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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA LEANDRO RIBEIRO BRITO Violência e Identidade na Conquista de Lisboa em 1147: uma análise da crônica De Expugnatione Lyxbonensi e sua inserção na Cristandade Latina dos séculos XI e XII Orientadora: Profª Drª Carolina Coelho Fortes Niterói, Março de 2022 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA LEANDRO RIBEIRO BRITO Violência e Identidade na Conquista de Lisboa em 1147: uma análise da crônica De Expugnatione Lyxbonensi e sua inserção na Cristandade Latina dos séculos XI e XII Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História Social. Orientadora: Profª Drª Carolina Coelho Fortes Niterói, Março de 2022 LEANDRO RIBEIRO BRITO Violência e Identidade na Conquista de Lisboa em 1147: uma análise da crônica De Expugnatione Lyxbonensi e sua inserção na Cristandade Latina dos séculos XI e XII Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História Social. Orientadora: Profª. Drª. Carolina Coelho Fortes BANCA EXAMINADORA Profª. Drª. Carolina Coelho Fortes Universidade Federal Fluminense Prof. Dr. Edmar Checon de Freitas Universidade Federal Fluminense Profª. Drª. Leila Rodrigues da Silva Universidade Federal do Rio de Janeiro Agradecimentos Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento da presente dissertação. A bolsa de fomento à pesquisa foi fundamental para os resultados aqui apresentados. Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense por seu ambiente de excelência na formação de pesquisadores e seu extraordinário quadro docente que sempre proporcionou um ensino enriquecedor. À professora Carolina Coelho Fortes por sua orientação e paciência. O incentivo que me dá desde a graduação foi fundamental para a minha formação. Suas críticas e correções me tornaram um pesquisador melhor. Sua forma humanizada de orientar auxiliou nos momentos de desespero que todo historiador acaba passando ao longo de uma investigação. À banca de qualificação composta pelo professor Edmar Checon de Freitas e pela professora Leila Rodrigues da Silva. A disponibilidade de grandes nomes da medievalística, colaborando para a melhoria da pesquisa é de suma importância. Reforço o agradecimento por aceitarem participar da banca de defesa de mestrado. Às professoras e professores que tive durante os dois anos de mestrado e as leituras e debates estimulantes realizados durante as disciplinas cursadas: Luiza Laranjeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carolina Coelho Fortes, Mário Jorge da Motta Bastos e Vânia Leite Fróes da Universidade Federal Fluminense. À minha mãe que me trouxe ao mundo e fez todo o possível e o impossível para que recebesse educação e me mantivesse na escola mesmo durante períodos de carestia. Obrigado por tudo dona Risete. Ao meu pai, Asclepíades, que enquanto esteve comigo tinha o sonho de me ver cursando faculdade. Se puder testemunhar os dias atuais, espero que sinta orgulho. Aos meus irmãos mais velhos, que também me incentivaram a buscar o ensino superior. Aos meus amigos de UFF e da vida. Em especial Fabricio Lamothe e Júlio Massolar. Mesmo longe, vocês ainda caminham comigo. Agradeço igualmente à Nathália Fernandes Pessanha que auxiliou tanto neste período que nem consigo descrever. À Karen Natasha por ser minha amiga de mais de uma década. Cultivar amizades assim me manteve de pé em muitos momentos quando ainda nem sonhava em estar na UFF. Deixo também meu agradecimento à Luzia Risso por sua amizade sincera. Por fim, desejo paz aos que sofreram com a pandemia de Covid-19. Que o futuro nos proporcione momentos de serenidade. Resumo Os séculos XI e XII foram um período de intensas movimentações no interior da Cristandade Latina. Dentre algumas transformações podemos citar as cruzadas, a reconquista, as expansões feudais, o fortalecimento papal e um significativo aumento demográfico. Entre conflitos e alianças, os reinos ibéricos tomaram parte das políticas existentes para seu próprio fortalecimento. Dentre estes reinos, a monarquia portucalense buscava se afirmar como uma autoridade régia dentro da Cristandade. A conquista de Lisboa ocorre em 1147. Situada como uma guerra santa, a expansão feudal de Afonso Henriques usa as hostes cruzadas em seu intento de legitimação. Expandindo seus domínios, Afonso constrói uma imagem de suas guerras através de uma literatura memorialística com intuito propagandista. De Expugnatione Lyxbonensi é uma crônica que narra a conquista de Lisboa e foi escrita por um anglo-normando de nome Raul. A carta, que entendemos ter como objetivo a construção de uma identidade cristã frente ao diferente muçulmano, está repleta de violência como instrumento de subjugação e domínio, além de ser usada como veículo de exaltação dos feitos afonsinos. Portanto, o objetivo da presente dissertação é apontar a existência da violência justificada pela lógica da identidade e da diferença. Uma violência que foi instrumentalizada pelos poderes existentes no período. Palavras-chave: Violência; Identidade; Cristandade Latina; Portugal; Conquista de Lisboa Abstract The 11th and 12th centuries were a period of intense movement within Latin Christianity. Among some transformations we can mention the crusades, the reconquest, the feudal expansions, the papal strengthening and a significant demographic increase. Between conflicts and alliances, the Iberian kingdoms took part in the existing policies for their own strengthening. Among these kingdoms, the Portuguese monarchy sought to assert itself as a royal authority within Christianity. The conquest of Lisbon takes place in 1147. Situated as a holy war, the feudal expansion of Afonso Henriques uses the Crusader hosts in its attempt to legitimize it. Expanding his domains, Afonso builds an image of his wars through a memorialistic literature with a propagandist intention. De Expugnatione Lyxbonensi is a chronicle that narrates the conquest of Lisbon and was written by an Anglo-Norman named Raul. The letter, which we understand as having as its objective the construction of a Christian identity in the face of the different Muslims, is full of violence as an instrument of subjugation and domination, in addition to being used as a vehicle for the exaltation of Alfonsine deeds. Therefore, the objective of this dissertation is to point out the existence of violence justified by the logic of identity and difference. A violence that was instrumentalized by the existing powers at the time. Keywords: Violence; Identity; Latin Christendom; Portugal; Conquest of Lisbon SUMÁRIO Introdução ................................................................................................. 6 Capítulo 1 – Os Medievais e a Violência ................................................ 19 1.1 Conceituando violência ........................................................................ 20 1.2 Violência como instrumento político ...................................................24 1.3 A violência nos séculos XI e XII ......................................................... 34 1.4 Vingança: violência ou composição? ................................................... 58 Capítulo 2 – As Guerras Cristãs: Violência Sacralizada ..................... 68 2.1 A guerra santa cristã: violência permitida ........................................... 69 2.2 As conquistas cristãs na Península Ibérica: a guerra santa hispânica .. 82 2.3 As cruzadas: a desmedida não condenada ........................................... 93 Capítulo 3 – Lisboa e a Cruzada: A Conquista de 1147 .......................114 3.1 A construção afonsina: o rei e o reino ..................................................115 3.2 Vassalo da Sé Romana: o rei, o papa e as alianças …………………. 127 3.3 Lisboa à vista: a violência cristã na conquista ……………………… 135 3.3.1 A função socializadora da violência ……………………………… 139 3.3.2 A conquista de Lisboa como uma guerra de vingança …………… 143 3.3.3 A noção de violentia em De Expugnatione Lyxbonensi ………….. 147 3.3.4 A violência cultural: os muçulmanos em De Expugnatione Lyxbonensi ……………………………………………………………… 151 3.3.5 A violência como justiça …………………………………………. 156 3.3.6 A violência simbólica na conquista de Lisboa …………………… 160 3.4 De Expugnatione Lyxbonensi e a cruzada ………………………….. 162 Capítulo 4 – Identidade e Diferença: A Violência Contra o Outro .... 174 4.1 Identidade: um conceito sob rasura? …………………………………175 4.2 Identidade e Idade Média: uma análise possível ……………………..180 4.3 Identidade e diferença em De Expugnatione Lyxbonensi : a violência contra o outro…………………………………………………………………….. 189 4.3.1 De Expugnatione Lyxbonensi como lugar de memória ………….. 206 Conclusão ……………………………………………………………... 211 Documentação ………………………………………………………... 216 Referências Bibliográficas …………………………………………….218 Deus não precisa do homem para nada, exceto para ser Deus. José Saramago 6 Introdução Vinte e quatro de outubro de 1147. Um rei adentra uma cidade conquistada após meses de cerco. Junto dele, bispos e padres com incensos e cânticos dão o tom daquela contenda. O rei é Afonso Henriques. Enquanto Afonso toma a cidade pela frente, alguns homens invadem por outros caminhos e circulam pelas ruas do aglomerado urbano. Eles arrombam casas, matam os moradores e cometem todo tipo de violência imaginável e repudiável. Estes homens se viam no direito de fazê-lo, assim como o rei que entrava pelo portão dianteiro. Passando por cima de cadáveres e de poças de sangue, Afonso Henriques seguia com seu grupo de homens tomando os espaços, tirando os antigos símbolos muçulmanos e erguendo cruzes, estandartes cristãos e toda espécie de imagens caras àqueles que seriam os novos senhores de Lisboa. Setembro de 2020: “foi tornado público, através de uma denúncia que chegou ao Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia (STARQ), que a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) autorizou a desmontagem de estruturas de uma antiga mesquita, no âmbito das obras em curso na Sé de Lisboa”.1 A notícia fala da reforma de restauração no claustro da igreja localizada na capital portuguesa, onde se descobriu os resquícios de uma antiga mesquita do tempo dos almorávidas. Um debate se inicia: qual seria o destino da arquitetura muçulmana, que mostra a presença islâmica na história local? A primeira decisão foi pela retirada da estrutura visando a conservação da igreja. Depois disso, seguiram-se algumas denúncias até que se decide por sua preservação. O fato curioso é que houve a necessidade de uma denúncia e uma intensa discussão para a manutenção dos vestígios. A decisão inicial sobre o resguardo da igreja em detrimento da mesquita ilustra qual memória seria conservada na história da cidade. O apagamento de parte da memória local indica a construção de um tipo de sociedade específica, que se vincula com um passado restrito. O primeiro exemplo citado sobre o longínquo ano de 1147 não deixa dúvidas acerca da presença da violência. O segundo exemplo não é tão nítido, mas a violência também está presente. Uma cidade, duas temporalidades distintas, mas testemunha de 1 Trecho retirado da notícia: https://www.jn.pt/artes/pcp-e-be-querem-explicacoes-sobre-caso-da- mesquita-sob-a-se-de-lisboa-12825867.html. https://www.jn.pt/artes/pcp-e-be-querem-explicacoes-sobre-caso-da-mesquita-sob-a-se-de-lisboa-12825867.html https://www.jn.pt/artes/pcp-e-be-querem-explicacoes-sobre-caso-da-mesquita-sob-a-se-de-lisboa-12825867.html 7 um fenômeno: violência. A reforma da Sé que resultaria no apagamento da presença muçulmana golpearia de morte uma existência marcante naquele local durante um período. Conforme, Nachman Falbel “o nome permite à memória atuar e manter vivo o ser humano no tempo infinito, caso contrário ele cairia no abismo do esquecimento, na verdadeira morte”.2 Por que uma violência é tão identificável e a outra não? Por qual motivo aqueles homens, em 1147, massacraram tantas pessoas? A cidade de Lisboa foi testemunha de um conflito que diz muito sobre uma época. O papa ainda não reconhecia Afonso Henriques como rei, embora este agisse como tal. A cruzada movimentava um grupo tão hostil que os exércitos destes “marcados pela cruz” sempre criavam um clima de tensão, cercado de desconfiança sobre as intenções destes cristãos ávidos por honra, butim e salvação. A violência e a espiritualidade caminhavam juntas naquelas hostes e uma não invalidava a outra. Afinal de contas, a Igreja precisava destes combatentes agindo no mundo, ao seu modo, com funções dentro da Cristandade e colaborando, de certa forma, com a universalidade tão pretendida pelo Cristianismo. Essa guerra e esse movimento foram vistos como violência por seus praticantes? A força utilizada contra outras pessoas nestes embates era compreendida como um ato piedoso e os discursos que veicularam estes atos buscaram a construção desta imagem pia. Por que? Por que o discurso faz isso. Ele cria uma verdade. Se a verdade se liga à realidade, isto não importa para o poder que detém a capacidade na difusão de uma ideia. O que importa é inculcar aquela verdade para reproduzi-la. A verdade sobre a violência é o poder que constrói. A utilização da violência é a razão do poder que determina. Na compreensão da razão, é possível a percepção de que forma o poder não qualifica como violência atos de natureza violenta em seu intuito de dominação. O exercício é complexo e a violência de uma época não é a violência de outra época, pois a racionalidade é distinta. No entanto, um poder que visa a dominação busca uma hegemonia e o discurso é uma das instâncias fundamentais que perpetua e possibilita este propósito. 3 2 FALBEL, Nachman. Kidush Hashem: Crônicas Hebraicas sobre as Cruzadas. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001, p.17; 3 Essas questões serão aprofundadas no primeiro capítulo; 8 A conquista de Lisboa em 1147 nos apresenta uma série de elementos em voga na Cristandade Latina daquele período. Guerra Santa, cruzada, expansão cristã na Península Ibérica etc. Uma conquista, tantas possibilidades. Uma conquista, tantas leituras. A tomada desta cidade sempre foi tratada por algumas leituras da historiografia portuguesa4 como um marco para o nascimento de Portugal. A crônica mais detalhada e complexa sobre esta conquista é uma narrativa elaborada por um cruzado. As visões, muitas vezes romanceadas, deste “nascimento” ignoram algumas possibilidades espinhosas. Primeiro, um “nascimento” sangrento. Se Portugal nasce em Lisboa, então, vem ao mundo banhado pelo sangue alheio. Afinal de contas, sabemos que as hostes cruzadas queajudaram neste embate não eram conhecidas por sua temperança. Segundo, se a crônica que narra esta conquista busca ocultar alguns massacres uma análise crítica ainda permite identificar um “nascimento” cercado pela violência. Porém, a violência é direcionada. Quando os cristãos rompem os portões de Lisboa, sabem contra quem dirigir sua belicosidade e quais são os seus inimigos: os muçulmanos. O século XII é o período das cruzadas, da expansão da Cristandade e de uma política papal que identificava aqueles que se constituíam como um perigo para os cristãos. Assim, vê-se a construção de uma unidade e de quem estava fora dela. Uma identidade cristã que se baseava na diferença e no contato com os não-cristãos. A presente dissertação visa a compreensão da violência como uma marca deste mítico “nascimento de Portugal” .5 A violência da guerra? Também, mas não apenas essa. Nosso objetivo é entender a campanha de Lisboa ligada aos componentes que se constituíam na Cristandade Latina e que promoviam uma violência baseada em categorias identitárias. Visamos, aqui, ampliar o entendimento sobre violência. Ou seja, um estudo inserido num quadro de análise que apresente algumas categorias da violência. Além disso, vincular a narrativa de Lisboa com as políticas próprias do reino. A expansão e promoção da monarquia visam a construção de uma imagem que autonomize Afonso Henriques perante o papado e os outros reinos cristãos peninsulares. Uma extensa literatura foi elaborada com a finalidade de divulgação e propaganda da monarquia 4 Dentre algumas obras podemos citar MARTINS, Oliveira. História de Portugal. 10.ed. Lisboa: Parceria, 1920 e PERES, Damião. Como nasceu Portugal. Portucalense Editora, 6ª Edição, Porto, 1967; 5 Um “nascimento” cristão que, propositalmente, ignora a presença de povos distintos na constituição histórica deste país. 9 portucalense. O mosteiro de Santa Cruz de Coimbra ficou imbuído de grande parte destas obras, dentre as quais alguns relatos de conquista. 6 A princípio, a pesquisa em si é propícia a desvios para concepções cercadas de anacronismos e armadilhas conceituais com as quais todo historiador acaba lidando no caminho de uma investigação. Por isso, escolhemos um trajeto que proporcione à dissertação uma percepção plausível destas sociedades tão distantes de nós temporalmente. Uma análise da violência nos séculos XI e XII nos leva a uma pergunta inevitável: de qual violência estamos falando? A noção que temos atualmente, com todas as percepções que nos cabe como pessoas do século XXI ou a noção construída na Idade Média Central? Nossa proposta é a compreensão de ambas, como uma alternativa propícia na tentativa de visualização de uma temporalidade através de outra. Partindo de noções atuais, debatidas pelas Ciências Humanas, percorreremos o caminho até os séculos XI e XII. Esta escolha tem como objetivo uma teorização da violência a partir de princípios utilizados pela etnomodelagem, conhecidos como perspectiva êmica e perspectiva ética. Ou seja, olhar uma sociedade “de dentro” e “de fora” ao mesmo tempo. No entanto, reconhecemos as limitações ao referencial “de dentro”, visto que os vestígios deste interior nos foi legado por uma parcela social que tinha acesso à escrita. Uma parcela reduzida, se tratando de séculos XI e XII. Para uma aguçada percepção das noções que circulavam no período nossa escolha foi de nos atentarmos, no primeiro capítulo, aos livros de relatos de milagres. Entendendo a visão sobre a violência nestas obras e usando a metodologia de Marcus Bull7, é possível a conexão de uma leitura das cruzadas com a conquista de Lisboa. Efetuaremos a investigação da conquista de Lisboa através da crônica do clérigo cruzado Raul 8 intitulada De Expugnatione Lyxbonensi. O relato pretende justificar o uso 6 Para maiores detalhes acerca do papel dos crúzios ver: BRANCO, Maria João. A conquista de Lisboa revisitada. Porto: Edições Afrontamento Ltda, 2001, MARTINS, Armando Alberto. O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2003, MATTOSO, José. A nova face de Afonso Henriques. In: Naquele Tempo. Ensaios De História Medieval, Lisboa, 2000; 7 Referente às trigger words. São palavras-gatilho que usam de símbolos universais na união de grupos distintos. A metodologia será melhor explicada adiante. 8 A carta é assinada com a inical R e estudos sobre o documento indicam que se tratava de Raul de Glanville, presbítero anglo-normando. Raul tinha um homônimo que pertencia ao ciclo da nobreza, da qual Hervey de Glanville era oriundo. Porém, embora o sobrenome seja o mesmo, não há ligação familiar, strictu sensu, com os Glanville de Calvados, na Normandia. Ver: DAVID, Charles Wendell. De Expugnatione 10 da violência a partir da construção do muçulmano como o “outro”, o inimigo da Cristandade. Essa construção que impele o movimento violento de conquista também busca a aproximação de Afonso Henriques com as políticas papais, visto que é um guerreiro cristão que combate o Islã. Essa aproximação, na perspectiva afonsina, tinha como um de seus desígnios o reconhecimento do então infante como rei. Reconhecimento que fortaleceria o futuro reino de Portugal frente aos outros reinos peninsulares e no interior da própria Cristandade Latina. A violência cristã está embebida nas circunscritas do período. Em seu livro Guerra Santa a Ideia de Cruzada no Ocidente cristão,9 Jean Flori traça um caminho de análise que recua ao Cristianismo do Baixo Império e reflete sobre a recusa do uso da violência por parte dos cristãos. Adiante, verifica os possíveis pontos de virada desta ideia ao se questionar porquê uma religiosidade que nasce pacifista se torna beligerante. Para resumir parte de suas reflexões, as questões de Flori se conectam com a transformação, primeiro, da religiosidade de uma parcela da sociedade que se torna majoritária, principalmente a partir da conversão das elites. Assim, na busca pela defesa e manutenção de seus privilégios a Igreja entra no jogo das práticas em vigor. Na Idade Média Central, os poderes eclesiásticos estão profundamente enraizados no sistema feudal e, logo, reproduzindo-se da maneira que o sistema se reproduz: com violência.10 A violência bate à porta das igrejas e o poder clerical desenvolve uma noção de violentia com o intuito de qualificação do que considera atos dignos de repúdio e que precisam ser combatidos.11 Esta ideia de violentia vigora dentro da sociedade feudal, onde as assembleias de paz conhecidas como Paz de Deus e Trégua de Deus surgem e se renovam constantemente. A tendência na Francia Ocidental é a construção de uma noção de violentia que se liga ao impedimento do exercício de um direito e não significa, necessariamente, uma relação com nossas ideias de violência. A violência passa, então, a ser um instrumento usado para o combate da violentia. A Igreja incentiva o uso da Lyxbonensi, The conquest of Lisbon, ed. Columbia University Press, N. Y., 1936; BRANCO, Maria João. A Conquista de Lisboa na estratégia de um poder que se consolida. In: A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um Cruzado., 2018; 9 FLORI, Jean. Guerra Santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão / Jean Flori; tradução: Ivone Benedetti; Campinas: Editora da Unicamp, 2013; 10 Porém, não de forma descontrolada. Para maiores detalhes sobre o tema ver BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal/ Marc Bloch; Tradução: Laurent de Saes. – São Paulo: EDIPRO, 2016 ; BARTHÉLEMY, Dominique. A cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII; Tradução: Néri de Barros Almeida e Carolina Gual da Silva. Campinas: Editora da Unicamp, 2010; DUBY, Georges. A Sociedade Cavaleiresca/G.Duby; tradução: Antônio de Pádua Danesil – São Paulo: Martins Fontes, 1989 11 Ver FLORI, Jean. Op.Cit., 2013; 11violência na proteção de seu patrimônio12 sacralizando-a. 13 Assim, a violência passa a ser destinada contra os inimigos da Igreja; desta maneira, se constrói a noção de quem são estes inimigos, que variam conforme o contexto social. O caráter de semelhança passa a caracterizar uma identidade cristã que se vê ameaçada pelo diferente,14 aquele que está situado fora da Cristandade. Assim, nossa primeira hipótese é que a conquista de Lisboa se efetua pela violência justificada a partir da identidade e da diferença. Outro aspecto é que a Conquista de Lisboa faz parte da expansão cristã na Península Ibérica, que tradicionalmente se chama Reconquista. As monarquias hispânicas precisavam fortalecer sua imagem perante a Cristandade.15 Os confrontos cotidianos nas regiões de marca envolviam o embate contra outros senhores cristãos e também diante dos muçulmanos, que habitavam a região desde o século VIII.16 No decorrer dos séculos XI e XII surge o fenômeno da cruzada. Além disso, presencia-se um considerável fortalecimento da figura do papa. 17 Assim, os contatos com o Islã na Península Ibérica e, mais que isso, as guerras, que eram atividades regulares na região, se transformaram em eventos revestidos de sacralidade. À presença de Cluny, Cister, às políticas casamenteiras entre as aristocracias hispânicas e gálicas transportaram ideias que circulavam na Francia Ocidental e foram apropriadas em contexto peninsular. 18 Diante disto, as monarquias hispânicas utilizaram as noções de guerra santa advindas principalmente das ideias construídas com o surgimento da cruzada. Estes reis usufruem destas políticas19 em seu favor. O discurso da guerra santa, então, entra na lógica ibérica. Os benefícios que o uso deste discurso traz para as monarquias locais são diversos, mas é preciso a elaboração de uma memória sobre estes feitos e a criação de 12 Os ataques ao patrimônio fundiário das igrejas e as contestações de seus direitos senhoriais auxiliam na construção desta concepção de violentia e se liga diretamente às relações feudais existentes no sistema de então. 