vislumbrado. Eles são relatados na narrativa como “homicidas e salteadores”,123 
“embusteiros”, 124 “antigo inimigo”125 e “perversos”.126 Porém, a designação de pagão 
 
120 Ibidem, p.13. 
121 O cruzado Raul relata, ainda, que a obstinação dos mouros era um ato de justiça (iusticia) divina para 
que a desonra dos adversários da cruz fosse demonstrada através de homens de pouco valor. Deus os 
manteve daquela forma para que se presenciasse a justiça (vingança) que se efetuaria através dos cruzados. 
No entanto, fica a dúvida acerca de quem se trata os “homens de pouco valor”: Denota um caráter de 
humildade atribuído aos anglo-normandos ou se trata de desprezo pela condição do mouro? Ou seja, o 
castigo destinado aos adversários da cruz seria demonstrado através dos mouros, chamados de homens de 
pouco valor. Trata-se de uma parte confusa do autor. Para Marcus Bull, o termo utilizado (homunciis) não 
se tratava de expressão de humildade. Cf.BULL, Marcus. Eyewitness and the Crusade Narrative. 
Perception and narration in accounts of the second, third and fourth crusade, Woodbridge: The Boydell 
Press, 2018, p. 137; 
122 COSTA, Ricardo. Op.Cit., 1998, pp.41-42. 
123Homicidae et raptores; In: A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um Cruzado. Op.Cit., 2018, 
p.70; 
124 Ibidem; Veteratores, p.132; 
125 Ibidem; Hostis antiquus, p.132; 
126 Ibidem; Perversos, p.144; 
 
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talvez seja a demonstração mais latente acerca do caráter que se impunha ao outro. A 
violência é utilizada como instrumento de união, pois numa campanha como a de Lisboa 
existe a ideia sobre quem é o inimigo e contra quem se deve lutar. 
Ora, essa violência destinada contra àquele que está fora, a partir de semelhanças 
e diferenças, será melhor analisada no próximo capítulo, mas a socialização de um 
determinado grupo através da violência pode ser notada em diversos momentos na escrita 
de Raul: “Entre estes povos de tantas línguas trocam-se garantias da mais firme concórdia 
e amizade; mais que isso, estabelecem-se decisões das mais estritas, como a de morte por 
morte, dente por dente”.127 A referência à lei de talião coloca que as ofensas recebidas 
seriam respondidas num quadro de reciprocidade. Afinal de contas, justiça e violência se 
combinam no exercício de sua aplicabilidade. A concepção de justiça aqui se trata da 
resposta dada em decorrência do uso da força contra outrem. A narrativa da campanha de 
Lisboa já parte de uma concepção racionalizada acerca da utilização da violência pois, a 
necessidade de se retomar algo que foi usurpado pelos muçulmanos já torna esta guerra 
uma guerra justa, portanto, com sua razão. Lembrando: a violência é racional e a 
justificativa para o emprego desta comprova a razão que instrumentaliza o seu uso. 
O discurso de Pedro Pitões, que recebe os cruzados e os convida a participar da 
conquista, pode ser colocado como um verdadeiro chamado à guerra santa, repleto das 
ideias de cruzada: “Cremos que já ouvistes dizer em vossas regiões de origem que o 
castigo divino feriu com a ponta da espada a Espanha128 inteira com a invasão dos mouros 
e moabitas, deixando nela bem poucos cristãos e em cidades, sob um pesadíssimo jugo 
de servidão”.129 A referência ao Islã como invasor já coloca um ponto: a ofensiva seria 
uma resposta. Jean Flori 130 aponta que “a guerra assume valor moral desde que decorra 
da necessidade de restabelecer pela violência a justiça e a paz rompidas pelo inimigo que 
assim cometeu uma injustiça, uma falta, um delito”. 131 Flori afirma ainda que desta 
maneira “ele legitima não só a recuperação de terras e bens espoliados, mas também a 
punição dos povos culpados de injustiça [...]”. 132 A retórica da guerra justa é colocada 
em ambiente ibérico de uma maneira que se faz compreensível por homens de distintas 
 
127 Ibidem, p.57; 
128 Hyspaniam, p.68; 
129 Ibidem, p.69; 
130 FLORI, Jean. Guerra Santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão / Jean Flori; tradução: 
Ivone Benedetti; Campinas: Editora da Unicamp, 2013; 
131 Ibidem, pp.272-273; 
132 Ibidem, p.273; 
 
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localidades que partiam para a cruzada. Como se conjuga tais elementos? Pedro Pitões 
circula nestes discursos: 
Que infelicidade! Em toda a Galécia e no reino de Aragão e Numância, 
de entre tantas cidades, castelos e aldeias e assentamentos de santos 
varões, mal se notam já outros sinais que não sejam de ruínas e vestígios 
de uma desolação já consumada. Mesmo a nossa cidade que estais a 
ver, em tempos posta entre as célebres, agora está reduzida a um 
pequeno povoado, e foi, segundo as nossas memórias, muitas vezes 
saqueada pelos mouros. De verdade, ainda há uns sete anos, foi de tal 
modo fustigada por eles que da igreja de Santa Maria, a que sirvo por 
graça de Deus, levaram eles os sinos, os paramentos, os vasos e todos 
os ornamentos da igreja, depois de terem feito correr o sangue de nossos 
fidalgos, e tudo o mais passando a ferro e fogo. Que há efetivamente no 
litoral hispânico que tenha surpreendido o vosso olhar e que não 
demonstre senão traços de memória e sua devastação e vestígios da 
derrocada? Quantos destroços de cidades

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