13 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995; 14 Ver Le Goff 15 Cf. BRANCO, Maria João.A conquista de Lisboa na estratégia de um poder que se consolida. In: A Conquista de Lisboa aos mouros. Relato de um cruzado, Ed. Aires A. Nascimento, 2ª ed., Lisboa, Nova Vega, 3ª Edição, 2018; 16 Ver MATTOSO, José & SOUZA, Armindo de. História de Portugal. Antes de Portugal. Lisboa: Editora Estampa, 1993; RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995; 17 Cf. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Tradução de Maria da Luz Veloso. Edições 70, Lisboa, 1983; BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010; RILEY-SMITH, Jonathan. As Cruzadas: uma história/ Jonathan Riley-Smith; tradução de Jonathas de Castro – Campinas, SP: Eclesiae, 2019; FLORI, Jean. Op.Cit. ,2013; ORLANDIS, José. El Pontificado Romano em la Historia. Madrid: Palabra, 1999; 18 GALLI, Sidinei. A cruz, a espada e a sociedade medieval portuguesa. São Paulo: Arte & Ciência/UNIP, 1997; FRANCO JR, Hilário. Cluny e a Feudo-Clericalização de Castela,1985. Disponível em https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/36148/18992. Acessado em 19/01/2022; 19 Cf. BRANCO, Maria João. Op.Cit., 2018; 12 uma tradição: a tradição do combate aos inimigos da Igreja. Assim, na busca por fortalecimento, o condado portucalense reveste-se destes elementos e faz das razias contra os muçulmanos guerras santas. 20A conquista de Lisboa se efetua nesta racionalidade. A vitória diante dos muçulmanos precisava ser contada e celebrada. Assim, uma literatura memorialística de exaltação passou a fazer parte do programa político portucalense. De Expugnatione Lyxbonensi é uma destas memórias sobre a conquista.21 Nossa segunda hipótese, então, é demonstrar que a crônica faz parte desta literatura de exaltação. A maneira de apresentar a invasão lisboeta é a inclusão de elementos que celebram o rei dentro das políticas do período. Assim, o caminho selecionado na comprovação destas hipóteses é o seguinte: no primeiro capítulo faremos uma análise da violência nos séculos XI e XII na região da Gália, terra de origem do autor de De Expugnatione Lyxbonensi. Iniciaremos detalhando as duas concepções de violência que serão utilizadas na pesquisa. A concepção atual e a concepção em circulação nos séculos XI e XII. Para entendermos as noções atuais de um conceito tão amplo, ambíguo e polissêmico utilizaremos a Sociologia de Johan Galtung e a tripartição em violência direta, violência estrutural e violência cultural. Porém, verificam-se outras leituras complementares para tal compreensão e elas serão devidamente trabalhadas. Além disso, a compreensão da racionalidade da violência e sua instrumentalização em distintos aspectos também possibilita a percepção deste fenômeno numa lógica racional, em que propicie a leitura do poder que busca a apropriação da violência, tornando-a um meio de perpetuação daquele poder, inclusive, ocasionando a aceitação das violências como necessárias. Ainda neste primeiro capitulo, trabalharemos detidamente a Gália e a Francia Ocidental como um todo, na busca da noção de violentia que circulava na região. Uma das formas para este entendimento é recorrer às narrativas de milagres de santos. A utilização dos miracula como meio para ter acesso ao social parte de um entendimento destes documentos como uma leitura das manifestações das visões perpetuadas por um segmento social, seja como um entendimento de seu entorno ou como uma busca de 20 Cf.MATTOSO, José. Identificação de um país: Oposição-Composição: Ensaio sobre as origens de Portugal 1096-1325. Lisboa: Temas e Debates: Círculo de Leitores, 2015 21 Cf. WILSON, Jonathan : Enigma of the De Expugnatione Lyxbonensi, Journal of Medieval Iberian Studies, 2016. DOI: 10.1080/17546559.2016.1166257. Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/17546559.2016.1166257. BRANCO, Maria João. Op.Cit., 2018; BRANCO, Maria João. A conquista de Lisboa revisitada. Porto: Edições Afrontamento, 2001. MICHELAN, Kátia Brasilino. Um rei em três versões: a construção da história de D. Afonso Henriques pelos cronistas medievais portugueses. 1ª Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011; 13 imposição de alguma noção universalizante, mesmo que associada ao contexto local. Sendo assim, estes relatos oferecem ao historiador uma gama de opções e uma porta de entrada para um universo de possibilidades e para a cultura de um período. Marcus Bull é um dos defensores deste tipo de estudo que, na sua visão, ainda precisa ser melhor trabalhado. Segundo Bull, estes miracula “podem lançar uma luz valiosa sobre as aspirações religiosas, necessidades e instintos das pessoas no Cristianismo medieval”.22 Porém, além dos pontos positivos existem aspectos que necessitam de certos cuidados na utilização deste material. 23 Através destes relatos é possível acessar uma parte das impressões do cotidiano a partir das leituras que os autores fazem do meio em que vivem e, ao mesmo tempo, a ligação que estabelecem com o mundo. Independentemente de os relatos serem verdadeiros ou não, a construção da realidade nos miracula que importa ao historiador que pesquisa esta documentação: “A essência de um milagre era que representava uma justaposição entre o excepcional e o mundano”. 24A utilização de elementos rotineiros busca uma auto identificação e, ao mesmo tempo, um reconhecimento de algo que é comum para quem recebe a mensagem do miracula. O uso do cotidiano é uma “estratégia autoral sensata” 25 daquele que compila os relatos. Essa representação no relato dos milagres dos santos se aproxima da noção utilizada por Chartier em História Cultural26 quando coloca queo objetivo da representação é “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada e dada a ler, etc”. Sendo assim, os relatos sobre os milagres são significativos, pois “revelam sobre a capacidade da mentalidade histórica por parte dos escritores de milagres”. 27 Ainda de acordo com Bull, os miracula “eram reflexos e afirmações de valor para as comunidades religiosas de olhar para fora e de interagir com o mundo”. Embora não sejam um dispositivo que abarque todo o social , os livros de milagres “nos aproximam o suficiente 22 BULL, Marcus. The miracles of Our Lady of Rocamadour : analysis and translation. St Edmundsbury Press Ltd, Bury St Edmunds, Suffolk, 1999, p.10; 23 Embora haja semelhanças em relações às noções de violência, há elementos distintos em diversos outros campos pois são relatos elaborados com as particularidades locais de cada centro. 24 BULL, Marcus. Op.Cit, 1999, p.11; 25 Ibidem, p.11; 26 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p.17; 27 BULLL, Marcus. View of Muslims and of Jerusalem in miracle stories, ca. 1000-ca. 1200: reflections on the study of first crusaders’ motivations. in BULL, Marcus, e HOUSLEY, Norman (eds.), The experience of crusading.Western approaches, Cambridge: Cambridge University Press, 2004, Vol. I, p.23; 14 para vislumbrar alguns valores e percepções culturais importantes [...]”.28 Podemos pensar nesses miracula como uma maneira de obtenção de certas informações das visões, imposições, aspirações e inquietações daqueles que relatavam os milagres. A utilização dos relatos de milagres parece pertinente para a compreensão da noção que circulava entre aquelas comunidades situadas no midi francês e que perpassam noções que percorrem um itinerário mais ao Norte, abarcando grande parte da Francia Ocidental. Esse itinerário segue o caminho das assembléias de paz. A construção da ideia de violentia nos milagres e as visões existentes nestes relatos se ligam aos chamados de cruzada a ponto de reconhecermos estas noções na crônica do cruzado Raul, clérigo anglo-normando, que narra a tomada de Lisboa. Assim, percebemos ideias correlatas acerca da violência, visto que os miracula falam dos ataques às igrejas onde a Paz de Deus está presente. Consequentemente, são dessas regiões que partem os maiores contingentes cruzados nas primeiras campanhas. As noções de vingança, violência e guerra santa se constroem numa lógica situada nas mesmas regiões que presenciaram as assembleias de paz. Não é mera coincidência que estas visões tenham se desenhado a partir dos contextos que apresentaremos nas próximas páginas. Nos deteremos precisamente em três destas narrativas: os milagres de Santa Fé , os milagres de Nossa Senhora de Rocamandour e os milagres de São Privato de Mende. As ideias destes miracula se aproximam e, embora sejam de localidades diferentes, podemos ponderar sobre a lógica de violência em circulação na região. Os milagres tem como ambiente os períodos de invasões de terras da Igreja durante a Paz de Deus. Muitas destas noções estão relacionadas ao tumultuado ambiente de espoliações sofridas pelas igrejas da Gália. Ainda neste primeiro capítulo, desmitificaremos certas visões em relação ao medievo que trasmitem uma imagem do período repleto de extrema violência física, visto que os mecanismos de controle eram inexistentes, criando um ambiente de insegurança constante. A violência é presente, mas, muitas vezes, menos do que certos relatos apontam. Por isso é importante termos a consciência desta verdade construida sobre a violentia. Contabilizar uma série de atos presentes na documentação e enquadrá-los simplesmente como violência é atribuir a eles uma lógica atual que era estranha ao 28 Ibidem; 15 passado. Por isso é latente a necessidade das perspectivas “de dentro” e “de fora” que abordamos acima. No segundo capítulo, é pertinente um estudo dos fenômenos que a violência ajuda a perpetuar: guerra santa, reconquista29 e cruzadas. Tais fenômenos não eram tratados como violentos e recebiam outras nomenclaturas. Um debate historiográfico será efetuado para o entendimento sobre como a medievalística trabalha estes elementos. Guerra santa e cruzada podem estar relacionadas conforme a premissa sobre alguns rompimentos e permanências que levam ao estudo, inclusive, da antiguidade para uma percepção inserida na longa duração. Dentre alguns autores que tratam do assunto, Jean Flori, Jonathan Riley-Smith, Dominique Barthélemy, Steven Runciman, Carl Erdman, entre outros, foram divididos em escolas de pensamento divergentes e que expressaremos neste debate. Ainda no segundo capítulo nos deteremos nas narrativas sobre o concílio de Clermont de 1095 e como o chamado de Urbano II se liga às ideias presentes nos relatos de milagres. Os autores das histórias sobre as cruzadas visam a inclusão destas marchas militares e penitenciais na história da providência e criam uma narrativa coerente construindo uma identidade cristã que ignora as tensões internas que atravessava a Cristandade de então. Veremos como o discurso da cruzada é um clamor por vingança. No entanto, a vingança destinada ao “outro” não se relaciona com o sistema de vendetas internas entre os próprios cristãos. Todos estes fatores serão discutidos no capítulo dois. Neste capítulo utilizaremos, ainda, das crônicas hebraicas traduzidas pelo professor Nachman Falbel para demonstrar a importância que uma sociedade tem em sua representação e como as guerras cruzadas negam tal aspecto. No terceiro capítulo nosso foco será o reino portucalense e nos componentes envolvidos na sua constituição. A análise será efetuada abordando as visões circunscritas ao contexto afonsino, inseridas numa perspectiva ampla de extensão do sistema feudal e das fronteiras cristãs. A partir disto, trabalharemos a violência teorizada no primeiro capítulo dentro das lógicas que perpassam a conquista em si e a memória que se fez desta. A análise do ambiente da conquista e de sua escrita, efetuada posteriormente, precisa ser entendida na junção de alguns fatores: além de Afonso Henriques e a sua aliança com parte do corpo eclesiástico local, ocorre o estabelecimento de Santa Cruz de Coimbra e a 29 Da qual, a partir daqui, será chamada de expansão cristã e explicaremos, adiante, nossa escolha. 16 presença de instituições além-pirinaicas. Outro aspecto considerável é o interesse papal pela Península Ibérica que complexifica a leitura, pois cada um destes poderes tinham suas próprias intenções, fazendo com que os acordos conjugassem propensões diversas. Ainda neste terceiro capítulo veremos como se dá a consolidação destes poderes: o papa, a figura do rei e do reino diante da Cristandade. Seguindo no terceiro capítulo efetuaremos a investigação da violência praticada durante o processo da conquista de Lisboa. A crônica De Expugnatione Lyxbonensi narra a tomada da cidade e traz em seu bojo distintas políticas presentes na Cristandade Latina dos séculos XI e XII. A crônica em si, embora situada em ambiente portucalense, é uma ponte para uma globalidade. Afinal, o autor é um clérigo cruzado anglo-normando a caminho do Levante, que colabora com Afonso Henriques e permanece no reino após a conquista. Desta maneira, utilizando as teorizações do primeiro capítulo, nossa leitura se insere no escopo teórico trabalhado em relação às categorizações da violência. Outro ponto é a pertinência da compreensão sobre a constituição do discurso desta conquista, que foi elaborado com o objetivo da propagação de uma memória referente aos feitos afonsinos, mas também permeadas de elementos da doutrina cristã de então, vinculada aos poderes do período. No demais, faremos a leitura do que o autor da crônica entendiapor violentia. A noção do autor se aproxima dos miracula trabalhados no primeiro capítulo, visto que Raul é do mesmo ambiente cultural destes milagres. Além disso a escrita da crônica tentava uma aproximação da guerra contra os muçulmanos de Al- Andalus com a cruzada. No quarto e último capítulo a análise identitária da conquista será feita. A busca na construção de uma identidade cristã visa a composição, através da narrativa de Lisboa, do “nós” (cristão) e do “eles” (muçulmanos), visto que o autor era um clérigo cristão. A teorização dessas concepções de identidade e diferença nos permite também a visualização de elementos da violência que estabelecem binarismos hierarquizantes, pois na elaboração de um diferente, este é visto como um estranho ao que se considera norma. O diferente é um “outro”, um estranho num corpo que se pretende um referente universal.30 Um grupo que tenha uma consciência em si e perceba afinidades em seu 30 Não é um comportamento universal. O outro não é, necessariamente, tratado com violência. A crônica mostra a violência nesta relação, mas não se pode generalizar e transferir esta lógica para todas as relações sociais. 17 cotidiano, acaba por se constituir numa conjuntura de semelhanças que enxerga aqueles que não estão presentes num grupo como os diferentes.31 Os “outros”, na crônica, são tratados com violência. No entanto, na narrativa, o clérigo anglo-normando também se desdobra em outros sujeitos. Existe o sujeito cristão, o sujeito cruzado e o sujeito anglo normando. Este último enxerga os cristãos de outras localidades com desconfiança e, em muitos momentos, condena seu comportamento. Porém, os outros cristãos estão mais na categorias de não iguais do que, propriamente, um “outro”. Nota-se como a construção desta(s) identidade(s) é(são) fluída(s), percebendo-se diversos conflitos identitários (ou papéis sociais?) na narração dos acontecimentos. Estes conflitos colocam o autor32 numa situação de fronteira. Não há um “eu” exclusivo. O que se capta é a fragmentação da figura de Raul, que precisa lidar com a diversidade de suas experiências. Embora o “eu” seja construído culturalmente, é necessário o questionamento sobre como se dá essa construção nas relações sociais. Na Cristandade Latina ocorre o cruzamento de experiências e uma pessoa insere-se em diversos campos culturais. O autor da epístola é cruzado, mas também é um anglo- normando. Além disso, é uma figura do corpo eclesiástico. No entanto, a identidade cristã pode ser percebida em momentos distintos durante a campanha do cerco de Lisboa e apontaremos como a crônica elabora um ethos, em que as semelhanças estabelecem uma sociedade e identiticam, ao mesmo tempo, quem é o outro. Conforme Tomaz Tadeu da Silva33, geralmente consideramos que aquilo que é diferente deriva de uma concepção de identidade que normaliza. Essa normalização acaba sendo a referência, o ponto original. Segundo o autor “isso reflete a tendência de tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos.” 34 Esta identidade liga-se às relações de poder e que, na produção do que é diferente, se expressa as marcas deste mesmo poder: “incluir/excluir (estes pertencem, 31 O que não impede que se enxergue semelhança naquele que é diferente. As relações sociais são bem mais complexas; 32 Trata-se do enunciador como participante. Roland Barthes fala deste autor cesariano onde o enunciador do discurso é, ao mesmo tempo, participante do processo enunciado. Embora Barthes esteja fazendo uma reflexão sobre a escrita dos historiadores. Porém, na Idade Média tais crônicas eram um gênero literário que tinham caráter histórico. No entanto, uma história conduzida por Deus. In: BARTHES, Roland. “O discurso da história”; “O efeito de real”. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 163- 190; 33 A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 11.ed.- Petrópolis, RJ: Vozes, 2012; 34 Ibidem. p.76; 18 aqueles não), demarcar fronteiras (“nós” e “eles”), classificar (bons e maus, puros e impuros), normalizar (“nós somos normais, eles são anormais”). A crônica que narra a conquista de Lisboa apresenta uma série de conflitos entre cristãos. Estes conflitos são ocasionados pelos regionalismos. Porém, existe um “outro”, que é construído como um perigo maior para a Cristandade: o muçulmano Na crônica, este muçulmano constitui uma ameaça para o universalismo cristão. O discurso e os atos de violência que ali são cometidos inserem-se nesta lógica de “nós” e “eles”, fruto do que Derrida analisa como binarismo hierarquizante.35 Por último, situaremos De Expugnatione Lyxbonensi como um lugar de memória e entender como a crônica conserva enquanto produz esquecimento. Na elaboração de uma memória existe a seleção e esta só se efetua ao suprimir elementos que não lhe interessam. Portanto, nossa hipótese principal é comprovar que a violência está presente na crônica que narra a conquista de Lisboa. Uma violência ampla, justificada pela noção de identidade e diferença.. A outra hipótese é apontar De Expugnatione Lyxbonensi como uma memória de exaltação da monarquia portucalense com o objetivo de fortalecer a imagem do reino dentro da Cristandade Latina. Mais do que uma crônica de cruzada, consideramos que a carta do clérigo Raul tem objetivos específicos que se ligam ao rei portucalense. Uma pesquisa sobre um evento, a Conquista de Lisboa em 1147, é uma porta de entrada para um universo de possibilidades. Se debruçar sobre um fato não nos leva ao retorno de uma velha História Política. Pelo contrário. Utilizando as palavras de Georges Duby em seu livro Domingo de Bouvines, entendemos que do fato emergem vestígios que “se não nos detivéssemos nele, permaneceriam nas trevas, desapercebidos”.36 Quais são os traços dessa conquista “sobre os quais nunca se escreve”?37 35 Cf. DERRIDA, J. Limited Inc. Campinas: Papirus, 1991. 36 DUBY, Georges. O Domingo de Bouvines: 27 de Julho de 1214 / Georges Duby; tradução Maria Cristina Frias. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p.11; 37 Ibidem, p.11; 19 Capítulo 1 Os Medievais e a Violência Na percepção do senso comum a Idade Média foi um período de violentos combates travados sem controle e com derramamento excessivo de sangue. O tema de um medievo sangrento foi um lugar comum na historiografia até pouco tempo (talvez ainda seja). Comumente, o período se torna adjetivo e nomear algo de “medieval” caracteriza o que é retrógrado e imerso em barbárie. Como os medievais interpretavam os atos violentos? A violência era, de fato, incontrolável e pintava de sangue o tecido social do período? Haviam mecanismos de controle? Neste primeiro capítulo investigaremos o conceito de violência e como ele pode ser aplicado ao nosso recorte: os séculos XI e XII. Para isso, é imprescindível a compreensão deste conceito tão amplo e ambíguo: violência. Através de um diálogo interdisciplinar, o aporte teórico necessário será movimentado para a elucidação de um tema tão complexo. A utilização do conceito de violência significa certas escolhas que o historiador faz dentro de um quadro teórico pertinente para a análise pretendida. Na presente pesquisa faremos uso da Sociologia de Johan Galtung em consonância com alguns outros historiadores, antropólogos e sociólogos que trataram e tratam do tema e que possibilitem um diálogo com nossas perspectivas. Partindo desta conceituação buscaremos a compreensão da noção de violência existente nos séculos XI e XII. A dialética entre as visões de violência nos permite transitar entre dois modelos distintos a partir da percepção dos próprios períodos específicos. Afinalde contas, como é possível uma abordagem sem anacronismos quando falamos de violência na Idade Média Central? Numa dialética entre o êmico e o ético. 1 No estudo destas duas modalidades, realizaremos a investigação sobre alguns dos movimentos que surgem no período e que se apropriam da violência como forma legitimadora de ação cristã: a guerra santa, a conquista dos reinos cristãos ibéricos e as cruzadas. 1 Onde se busca compreender as noções em circulação na própria sociedade que se estuda (êmico) ao mesmo tempo com as noções utilizadas pelos que estudam estas sociedades. Para maiores detalhes ver: ROSA, M.; OREY, D. C. O campo de pesquisa em etnomodelagem : as abordagens êmica, ética e dialética. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 04, p. 865-879, out./dez. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v38n4/06.pdf; BERRY, John W. Emics and etics: a symbiotic conception. Culture & Psychology, v. 5, p. 165-171, 1999; http://www.scielo.br/pdf/ep/v38n4/06.pdf 20 Portanto, neste primeiro capítulo situaremos um debate teórico e historiográfico sobre os temas citados além de buscar, dentro de nossa visão, uma concepção pertinente desses fenômenos que se mostrará propício ao posterior objeto de análise: a conquista de Lisboa. 1.1 Conceituando violência A Organização das Nações Unidas 2 entende a violência como o uso intencional da força física ou do poder, “real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação”.3 Esta definição básica apontada pelo órgão internacional serve como guia para a nossa reflexão sobre um fenômeno tão estudado e, mesmo assim, tão controverso. Como ponto de partida, destaquemos a questão da intenção. A violência só existe caso esteja ligada diretamente ao ato intencional? Não existe violência na ausência da intenção? Esta perspectiva é problemática. A ausência de intenção não descaracteriza algo como violento. Para Johan Galtung, a questão da intencionalidade está associada a um tipo específico de violência: a violência direta. A violência direta é identificada visualmente e, quase sempre, noticiada em telejornais e notícias no geral. Concerne ao ato que é possível a identificação de um emissor e um receptor. Para Galtung “se há um ator intencionado sobre as consequências dessa violência, podemos falar de violência direta.” 4 Esta violência tem o intuito de ferir outrem, de atentar contra uma pessoa para infligir-lhe dano físico ou psicológico. No entanto, o ato físico em si advém de um processo complexo e que se situa fora de nossa visão. Quando não se relaciona com uma reação, ligada com a própria defesa, a violência direta é a ponta do iceberg de outras duas categorias trabalhadas por Johan Galtung: a violência estrutural e a violência cultural. Reunindo essas categorias e legitimando-as se encontra o poder. 2 A definição é da Organização Mundial da Saúde (O.M.S.). Se trata de uma agência pertencente a Organização das Nações Unidas e tem o intuito de direcionar a saúde internacional dentro do sistema das Nações Unidas e liderar parceiros nas respostas globais à saúde. Conforme resolução WHA49.25, a violência é um dos principais problemas mundiais de saúde pública; 3Krug EG et al., eds. World report on violence and health. Geneva, World Health Organization, 2002, p.5; 4GALTUNG, Johan. Paz por medios pacíficos: paz y conflito, desarrollo y civilización. 2003, p.20; 21 A ideia de poder aplicada aqui vai ao encontro das noções trabalhadas por Michel Foucault em sua fase genealógica. O poder, neste caso, é relacional e capilar. Ele “se configura como um conjunto de práticas que possibilitam que alguns possam conduzir ou governar a conduta de outrem exercendo uma interferência sobre seu campo de possibilidade de ações”. 5 O caráter microfísico percebe as relações de poder de forma pulverizada, distribuídas pela sociedade e não como algo exclusivo de caráter jurídico6 ou mesmo sinônimo de opressão. Ou seja, “o poder circula entre todos os indivíduos, haja vista que não se pode conceber um sujeito apartado de relações de poder”. Para Foucault: O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles.7 O poder e as relações advindas dele não estão acima da sociedade, regendo-a. Ele se encontra em circulação nas pessoas e emana delas. Assim, o poder se dá em diversos estratos sociais. Poder eclesiástico, poder familiar, poder laico e uma infinidade de outros que se conectam e se reproduzem em acordos ou conflitos. O poder não é simplesmente pura dominação, pois sua existência se dá na possibilidade de resistência. Nas relações de poder se verifica os que submetem e os submetidos. Existem instrumentos variados para o exercício de uma submissão; dentre eles a violência. Em concepção similar Hannah Arendt define poder como Habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas enquanto o grupo se conserva unido. Quando dizemos que alguém está “no poder”, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome. A partir do momento em que o grupo do qual se originara o poder desde o começo (potestas in populo: sem um povo ou grupo não há poder) desaparece, “seu poder” também se desvanece. Em seu uso corrente, quando falamos de um “homem poderoso” ou de uma “personalidade poderosa”, já usamos a palavra “poder” metaforicamente; aquilo a que nos referimos sem a metáfora é o vigor.8 5COSTA, Helrison. Poder e Violência no pensamento de Michel Foucault. Belo Horizonte: Sapere Aude, 2018, p.155; 6 Para Hannah Arendt “todas as instituições políticas são manifestações e materializações do poder”. In. ARENDT, Hannah. Sobre a violência/ Hannah Arendt; tradução de André de Macedo Duarte. – 11ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020; 7 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23. ed. São Paulo: Graal, 2004, p.193; 8 ARENDT, Hannah. Op.Cit., 2020, p.61; 22 Portanto, a capilarização do poder nos permite entendê-lo nas relações sociais. Onde existem pessoas, o poder está presente.9 Para Deleuze força e poder tem uma relação direta. De acordo com o autor, a força não pode ser usada no singular, pois uma força está sempre em relação com outra força. Ou seja, “toda força já é relação, isto é, poder”. Foucault pensa em “relações de poder” como ideia de força.10 Porém, não são sinônimos de opressão ou violência. Assim, trabalhamos o poder como relação. São relações assimétricas, que se detecta certo grau de autoridade e obediência. Porém, não são exercidas sempre de maneira violenta. A violência é instrumentalizada pelos poderes com intuitos diversos e pode ser utilizada, inclusive, como resistência pelos submetidos. Em vista disso, poder e violência são dois elementos que se associam e se perpetuam através das relações sociais. No entanto, a capacidade da identificação de um ato como violento se altera conforme lugar e tempo. A compreensão da violência é determinada culturalmente pois “algumas pessoas tencionam ferir outras, mas com base em seus antecedentes culturais e suas crenças, não percebem seus atos como violentos”.11 Inclusive, uma mesma sociedade têm diferentes entendimentos do fenômeno. Para Robert Muchembled 12 “a percepção do fenômeno varia no seio de uma mesma civilização, especialmente em função dos grupos sociais, das idadese do sexo”.13 A estrutura social determina a capacidade de assimilação sobre um ato ser qualificado como violento ou não e, inclusive, utilizar-se desta capacidade de determinação, sempre associada com o poder, na legitimação do uso da violência. Uso este que, muitas vezes, guia as relações sociais. Relações que são pautadas por violência e, ao mesmo tempo, não percebidas desta forma. Neste caso, estamos falando da violência estrutural. Nesta modalidade, a intencionalidade não está na base. Ou seja, a violência existe mesmo sem a intenção de praticá-la. Sendo assim, não é imperativa a identificação de um emissor. A motivação dos atos está na estrutura da sociedade. A violência estrutural também é chamada de violência indireta. “A violência indireta provém da própria estrutura social: entre seres humanos, entre conjuntos de seres humanos (sociedades), 9 Ver SANTOS, Paulo Rodrigues. A concepção de poder em Michel Foucault. 2016. In: Especiaria- Caderno de Ciências Humanas. V.16, n.28, jan/jun. 2016, p.261-280, pp.262-263; 10 Ibidem, p.262; 11 Cf. Walters RH, Parke RD. Social motivation, dependency, and susceptibility to social influence. In: Berkowitz L, ed. Advances in experimental social psychology. Vol. 1. New York, NY, Academic Press, 1964 pp.231-276. 12 MUCHEMBLED, Robert. História da Violência: do fim da Idade Média aos nossos dias/Robert Muchembled; tradução: Abner Chiqueri. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. 13 Ibidem, p.13. 23 entre conjuntos de sociedades (alianças, regiões)”14 . Esta categoria de violência é a consequência de um processo de relações históricas que dão fruto às desigualdades. Conforme Johan Galtung: “Nós nos referimos ao tipo de violência onde há um agente que comete a violência como violência pessoal ou direta, e a violência onde não há ator como violência estrutural ou indireta. Em ambos os casos os indivíduos podem ser mortos ou mutilados, atingidos ou machucados em ambos os sentidos dessas palavras e manipulados por meio de estratégias e porretes. Mas enquanto no primeiro caso essas consequências podem ter sua origem traçada de volta até pessoas e agentes concretos, no segundo caso isso não é mais significativo. Talvez não haja nenhuma pessoa que diretamente cause danos a outra na estrutura. A violência é embutida na estrutura e aparece como desigualdade de poder e, consequentemente, como chances desiguais de vida.”15 A capacidade socializadora da violência demonstra que a coesão das estruturas sociais se dá nas relações de força e na imposição de alguns grupos sobre outros. A imposição violenta sobre outros grupos não significa, necessariamente, que quem sofre a violência esteja num mesmo ambiente social-cultural compartilhado. Como é o caso da guerra entre duas sociedades distintas. O grupo ou os grupos (aliança) que vence(m) o conflito promove(m) a paz dos vencedores. O rito da paz nada mais é que que a afirmação da violência vencedora. 16 A imposição da estrutura de quem vence ocorre em muitos momentos por meio da reprodução de certas configurações através da força ou compensação material devida por parte daqueles que foram vencidos. Um exemplo pode ser a cobrança de tributos extras, multas e exclusões que promovem marginalização de um grupo social específico. As estruturas que estimulam a violência interna e externa à(s) sociedade(s) são legitimadas por uma outra categoria do fenômeno chamada de violência cultural. Essa categoria se expressa, por exemplo, quando se impõe modelos de comportamento à sociedade ou setores sociais submetidos. Esses modelos de comportamento guiam as estruturas que promovem a violência física, por exemplo. Em sua obra Paz por medios pacíficos: paz y conflito, desarrollo y civilización Johan Galtung 14 GALTUNG, Johan. Op.Cit,, 2003, p.20; 15 GALTUNG, Johan e Höivik. Structural and direct violence: A note on operationalization. Journal of Peace Research, vol. 8, no. 1, 1971, pp. 73–76. JSTOR, www.jstor.org/stable/422565; Acessado em 11/02/2022; 16 Cf.BENJAMIN, Walter. Para una crítica de la violência. In: Benjamin, Walter, Conceptos de filosofía de la historia, Buenos Aires, Terramar, 2007 Apud DEVIA, Cecília. Violencia y dominación en la Baja Edad Media castellana. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires : Editorial de la Facultad de Filosofía y Letras Universidad de Buenos Aires, 2014, p.28; http://www.jstor.org/stable/422565#_blank 24 faz a seguinte pergunta: por que as pessoas matam? O próprio responde que “em parte porque assim foram socializadas, não diretamente para matar, mas, vendo que matar é legítimo em algumas ocasiões”.17 De acordo com Galtung, a legitimidade na prática da violência é baseada na cultura. No entanto, a mesma cultura que colabora para a legitimação de atos violentos também é utilizada para a promoção da paz.18 Nota-se que “a violência não é culturalmente aberrante, mas embutida nas estruturas de significado promovidas pela própria sociedade.” 19 Na esfera da violência cultural se legitimam e se justificam as outras categorias citadas e que promovem, no âmbito discursivo, tais violências. São elementos embutidos na própria linguagem, fazendo desta linguagem uma das instâncias de perpetuação e fixação da violência numa sociedade. Ou seja, é a esfera simbólica da existência humana exemplificada nos mecanismos que dão sentido àquela. Por exemplo: religião, arte, ciência, etc. O aspecto cultural faz com que a violência direta e estrutural seja sentida como correta; ou pelo menos, não errada. 1.2 A violência como instrumento político A utilização da violência como um meio para determinado fim é uma variante que precisa ser analisada de acordo com o recorte que se busca. Ou seja, o que se pretende no uso das mais variadas formas de violência? O uso político da violência só pode ser compreendido a partir, primeiramente, da concepção acerca deste político e o seu significado. Nosso entendimento de político empregado aqui se relaciona com a noção da Nova História Política, atrelada às novas maneiras de escrever a História desde Marc Bloch e a obra Os Reis Taumaturgos. O trabalho fundante de Bloch revolucionou a forma de pensar o político. No prefácio da obra, Le Goff afirma que Marc Bloch, fundando a 17 GALTUNG, Johan. Op.cit, 2003, p.25. 18 O argumento corrobora, inclusive, para demonstrar que guerra e violência são promovidas, majoritariamente, pelos homens. Os homens a promovem por estarem inseridos em culturas patriarcais que constroem papeis de gênero. Robert Muchembled afirma, por exemplo, que “o elo primordial não se estabelece entre violência e a masculinidade por esta ser um dado biológico. Liga-se com a virilidade, uma noção definida por cada sociedade, no quadro da determinação dos gêneros sexuais de que ela reconhece a existência”. 18 Ou seja, em sociedades patriarcais, grande parte dos atos de violência acabam sendo masculinos. 18 Porém, agir com virilidade pode, também, ser um comportamento feminino. A categoria “viril”, geralmente, se atrela ao papel do gênero masculino em sistemas patriarcais, mas não é exclusivo àquele. Cf. MUCHEMBLED, Robert. Op.Cit., 2012; 19 SKOODA, Hannah. Medieval Violence: Physical Brutality in Northern France 1270-1330. Oxford: Oxford University Press, 2013, pp,1-2; 25 Antropologia Histórica, acaba apelando ao retorno da História Política. No entanto, uma História Política renovada na qual “[...] corre o fio condutor das coisas profundas, a busca de uma história total do poder, em todas as suas formas e com todos os seus instrumentos”. 20 Busca-se enxergar a política em vários âmbitos a partir de uma nova concepção de poder que proporcione“uma história do poder na qual este não esteja nem separado de suas bases rituais nem privado de suas imagens e de suas representações”. 21 Embora alguns aspectos da obra clássicatenham sido superados, é perceptível a importância do historiador em seu caráter inovador. Esta nova maneira pensa a política numa mudança de compreensão sobre o que é poder. Para o entendimento desta nova História Política é necessário, conforme José D’Assunção Barros, 22 um vislumbre sobre os recentes interesses da área, como o discurso, o imaginário, o teatro do poder, a história das ideias políticas, a história conceitual e as modalidades historiográficas híbridas que conectam a história política com outros campos de estudo, tal como a história cultural. 23 De acordo com o autor, o conceito de política se beneficiou da expansão da concepção de poder, assim como a noção de cultura nos estudos antropológicos. Da mesma forma que a cultura não se situa somente nas elites e na ideia de um conhecimento restrito, a política e o poder não são encontrados apenas no âmbito do Estado: “Estes objetos só puderam surgir quando se transmudou efetivamente a noção de “poder” com a qual até então os historiadores haviam operado. Quando atentaram para o fato de que o Poder não se encontra necessariamente no aparelho estatal e em outras formas de centralidade política, e nem mesmo exclusivamente no seio das classes dominantes, os historiadores políticos começaram a se voltar para o estudo das ‘relações interindividuais’ – da família, das vizinhanças, da vida cotidiana – e também para o estudo dos ‘discursos’ e ‘representações’. Compreendiam agora, concomitantemente à descoberta de novas possibilidades de objetos de estudo, que o Poder não está necessariamente onde se anuncia, de que esse mesmo poder pode se esconder nas palavras, nas tecnologias de poder relacionadas com a construção de discursos.”24 A noção apresentada aqui é a compreensão do político em seus diversos aspectos, nos variados estratos da sociedade e não apenas num âmbito específico. “os objetos da 20 LE GOFF, Jacques. Prefácio in: BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: O caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra/ tradução Júlia Mainardi. – 2ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras,2018, p.42 21 Ibidem, p.42. 22 BARROS, José D’ Assunção. BARROS, José D, Assunção. História Política: da expansão conceitual às novas conexões intradisciplinares. OPSIS, Catalão, v. 12, n. 1, p. 29-55, 2012. Disponível em https://www.revistas.ufg.br/Opsis/article/view/17338. Acessado em 11/04/2021; 23 Ibidem, p.29; 24 Ibidem, p.34; https://www.revistas.ufg.br/Opsis/article/view/17338 26 História Política passam a ser todos aqueles que se mostrem atravessados pela noção de “poder” em todas as direções e sentidos, e não mais exclusivamente de uma perspectiva da centralidade estatal ou da imposição dos grupos dominantes de uma sociedade”.25 Sendo assim, a violência, como instrumento político, ultrapassa aquilo que geralmente se pensa sobre ela. Um instrumento que vai além da prática de uma guerra ou de conflitos. Se a noção de política e poder abarca os mais variados aspectos, a violência segue caminho semelhante. O emprego de atos violentos como política é algo além da agressão física. A política que usa a violência como instrumento se utiliza dos símbolos, do discurso, do apagamento e da exclusão. Estes elementos legitimam e promovem o ato físico, que se torna o mais visível. O fato (o ato físico) está inserido numa conjuntura e a conjuntura alimenta o fato. São partes de um todo que dialogam e se legitimam. No entanto, embora o poder e a violência estejam presentes em diversos âmbitos, a capacidade de apropriação de sua legitimidade, da justificativa e do próprio emprego do termo (é violência ou não é violência) se atrela aos poder com capacidade para tal. Pois este poder é fruto dos sistemas que o mantém capaz em sua dominação. A formação do discurso acerca da violência produz os regimes de verdade que excluem àqueles que não estão incluídos nestes regimes. 26 A violência, como instrumento, é racional. Para Foucault 27 “o que existe de mais perigoso na violência é sua racionalidade. Certamente, a violência é em si mesma horrível, mas a violência encontra sua ancoragem mais profunda na forma da racionalidade que nós usamos”.28 O que notamos, na concepção de Foucault, é que a razão está na conduta humana e, portanto, a utilização da violência encontra uma maneira de ser. O poder que se utiliza da violência o faz pautado na razão, pois a prova cabal da racionalidade é a própria justificativa. O poder justifica a violência através de diversos dispositivos. De acordo com Foucault “entre a violência e a racionalidade não há incompatibilidade”. 29 No entanto, quando se fala da razão do poder que justifica o emprego desta violência é preciso a abordagem das “razões”, pois “a razão”, no singular, é incompatível com as propostas de Foucault. O uso de “razões”, no plural, visa a 25 Ibidem, p.32. 26 Cf. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996; 27 FOUCAULT, Michel. étudie la raison d’État. Dits et écrits II- 1976-1988. Paris : Gallimard, 2001; 28 Ibidem, pp-857-858; 29 Ibidem, pp- 857-858; 27 compreesão do fenômeno como histórico, de acordo com as lógicas próprias de cada período. A violência e a capacidade de interpretá-la como tal, assim como sua utilização, varia conforme a episteme da época. São expressões diversas das razões que movimentam os poderes. Ou seja, “proeminentemente política, a violência não é uma ideia universal. É uma categoria histórica, variável, aberta a diferentes entendimentos do justo e do injusto, do aceitável e do repugnável, do útil e do nulo”. 30 O poder que detém a autoridade se apropria do discurso e constrói uma verdade sobre o uso da violência, fazendo desta um instrumento, inclusive, na determinação de um ato como legítimo, ilegítimo, violento ou não violento. A compreensão da racionalidade existente nas práticas deste poder permite alcançar o âmago de seus objetivos. Um meio para um fim e não um fim em si mesmo. A violência é racional, e não um instrumento neutro e ilógico. Neste sentido, o uso e a capacidade de reconhecimento da violência não é inata ao ser humano e sim "resultado dos procedimentos políticos que predominam numa época, isto é, é efeito de formas difundidas de classificação das ações segundo as razões, os motivos e os interesses de certos grupos”. 31 O controle da licitude de algo passa, muitas vezes, pela forma como se intitula determinadas ações. A não-percecpão de uma atitude, uma política ou uma relação social como violenta diz bastante sobre a época analisada e sua produção de verdades. Sendo assim, “o controle da legitimidade passa, em grande medida, pelos nomes que se dá à violência, pela definição que se impõe dos conflitos [...] qualificar um ato ou processo violento com um nome determinado implica outorgar um significado que não se pode entender separado das relações de poder e dominação que o produz”.32 O discurso é uma destas instâncias de produção e legitimação do fenômeno em si. A difusão de um discurso acerca de uma realidade produz efeitos de verdade permeadas de efeitos de poder. O objeto do discurso não o funda, mas o jogo de regras que definem as transformações destes objetos. Ou seja, a existência do fenômeno da violência não 30 RUST, Leandro Duarte. Bispos Guerreiros: violência e fé antes das Cruzadas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018, p.115; 31 Ibidem, p.114; 32 ALFONSO, Antón Isabel. Introdução in: Alfonso Antón, Isabel - Escalona, Julio - Martin, Georges (Coords.), Lucha política. Condena y legitimación en la España medieval, Annexes des Cahiers de linguistique et de civilisation hispaniques médiévales, N° 16, 2004; 28 produz o discurso sobre esta, mas os discursos que qualificam o ato violento que tem a capacidade na construção de uma verdade acerca daquela. Esta vontade de verdade muda de acordo com a época. Como instrumentopolítico, a violência acaba tendo funções. O poder quando se utiliza do fenômeno acaba (de forma intencional ou não) desempenhando papeis para estas violências. Em sua tese de doutoramento intitulada Violencia y Dominación en La Baja Edad Media Castellana,33 a historiadora Cecilia Devia enumera sete funções da violência: função socializadora, função de troca, função econômica, função de justiça, função fundacional, função cultural, função simbólica. Em nossa pesquisa, utilizaremos das funções socializadora, de justiça, cultural e simbólica. Adiante aplicaremos devidamente estas funções ao nosso recorte. A função socializadora da violência promove junção e dispersão. O ser humano é um ser social e em suas relações a linguagem promove distintas interpretações a respeito daquilo que o cerca. As interpretações acerca de si e dos outros são construídas no âmbito desta socialização que gera certa coesão. A coesão não evita conflitos internos, mas a conduta em relação ao outro perdura através de uma construção que gera o rechaço. Todo grupo que se constitui uno diante dos outros promove sua própria identidade através do estabelecimendo daquilo que não é. A capacidade de se pensar como “nós” exclui o estranho. Esta exclusão se dá, muitas vezes, de forma violenta. De acordo com Cornelius Castoriadis34 decorre da instituição social uma necessidade no reforço de sua posição através de leis, valores, regras e significações próprias. Quando se verifica o encontro de uma sociedade com outras, geralmente, existem três possibilidades de avaliação. Estes “outros” são superiores, iguais ou inferiores. A constituição de uma unidade (por mais que haja fragmentações internas) pressupõe fronteiras. Embora estas fronteiras sejam voláteis, a distinção e a separação são partes da sociabilidade. A elaboração destas diviões separa e distingue. Na distinção, violências são infligidas tanto interna quanto externamente. Internamente através das divisões sociais e das hierarquias que se constituem pelo domínio material. Inclusive, muitas unidades são constituídas por imposição. Externamente, no plano perceptível do 33 DEVIA, Cecília. Violencia y dominación en la Baja Edad Media castellana. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires : Editorial de la Facultad de Filosofía y Letras Universidad de Buenos Aires, 2014; 34 CASTORIADIS, Cornelius. “Las raíces psíquicas y sociales del odio”, en Castoriadis, Cornelius, Figuras de lo pensable (Las encrucijadas del laberinto VI), Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2001, pp. 183-196; 29 “outro”. Através do contato com o outro, pode haver recusa ou aproximação. Geralmente, algumas aproximações se efetuam com o intuito de empreender conflito diante de um terceiro grupo, que pode ser um rival em comum. A guerra implica em alianças, mesmo que estas se rompam em algum momento. No entanto, nem todas as relações sociais são baseadas completamente na violência. Porém, é possível uma reflexão sobre o fenômeno como um promotor de socialização. Conforme relata Muchembled “a brutalidade das relações humanas compõe uma linguagem social universal considerada normal e necessária no Ocidente até pelo menos o século XVIII ”.35 As identidades estruturam um grupo através de políticas, lógicas, compartilhamento de ideias, cultura etc. Estas identidades impelem as diferenças. Ao se estabelecerem dessa forma, nas relações sociais, estes elementos se definem (identidade e diferença) discursivamente, linguisticamente e performaticamente. Para Tomás Tadeu da Silva36 tais definições estão sujeitas a vetores da força e relações de poder. Portanto, as identidades podem promover a violência. “O poder de definir identidade e de marcar a diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder”.37 Poder que normaliza e hierarquiza. A promoção destas hierarquias não é feita sem a presença de violência. 38 A função de justiça na aplicação da violencia está ligada ao que se considera justo no período em análise. Porém, justiça e direito são coisas distintas e muitas vezes associadas como o mesmo princípio. As justiças que promovem a violência estão ligadas às leis escritas ou ao costume. A execução da justiça e sua concepção para a sociedade que a produz e reproduz está atrelada aos elementos não fixados. Em outras palavras, aquele que cria e aplica a justiça pode ser uma pessoa, um grupo de pessoas ou um elemento abstrato, como o Estado. O Estado não é meta-histórico e sua criação é fruto das relações entre as pessoas. Ou seja, faz parte do social. No entanto, a justiça se aplica de forma diferente num Estado burguês, pois este detém configurações que atribuem o exercício da justiça ao poder responsável por sua constituição e o promotor, neste contexto, é um artefato “neutro”. Ou assim se constrói a imagem acerca desta neutralidade. O Estado não é neutro, mas o discurso o apresenta desta maneira. O 35 MUCHEMBLED, Robert. Op.Cit., 2012, p.8; 36 Cf. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 11.ed.- Petrópolis, RJ: Vozes, 2012; 37 Ibidem, p.81. 38 A violência estrutural e cultural, que se encontram na base da legitimação da violência direta. Cf. GALTUNG, Johan. Op.Cit., 2003. 30 elemento da justiça se conecta com a ideia de reparação. Esta reparação busca uma recuperação ou equilíbrio de um mal perpetrado no seio de uma sociedade. Um mal que é avaliado por um grupo que, como tal, impõe o necessário para sua tentativa de superação. A justiça pode ser analisada como uma vingança institucionalizada. A justiça que executa assassinatos é vista, também, sob este ângulo. Uma justiça baseada na equidade está ausente em sociedades desiguais. Desta forma, o exercício dessa justiça encontra-se, em sua base, equivocada. O lado que detém a autoridade é quem comanda a aplicação da justiça. Sendo assim, a justiça tem um lado e esse lado constrói sua concepção de justo baseado na vingança. O direito, que se distingue da justiça, não é aplicável sem a justiça. Por isso, conforme afirma Jacques Derrida 39, a relação justiça-direito é paradoxal já que a justiça tem necessidade do direito para ser efetiva. Ou seja, “se a justiça não é necessariamente o direito ou a lei, ela só pode tornar-se justiça, por direito ou em direito, quando detém a força, ou antes quando recorre à força”.40 A análise de Derrida estabelece a busca de uma justiça que não seria a pura aplicação das leis. Quando a justiça se atrela ao direito ela se torna violenta, pois a lei só é aplicada com o uso da força.41 Portanto, nossa análise de violência e justiça está atrelada à justiça quando utilizada para a aplicação do direito, que necessita se revestir de um caráter justo para a sua legitimidade e aplicabilidade. A justiça é uma das funções dos reis e da violência cristã nos séculos XI e XII, conforme será demonstrado adiante. A vingança foi, por muito tempo, unma das bases da honra. A honra ofendida deveria ser respondida de maneira equivalente até que a retratação da ofensa fosse alcançada. A reparação daquele que porta a vestimenta do justo se aplica, muitas vezes, na utilização da violência. Porém, esta violência pode ser chamada apenas de justiça. 42 Tudo depende de quem determina um discurso integrado ao regime de verdade, nomeando os atos. Violência e justiça se combinam e se separam numa linha tênue de interpretações que variam conforme os detentores da “verdade”. 43 Um mesmo ato pode ser nomeado de justiça ou violência de acordo com a lógica temporal e regional, pois a violência não é um fenômeno dado. Existem outras lógicas e o entendimento das 39 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.17; 40 Ibidem, p.17; 41 Ibidem,p.08; 42 Justiça que se atrela ao direito. Seja o direito natural ou o direito positivado. 43 Aqui se aplica o regime de verdade foucaultiano. Cf. FOUCAULT, Michel. Op.Cit., 1996; 31 diferença é um exercício complexo na percepção de realidades distintas lidando com o que, aparentemente, é igual. Violência para uns e justiça para outros, pois a linguagem existe no tempo. Não é por acaso que a imagem da justiça é representada, desde tempos antigos, por uma arma (espada, lança, adaga etc). A ideia sobre ser um ou outro fica na dependência de alguém ter autoridade para torna-la verdadeira. Trata-se de uma criação, ligada aos interesses do poder dominante, ou que se pretende dominante. Verdade e realidade não são sinônimos na análise acima, mas dois aspectos distintos. Um discurso sobre uma realidade é a construção de uma verdade. Uma ideia só se torna verdade se estiver no regime de verdade.44 Quando atrelamos justiça à paz relacionamos esta paz, muitas vezes, como o contrário da violência. Todavia, a análise não se dá desta maneira. A noção de paz vincula-se à violência conforme a sociedade. Abordamos acima o tema da representação imagética da justiça, onde há uma pessoa na posse de uma arma. A arma representa a força com a qual se exerce a justiça. A força não significa, necessariamente, violência. No entanto, quando se faz uso da força contra outra pessoa ou grupo de pessoas aí se encontra a violência. A forma como se aplica a justiça está atrelada ao uso da força e, desta maneira, é importante compreender qual a imagem existente em dada sociedade acerca da aplicação de ambas. A função cultural da violência estabelece a base que legitima os atos e as desigualdades. A vingança é um exemplo de um fenômeno que encontra legitimidade numa cultura que se engendra desta forma. Para vislumbrar esta função cultural da violência é necessário a compreensão que a violência cultural e seu estudo explica a violência direta e estrutural.45 Na análise de Johan Galtung “uma das maneiras de atuação da violência cultural é modificar a cor moral de um ato, passando do roxo/incorreto ao verde/correto ou, ao menos, ao amarelo/aceitável”.46 Para Galtung, a violência cultural faz da realidade algo opaco, pois diversas vezes alguns atos violentos não são vistos como tais. 47 Johan Galtung aponta um quadro de quatro necessidades básicas da humanidade. Estas necessidades são garantias que se consolidam na ausência de certos tipos de 44 Cf. FOUCAULT, Michel. Ibidem; 45 GALTUNG, Johan. Op.cit, 2003, p.262; 46 Ibidem, p.262; 47 Ibidem, p.262; 32 violência .48 Ao contrário, quando um tipo de violação ocorre há a negação destas necessidades. Vejamos ( necessidades e violências): necessidade de sobrevivência, onde não pode ocorrer a violência da morte provocada nem a mortalidade; necessidade do bem- estar, que só é possível sem o sofrimento físico ou mental e sem a falta de saúde; a necessidade da representação, que se dá na negação da violência da alienação ou exclusão; por último, a necessidade da liberdade que se dá onde não existe repressão. A negação destas necessidades ocorrem numa sociedade permeada pela violência cultural. Uma estrutura violenta, legitimada culturalmente, deixa marcas não apenas no corpo, mas na mente e no espírito. 49 A função simbólica da violência se confunde, muitas vezes, com a cultural pois se encontra na linguagem e nas diversas instâncias sociais que legitimam os atos e políticas diversas. Para Cecília Sardenberg, é na linguagem que se manifesta e produz essa violência simbólica. Tais produções estão no âmbito da arte, da religião, das leis e “outros sistemas simbólicos, que reforçam as relações assimétricas e hegemônicas, desqualificações, preconceitos e violências de todo o tipo. A violência simbólica se infiltra por toda a cultura, legitimando os outros tipos de violência”.50 O poder também se mantém por meio destas lógicas simbólicas através do uso violento já que “a função simbólica da violência é também uma forma de construir poder, porém de uma maneira eufemizada, as vezes mais sútil, por meios de ritos etc”.51 A manutenção das desigualdades e do acesso restrito aos privilégios materiais proprociona ao poder hegemônico a utilização desta função simbólica da violência. A dominação no âmbito do discurso e a busca por legitimação, fazendo uso dos arcabouços propícios, cria uma base que sustenta certos poderes e faz da violência simbólica um elemento de difícil percepção já que está interiorizada no social de tal forma que sua identificação não é sentida ou, ao menos, vista como necessária. Ou seja, é mister que um segmento social esteja no comando, exerça exploração e se mantenha assim através da circulação de símbolos, doutrinas, leis etc. Se constrói um poder pautado na necessidade deste poder para o bem de uma sociedade. 48 São violências que se geram dentro da violência cultural, estrutural e direta. Para maiores detalhes ver: GALTUNG, Johan. Op.Cit., 2003; 49 Ibidem, p.264; 50 SARDENBERG, C.M.B. A Violência simbólica de gênero e a lei antibaixaria na Bahia. Observe: NEIM/UFBA, 2011. Disponível em http://www.neim.ufba.br/wp/wp-content/uploads/2019/08/violencia- de-genero-repositorio.pdf. Acessado em 28/01/2022; 51 DEVIA, Cecília. Op. Cit., 2014, pp.243; 33 As funções da violência que foram citadas serão apresentadas na análise da conquista de Lisboa. A investigação pauta-se num campo teórico moderno, do qual se apresentam concepções de violência que são vistas assim a partir de nossa contemporaneidade. Porém, um questionamento é necessário: como utilizamos, sem anacronismos, desta perspectiva teórica para os séculos XI e XII? A pesquisa em etnomodelagem aponta um caminho. A dialética entre o êmico e o ético descortinam uma cultura e suas categorias internas na observação e análise com as ferramentas teóricas propícias de investigação. Os termos em si (êmico e ético) são analogias em relação aos observadores de “dentro” e de “fora”. Em outras palavras, a abordagem ética é uma análise dos aspectos de uma cultura com as categorias daqueles que pesquisam (historiadores, antropólogos etc), geralmente com conceitos abrangentes e que traduzam para o âmbito acadêmico o que foi empiricamente verificado. A abordagem êmica visa a compreensão de uma cultura com base em suas próprias referências; ou seja, em sua interioridade. 52 Uma pesquisa em História Medieval que esteja ancorada em referenciais da própria sociedade analisada é baseada numa abordagem êmica. Por exemplo a análise da violência nos séculos XI e XII tendo por base apenas o que as pessoas do período entendiam como algo violento, faz da pesquisa um trabalho êmico. Porém, se sobrevém uma prioridade no uso de categorias modernas de violência o trabalho está situado na perpectiva ética. Não obstante, existe uma outra categoria de análise na etnomodelagem que coloca a dialética como uma possibilidade para o pesquisador. John Berry53 aponta que, mesmo que pareçam conflitantes, em alguns momentos, tais abordagens podem ser complementares. A partir deste raciocínio, em vez de um conflito entre as perspectivas, se realiza um salto qualitativo na compreensão sobre questões importantes na investigação.54 O que essa abordagem dialética torna possível é que os investigadores possam ser tanto observadores internos quanto externos de um contexto cultural.55 Ou seja “a especificidade cultural pode ser mais bem compreendida se embasada na comunidade e na universalidade de teorias e métodos”.56 52 Cf. ROSA, Milton e OREY, Daniel Clark. Op.Cit., 2012; 53 BERRY, John. Emics and etics: a symbiotic conception. Culture & Psychology, v. 5, p. 165-171, 1999; 54 ROSA, Milton e OREY, Daniel Clark. Op. Cit, 2012, p.872. 55 Ibidem, p.873; 56 Ibidem, p.873; 34 Dentro do que foi dito, nossa análisefoca na perspectiva dialética. Com esta proposta dialética, entenderemos o fenômeno da violência atualmente, estabelecendo um diálogo com as noções percebidas em nosso recorte temporal e local. O estabelecimento deste diálogo a partir da atualidade na visualização das ideias em circulação no medievo nos auxilia na comprreensão daquilo que parece, muitas vezes, latente aos nossos olhos, mas tem uma lógica própria. Uma ressalva precisa ser estabelecida: a parte êmica da dialética demanda ser entendida dentro das limitações existentes. O acesso ao passado está condicionado pelos vestígios legados por uma parcela específica da sociedade. Na Idade Média Central significa uma parcela diminuta das pessoas. Estas pessoas, aqui, são os homens da Igreja. O medievalista, ao contrário do etnógrafo, não habita na sociedade que pesquisa. Sendo assim, como a violência era vista nos séculos XI e XII na Cristandade Latina? Como os poderes laicos e eclesiásticos percebiam o fenômeno e como ele era construído discursivamente nestas camadas abastadas do medievo? Buscaremos responder a seguir 1.3 A violência nos séculos XI e XII Existia uma noção de violência entre as pessoas do medievo? A violência era normalizada e celebrada com um êxtase que chocaria qualquer pessoa do nosso tempo? As perguntas não são retóricas e a complexidade destas questões nos leva a um primeiro desdobramento: ser violento pro período em questão não significa, necessariamente, matar, mutilar ou derramar sangue. A capacidade de reconhecimento da violência não se atrela às moralidades atuais e sim conforme os interesses políticos em classificar algo como violento. O mesmo ato recebe, muitas vezes, nomes distintos. “Dilacerar o corpo não era o suficiente para caracterizar a violência”.57 A concepção cristã que o messias salvou a humanidade com o sangue que saiu de suas chagas faz deste mesmo sangue um elemento de purificação capaz de limpar o mundo dos pecados. Portanto, o derramamento do sangue de um inimigo poderia ser visto como um ato piedoso de salvação e expurgação do mal que pairava sobre a Cristandade. O problema não era o sangue, mas o motivo pelo qual foi derramado e de que forma ele banhou o chão. Antes de uma análise da violência nos séculos XI e XII um paralelo precisa ser traçado para que o trato com o tema não perpetue um estereótipo sobre o medievo. Afinal, 57 RUST, Duarte Leandro. Op.Cit., 2018, p.114; 35 a violência estava em todo o canto e ditava as relações sociais? As pessoas do período dormiam e acordavam sem a certeza se ao fim do dia estariam vivas? As batalhas entre cavaleiros eram tão constantes que a morte cantava diariamente aos ouvidos destes combatentes? Vamos por etapas. A violência física nem sempre ditava as relações. A medievalística foi responsável pela perpetuação, por algum tempo, sobre esta visão da Idade Média como um período descontrolado e permeado de violências cotidianas que faziam da sociedade feudal um ambiente extremamente conturbado. Os ecos de Norbert Elias ainda estão presentes em muitos trabalhos que tratam da Idade Média. Para Elias “a vida na sociedade medieval tendia na direção oposta.58 A pilhagem, a guerra, a caça de homens e animais -todas essas eram necessidades vitais que, devido à estrutura da sociedade, ficavam à vista de todos”.59 A lógica de Elias atribui o controle das emoções a mecanismos dotados de racionalidade. A própria noção de racionalidade fica atrelada às instituições modernas, como se o período anterior não fosse capaz de produzir maneiras de contenção ou racionalização nas relações e na violência existente. Elias fala de uma desinibição em comparação aos tempos modernos acerca de uma alegria em relação a crueldade. 60 O sociólogo utiliza canções de gesta na sua comprovação sobre a existência de um descontrole da violência. Elias faz uso de crônicas que eram escritas na maior parte por religiosos. Primeiro, muitas chansons não retratavam, necessariamente, uma realidade, mas buscavam impor certos modelos, pois “os heróis das canções de gesta estão submetidos aos imperativos de uma moral da honra”. 61 A honra está atrelada ao comportamento violento? Algumas vezes sim, pois o emprego da força contra outras pessoas é, em diversos casos, condição sine qua non para os cavaleiros em conflito. Porém, a tentativa de imposição de um comportamento não significa a sua realização. O Segundo aspecto é sobre a documentação produzida pela Igreja que, muitas vezes, exagera sobre as espoliações da aristocracia laica. As espoliações são retratadas em níveis dramáticos em relação ao ocorrido, numa estratégia discursiva que aborda a violência e os assaltos como práticas constantes. ParaJean Flori “os pequenos senhores não fizeram reinar em todas as partes o terror de seus exércitos [...] como deploram tantas declarações 58 Oposta ao controle social; 59 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador/ Norbert Elias; tradução Ruy Jungman; revisão e apresentação , Renato Janine Ribeiro. – 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p.191; 60 Ibidem, p.191 61 BARTHÉLEMY, Dominique. A cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII; Tradução: Néri de Barros Almeida e Carolina Gual da Silva. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p.468; 36 conciliares”.62 Não negamos a existência dos confrontos como parte do cotidiano e, de certa forma, como uma maneira de reprodução daquelas sociedades. Porém, muitos relatos documentais exageram63 e foram levados ao pé da letra por alguns autores. A Sociedade Feudal de Marc Bloch, embora um clássico, também contribuiu na construção desta imagem do período: “havia por detrás de toda a vida social um fundo de primitivismo, de submissão aos elementos indisciplináveis, de contrastes físicos que não podiam ser atenuados”.64 No mesmo livro, Bloch fala de uma idade feudal impregnada de alto a baixo pelo gosto da violência 65 como marca de uma época e de um sistema social. 66 Bloch faz análises do direito, do convívio e das relações baseadas no caráter violento, atribuindo uma conturbação cotidiana às idades feudais que analisa. Essa violência como linguagem social está presente, mas não precisamos considerá-la ao pé da letra, como muitas vezes a documentação sugere. Ou seja, não existe um brusco descontrole ou ausência de contenção, conforme Norbert Elias situa, ao afirmar que não havia poder social punitivo.67 Transcorre um engano, de certa forma, ao imaginar que o período passa por um estado imanente de violência, descontrole e sem mecanismos que busquem a moderação. A lógica do “primitivismo” de Bloch não se sustenta pois até em sociedades ditas primitivas que a Antropologia68 analisa não há um estado de guerra de todos contra todos. Existe uma tendência em enxergar o sistema feudal cercado por descontrole cuja inexistência de regras levou à rudeza de espíritos instáveis que promoviam violência cotidiana. A tese da “anarquia feudal” que mergulha a Francia Ocidental em desordem e guerra civil promovida por cavaleiros desobedientes foi paradigmática por certo tempo.69 Dominique Barthélemy nega esta anarquia. Para o historiador francês “a reputação de rudeza e de violência sem freios da primeira idade feudal (por volta de 880-1040) procede 62 FLORI, Jean. La guerra santa – La formación de la idea de cruzada en el Occidente cristiano. Madrid: Editorial Trota, 2003, p.111; 63 Jean Flori relata que era uma maneira da Igreja se preservar das espoliações que sofria. Porém, segundo o historiador francês, esses ataques não se resumiam apenas aos saques, mas também se referiam em contestações patrimoniais diante da justiça. Para maiores detalhes ver FLORI, Jean. La guerra santa – La formación de la idea de cruzada en el Occidente cristiano. Madrid: Editorial Trota, 2003; 64 BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa, Edições 70, p.93; 65 Ibidem, p.321;66 Ibidem, p.450; 67 ELIAS, Norbert. Op. Cit., p.192; 68 CLASTRES, Pierre. Arqueologia de la violência: la guerra em las sociedades primitivas. p.52 69 Ver: BONNASSIE, Pierre – Cataluña mil años atrás (siglos X-XI). Barcelona: Península, 1978; GUIZOT, François. Histoire de la civilisation em France depus de la chute de l’Empire romain. Paris, Didier, 1846; 37 com frequência do fato que eles a creem diretamente refletida nas canções de gesta”.70 Barthélemy não vê uma revolução feudal, mas uma espécie de mutação feudal. A tendência de pensar o mundo pós-carolíngio mergulhado em desordem é fruto da “idealização do Estado carolíngio” que estebelece uma leitura moderna demais para o período. A existência de um possível Estado e seu posterior desaparecimento lança lógicas contemporâneas que enxergam na ausência do poder estatal um mundo de caos, onde a falta de poderes que controlem uma sociedade lancem as comunidades em guerras de todos contra todos. Uma leitura hobbesiana do sistema feudal. Indo ao encontro das análises de Barthélemy, entendemos que ocorre um rearranjo no período situado entre os séculos X e XIII, mas não uma ruptura. A autoridade não cessa ou desaparece, mas se torna capilar. O sistema feudal se reproduz pela violência, muitas vezes, mas não faz reinar um pandemônio cercado pela ausência de contenções ou buscas pela moderação. Ou seja, Pierre Bonassie talvez tenha exagerado ao falar de “uma espiral de violência” 71 onde, a partir do ano mil, o sangue começou a fluir.72 Stephen White73 e Abel López74 consideram inapropriado falar de instabilidade emocional já que as “manifestações de ira e ódio não produziam de forma automática atos irracionais de violência”.75 Embora a violência76 seja parte constitutiva da aristocracia, existem instrumentos que buscam o controle destes atos e que são, de certa maneira, eficazes. Além disso, o que chamamos de violência era visto como um direito a ser exercido por esta camada detentora do poder. Porém, não é desenfreada ou sem lógica. As assembleias de paz promovidas na região da Gália são expressões desta tentativa de controle e falaremos delas adiante. No entanto, a conhecida Paz de Deus visa ser um instrumento atenuante do “efeito colateral do regime feudal “77e não tem relação com um movimento antifeudal. Estas assembleias não negam os direitos dos senhores em fazer guerra, mas buscam a proteção do patrimônio eclesiástico das espoliações promovidas por aqueles. 70 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, p.146; 71 BONNASSIE, Pierre Op Cit, 1978, p.237; 72 Ibidem; 73 WHITE, Stephen. The Politics of Anger. Anger´s Past, editado por Barbara Rosenwein. Ithaca: Cornell Univerity Press, 1998; 74 LOPEZ, Abel. Violência, paz e justiça na Idade Média. Mem. Soc. [online]. 2017. Disponível emhttp://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0122-51972017000100082. Acessado em 11/04/2021; 75 WHITE, Stephen. Op. Cit, 1998, p.147; 76 Violência como vemos hoje 77 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, pp.190-196; http://www.scielo.org.co/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/iah.xis&base=article%255Edlibrary&format=iso.pft&lang=i&nextAction=lnk&indexSearch=AU&exprSearch=LOPEZ,+ABEL http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0122-51972017000100082 38 Além das assembleias, as imposições acerca de comportamento considerados lícitos ou ilícitos são muito difundidos nos miracula. Estas histórias falam acerca da moralidade e de algumas percepções que circulam em dada época. Estes relatos, muitas vezes anônimos, “são reunidos em coleções que são apanágio de estabelecimentos eclesiásticos (santuário, mosteiro) tem por função aumentar a reputação destes últimos pelos relatos dos acontecimentos miraculosos que ali se produziram”. 78 Os acontecimentos tem ligação, geralmente, com um santo local. Os participantes destes miracula são os mais diversos tipos sociais, demonstrando a tentativa de difusão de uma mensagem para a Cristandade no geral.79 Dentre os temas mais recorrentes identificamos as condenações de certos comportamentos. Dentre os castigos em relação às condutas reprováveis se manifestam muitas vezes ataques físicos, doenças das mais variadas, entre outras punições. Os textos hagiográficos têm aspectos diferentes: martirólogos, legendários, revelações, as vidas, os relatos de milagres, os processos de canonização, os relatos de transladação etc. As hagiografias misturam o maravilhoso com o real como forma de construção de uma verdade. Neste regime de verdade, se verifica um sistema de valores. A vida do santo divulga exemplos a partir das trajetórias narradas. Assim, “a hagiografia em geral [...] evidencia formas de pensamento não somente da Igreja enquanto instituição, mas também são expressões de uma instituição que intenta o controle sobre uma coletividade”. 80 Para Igor Teixeira “os relatos de vidas de santos têm sim relação com um sistema de valores normativos”. 81 Os aspectos prosaicos presentes nas hagiografias, embora não constituam a intenção do autor, nos possibilita o acesso a certas práticas e formas de pensamento. “Na literatura hagiográfica, os biógrafos ao descreverem detalhadamente lugares, paisagens, modelos e costumes de uma dada região percebemos nas entrelinhas dados do cotidiano medieval”. Portanto, “através desta forma literária de discurso, a Igreja manifesta uma 78 SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. / Jean-Claude Schmitt tradução Maria Lucia Machado. — São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.77; 79Ibidem, p.85. Jean-Claude Schmitt analisa uma coleção de miracula de uso interno da comunidade monástica partindo da lógica da presença de apenas monges ou personagens estritamente ligados à comunidade. 80 TEIXEIRA, Igor S.. Literatura, Tempo e Verdade: o Fazer Hagiográfico na Legenda Áurea. In: História: Questões & Debates, [S.l.], v. 59, n. 2, dez. 2013. ISSN 2447-8261. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/historia/article/view/37039>p.212 81 Ibidem, p. 200; 39 forma de controle, 82utilizando-se do discurso hagiográfico que vem carregado de moral cristã e exemplos de conduta”. 83 A utilização dos miracula, como documentação secundária, nesta dissertação, justifica-se pelos seguintes argumentos: nesta região surge a Paz de Deus que sacraliza a defesa das igrejas a partir de uma concepção de violência como o rompimento de um direito ou contestação de uma ordem chamada, assim de violentia. A partir daqui, quando nos referimos à palavra “violência” a relacionamos com a concepção atual, sobre a qual teorizamos na primeira parte. Para a referência sobre a concepção dos séculos XI e XII utilizaremos o termo latino violentia. No artigo View of Muslims and of Jerusalem in miracle stories, ca. 1000-ca. 1200: reflections on the study of first crusaders’ motivations, Marcus Bull define as possibilidades de compreensão dos chamados às cruzadas, principalmente em Clermont, a partir do uso dos relatos de milagres.84 Para Bull, as motivações e ideias capazes de mobilizar certos segmentos sociais no contexto cruzadístico podem ser captados nos livros de relatos de milagres. De acordo com Bull, “este tipo de literatura desfrutou de uma popularidade particular entre os séculos X e XIII, especialmente na área correspondente a França e Bélgica atualmente”.85 Certos temas como invasões de igrejas, ataques aos peregrinos, contestação de patrimônio eclesiástico e o impedimento do exercício de algum direito configuram pontos recorrentes nestes relatos. São as mesmas ideias presentes nas narrativas sobre Clermont em 1095. Logo, se o autor de De Expugnatione Lyxbonensi pretende ligar a conquista de Lisboa à cruzada, nos parece factível que o uso das mesmas temáticas possa estar presente em sua escrita. Além disso, é preciso demarcar que Raul é da região relatada peloslivros de milagres. Como afirma Maria João Branco ele era “presbítero e assumidaente franco”.86 O cruzado que narra a invasão de Lisboa é o mesmo que doa, em 1148, uma propriedade para Santa Cruz de Coimbra. Maria João Branco analisou a maneira da 82 Neste momento, um controle para auto preservação e não um domínio geral 83 CARVALHO, Fabrícia A. T. O discurso de controle da Igreja no século XIII. In: SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da; SILVA, Leila Rodrigues. (Org.) Atas da VI Semana de estudos Medievais do Programa de Estudos Medievais da UFRJ. Rio de Janeiro: IFCS, 2006, p.119; 84 Cf. BULL, Marcus. View of Muslims and of Jerusalem in miracle stories, ca. 1000-ca. 1200: reflections on the study of first crusaders’ motivations. 85 BULL, Marcus. The miracles of Our Lady of Rocamadour : analysis and translation. St Edmundsbury Press Ltd, Bury St Edmunds, Suffolk, 1999, p.9; 86 BRANCO, Maria João. A conquista de Lisboa revisitada In: Lisboa, encruzilhada de muçulmanos, judeus e cristãos. Lisboa: Edições Afrontamento, 2011, p.224; 40 escrita desta doação e concluiu que a sua característica é a mesma das documentações do Oeste da França. Ainda, conforme Branco: “tudo isto parece corresponder à área de proveniência do cruzado R. e do Raul que subscreve a doação a Santa Cruz”. Estas características são “apenas marca da fidelidade aos modelos a que estava habituado na sua pátria de origem”. 87 Raul é normando e está culturalmente situado na região citada acima. Jean Flori indica,88 através de um estudo de P.A. Sigal, que os relatos de milagres violentos operados pelos santos dão um salto entre os séculos XI e XII. “dos 3.318 milagres realizados por santos [...] 12,6% eram milagres de castigos”. Desta porcentagem “mais de 34% contra a aristocracia”. Ou seja, grande parte destes milagres de castigos violentos eram destinados contra uma aristocracia que insistia em invadir ou contestar o patrimônio eclesiástico, configurando uma violentia. Não podemos ignorar o fato de que entre as outras categorias de milagres também existem intervenções violentas dos santos. 89 Desta forma, seguimos o caminho de Jean Flori e Marcus Bull em suas indicações acerca de alguns relatos de milagres para o entendimento desta violência dos santos e os temas recorrentes nestas narrativas. O liber miraculorum sancte fidis traz os relatos sobre as intervenções de Santa Fé de Conques. Esse relato foi “redigido por Bernardo de Angers entre 1013 e 1020 e depois por seus continuadores até 1050”. 90 Estas narrativas, conforme Flori, “refletiam os costumes do tempo, nas regiões nas quais nasceu a Paz de Deus”. 91 As versões utilizadas aqui são a tradução comentada de Pamela Sheingorn intitulada The Book of Sainte Foy92 e a versão latina publicada pela Bibliothéque de Schlestadt.93 Outro livro de milagres cujo o conteúdo de intervenções violentas é considerável é o de Nossa Senhora de Rocamadour. Este relato foi composto no final do século XII94 e não se sabe o autor. Para Marcus Bull “com base nas características estilísticas como o uso recorrente de aliteração, é provável haver um único autor. Por outro lado, um esforço 87 Ibidem, p.35; 88FLORI, Jean. Op.Cit.,2013 P.111 89 Dentre as outras categorias citadas,” mais de 61% consistem em curas diversas e ressurreições [...] depois intervenções favoráveis (6,9%), proteções contra perigos (5,8%), visões (5%), libertações de prisioneiros (4,6% em média, porém mais de 10% para a aristocracia) e milagres gratuitos destinados apenas à glorificação do santo (3,4%).” In: Ibidem; 90 Ibidem, p.110; 91 Ibidem, p.112; 92 The Book of Sainte Foy / translated with an introduction and notes by Pamela Sheingorn ; the Song of Sainte Foy translated by Robert L. A. Clark. University of Pennsylvania Press, 1995; 93Liber Miraculorum Sancte Fidis. Ed. A. Bouillet, Paris, 1897; 94 De acordo com Marcus Bull Provavelmente entre 1172 e 1173 41 colaborativo não pode ser totalmente descartado”.95 Utilizaremos duas versões. A versão comentada de Marcus Bull intitulada The Miracles of Our Lady Of Rocamadour96 e a versão bilingue em francês e latim Les Miracles de Notre-Dame de Roc-Amadour97 de Ernest Rupin e Edmond Albe. Por fim, São Privato de Mende também teve seu liber miraculorum cuja maioria dos milagres tem relação com castigos destinados às aristocracias que espoliam a terra do santo. A versão usada nesta pesquisa é a versão bilingue francês-latim de nome Les Miracles de Saint Privat98 publicada por Clovis Brunel. O uso da violência pelos santos não é exclusivo do período, mas o aumento deste tipo de relato entre os séculos X e XIII coincide com o período da expansão feudal. Para Jean Flori: Esta cadeia de identificações conduzia evidentemente à sacralidade da ação, às vezes violenta, exercida a favor daquelas comunidades religiosas, dizendo assim respeito ao nosso tema. O próprio santo, de fato, não se limitava a aliviar as misérias dos homens que acreditavam nele. Para impressionar seus adversários e aterrorizar os ímpios, ou simplesmente se vingar, também lançava mão da força e não hesitava em ferir ou mesmo matar os inimigos, sacralizando assim em certos casos o uso da violência. Pode-se então falar de violência sagrada dos santos. Essa forma de religiosidade constituiu uma etapa importante na formação da ideia de guerra santa.99 Portanto, percorrer os relatos de milagres nos possibilita os seguintes pontos: primeiro, situar certas representações existentes na região destes eventos para entendermos a qual discurso Raul se vincula para construir a campanha afonsina como sagrada. Segundo, qual noção de violentia 100se construiu para aquela parcela do clero que tentava se proteger dos efeitos colaterais das guerras feudais e como, a partir disso, a participação dos santos na violência possibilitou sua sacralização. As histórias de milagres apresentam “um retrato das ansiedades e problemas” 101 que as pessoas enfrentam. Estes modelos e noções que transitam na região que a Paz de Deus se difunde são compartilhados por Raul por este ser o seu ambiente cultural. De acordo com a metodologia das trigger words, os chamados às cruzadas utilizam destas noções difundidas nos miracula da região. São nos locais das assembleias que se constroem uma 95 BULL, Marcus. Op.Cit., 1999, p.20; 96 BULL, Marcus. The miracles of Our Lady of Rocamadour : analysis and translation. St Edmundsbury Press Ltd, Bury St Edmunds, Suffolk, 1999; 97 Les Miracles de Notre-Dame de Roc-Amadour. Académie des Inscriptions et Belle-Lettres. Paris, 1905; 98 Les Miracles de Saint Privat. In : Colection de Textes. Publicado por BRUNEL, Clovis. Paris,Librairie Alphonse Picard et Fils, Libraire des Archives Nationales et de la Sociéte de l’École des Chartes, 1912; 99 FLORI, Jean. Op.Cit., 2013, p.110; 100 Trata-se de uma ideia de violentia edificada no contexto do sistema feudal da Gália; 101 BULL, Marcus; Op.Cit., 1999, p. 14 42 verdade sobre guerra santa, honra e violência. Partindo da premissa que De Expugnatione Lyxbonensi é uma crônica de propaganda afonsina, torna-se possível uma reflexão sobre os mecanismos que aproximam a tomada de Lisboa com os miracula e que incluem a utilização das mesmas trigger words dos chamados às cruzadas. As trigger words são ideias que remetem a certos ideais caros aos quem recebem o discurso. São estratégias de aproximação, pois se Raul pretende associar, em muitos momentos, a guerra de Afonso Henriques com as políticas papais, ele o faz recorrendo às ideias que conectam Lisboa à cruzada e a cruzada, por sua vez, conecta-se com a defesa da igreja, da Cristandade e de Cristo. Todas as ideias aqui utilizadas estão presentes nos miracula. Além disso, os castigos das santas e santos instituem condenações a certos tipos de comportamento, imputando um freio nas ações violentas.Vejamos, um centro de peregrinação no século XII era a Igreja de nossa senhora de Rocamadour que ficava no caminho de Compostela para quem vinha da Gália. Os milagres da virgem auxilia na percepção de certas visões acerca do condenável, do justo e do injusto, do admirável e do virtuoso para o período. Dentre estes milagres, por exemplo, existem os castigos destinados contra aqueles que atacavam os peregrinos. As pessoas punidas iam de anônimos vagantes até cavaleiros nominalmente referenciados. Um desses cavaleiros, chamado de Hardouin de Mailéé foi punido com ergotismo após ter “sido incapaz de conter sua violenta paixão” , ferindo um peregrino que tinha recusado lhe vender uma proteção de cabeça. O cavaleiro perdeu as duas pernas e ficou mutilado, de acordo com o miracula. 102 Em outro caso, a virgem de Rocamadour puniu com cegueira e paralisia das mãos alguns ladrões que roubaram três peregrinos que iam à igreja da santa. 103 A importância da peregrinação e o valor dado a ela é um dos temas que está presente na chamada da primeira cruzada. O tema da figura do peregrino que sofre violentia é recorrente. No concílio de Clermont de 1095, relatado por Guibert de Nogent, o papa pede que se considere a situação daqueles que empreendem “aquela peregrinação, e vão aquele país através das terras [...] sofrendo exações e violências”. 104 O comportamento de afronta à Igreja também é condenado nos milagres através dos mais variados exemplos. Dentre estes, havia um homem que foi excomungado por desobedecer “aos decretos da Igreja”105, 102 Ibidem, p.117; 103 Ibidem, p.146; 104 GUIBERT DE NOGENT, Histoire des Croisades, II, Éd. Guizot, 1825, Paris, pp. 46-52. Trad. al francés por José Marín R. Web Med; 105 Ibidem, pp. 104-105; 43 pois “costumava reivindicar para si os dízimos da igreja local, guardando-os consigo”.106 Esse homem foi possuído e gritava constantemente durante as missas. Espumava pela boca e rangia os dentes. Ao final, se curou quando voltou para sua terra e se reconciliou com seu sacerdote. 107 A santa também aparece punindo os cachorros de um “estrangeiro108 que estava caçando perto de sua igreja. 109 A senhora de Rocamadour ficou “indignada e golpeou os cães, atirando-os para a morte no penhasco”.110 Em alguns dos casos citados acima podemos ver a condenação de assédio ao peregrino, ao desvio das rendas da Igreja e à invasão de terras da santa. Notamos uma busca pela contenção de comportamentos considerados inadequados. Na Idade Média Central houve um boom em relação a uma prática já existente: a peregrinação. A elevação de casos desta forma de piedade mais ativa é verificável com a difusão dos centros de devoção. A figura do homo viator provoca sensações ambíguas à sociedade medieval. Embora o ser humano seja uma criatura destinada a vagar rumo a salvação, o ideal de pertencimento a determinado local provocava a visão do peregrino como um “estrangeiro” por onde ele passava rumo a um destino específico.111 Porém, a figura do peregrino é dignificada, pois é uma prática valorizada nas religiões abraâmicas. Valorizada e protegida, como vimos em alguns castigos que o santo padroeiro de um centro de peregrinação infringe contra quem molesta seus peregrinos. O desvio das rendas da Igreja e a invasão de suas terras, punida pela santa, são temas constantes, verificando-se uma preocupação, além da condenação, em relação à uma tendência de senhores laicos de apropriação e disputa constante em relação aos bens eclesiásticos. Isso nos leva a um tema tão debatido e, de certa forma, controverso: as assembleias de paz, conhecidas como Paz de Deus e Trégua de Deus. André Vauchez, partilhando da tese da “anarquia feudal”, vê nestas assembleias a tentativa dos bispos em assumir o controle local, pois não havia uma autoridade efetiva após o fim do império carolíngio. Compartilhamos de algumas noções do autor francês acerca da Trégua de Deus sobre a legitimação da guerra por parte da Igreja. Vauchez considera que o “uso da 106 Ibidem, pp.104-105; 107 Ibidem, pp.104-105. 108 O estrangeiro é Gerard da vila de Mayrinhach. Cf. BULL, Marcus. Op.Cit., 1999, p.162; 109 Ibidem, p.162; 110 Ibidem, p.162. 111 Ver ZUMTHOR, Paul. La Medida del Mundo: Representación del Espacio en la Edad Media. Madrid: Cátedra, 1994 44 força era justificável quando fosse utilizado para fins benéficos para a sociedade cristã sob sua direção”. 112 No entanto, Vauchez chega nesta conclusão partindo de uma percepção que entendemos sob outro prisma. Em nossa visão a“anarquia” não ocorreu como se pensou por muito tempo na medievalística, fruto das teses mutacionistas.113 Portanto, a Paz de Deus não é uma tentativa de controle de toda a sociedade. As igrejas não tinham o objetivo, naquele momento, de ser as condutoras da ordem, partindo da ideia que não havia nenhum mecanismo de regulação. Jean Flori também também não vê uma anarquia que “resultou no desaparecimento total de toda autoridade política”. 114 Nosso entendimento é que as assembleias surgem como um mecanismo de defesa destas igrejas locais contra o que chamam de violações e atos de violentia. Na compilação dos miracula de São Privato de Mende 115 relata-se uma preocupação do bispo de Puy, por volta de 1036, na convocação dos bispos vizinhos para o juramento da paz diante das relíquias do santo.116 “No altar de santa Maria [...] o bispo da capital ordena que se convide os bispos vizinhos em nome do conselho de paz”. 117 A mesma compilação demonstra um ambiente conturbado onde existem diversos relatos de punição aos assediadores das terras que estão sob os cuidados do santo, como um cavaleiro de nome Gaucelmus que devastava as terras da santa e mesmo assim foi enterrado naquela igreja. Como castigo, o corpo do cavaleiro foi consumido por chamas que saíram do chão. 118 O recado é nítido, havia espoliação e esta era punida, pois, condenável. Assim como o homem que foi castigado pelos desvios dos dízimos da Igreja nos relatos de Rocamadour. Conforme Luis Kruss, “a narrativa não veicula apenas valores, mas também cria preceitos e modelos de comportamento”. 119 Esses casos pululam e os poderes eclesiásticos necessitam de proteção com que tem em mãos: o acesso ao sagrado. Por isso, ao olharmos para a Paz de Deus precisamos 112 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, pp.60-61. 113 Georges Duby é um outro expoente destas teses que enxergam no ano mil uma mudança. Para maiores detalhes ver DUBY, George. A Sociedade Cavaleiresca/G.Duby; Tradução Antônio de Pádua Danesi, - São Paulo: Martins Fontes, 1989; 114 FLORI, Jean, Op.Cit., 2003, pp.110-111; 115 Les Miracles de Saint Privat. In : Colection de Textes. Publicado por BRUNEL, Clovis. Paris,Librairie Alphonse Picard et Fils, Libraire des Archives Nationales et de la Sociéte de l’École des Chartes, 1912; 116Ibidem, pp.14-16; Neste relato um paralítico é curado após chegar perto da imagem da santa. 117Ibidem, p.14; 118 Ibidem, pp.4-5; 119 KRUS, Luis. A Construção do Passado Medieval, Lisboa: IEM, 2010. 45 entendê-la situada no ambiente de ataques, de níveis variados, ao patrimônio eclesiástico. Acima citamos um caso de pilhagem, mas, muitas vezes, a violência relatada se dava no plano jurídico, no confisco das terras, revogação de direitos e outros bens materiais. As descrições sobre os ataques inseriam termos que “nem sempre implicavam ações de natureza guerreira [...] e sim ações de todo tipo, incluindo o jurídico, que contribuíram na debilitação dos interesses econômicos dos estabelecimentos eclesiásticos”. 120 O confisco de terras como uma atitude violenta aparece nos milagres de Santa Fé.121 No relato onze, do primeiro livro de milagres, Bernardo de Angers analisa as práticas laicas em vigor: Aqui está outromilagre da vingança divina que foi operado em um tempo, antes de chegar a Conques. Deve intensificar a dedicação ao divino adoração nos homens da Igreja e naqueles que servem com devoção na casa de Deus, mas deve assustar profundamente aqueles que violentamente 122 roubam bens da santa Igreja de Deus, ou aqueles que se apropriam, como se fosse legalmente seus, propriedade que os santos herdaram e reivindicam injustamente as rendas e serviços devidos aos seus proprietários. Pois neste momento há muitas pessoas que merecem ser chamadas de anticristos. Cegos por sua ganância, eles atrevem-se a apreender o que pertence por direito à Igreja.123 A palavra usada na qualificação dos roubos e nas apropriações indevidas de renda é violenter e esta introdução fala do caso de um senhor do castelo de Penne, em Albigeois, que confiscou uma propriedade que sua avó deixou à abadia de Conques. Esse senhor de nome Hildegaire é chamado também de “violento 124 saqueador” 125 pelo miracula. Hildagaire é violento por contestar a posse das terras. Ao final do milagre, Bernardo dá o tom do que espera os contestadores dos bens eclesiásticos: “Ouvi, vocês saqueadores de propriedades cristãs, quão inevitáveis são os flagelos e os justos julgamentos de Deus. Sua vingança não cede a nenhum poder [...] Se não houver punição neste mundo, uma forma mais dura e eficaz de castigo espera por vocês no fogo eterno”.126 Jean Flori compreende que muitas das violências relatadas implicam nas discussões das doações feitas às igrejas ou quando “não se respeitava as imunidades e os 120 FLORI, Jean, Op.Cit, 2013, p.112 121 The book of Sainte Foy / translated with an introduction and notes by Pamela Sheingorn ; the Song of Sainte Foy translated by Robert L. A. Clark. University of Pennsylvania Press, 1995. 122 Violenter, p.88 in: Bernardo de Angers. Liber Miraculorum Sancti Fidis, 1, 26, Ed.A. Bouillet, Paris, 1887 123 The book of Sainte Foy, Op.Cit., 1995; 124 Ibidem, p.40. O termo usado no latim é Violentissimi. In: Bernardo de Angers, Op.Cit., 1887, p.41; 125The book of Sainte Foy, Op.Cit., p.72; 126 Ibidem, pp.72-73; 46 bens dos monastérios”.127 Tratava-se, então, na designação dos leigos que questionavam o patrimônio eclesiástico. 128 Além disso Stephen White afirma que “os escritos dos clérigos e de outros cronistas sobre a conveniência de reprimir a violência da aristocracia ou civilizar a nobreza não devem ser consideradas como representações exatas das práticas políticas dos laicos”. 129 Vejamos outro exemplo: Raul Glaber foi um monge que retratou em sua obra Historiarum Libri Quinque130 suas impressões sobre o ano mil e foi visto como uma testemunha dos “terrores” do período. Os escritos de Raul Glaber, embora não seja um miracula, nos demonstra uma concepção da época acerca da violência. Concepção que se assemelha aos dos relatos de milagres citados. Além disso, aborda os pactos de paz que ocorrem no período. No liber quartum,131 o monge escreve que “no milésimo ano da paixão do Senhor, primeiro nas regiões da Aquitânia, os abades e outros homens dedicados à santa religião reuniam todo o povo em assembleias”.132 Para a reunião eram levados “numerosos corpos de santos e relicários cheios de santa relíquia”.133 O anúncio da reunião dos “prelados e grandes de todo o país que iam se reunir em assembleias para o restabelecimento da paz e para a instituição da santa fé” 134 se espalhou por toda a região e, conforme Raul Glaber, a partir daí “irradiaram pela província de Arles, depois pela de Lyon; e assim, por toda a Borgonha e até nas regiões mais recuadas da França” .135 Na assembleia foi elaborado “um documento, dividido em capítulos, que continha ao mesmo tempo o que era proibido fazer e os compromissos sagrados que se tinha decidido tomar para com o Deus todo-poderoso. A mais importante destas promessas era a de observar uma paz inviolável”. 136 Além disso ficou decidido que: O ladrão ou aquele que tinha invadido o domínio de outrem estava submetido ao rigor de uma pena corporal. Aos lugares sagrados de todas as igrejas devia caber tanta honra e reverência que, se um homem, punível por qualquer falta, aí se refugiasse, não sofreria nenhum dano, salvo se tivesse violado o dito pacto de paz; então era agarrado, retirado do altar e devia sofrer a pena prescrita. Quanto aos clérigos, aos 127 FLORI, Jean. Op.Cit, 2003, p.110; 128 Ibidem, p.110. 129 WHITE, Stephen. Op. Cit, 1998; 130 A versão aqui utilizada foi Rodulfus Glaber. The Five Books of the histories. Edited and translated by John France. Historiarum Libri Quinque. Rodulfus Glaber, Oxford: Clarend, 1989; 131 Ibidem, p.194; 132 Ibidem, p.194; 133 Ibidem, p.194; 134 Ibidem, p.194; 135 Ibidem, p.194 136 Ibidem, pp.194-196. 47 monges, e às monjas, aquele que atravessasse uma região na sua companhia não devia sofrer nenhuma violência de ninguém.137 Analisemos alguns aspectos do trecho acima. Percebemos que, assim como nos milagres de Rocamadour (os milagres são posteriores ao relato de Raul Glaber), existe uma ideia de punição para quem invade o domínio da santa. No pacto citado está prevista uma pena corporal. A maioria dos relatos de São Privato são sobre castigos direcionados aos invasores das terras do santo. Além disso, fala-se da aplicação de uma pena para quem tivesse “violado o dito pacto”. Analisando o livro de Raul Glaber direto do latim a palavra usada é violasset. 138 A seguir dar-se a proibição da prática de violência contra os clérigos, monges ou monjas que passem pela região. O termo empregado para violência, neste caso, é vim. 139 Vim é uma declinação de caso acusativo (é o passivo, quem sofre a vim) do substantivo vis, que significa força. Uso de força feroz, injustificada e injusta, que rompe uma ordem e é qualificada como violentia. Eis o ponto nevrálgico de nossa análise. A violência nos séculos XI e XII significa o rompimento de um direito ou uma ordem estabelecida. A palavra violência deriva do termo latino violentia, da qual se radica no substantivo vis “cuja etimologia é comum ao do grego is (força). A violentia é “uma forma de expressão da vis”. 140 A violentia que deriva da vis é o uso da força desmedida, ilícita e condenável. Além disso, “associado com estes dois termos está ainda o verbo viollo, cujo significado é tratar com violência, fazer violência, ultrajar, ofender, transgredir”.141 Partindo destas concepções podemos entender que para o período aqui pesquisado a noção de violentia está ligada com a ideia de uma transgressão ou excesso cometido contra uma norma, padrão ou costume. 142 Doravante, quem tem a capacidade na caracterização da violentia? O poder que domina o discurso. Qual é o poder que domina o discurso nos séculos XI e XII? Não existe um poder completamente dominante, mas as elites laicas e eclesiásticas são dois poderes em conflito e ao mesmo tempo em acordo em relação ao processo de dominação. 137 Ibidem, p. p.196 138 pacis uiolasset. Ibidem, p.196; 139 clericis similiter omnibus, monachis et sanctimonialibus, ut, si quis cum eis per regionem pergeret, nullam uim ab aliquo pateretur. Ibidem, p.196. 140 PIMENTEL, Maria Cristina de Sousa e RODRIGUES, Nuno Simões.. Auidissima caedis et uiolenta fuit: scires e sanguine natos. Introduzindo reflexões sobre a problemática da violência na Antiguidade e no Medievo. Apresentação, eClassica 2: Violência no mundo antigo e medieval, 2016, p.10; 141 Ibidem, p.10; 142 Ibidem, pp.7-18; 48 Eles se embatem, se contradizem, se reforçam e se legitimam. Além disso, o poder eclesiástico também não é uníssono. Há conflitos dentro da própria Igreja e é comum que bispos se voltem contra seus cabidos. Constantemente, um grupo acusa o outro de violentia. No entanto, a construção para o período em questão acerca da noção do que é ou não violento gira emtorno do caráter de rompimento de uma lógica, de costumes, das práticas e dos direitos atrelados a uma elite. Por isso, a roda da fortuna ilustra bem quem um dia está por cima (e tendo a capacidade na determinação de algo) e que logo poderá se ver em situação inversa (sendo acusado daquilo que já acusou). O bispo que acusa um cônego de ser violento pode, em breve, ser acusado de violentia pelo mesmo cônego, caso as relações sociais assim permitam, conferindo poder para quem um dia não tinha. “A violência como processo tem a ver com representação e mediação, uma vez que se trata de gestos reais envolvidos, e a representação da violência depende muito de sua definição por aqueles que têm o poder de delineá-la”.143 Vejamos como a roda da fortuna agiu com Aimon, arcebispo de Bourges. Por volta de 1038, o arcebispo “quis estabelecer a paz em sua diocese mediante um juramento”.144 Assim, convoca todos os maiores de quinze anos a se submeterem ao seguinte compromisso “iriam se dirigir unanimemente contra todos os violadores do pacto prescrito [...] se fosse necessário se comprometeriam a atacar e fazer-lhes frente com as armas”. Este caso é um exemplo sobre o valor dado aos atos. Aimon foi responsável na organização de uma hoste guerreira que tinha como objetivo a manutenção da paz na sua região. Estes “milicianos da paz”145 se juntaram para a prática de “boas ações” vistas e retratadas por André de Fleury, “ inicialmente seu entusiasta e logo preocupado com elas”.146 O grupo formado para as batalhas incluía homens do clero. “Os próprios ministros do culto não seriam isentos. Depois de se equiparem com as bandeiras depositadas em santuários do senhor, eles marchariam com a multidão do povo contra os violadores da paz juramentada”. 147 Esse inimigo contra quem Aimon marcha é “somente o opressor de bens da Igreja e do clero”. 148 A marcha é “celebrada por André de Fleury, com grande apoio de 143 SKOODA, Hannah. Op.Cit, 2013, p.6; 144 André de Fleury. Miracula Sancti Benedicti, libro y, 12, ed. E. de Certain, Paris, 1858. 145 Termo empregado por Jean Flori. In FLORI, Jean. Op.Cit., 2003; 146 BARTHÉLEMY, Dominique. Op. Cit, 2007, p.194; 147André de Fleury, Op.Cit., 1858; 148BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2007, p.195; 49 versículos bíblicos”.149 No entanto, o arcebispo se excede e ultrapassa a linha tênue entre lícito/ilícito. De instrumento de Deus, Aimon vira alvo da cólera divina. Cruzando a maleável fronteira que separa o aceitável do inaceitável, o eclesiástico acaba transformando o conflito em algo condenável. Essa condenação ocorre no momento em que Aimon comete um massacre contra a esposa e os filhos de um senhor que havia fugido de seu castelo em Beneciacum. Neste momento “o referido bispo foi tocado pelo aguilhão de Mamom”.150 A partir disto, “André de Fleury, cheio de repugnância, só espera a vingança de Deus contra a paz de Deus”. 151 A “liga de Bourges”, que nasce sob o juramento da dignidade divina, logo se torna um problema e pratica atos condenáveis: “assim o justo assumiu a responsabilidade pelo crime do iníquo e o justo pereceu no lugar do ímpio”.152 André de Fleury lamentava como “os cruéis vencedores dificilmente se comoviam com os lamentos dos moribundos, não tinham pena das mulheres batendo no peito e a multidão de crianças agarradas aos seios das mães”.153 Foi então que, segundo André de Fleury, “Deus todo-poderoso quis vingar o sangue de seus servos e colocou o referido bispo contra Eudes”.154 O conde Eudes de Deóls foi responsável pela derrota da hoste de Aimon e “o julgamento mais moderado de Deus fez aquelas pessoas – que recusaram obedecer a qualquer pedido de misericórdia, e não foram movidos pelo cheiro de seus irmãos sendo queimados [...] – perderem suas vitórias”.155 O caso de Aimon e sua milícia de paz demonstra a capacidade que existe nas relações socias de ser considerado piedoso e, numa virada repentina, transformar-se em alguém violento. Notamos como é possível, num súbito instante, passar da piedade misericordiosa à violentia. Basta não ter mais a capacidade na dominação da produção do discurso acerca da realidade, fazendo uma ideia inserir-se no regime de verdade. O exemplo citado fala do endurecimento da guerra feudal, típico daquele momento. A Paz de Deus não nega a possibilidade da pilhagem efetivada pelos senhores ou a reivindicação do que entendem como seus direitos. As assembleias promovem a tentativa de defesa dos 149 Ibidem, p.195. 150 Andrew of Fleury. Miracula s. Benedicti, 5.1-4 edited in Eugène de Certain, Les miracles de Saint Benoît écrits par Adrevald, Aimoin, André, Raoul Tortaire et Hugues de Sainte Marie moines de Fleury (Paris, 1858), pp. 192-198. 151 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit,, 2007, p.195; 152 Andrew of Fleury. Op.Cit, 1858, pp.192-198; 153 Ibidem, pp. 192-198; 154 Ibidem, pp.192-198; 155 Ibidem, pp. 192-198. 50 bens da Igreja. Porém, essas assembleias se davam, muitas vezes, numa união entre os poderes laicos e eclesiásticos. Os bispos necessitavam da beligerância dos leigos para a proteção dos patrimônios. A hoste de Aimon evidencia bem isso. Embora, não se tenha certeza sobre o caráter daquele exército: se era apenas um grupo “voluntário” reunido sob juramento da liga de paz ou um exército feudal sob o signo das prestações vassálicas, já que Aimon era arcebispo e senhor. Pode parecer estranho o fato de um homem, responsável pelo sagrado, ter costumes beligerantes como se fosse um combatente do século. Essa estranheza faz parte de nós, indivíduos do século XXI. Para aquelas pessoas do século XI liderar um exército na promoção da paz, como vontade de Deus, era agir no mundo com os instrumentos que o momento permitia a eles. Muitas vezes enxergamos estes homens como senhores laicos se apoderando de cargos eclesiásticos para proverem a defesa de seus interesses mundanos. Não negamos que essas intenções possam existir, mas necessitamos refletir além destas ideias tão rigídas. Para uma pessoa da Idade Média Central, armar-se de espada e lança pode e deve ser função do sagrado em diversos momentos. Na perspectiva de Leandro Rust “psicologicamente enjaulado, socialmente remodelado, assim era o clero. Sobretudo bispos, protagonistas da imersão da Igreja no mundo. [...] Eles podiam demandar e justificar uma batalha como artigo de fé”.156 A espiritualidade é histórica e atrelada ao seu tempo. Cada época tem suas concepções de sagrado, contato com Deus e interpretações de como agradá-lo ou desagradá-lo. As pessoas que compreendem a mensagem de uma determinada fé estão inseridas nas relações sociais correspondentes. Um homem da Igreja nos séculos XI e XII caso não esteja no campo em batalha, está promovendo, em grande parte das oportunidades, discursos que incentivam a batalha. Ou seja, a belicosidade socializava e era usada na defesa da Cristandade. Seja qual for a arma (espada ou voz), “essas funções basicamente simbólicas e intelectuais eram o que a fé cristã deixava ao seu alcance”.157 O exemplo de Aimon desembaraça parte dessas relações. A própria promoção da paz nos auxilia nesta percepção. No entanto, ocorre uma ambiguidade no seio desta sociedade. O discurso da Igreja é de condenação ao porte de armas por parte de seu clero. Porém, a veemência da 156 RUST, Leandro Duarte. Op.Cit, 2018, p.15; 157 Ibidem, p.15. 51 reprovação está atrelada ao momento em que se dá a suposta transgressão da norma. “Portar armas é, de fato, o que vários bispos fazem quando são verdadeiros senhores regionais e vão à guerra contra os senhores vizinhos, cercados por seus vassalos”.158 Novamente, o exemplo de Aimon demonstra isso. De uma hoste que agradava a Deus, os os homens do arcebispo se transformaram num mal que precisava de castigo. Erguer a espada pelo “bem da Igreja” não era visto como violência e a visão desta,assim como a espiritualidade, está caracterizada por sua inserção no tempo, pelo domínio do discurso e pela epísteme da época. O entendimento sobre o processo que produz uma verdade é fundamental para a compreensão do regime que a engendra. Desta forma é possivel a observação dos efeitos destas produções, ou seja, a verdade sobre a violentia e sua delimitação. Sendo assim, a qualificação de um ato nos diz sobre a realidade em que se dá o ato. Afinal, os bispos que guerreavam praticavam violentia? Depende de sua posição naquele momento. Vejamos um outro exemplo trazido até nós por Bernardo de Angers, autor dos milagres de Santa Fé de Conques. Bernardo relata sobre um “tal monge que não podia conter no mosteiro o ardor guerreiro que o animava quando estava no mundo”.159 O monge defendia o local “quando vinha um ataque de espoliadores e de saqueadores e assumia em seguida a função de defensor e conduzia pessoalmente a tropa armada”. Em seu comentário sobre os atos deste monge guerreador, o autor elabora a seguinte interpretação: [...] É certo que Gimon (aquele monge prior) portava as armas durante as expedições guerreiras. Porém, se examinarmos corretamente o assunto, se compreenderia que atuar assim contribuía melhor para aumentar a glória da regra monástica e que não a debilitaria. Não deveria se emitir juízo de valor sobre ele, e sim atentar para a intenção, que levava-o a atuar desta maneira. 160 Ou seja, temos um monge portando armas e combatendo. Porém, combate por uma boa causa, o que torna o ato em si digno de admiração pois “aumentava a glória da regra monástica”. Era uma guerra entre cristãos embora os espoliadores fossem vistos como “falsos cristãos que atacavam a lei cristã”. 161 Os tratados da Paz de Deus falam sobre esses casos: cristãos que atacam a Igreja. Busca-se, nas assembleias, de acordo com Dominique Barthélemy, um comedimento dos abusos e dos “danos colaterais da guerra 158 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, p.293; 159 Bernardo de Angers. Op.Cit,1887, pp.66-67; 160 Ibidem, pp.66-67; 161 Ibidem, pp.66-67; 52 feudal”. 162 Do midi francês, esses tratados se expandiram por toda a região até a Normandia, criando uma concepção de violência, justiça, misericórdia e piedade. Podemos ir mais longe, embora não seja o foco aqui, numa análise destas percepções em toda a Cristandade Latina. Afinal de contas, a análise de Leandro Rust, em Bispos Guerreiros, tem como recorte a região do império, numa investigação sobre o comportamento dos bispos itálicos ao longo dos séculos X e XI. A noção de violência analisada por Rust, circunscrita à região citada, é “o ato ou a ideia que ameaçava relações patrimoniais e cravava a contestação da autoridade pública nas entranhas da vida em sociedade. Era, sobretudo, uma noção permanentemente em disputa”. Portanto, as relações de poder determinavam sobre a qualificação do que é violentia. A disputa de narrativas incluía a disputa pela qualificação dos atos. “Seu alcance e sua aplicação oscilavam conforme as relações de força e de interesses mudavam”. 163 A noção de violência muda, inclusive, no mesmo período de análise.164 Essa noção era “deslocada, com frequência, pela fortuna política de grupos e facções, afetadas por seu sobe e desce nos espaços da dominação social. Um súdito ideal poderia amanhecer como um celerado violento. A violência de um bispo poderia ser a honra reparada do reino”.165 A violentia aparece nas assembleias de paz qualificada como um rompimento aos tratados ou nos ataques ao patrimônio da Igreja. Dominique Barthélemy166 analisou os concílios da Aquitânia imbuídos de preocupações referentes à simonia e ao concubinato do clero. Essas preocupações são anteriores, inclusive, às reformas do século XI, chamadas de Reforma Gregoriana. A simonia era uma violentia contra as coisas da Igreja e também precisava ser combatida. Porém, as trocas de acusações acerca de quem praticava tais crimes ultrapassavam, muitas vezes, a esfera do ocorrido, pois a legitimidade de um bispo se dava pela deslegitimação de seu concorrente. “O concubinato é um problema de paróquias rurais, e a simonia do alto clero (bispos e abades) é bem real, sem dúvida, mas talvez exagerada ao longo de polêmicas eleitorais, quando o tom aumenta entre os candidatos e suas facções”.167 162BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2007, p.191. 163 RUST, Leandro Duarte. Op.Cit, 2018, p.115; 164 Inclusive no nosso recorte temporal; 165RUST, Leandro Duarte. Op.Cit, 2018, p.115; 166 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2018, p.291; 167 Ibidem, p.292. 53 A violentia praticada contra o patrimônio eclesiástico e denunciada pelo clero se refere a outros atos e não, necessariamente, a ataques físicos ou derramamento de sangue. O livro de milagres de Santa Fé, é repleto de casos acerca de práticas condenáveis e castigadas pela santa por serem considerados ataques aos bens da senhora de Conques. Vejamos um exemplo que demonstra a violentia sofrida e repreendida através da ação santificada da benfeitora. No milagre seis do primeiro livro, Bernardo de Angers fala sobre Hugo, senhor do castelo de Cassagnes. O castelo ficava a treze quilômetros de Conques. Este senhor exigiu que dois de seus servos roubassem vinho dos monges “que estava sendo mantido na propriedade rural de Molieres”. 168 Estes servos teriam se separado em direções opostas para a prática do roubo. Benedicto e Hildebert (os servos) tiveram destinos desafortunados: o primeiro foi advertido por um camponês de Santa Fé, ao ser flagrado pegando um carrinho que seria utilizado no transporte do vinho. Benedicto então pronuncia as seguintes palavras, conforme a narrativa do milagre: “Santa Fé bebe vinho? Que bobagem!”. 169 O que se segue é uma série de moléstias que acometem seu corpo, pois agindo daquela forma ele tinha ofendido a santa e os servos dela. De acordo com Bernardo de Angers, “aqueles que ofendem os servos dos santos, insultam os próprios santos”.170 O relato de ofensa ao patrimônio da santa e o castigo como punição demonstra a condenação ao roubo que significa o rompimento dos direitos dos monges como senhores e, consequentemente, o de Santa Fé. Benedicto teve seu corpo enrijecido e ficou paralisado no chão, com “sua boca esticada para trás até as orelhas”171. Após dois dias acabou morrendo. O destino do outro servo, de nome Hildebert, não foi diferente. Porém, seu castigo foi mais detalhado e a sua prática qualificada pelo miracula como algo violento. Bernardo de Angers relata o ocorrido: “Agora que a morte do primeiro servo foi descrita eu passo nesta parte para o outro, que se chamava Hilderbert. Ele usou de violência172 no roubo de um ombro de porco de um camponês e se recusava a devolvê-lo”. Hilderbet morreu de uma inflamação na garganta quando consumiu a carne do animal. O senhor Hugo, que ordenou o roubo aos seus dois servos, ficou sabendo do ocorrido e foi por conta própria praticar a rapina. No entanto, quando estava indo de cavalo, caiu e quebrou duas costelas. 168 The book of Sainte Foy / translated with an introduction and notes by Pamela Sheingorn ; the Song of Sainte Foy translated by Robert L. A. Clark. University of Pennsylvania Press, 1995, p.60; 169 Ibidem, p.60; 170 Ibidem, p.60; 171 Ibidem, p.60; 172 O termo utilizado no latim é Violentur. Ver: Bernardo de Angers. Op.Cit, 1887, p.28; 54 Hugo permaneceu por dias num foço. Ao ser resgatado, se arrepende e faz uma peregrinação até o santuário da virgem. Quando volta, não é mais rebelde.173 O relato de intervenção da santa nos aponta algumas noções da época em que escreve Bernardo de Angers. Primeiro, um senhor de castelo que invade as terras de um monastério para a prática de rapina. Aqui neste caso não é, necessariamente, um ato de guerra feudal, com combates corpo a corpo, cerco de castelos ou sequestro de notáveispara um possível resgate. O milagre fala de uma invasão que foi castigada. Vimos em Rocamadour um cachorro sendo morto por um caso semelhante. Em Santa Fé há invasão e roubo de uma propriedade eclesiástica. Eis contra o que se insurge a Paz de Deus: este tipo de violentia. Roubo, invasão de terra, contestação de posse etc. A violentia do documento não é sempre a violência da guerra, do sangue e de lanças atravessando os corpos. A própria batalha entre senhores convidava mais para uma negociação do que para um embate perigoso que levava à morte de príncipes, condes e de uma aristocracia que não era tão indômita como se pensou por muitos anos. Se verifica um engano no pensamento acerca dos cavaleiros como pessoas que não tinham medo da morte. O mito da cavalaria repercute uma lógica que emprega um caráter inumano ou até romântico ao extremo às pessoas de épocas afastadas, como se elas não trouxessem consigo angústias, medos ou aflições. Como relata Barthélemy, “por meio da Igreja, e para além dela, toda a sociedade feudal é ambivalente a respeito da guerra de príncipes.174 [...] Desejam-se belas batalhas, mas sem efusão exagerada de sangue”. 175 A Paz de Deus foi uma tentativa de controle daquela sociedade? Em partes sim. Em nossa percepção, os movimentos na Gália buscam a contenção da depredação das igrejas mais que o controle de toda a Cristandade Latina. A apresentação destas assembleias faz parte do nosso argumento na negação, em associação com os miracula expostas, de que a Idade Média era alheia a mecanismos de contenção. A espiritualidade convocava a um freio nas atitudes, como verificamos nas condenações de determinados atos. O castigo divino era um importante promotor de ordem, visto que o anátema foi um instrumento de coerção importante do clero. O temor do sagrado está presente e não 173 The book of Sainte Foy. Op.Cit, 1995, pp.61-63; 174 Dominique Barthélemy chama de príncipes os grandes condes e senhores de castelos que se autonomizam em finais do século IX. Para maiores detalhes ver: BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, pp.145-225; 175 Ibidem, pp.203-204. 55 podemos ignorar esta concepção de mundo marcante pro período aqui pesquisado. Se havia instrumentos de controle, quer dizer que a violência no período não é endêmica? Afinal de contas, ela é um meio de reprodução ou não? A consideração das nuances evita posições situadas nos extremos. Entre o preto e o branco há mais cinzas que imaginamos e a análise das ambiguidades do ser humano nos coloca, inevitavelmente, inseridos mais nos tons cinzas do que, propriamente em extremos. Notamos que a violência, em nosso recorte, tem um caráter circunscrito ao rompimento de uma ordem ou de um direito e que não se atrela, necessariamente, ao ato em si do derramamento de sangue. Os príncipes são os perpetuadores de um modo de vida que convida ao conflito. Pilhagens, exploração do campesinato, cercos aos castelos rivais e tumultos dos mais variados são elementos utilizados para a reprodução dos costumes de um conjunto de homens que fazem de seu estilo um ideal. A honra move estas práticas e é tão refém das circunstâncias quanto a sorte permite. A fuga pode ser prudência ou vergonha. O homicídio pode ser digno ou repugnante. Ter honra significa ser positivo ou negativo diante dos atos comentados, de acordo com o momento. Não é preto ou branco e sim acinzentado. A honra movimenta e dita as relações desta classe de guerreiros mais que a violência. Buscamos o entendimento das relações aristocráticas a partir da perpetuação da honra. A violência, como a vemos hoje, é endêmica se for parte do “agir com honra”. A negação da batalha pode ser mais honrosa e virtuosa para duas hostes que um combate. A violência não dita as relações socias desta aristocracia e sim a honra. A honra está atrelada à violência? Muitas vezes sim, outras não. Honor: eis o que move estes homens de guerra, de paz, de contenção e de ação. Uma sociedade da vingança, mas também uma sociedade da honra. Trata-se do que Barthélemy chama de cavaleiro cavaleiresco: “ele quer sobrepujar seu adversário de mesmo estatuto sem matá-lo, demonstrando em relação a ele ímpetos de generosidade”.176 Não negamos que a violência fazia parte do cotidiano, porém é preciso a compreesão de sua racionalidade. Nesta leitura, excluí-se a ideia de barbarismo e de primitivismo de uma sociedade sem instrumentos de controle. As condutas não estão 176 BARTHÉLEMY, Dominique. Violência guerreira e cortesia: o que a cavalaria medieval pode nos ensinar a respeito das “sociedades de vingança”. Entrevista concedida à Néri de Barros Almeida. 2011. pp.167-168. Disponível em http://www.abrem.org.br/revistas/index.php/signum/article/view/51. Acessado em 11/04/2021. http://www.abrem.org.br/revistas/index.php/signum/article/view/51 56 ausentes de lógica e Foucault aponta isso quando afirma que “a racionalidade é o que programa e orienta o conjunto da conduta humana. [...] Há uma racionalidade mesmo nas suas formas mais violentas”. 177 Para Foucault, há uma razão que se liga às práticas. A lógica dos conflitos no medievo tem uma racionalidade que nem sempre tem como um fim a morte. Porém, as racionalidades não são imóveis e se vinculam ao momento e respondem pela necessidade. A racionalidade de um conflito intrassocietário (entre cristãos) não é a mesma de uma guerra intersocietária (como cristãos e muçulmanos) e veremos isso adiante. Afinal de contas, os massacres da primeira cruzada perpetuados pelos cristãos demonstram isso: violentos ao extremo, mas com sua racionalidade. Os massacres não são irracionais e tratá-los desta maneira isenta o discurso cristão na elaboração do “outro”. A honra, da qual nos referimos, não tem um significado único e muda de sentido conforme o contexto. Por exemplo: no século X, honra estava atrelada à posse de um bem. “Possuir honra” significava, se empregada positivamente, a designação de terras (feudo ou senhorio), ou, se preferirmos, baronias. 178 Não é desta honra que estamos tratando aqui. Dentre as várias interpretações existentes partimos do dicionário Mediae Latinitas Lexicon 179 que elenca as seguintes definições para a honor: honra como competência e poder,180 honra como posição social181 (tendo a posição e reproduzindo as formas de vida que conferem esta posição), honra como um importante papel público182 e honra como privilégios. 183 Além do sentido de respeitável atrelado ao termo honorabilis.184 O dicionário lista vinte e seis definições para honor, das quais muitas atreladas a posse de cargos, funções eclesiásticas e competências na cobrança de taxas. As definições por nós escolhidas se atribuem a categorias mais universais que guiem comportamentos e se coloquem como um fio condutor nas motivações das relações e ideais de vida. O uso do termo e seu significado está atrelado ao local, período e contexto. 177 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução Maria Ermantina de Almeida P. Galvão. São Paulo: Martins, Fontes, 2010, p.319; 178 Cf. BARTHÉLEMY, Dominique, Op. Cit. , 2010, p.151 179 NIERMEYER, Jan Frederik, and C. van de Kieft. Mediae Latinitatis lexicon minus. A medieval Latin- French/English dictionary. Leiden: Brill, 1976, pp.495-498; 180 Definição 3: Competence, power 181 Definição 4: social rank 182 Definição 8: an important public office 183 Definição 25: Privilege 184 Definição de honorabilistas que se refere à respected 57 No entanto, utilizamos as definições citadas pois se relacionam com uma gama de comportamentos pretendidos e que guiam as relações aristocráricas nos séculos XI e XII. Em milagres de Santa Fé, por exemplo, identificamos alguns usos da honor para nomear diversos comportamentos citados acima. Vejamos alguns exemplos: no milagre onze do Liber Primus Bernardo de Angers discorre sobre os crimes dos leigos:“Vi [...] monges e abades colocados fora de suas posições, 185 privados de seus bens e violentamente massacrados”.186 Estas posições das quais os abades estão excluídos, são referidas no miracula como honore. O sentido empregado faz alusão ao afastamento dos abades de uma propriedade, que confere poder, posição social e importante papel público aos seus detentores, que agora estavam retirados de tal competência. O sentido de poder, competência, posição social e privilégios, encontra-se, também, no mesmo milagre quando se fala das posses de Hildegaire, que tinha herdado da filha de sua avó, Doda, “grande riqueza e posição social 187 elevada”. 188 No entanto, Hildegaire usurpa os territórios de Santa Fé e é punido pela prática. A honra como respeitabilidade também está presente no relato do milagre dezessete no Liber Tertius, que mostra como um guerreiro de nome Siger, conhecido pela excelência de sua linhagem “diminuiu a dignidade de seu status189 por sua grande hostilidade com Santa Fé”.190 Ser portador da honra, buscá-la, promovê-la e o medo de perdê-la movimenta a aristocracia. A violência, como vemos hoje, faz parte da honra pois se refere a capacidade do exercício da autoridade, do estabelecimento de uma posição social, de ter pra si um papel público (as hostes das assembleias de paz não são isso, afinal?) e ter privilégios na concretização de sua competência de taxação, guerra e exploração. Todo esse conjunto se dá, afinal, na utilização das mais variadas violências. Porém, na maioria das vezes não é violentia. Parece paradoxal, mas a violência não era, necessariamente, violentia. A compreensão da forma como uma sociedade vê seus atos é o primeiro passo para a dialética entre o êmico e o ético, e a escrita de um trabalho em História. Principalmente, em História Medieval. Um outro ponto de análise pertinente se trata do 185 sive monachos abbatesque et ab honore depositos In: Bernardo de Angers. Op.Cit, 1887 p.39; 186 The book of Sainte Foy. Op.Cit, 1995, p.71; 187 Huic cum successisset tam in divitiarum opulentia quam in reliquo dignitatum honore nepos ejus Hildegarius, filie sue filius, a quo castrum valde opinatum in pago Albigensi regitu, vocábulo Penne. In: Bernardo de Angers. Op.Cit, 1887, p.40; 188The book of Sainte Foy, Op.Cit, 1995, p.72. O milagre fala que o mesmo Hildegaire era senhor de um famoso castelo chamado Penne, situado em Albigeois; 189 honoris sui dignitatem in: Bernardo de Angers. Op.Cit, 1887, p.157; 190 The book of Sainte Foy, Op.Cit, 1995, p.166; 58 sistema de vinganças. As vendetas sempre foram um dos argumentos para quem vê o período permeado de assassinatos e ciclos de vinganças intermináveis. Observemos como era. 1.4 Vingança: violência ou composição? A Idade Média como um período de vinganças sem fim e da honra que precisava ser recuperada após um parente ou aliado morto permeou o imaginário das pessoas (e ainda permeia) por muito tempo. Afinal de contas, até o santo se vinga. Porém, o santo se vinga e ao mesmo tempo perdoa o alvo de sua vingança, desde que haja arrependimento por parte do castigado. Arrependimento seguido de peregrinação ao santuário onde está guardada a relíquia da santa ou santo. Estamos diante de um acordo, uma composição. A composição é uma chave de leitura para o entendimento das relações existentes no sistema de vinganças e auxillia na percepção dos interesses, entre as partes envolvidas, na resolução do assunto sem derramamento excessivo de sangue. Vejamos um exemplo nos milagres de nossa senhora de Rocamadour:191 Philip era um cavaleiro de Cerro, na Itália, que costumava zombar daqueles que saíam da Península Itálica em busca de ajuda em Rocamadour. “Seu argumento era o fato da Itália ser notável por suas renomadas e grandes igrejas dedicadas à mais elevada Senhora e rainha”.192 Acontece que, certa noite, a virgem aparece diante dele com um exército de demônios para ameaçá-lo. As ameaças de morte feitas pelos demônios eram uma demonstração do que o esperava caso ele não fosse até a igreja da santa em peregrinação, pois com os demônios “as ações dos ímpios são desnudadas e os culpados lançados na confusão.” O cavaleiro Philip concorda e conforme a narrativa “foi movido pela admoestação da virgem suprema e pelo terror dos espíritos imundos”. Philip parte em peregrinação para agradar a virgem e ser perdoado das ofensas que tinha proferido aos peregrinos da santa e à própria santa. Eis uma composição. Uma vingança sem morte, feita através de acordos. A santa também negocia seu perdão e este perdão encerra a possibilidade de revanche, desde que o perdoado não incorra em novo erro. Embora as vinganças e as guerras feudais não sejam tão promotoras de combates cruentos e se busque, mais os 191 BULL, Marcus. Op.Cit., 1999, p.144; 192 Ibidem, p.144. 59 acordos, que assassinatos, esta maneira de reprodução da honra tem relação com o aumento da esfera de autoridade. Os príncipes buscavam a expansão de seu raio de ação (usando, inclusive, argumentos de vendetas) a partir dos mais variados mecanismos: se aliando com campesinos ou vassalos de um senhor rival, corrompendo um aliado deste senhor etc. Abel López trata das composições como um dos fundamentos do sistema de vendetas. López analisa as manifestações públicas de ira, que envolvem acusações contra supostos praticantes de algum crime: “a agressividade verbal é, geralmente, uma resposta a uma agressão passada. Tem alcance legal já que é pública. A pessoa insultada assume que uma responsabilidade está sendo atribuída a ela, que ela causou danos a um terceiro, então ela acredita que é seu direito ficar com raiva”. 193A partir disso, existe a busca pela vingança. Os conflitos resultantes destas vinganças e suas resoluções passam por uma lógica que precisa ser compartilhada pelas partes em disputa. Hanna Skooda194 afirma que a violência física é uma espécie de linguagem, mas para ser interpretada como tal necessita de entendimento por parte dos envolvidos, pois “nenhuma comunicação pode ser significativa na ausência de normas e convenções compartilhadas”.195 Para a ilustração do sistema faremos uso da sociologia do conflito de Lewis Coser. 196 Coser diferencia os conflitos institucionalizados, também chamados de conflitos internos, dos conflitos externos a um determinado grupo. Os conflitos internos e institucionalizados são os sistemas de vinganças e as próprias guerras feudais em si. Os adversários compartilham um sistema simbólico e uma linguagem que permite a apreensão do encerramento da contenda, por exemplo. “Entres os conflitos institucionalizados, alguns têm pontos de término inerentes e previamente estabelecidos. É o caso das ordálias, duelos e outras lutas de caráter agonístico, cujos desenlaces simbólicos se assimilam, de certa maneira, com jogos determinando o resultado”. 197 No caso das vinganças, o desfecho pode ser variado. Ocorre através do apaziguamento das tensões mediante acordo ou num conflito corpo a corpo. Numa “sociedade de vingança, tudo é questão de dosagem entre o rigor e a benevolência, e a 193 LÓPEZ, Abel. Op.Cit, 2017, p.85; 194 SKOODA, Hannah. Op.Cit, 2013; 195 Ibidem, p.18; 196 COSER, Lewis, Las funciones del conflicto social, México, Fondo de Cultura Económica, 1961 y Nuevos aportes a la teoría del conflicto social, Buenos Aires, Amorrortu, 1970. 197 DEVIA, Cecília. Op.Cit, 2014, p.162; 60 dificuldade é conceder a paz sem vergonha, renunciando uma legítima reposta quando se recebeu o golpe mais recente”. 198 Em fundamentos teóricos do conflito social, o sociólogo Pedro Luis Lorenzo define conflitos sociais deste tipo como “uma interação social contenciosa entre atores sociais que compartilham orientações cognitivas, mobilizados com diversos graus de organização e que atuam coletivamente de acordo com expectativasde melhora, de defesa de uma situação pré-existente ou propondo um contraponto social”.199 O autor busca a compreensão destas hostilidades num quadro amplo e não apenas relacionado à contemporaneidade, visto que também analisa a modernidade e o medievo. Os conflitos sociais nem sempre objetivam a implosão de um sistema mas, muitas vezes, ajudam na sua manutenção e reprodução. A sociologia do conflito e a antropologia da vingança auxiliam no estudo do fenômeno das vendetas. O conflito social é, conforme Pedro Lorenzo, melhor compreendido se nos atentarmos aos seguintes aspectos: um conflito não é apenas um movimentos de massa e pode partir de um ato individual que visa uma oposição; pode estimular a mudança, mas também a permanência e ser utilizado como promotor da consevação de um status quo. Além disso, os fatores econômicos não são os únicos que estimulam o conflito, pois existe, também, uma importância cultural e psicológica. Por fim, entende-se melhor um conflito social quando não consideramos que ele seja apenas um promotor de mudanças ou um meio de alteração da ordem vigente. O conflito também pode ser estudado de forma autônoma, como qualquer outro fenômeno social, político ou cultural, conceitualizando sua dinâmica interna de uma forma puramente teórica. Além disso, não são conflitos apenas mobilizações que se concretizam em atos violentos. 200 Estes conflitos fazem parte de um sistema social que compartilha certos valores, permitindo uma composição, um acordo, mesmo que uma das partes saia em desvantagem desta negociação. A vendeta, como conflito social, é um mecanismo que mantém um status quo, que mantém um sistema de valores calcados na honra. Daí em diante, o conflito pode ser violento ou não. Tudo depende das partes envolvidas e do ambiente que proporcione um desfecho sanguinário ou nem tanto. Trata-se, muitas vezes, de um embate que convida à resolução. Para melhor observação das nuances avaliemos o verbete Venganza no Dicionário de Antropologia de Thomas Barfield.201 Barfield entende a 198BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2010, p.485; 199 LORENZO, Pedro Luis. Fundamentos teóricos del conflicto social. Madrid, Siglo XXI, 2001, p.12; 200 Ibidem; 201 BARFIELD, Thomas. Dicionário de Antropología. México (MX) : Siglo XXI, 2000, p.666; 61 vendeta como uma “instituição de resolução de conflitos não apenas de forma agressiva, mas contendo elementos de controle social deliberado”.202 O autor fala de uma “represália dosada”203 para designar as vendetas como uma relação de controle. A possibilidade de uma vingança é, conforme o verbete, um mecanismo que atenua os ânimos, a partir do medo de ser um alvo, em potencial, de ataque, caso se pratique um ato considerado injurioso. Porém, o verbete parte destas vendetas como instituições de controle num âmbito da ausência de um governo central. O objetivo não é o questionamento acerca da existência de um Estado central no período estudado aqui, mas entendemos que existem as manifestações da presença de autoridades atuando e exercendo certo controle. Não tem relação com um Estado, necessariamente, central. Porém, nos séculos XI e XII no recorte regional trabalhado neste capítulo, não ocorre ausência de controle ou poderes dominantes. As forças centrífugas alimentam o poder central ao mesmo tempo que o fragmentam. As células necessitam do centro para a sua própria legitimação e o contrário também acontece. No entanto, as relações de poder se exercem de maneira local e se verificam principados com verdadeiras capacidades monárquicas. Assim, em nível local, os senhores estabelecem distintos mecanismos de controle. Não se realizam ciclos intermináveis de acertos de contas que ocasionariam uma ruptura, provocando conflitos que não permitiriam, por exemplo, algumas guerras do tipo cruzada. O estudo antropológico da vingança estabelece uma divisão oportuna para quem pesquisa o fenômeno: vendetas intrassocietárias e vinganças intersocietárias. Como o próprio nome já diz, a primeira compete ao ocorrido no interior de uma mesma sociedade ou numa parentela; a segunda entre duas sociedades distintas. Dito isto, existem as feuds e as guerras de vingança. A noção de feud está bem presente em antropólogos anglo- saxões e se relaciona com os feudos de sangue ou vendetas que ocorrem no interior de um mesmo grupo. As guerras de vingança são perpetradas contra outro grupo social. O problema nesta análise é o recorte. Quais os critérios para a designação de uma feud e uma guerra de vingança? Como se estabelece o recorte de uma sociedade? Quais são as escolhas? O exercío é complexo e depende das prioridades do pesquisador e de seu 202 Ibidem, p.666; 203 Ibidem, p.666; 62 trabalho. O que pode ser uma sociedade? A Cristandade? Um reino? Uma baronia? A cavalaria? A escolha de uma sociedade em nossa pesquisa é cavalaria cristã. Dominique Barthélemy afirma que existe um mundo social de guerras e justas que “tende a transcender as etnicidades até então sublinhadas (francos, aquitanos, normados, flamengos)”.204 Para Barthélemy essa sociedade é uma Cavalaria-mundo.205 Porém, não pode ser dissociada do Cristianismo, que cimenta estas relações. Por isso, uma feud ou vendeta, como instituição interna de controle se aplica, em nossa análise, à essa sociedade, que é repleta de comunidades distintas. Porém, nosso recorte não impede que se realizem outros, em âmbitos mais reduzidos. As blood feuds fazem parte de uma análise clássica de Evans-Pritchard que as enxerga inseridas numa concepção de controle para que uma sociedade não mergulhe numa guerra civil, ocasionando sua implosão. Percebe-se, desta maneira, que “os conflitos que se desenrolam num conjunto de relações em um espectro social mais amplo ou por um longo período de tempo, levam à restauração da coesão social”.206 As vendetas que se pensa conduzir ao banho de sangue, na verdade, têm a capacidade de promover uma ordem, pois “os conflitos fazem parte da vida social e os costumes parecem exacerbar esses conflitos, mas ao fazer isso eles também restringem os conflitos que levam a destruição da ordem social mais ampla”. 207 Eis nosso recorte de análise: existem as vendetas ou blood feuds que são internas a uma sociedade. A sociedade, nesta pesquisa, é a cavalaria cristã como parte constituinte da Cristandade. Existem, também, as vinganças externas ou guerras de vingança que são destinadas às sociedades exteriores. 208 Tendo esta divisão marcada para a nossa análise, destacamos o seguinte: no interior desta cavalaria cristã se sucedem mecanismos que buscam a contenção dos conflitos para que estes não se exacerbem e levem ao descontrole de uma guerra sangrenta. A lógica das blood feuds se aplica em recortes restritos (como comunidades locais) e ampliados (os cavaleiros cristãos).209 No entanto, a busca pelo controle não significa, necessariamente, que se logre êxisto neste aspecto. O descontrole 204 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit.,2010, p.256; 205 Ibidem, p.256; 206 DEVIA, Cecília. Op.cit, 2014, p.92; 207 Ibidem, p.92. 208 A referência é não ser cristão. 209 Os cavaleiros cristãos formam um grupo que, ao travarem combates, seguem as lógicas de vendetas pois se acusam constantemente de algum crime passado. Porém, o objetivo destas batalhas não é matar o adversário, pois pertencem à mesma sociedade. Ver: BARTHÉLEMY, Dominique, Op.Cit., 2010; 63 faz parte do processo e as mortes ocorrem nestes embates aristocráticos. São estes conflitos que as igrejas condenam e canalizam. A Trégua de Deus é uma das formas de direcionamento dos guerreiros para o enfrentamento dos inimigos da Cristandade que são construídos como tais. Esta Trégua é um prolongamento da Paz de Deus e, da mesma maneira, não recusa a guerra feudal totalmente. Podemos entendê-la num caráter normativo e circunstancial como instrumentoadicional na acusação de quem pratica violentia, pois aquele que faz um ataque condenável nos dias que a Trégua de Deus proíbe é sentenciado “a pagar uma multa, e pode agravar o caso de um homem acusado de violência. Cavaleiro ou não”.210 A proibição do assassinato de um cristão também fazia parte dos decretos desta Trégua de Deus. Durante a promulgação de uma destas tréguas no ano de 1054, em Narbona, há a seguinte cláusula: “que nenhum cristão mate outro cristão; pois aquele que mata um cristão derrama o sangue de Cristo; se, no entanto, mata-se um homem injustamente, o que nós não queremos, será necessário pagar por isso uma retratação segundo a lei”.211 Uma destas retratações é a penitência. O derramamento de sangue cristão poderia ser perdoado desde que fosse efetuado um ato penitente. A Trégua nasce na Catalunha, por volta de 1027, e “esta forma catalã se desloca em direção ao Norte, e cada província eclesiástica ou principado faz alguns ajustes a ela”.212 Porém, a existência desta trégua não foi responsável por um momento de calmaria interna, que promove a guerra externa. A Trégua de Deus não tem tal alcance, como por tanto tempo se viu. Uma leitura recorrente sobre o tema é a de Franco Cardini.213 Para Cardini, estes movimentos tem por função conter um descontrole provocado pelos cavaleiros: “Foram, precisamente, os chefes de certas dioceses, em breves apoiados por aristocratas e por milites que tinham conseguido converter ao seu projecto e por leigos de condição subalterna preocupados com o caráter endêmico de um estado de violência que impedia que se iniciasse ou retomasse o comércio e a vida econômica que deram início ao movimento da pax e da tregua Dei”.214 Além disso, para Cardini os movimentos de paz são uma resposta para impor a pacificação “aos tyranni que continuavam obstinadamente a ensanguentar a Cristandade 210 Ibidem, p.319. 211 BARTHÉLEMY, Dominique. L’na mil et la paix de Dieu. La France chrétienne et féodale, 980-1060. Paris, Armand Colin, 1999, p.507 Apud BARTHÉLEMY, Dominique. Ibidem, p.319; 212 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2010, p.317; 213 CARDINI, Franco. O guerreiro e o cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques. O homem medieval. Editorial Presença, Lisboa, 1989; 214 Ibidem, p.59; 64 com as suas lutas privadas [...]”. 215 Esta visão, geralmente, associa a Trégua como um mecanismo de pacificação que direciona uma mentalidde beligerante para a cruzada. Alguns pontos precisam ser abordados a partir das noções de Cardini. Primeiro, já tratamos sobre o suposto estado endêmico de violência e como a Paz de Deus protegia os patrimônios das igrejas mais detidamente. Segundo, as lutas privadas (vendetas) não significavam embates sanguinários e incontroláveis entre uma aristocracia guerreira, visto que existiam momentos de negociação e composição. As próprias miracula apontam e convidam ao entendimento quando a santidade não pune ou cura um malfeitor, desde que haja arrependimento seguido, muitas vezes, de peregrinação. A composição faz parte desta dinâmica, tanto quanto os combates de sangue. Logo, é preciso atenção à visão estereotipada que certas leituras oferecem do período. Terceiro, a Trégua de Deus estabelece proibições de conflito aos dias que considera sagrado, buscando mais a penalização ou negociação do que, propriamente, a exclusão. A penalização traz para a órbita da Igreja a possibilidade do perdão e da imposição do que precisa ser feito para o alcance da remissão divina. Ou seja, visa uma concórdia que satisfaça os interesses tanto do poder eclesiástico quanto dos leigos. Com isto, talvez, possamos relacionar a Trégua de Deus à futura cruzada. Não apenas associando a proibição dos dias de combate com a automática permissão de quando guerrear e sim ver a cruzada como uma possibilidade de penitência para quem rompe as proibições. Como constataremos mais a frente, a capacidade da convocação de Urbano II de movimentar parte da Cristandade latina não se ligava apenas a uma causa, mas, sim a várias que permitiram a marcha para Jerusalém. Raul Glaber narra o movimento da Trégua de Deus da seguinte maneira: Aconteceu neste tempo que, sob inspiração da graça divina, e em primeiro lugar na região da Aquitânia, depois pouco a pouco, em todo o território da Gália, se concluiu um pacto, ao mesmo tempo por medo e por amor de Deus. Proibia a todo mortal, de quarta-feira à noite, à madrugada de segunda-feira seguinte, ser suficientemente temerário para ousar tomar pela força o que quer que fosse a alguém, ou para usar da vingança contra algum inimigo, ou mesmo para se apoderar das garantias do fiador de um contrato. Aquele que fosse contra esta medida pública, ou o pagaria com a sua vida, ou seria banido da sua pátria e excluído da comunidade cristã. Agradou a todos chamar este fato, em língua vulgar, a trégua de Deus. Com efeito, não gozava apenas do apoio dos homens, como ainda foi muitas vezes retificada por temíveis sinais divinos. Por que a maior parte dos loucos que na sua audaciosa 215 Ibidem, p.59; 65 temeridade não recearam infringir este pacto foram castigados sem demora, quer pela cólera vingadora de Deus, quer pelo gládio dos homens. E isto deu-se em todos os lugares tão frequentemente que o grande número de exemplos impede de os citar um por um; Além disso, tratou-se apenas de justiça.216 Raul fala de um castigo que seria efetuado “pelo gládio dos homens” aos que infringissem a Trégua. A resposta pela espada, segundo o monge, é “apenas justiça”. Aqui temos a defesa nomeada como justiça e não violentia. “A cólera vingadora de Deus”217 se manifesta pelo combate. A vingança é cobrada com iuste218 e esta se reveste, neste contexto, de cota de malha, cavalo e lança. Deus, assim como um senhor feudal, também exige vingança e ela deve ser efetuada pelos seus guerreiros. O uso de uma palavra e não de outra está compreendido na busca da construção de uma ideia do que é ou não é um ato violento. A ausência do termo violentia no discurso é um procedimento de exclusão, do qual a interdição é o mais latente. Não tratar como violência um ato é construir uma verdade acerca do real. Essa verdade que separa e rejeita faz parte do discurso e “por mais que o discurso seja, aparentemente, bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder”. 219 As reparações se davam também em acordos e escaramuças. Além disso, muitas vendetas eram indiretas. Ou seja, se pilhava o campesinato e não exatamente um castelo. A opressão contra os camponeses acentuava-se em momentos assim, mas o conflito entre senhores ocorria em escala mais reduzida do que, propriamente, num combate feroz de castelo em castelo. Dominique Barthélemy afirma, inclusive, que na segunda idade feudal as relações se abrandaram ainda mais e muitos inimigos dividiam o mesmo espaço nas cortes, se comportando de forma amigável e prodigiosa. A violência está presente em várias instâncias e é instrumentalizada por diversas categorias sociais. No entanto, a presença da violência não significa, neste contexto, uma desordem. O poder se utiliza da violência como um mecanismo nas relações cotidianas para alcançar certos objetivos. Inclusive, na manutenção da ordem. Assim, como o poder circula em várias camadas da sociedade, a violência segue caminho paralelo. Portanto, o uso político da violência faz desta algo distinto do poder. Poder e violência não são a 216 Raul Glaber. Histories, Ed. E tradução: Marthieu Arnoux. Turnhout, 1996, pp.237-239; 217 diuina uindex;In: Ibidem, p.238 218 “Et hoc passim tarn frequenter contigit ut pre sui multitudine singulatim non queant adnotari, et hoc satis iuste.” In: Ibidem, p.238; 219 FOUCAULT, Michel. Op.Cit, 1970, p.10; 66 mesma coisa, pois aquele se utiliza desta para a sua reprodução. Porém, a violêncianão é condição intrínseca ao poder. Apresentamos três categorias abrangentes do fenômeno da violência: violência direta, violência estrutural e violência cultural. Além disso, a violência também tem funções para o poder, que apresentamos como a função socializadora, de justiça, cultural e simbólica. Estas funções precisam ser entendidas em conjunto com as três categorias gerais e se relacionam no cotidiano como um instrument do poder. Porém, são categorias de análise do pesquisador que necessitam de um diálogo com as percepções que circulam na sociedade que o historiador investiga através de uma perspectiva dialética entre o êmico e o ético. No entanto, uma análise de “dentro” é limitada, pois o acesso ao passado medieval como tal é impossível, visto que existem apenas vestígios legados por uma parcela diminuta e abastada. No caso dos séculos XI e XII, esta parcela era pertencente aos homens da Igreja. O recorte de análise desta noção de violentia é a região da Gália e da Francia Ocidental pois, além do autor de De Expugnatione Lyxbonensi ser um anglo-normando e suas percepções estarem relacionadas com sua região de origem, esse discernimento sobre a violentia como rompimento de uma ordem, é atrelado, em nossa pesquisa, ao ambiente de intensas espoliações sofridas pelas igrejas da Gália. Estas igrejas utilizam as assembleias de paz em associação com os leigos para sua auto proteção. As assembleias constroem uma lógica de guerra sacralizada para aqueles que defendem os bens da Igreja. Um outro aspecto na justificativa desta escolha regional para ilustrar a lógica da crônica da conquista de Lisboa é a busca por Raul em aproximar a expansão afonsina das cruzadas. Marcus Bull afirma que as motivações daqueles que se lançam nas cruzadas podem ser captadas nos miracula através da metodologia das trigger words que aponta um caminho que conecta o ambiente de espoliações com o fenômeno cruzadístico. Ou seja, para propagandear Afonso Henriques, Raul constrói a imagem do rei e da conquista de Lisboa inseridas nas lógicas cruzadas. A estratégia é apresentar um rei que atende às necessidades da Igreja, tal qual os defensores que agem nos combates santos. Ainda neste primeiro capítulo procuramos a desmitificação da imagem de uma Idade Média feudal cercada de violência e barbárie, beirando o sadismo. Demonstramos que existiam mecanismos de controle. Além das assembleias de paz, a formação de hostes de pacificação e as constantes ameaças de excomunhão, apontamos o sistema de vendetas que regulava as comunidades no interior da Cristandade impedindo-as de mergulharem em combates intensos que levariam ao caos. 67 Com certa regularidade e controle interno os guerreiros cristãos foram colocados para agir no mundo em proteção da Igreja num combate contra os inimigos da Cristandade. Com estes elementos, a guerra se torna santa e é direcionada para fora. A noção de estar “fora” (intersocietária) da sociedade cristã possibilita aos homens de guerra se livrarem dos pecados cometidos e expandir a Cristandade diante do outro. Dentro do que foi abordado até agora, sobrevém a seguinte reflexão sobre a violência no período: existe uma noção do que significa ser violento. Esta noção se atrela a um caráter específico, que é difundido de algumas formas, além de documentações normativas. As literaturas das mais variadas reforçam uma percepção do que é uma atitude de violência. Trabalhamos os miracula com seu tom pedagógico e propositivo acerca dos comportamentos condenáveis e piedosos. Estes relatos são importantes instrumentos na capacidade de discernimento da experiência daquele que a escreve, inserido num contexto social. “Os miracula nos aproximam o suficiente para vislumbrar operações de alguns valores e percepções culturais importantes”. 220 No próximo capítulo direcionaremos nossa visão para o estudo do emprego da violência nas guerras cristãs em contextos locais e adaptados. A adaptação do discurso sobre o “outro” se adequa às circunstâncias e transfere a lógica do conflito intersocietário do mau cristão, que espoliava as igrejas, para os muçulmanos. As populações islâmicas que habitavam a Península Ibérica serão alvo deste discurso cristão no recrudescimento da expansão das monarquias ibéricas. Expansão que passa a ser descrita como sagrada, principalmente, com o surgimento do fenômeno da cruzada 220 BULL, Marcus. Op.Cit, 2003, p.31; 68 Capítulo 2 As Guerras Cristãs: Violência Sacralizada Em Guerra Santa: Formação da Ideia de Cruzada no Ocidente Cristão, Jean Flori se questiona como o Cristianismo se torna propenso na disseminação da violência através das guerras, visto que, em seu surgimento, a mensagem era de recusa às práticas consideradas belicosas. Flori faz um longo percurso do Baixo Império até a Idade Média Central e as lentas transformações ocorridas no contexto do fim do Império Carolíngio. O autor explica como a recusa à violência se modifica e faz desta mesma violência um instrumento cristão. Talvez as condições na terra realmente movimentem os céus, pois necessitando de proteção contra a espada, a Igreja se defende com a espada. Neste segundo capítulo será realizada uma análise do discurso cristão que incentiva a violência e a positiviza como uma forma de proteção no ambiente de rapinas e de contestações aos seus patrimônios. Nomeando violência de outras maneiras, os teóricos da Igreja direcionam a belicosidade dos cavaleiros para as guerras sagradas. A partir da noção de guerra sacralizada, abordaremos a guerra santa em sua pluralidade. O discurso do combate santo que surge no ambiente da Paz de Deus é apropriado em outras regiões da Cristandade. Dentre estas, a Península Ibérica. A presença do Islã na região fez do muçulmano o “outro” que precisa ser combatido, conforme a lógica cristã. A guerra santa hispânica se efetua, principalmente, após o surgimento da cruzada. As monarquias ibéricas utilizam o discurso do combate sagrado como uma ferramenta de propaganda, visando a sua própria legitimidade. O período é de intensas movimentações políticas, pois o papado também busca aliados fora da Península Itálica. Os poderes se movimentam em suas lógicas particulares. As alianças e conflitos ocorriam entre estes poderes que, ora se legitimavam, ora se deslegitimavam. Na última parte do capítulo, uma análise do surgimento da cruzada será efetuada. A finalidade é a compreensão das ideias presentes nos relatos feitos acerca do sermão de Urbano II no concílio de Clermont. As trigger words de Marcus Bull apontam que a chamada do papa reune elementos presentes nos miracula ambientadas no contexto das assembleias de paz que analisamos no capitulo anterior. Elementos que também estarão presentes na crônica do cruzado Raul, já que ele era um anglo-normando. O uso da 69 violência no combate da violentia é uma apropriação do Cristianismo para sua própria serventia. 2.1 A guerra santa cristã: violência permitida Efetuamos, até aqui, uma análise do que é violência num escopo atual e ampliado e o que era considerado violentia na região da Gália durante os séculos XI e XII. Doravante, nossa proposta de leitura parte das concepções internas daquela sociedade junto às noções modernas, para a apreensão de como a guerra cristã possibilita aos cavaleiros transformarem seus costumes bélicosos em práticas justas e sagradas. A primeira questão é sobre o caráter desta guerra santa. Podemos chamar de guerra santa, no singular? Ou talvez ‘guerras santas’ seja mais adequado? Existe uma fórmula específica, através de elementos distintivos que nos permita, a partir destes, uma identificação do fenômeno? Primeiro, existem vários tipos de guerras santas e não apenas uma. Segundo, não há fórmulas milagrosas. A literatura sobre o tema é ampla, sem consenso e segue em buscas de novasabordagens. Neste tópico, guiaremos nosso caminho através de uma discussão bibliográfica no que diz respeito ao tema e como se tem trabalhado o assunto. Seguidamente, estabelecer nossa visão. Uma reflexão inicial se faz necessária. A ideia cristã sobre o uso da violência considerada justa e sua manifestação através da guerra como forma de enfrentamento com outros povos advém do Velho Testamento. Não só a guerra, mas outros atos de violência também estão presentes e são justificadas pela vontade de Javé. “A própria ideia de guerra santa permeia boa parte do Antigo Testamento. Aí Deus é chamado com muita frequência de Senhor dos exércitos‘ (Adonai sevaoth), e a guerra é muitas vezes apresentada como guerra do Senhor”.1 Alguns livros do Antigo Testamento, por exemplo, Êxodo, Números, Josué, Deuteronômio, Juízes e outros, descrevem a guerra realizada por Israel como santa ou justa na medida em que é determinada por Iahweh, que estabelece os objetivos, determina as conquistas, intervém nas operações, ordena as repressões e matanças, dispõe do butim e dos despojos. São vários os relatos de violência, de massacre, de genocídio, de guerra de conquista com intervenção direta de Iahweh em favor do povo de Israel.2 1 TESSORE, Dag. A Mística da Guerra: espiritualidade das armas no Cristianismo e no Islã. São Paulo: Nova Alexandria, 2007, pp.27-28; 2 p.41; 70 Os exemplos se multiplicam: Abraão, Moisés, Josué. A tradição judaico-cristã em relação ao uso da violência é ambígua, mas a ideia gira em torno de que “a Providência se serve das guerras, mesmo conduzidas por homens malvados, para corrigir seus fiéis e punir seus pecados, e para mostrar ao mundo inteiro o poder e a imperscrutável soberania de Deus”.3 Dito isto, como surge a guerra santa cristã? As assembleias de paz seguida da Trégua de Deus são tratadas pela grande maioria dos historiadores como elementos que contribuem para a sacralização do combate efetuado pelos leigos a partir do momento em que estes prestam o serviço de proteção das igrejas contra a espoliação de “maus cristãos”. Muito se fala da guerra santa como um legado da guerra justa, que foi teorizada por Agostinho e que, numa longa duração, perpetrou os combates santos no decorrer da Idade Média Central. Jonathan Riley-Smith afirma que esta herança agostiniana no século XI ocorre quando “os papas estavam recorrendo aos eruditos para justificar o uso da força em prol da Igreja”. 4 Assim, “as citações dos escritos de Agostinho foram reunidas convenientemente em antologias, deixando de fora as contradições”. 5 Nota-se uma premissa nestas teorizações de que a violência é neutra6 e “a intenção dos praticantes que lhe forneciam uma dimensão moral”. Esta moralidade implicava na consideração da violência como algo bom ou ruim. Portanto, a resposta aos chamados das igrejas locais para defendê-las não era violentia. Muito pelo contrário. Tinha relação com justiça e, ao mesmo tempo, com uma obrigação daqueles que nasceram para a guerra. Era o reconhecimento da função guerreira e uma maneira de agir no mundo em prol da Igreja e da Cristandade. A defesa do sagrado, na emergência da guerra santa, parte de uma ação reativa aos ataques sofridos. Essa é a ideia que melhor se adequa ao aparecimento desta concepção de combate santo. A defesa do patrimônio eclesiástico proporcionou uma teorização dos combates e uma maior aceitação em relação aos discursos da Igreja para a defesa dos bens de Cristo. Com 3 TESSORE, Dag. Op.Cit., 2007, pp.30-31; 4 RILEY-SMITH, Jonathan. As Cruzadas: uma história/ Jonathan Riley-Smith; tradução de Jonathas de Castro – Campinas, SP: Eclesiae, 2019, p.56; 5 Ibidem, p.56. 6 Analisamos que a violência tem uma racionalidade e não é, jamais, neutra. A lógica da violência está atrelada ao poder que faz desta um instrumento conforme os interesses do período. A proposição da neutralidade da violência é um discurso com intuitos posicionados. Para questões de racionalidade e violência ver: FOUCAULT, Michel. Omnes et singulatim. Towards a Critique of Political Reason. In Power. Essential Works of Foucault: 1954-1984, ed. James D. Faubion, 298-325. New York: New Press, 2000 e FOUCAULT, Michel . Em defesa da sociedade. Tradução Maria Ermantina de Almeida P. Galvão. São Paulo: Martins, Fontes, 2010; 71 a violência moralmente aceita a Igreja partiu para a guerra e incentivou o combate. “Os séculos centrais da Idade Média europeia, especialmente o período compreendido entre finais do século XI e fins do século XIII, foram um tempo de crescimento e exaltação da ideia de Guerra Santa [...]”.7 Essa ideia está realmente atrelada a algo específico ou se produziu numa diacronia? Esta diacronia para a compreensão envolveu um ponto inicial? O ponto inicial é sempre um problema quando estamos analisando as sociedades e suas imprevisibilidades. A guerra justa, que estaria na base da guerra santa, é um ponto de partida pros historiadores que analisam o tema. Um amplo leque é aberto e recua-se até a Antiguidade na captação desta noção. Geralmente, a qualificação da guerra como justa é identificada quando se dá a junção entre Cristianismo e Estado e os argumentos defensivos que derivam após esse momento. Não consideramos inapropriada esta análise e ainda é válida para a sacralização dos embates que surgiram a partir do século XI. No entanto, é preciso uma distinção: a Bellum Iustum agostiniana responde uma circunstância distinta e distante do que foi a necessidade de teorização dos combates em defesa das igrejas em contextos de pilhagens e dilapidações. Vejamos os argumentos de Jean Flori em seu livro Guerra Santa: formação da Ideia de Cruzada no Ocidente Cristão: Flori recua até o Baixo Império e investiga a adoção do Cristianismo pelo império romano. Neste momento, se inicia uma transição do pacifismo pregado pela Igreja Primitiva para uma belicosidade calcada no discurso de defesa. Para o historiador francês “a brusca mutação que transformou o império romano pagão em império cristão mudou de maneira radical os elementos que concernem a atitude dos cristãos com a guerra”. 8 Essa mudança de atitude se articula ao instante experimentado pelo Império. Agostinho é utilizado posteriormente como recurso doutrinário legitimador. Notamos traços de Agostinho adaptados à conjuntuta em que é utilizado. Por este motivo nos referimos ao plural em relação às guerras santas. Pois, o discurso que legitima, utilizando- se dos escritos do Bispo de Hipona, é adaptável. A Guerra Santa Hispânica usa os escritos 7 GONZÁLEZ, David Porrinas. Guerra Santa y Cruzada en la literatura del Ocidente peninsular medieval (siglos XI-XIII). In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos de (dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y PALACIOS ONTALVA, J. Santiago (dir.). Orígenes y desarrollo de la guerra santa en la Península Ibérica: Palabras e imágenes para una legitimación (siglos X-XIV). Nueva edición [en línea]. Madrid: Casa de Velázquez, 2016; 8 FLORI, Jean. Op. Cit, 2003, p.23. 72 de Agostinho no combate ao muçulmano, visto que também auxilia na legitimação das monarquias peninsulares com o surgimento da cruzada. Neste caso, são discursos de guerras específicas, que recorrem a um teórico da Igreja para, inclusive, contar com as hostes cruzadas nas campanhas de expansão dos reinos ibéricos. Então Agostinho acaba sendo um ponto de partida? De certa forma sim, mas não só ele. A guerra justa também é bíblica e muito presente no Antigo Testamento, como dito acima. Não só a guerra, mas assassinatos são justificados como piedosos, desde que com anuência divina e para cumprir seus desígnios. O caso de Abraão que oferece seu filho em holocausto é, inclusive, citado pelo em Cidade de Deus. O episódio de Moisés também demonstra certas especificidades. Quando desce do monte Sinai com as tábuas da lei, que inclui o “nãomatarás”, o profeta acaba ordenando a matança de todos que estavam adorando um bezerro. As doutrinas agostinianas estão presentes de forma específica. Ele é dito e citado em muitos discursos. No entanto, de maneira adaptada, dito de outra forma e inserido no ambiente que é pronunciado. Significa “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia sido dito jamais”. 9 A percepção do combate justo está presente antes de Agostinho e pode ser tão antiga como o próprio fenômeno da guerra. “Agostinho de Hipona (354-430) vincula esta teoria ao Cristianismo, e suas ideias serão herdadas pelos teóricos eclesiásticos medievais, adaptando-as às suas próprias necessidades e circunstâncias”. 10 Portanto, por mais que Agostinho seja usado muitas vezes em diversas racionalizações da guerra, as justificativas dos séculos XI e XII estão inseridas em seus devidos tempos e lugares, se adaptando, inclusive, aos que recebem o discurso. As justificativas e as motivações são dois pilares básicos para a movimentação daqueles que praticam a atividade bélica. Dito isso, definimos guerra santa como todo conflito que tenha contato com elementos do sagrado e seja justificada para a defesa de uma sacralidade, contando com o seu auxílio para a proteção dos fiéis. A guerra santa usa do argumento da Bellum Iustum, muitas vezes, na justificava de um combate que busca “reaver” algo que foi tomado. Esses elementos do sagrado são variados e envolvem objetos, símbolos, liturgias etc. Alexander Pierre Bronisch caracteriza o fenômeno da seguinte maneira: “o que está em contato 9 FOUCAULT, Michel, Op.Cit, 1970, p.25; 10 GONZÁLEZ, David Porrinas. Op.Cit, 2016, p.70; 73 direto com a divindade pode ser considerado santo, e não importa se é um objeto, um sinal ou uma ordem divina”. 11 Ou seja, o contato com o sagrado e a a sua defesa fazem de combate algo santo. A sacralidade pode ser representada por bens da Igreja, por exemplo. Sendo assim, é possível a identificação destes traços e, ao mesmo tempo, não atrelá-los apenas ao Cristianismo, embora nossa atenção aqui se volte para estas guerras santas cristãs especificamente. Contra quem estes conflitos santos se levantam? Os adversários variam e as fundamentações se adaptam, muitas vezes, de acordo com o “inimigo”. O inimigo pode vir de dentro e notamos a guerra sendo sacralizada justamente contra quem está, aparentemente, no interior da sociedade. Então, era um conflito intrassocietário? Não avaliamos desta maneira, pois o mau cristão é visto como um problema que o coloca fora da sociedade. Como se dá esta exclusão do mau cristão? Pela excomunhão, interdito e outras práticas que visam a vexação dos praticantes de condutas errôneas. Bernardo de Angers12 já dizia a respeito do monge Gimon que anunciava o combate aos falsos cristãos como superior meritoriamente, pois eles “atacavam a lei cristã” ao contrário dos pagãos, “dos quais nunca tinham conhecido a Deus”.13 Por que Gimon não agia de erroneamente utilizando-se da espada na defesa do mosteiro? Ele era um monge, embora tenha vivido no século antes de sua conversão. Explicamos anteriormente que agir com violentia é uma condição relacionada ao jogo de poderes. O monge defensor agia, conforme Bernardo de Angers, de forma piedosa, já que protegia a abadia. “Ninguém poderia duvidar de que sua bravura foi agradável aos olhos de Deus”, pois ele combateu uma “grande força inimiga que caiu violentamente14 sobre o mosteiro”. Eis a palavra qualificando os atos de quem atacava o mosteiro: violentia. Gimon era servo de Deus e instrumento divino para a defesa dos bens da Igreja. “Se a onipotência vingadora 15de Deus empregar a mão de qualquer um de seus próprios servos 11 BRONISCH, Pierre Alexander. La (sacralización de la) guerra em las fuentes de los siglos X y XI y el concepto de guerra santa. In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos de (dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y PALACIOS ONTALVA, J. Santiago (dir.). Orígenes y desarrollo de la guerra santa en la Península Ibérica: Palabras e imágenes para una legitimación (siglos X-XIV). Nueva edición [en línea]. Madrid: Casa de Velázquez, 2016, p.28. 12 Bernardo de Angers. Op. Cit. ,1897, pp.66-67; 13 Ibidem, pp.66-67 ; 14 Hostium violentia. In: Ibidem, p.67. 15 Vindex, In: Ibidem, p.68; 74 para derrubar e massacrar um destes anticristos, ninguém poderia chamar isso de crime”.16 Examinemos detalhadamente o caso citado acima. Gimon trava um combate justo pois era, nas palavras de Bernardo de Angers, um “trabalhador da verdadeira justiça”. 17 A defesa da abadia e o combate efetuado pelas forças de Gimon estavam em contato com o sagrado, não apenas por defender uma propriedade de Santa Fé, mas porque o próprio monge combatente se direcionava para as relíquias da santa, pedindo proteção e vingança contra aqueles que atacavam. Indo até o túmulo da mártir “ele jurou seu caso diante de Santa Fé em sua maneira realista de se dirigir a ela. [...] Pois ele ameaçou açoitar a imagem sagrada e até mesmo jogá-la em um rio ou poço, a menos que Santa Fé se vingasse do malfeitores imediatamente”.18 O ritual de humilhação das relíquias ou de ameaça era habitual em muitas abadias e uma forma de negociação com a santa ou santo. Bernardo de Angers segue o relato e diz que após os apelos do monge combatente os “malfeitores morreram devido a vários infortúnios”. 19 A vingança da santa se efetiva e os relatos deste tipo de intervenção são habituais a partir do século XI. “A violenta intervenção dos santos conduziu, pois, a uma verdadeira sacralização dos combates que seus fiéis empreendiam pelo interesse das igrejas”.20 O caso de Gimon não tinha relação com a recuperação de um bem ou terra perdida. O caso teria ocorrido por volta de 960. Ou seja, a guerra santa ainda não estava plenamente estabelecida, mas é possível a identificação desta consciência. Gimon é do século X mas sua história é contada por volta de 1010. Bernardo de Angers lança seus olhos ao passado com as visões de seu próprio tempo e as impressões do século XI. Jean Flori 21entende que a Paz de Deus contribui para a moralização da ação guerreira. As narrativas dos santos que castigam, frequentemente, quem atenta contra seu patrimônio, contribuem para uma visão de justiça que se pratica na proteção do sagrado. Ocorrem dois caminhos que se alimentam mutuamente. A necessidade da defesa da Igreja pela espada com o auxílio dos laicos e de sua beligerância, e a proliferação dos relatos de milagres com intervenções violentas dos santos. A literatura reflete seu tempo e o 16 The book of Sainte Foy. Op.Cit, 1995, p. 95 17 Ibidem, p.95; 18 Ibidem. 19 Ibidem. 20FLORI, Jean. Op.Cit, 2013, p.123; 21 Ibidem, pp.120-123; 75 cotidiano se legitima por essa literatura. O discurso é propositivo e coloca a violência como um instrumento ao alcance dos homens do século para agradar a Deus. Os santos eram violentos e este artifício foi utilizado muitas vezes nas assembleias de paz quando as relíquias eram levadas como forma de atemorizar àquele que rompessem o juramento efetuado. A violência era um instrumento no combate da violentia. Aqui nos referimos a violência proporcionada pelos símbolo que coagem. As relíquias impõe respeito e temor. As assembleias usam da violência como forma de se defender da violentia. Jeróme Baschet em seu clássico manual A Civilização Feudal do ano mil à colonização da América afirma que “é-se cristão porque se nasce no Cristianismo”.22 Adaptando a frase do medievalista francês, podemos dizer que as assembleias eram violentas por nascerem num ambiente de violentia. A princípio parece uma ideia determinista e que coloca a violência como única saída para um ambiente, aparentemente, violento. Não é determinismo e sim a compreensão que a linguagem deuma aristocracia guerreira se dá a partir das concepções que envolvem a violência como uma parte constituinte da honra. As assembleias se comunicam com estes senhores através de imagens que os mesmos compreendam. No nível da linguagem, as assembleias são simbolicamente violentas para dialogar com uma aristocracia belicosa. Porém, note-se que a violência da qual nos referimos não é apenas a violência física. Caso contrário, estaríamos perpetuando um imaginário de uma sociedade anárquica. A presença do santo, por intermédio de sua relíquia ou imagem, tem um significado e o símbolo presente dá sentido na relação com o sagrado e na imposição que se pretendia através da paz ou ameaça de quem rompesse o trato. “Os símbolos constituem o núcleo dos sistemas culturais, pois são com eles que formamos pensamentos, ideias e outras maneiras de representar a realidade para os outros e para nós mesmos.” 23 A presença daqueles símbolos busca, em sua essência, uma conciliação, um consenso. O símbolo, em seu âmago e quase na origem de seu termo, é unificador de pares opostos.24 “Seria a faculdade de manter unido o sentido consciente que capta e recorta precisamente os objetos e a matéria-prima que emana do fundo do inconsciente.” Ou seja, “o símbolo seria uma mediação entre a realidade concreta e uma abstração, um 22 BASCHET, Jérome. A Civilização Feudal: do ano mil à colonização da América. Tradução de Marcelo Rede. Rio de Janeiro: Globo. 2006; p. 167; 23 JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia:guia prático da linguagem sociológica/ Allan G. Johnson; Tradução: Ruy Jungman; Consultoria: Renato Lessa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp.206- 208; 24 DURAND, G. A Imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix, EDUPS, 1988, p.61; 76 conceito, implicando uma função de comunicação. O símbolo é sempre algo que representa alguma coisa para alguém.” 25 O símbolo, como união e consenso, promove uma obrigação. Esta obrigação representa a capacidade de apreensão que se desenvolve nas pessoas diante da forma simbólica. A forma, ao produzir sentido, também promove coerção. Num cotidiano cristianizado, onde os costumes, ações e simbolismos remetem ao sagrado e ao sobrenatural, era usual que as coisas que remetessem ao espiritual promovessem um misto de admiração e medo. A presença do santo patrono do mosteiro nas assembleias traz ao plano da realidade uma representação daquele que castiga os prevaricadores e combate não só os infiéis como também os maus cristãos, que insistem nas práticas violentas de espoliação do patrimônio eclesiástico. “Quando falamos de imagens, devemos considerar que essas funcionam como símbolos, repletos de significados, que embora não pertença a linguagem propriamente discursiva, expressam ou geram conceitos.” 26 Desta forma, busca-se uma anuência pela imposição, através de juramentos que determinam o respeito em relação às coisas da Igreja. O consenso, via imposição, ignorava as discordâncias. O que era decidido entre as camadas abastadas numa aliança entre as aristocracias laicas e eclesiásticas apagavam a existência de outros, excluindo a voz dos que não tinham o acesso ao discurso. Sendo assim, detectamos a violência estrutural e cultural nestas assembleias. Estrutural, pois se realiza a exclusão de forma simultânea ao que é imposto de maneira vertical. As decisões da comunidade sendo tomadas entre os detentores de alguma autoridade. As relíquias que manifestam devoção e pavor movimentam as decisões e a ameaça de excomunhão coloca o clero como um elemento necessário na condução da mão daqueles que portam o gládio, direconando-os para a verdadeira justiça: a defesa da Igreja e da Cristandade. “A função simbólica da violência é também uma forma de construir poder por meio de ritos”.27 Estes ritos são armas próprias da Igreja (em particular a excomunhão e interdição).28 Existe uma racionalidade nestas assembleias e a razão da violência está ligado a esta 25 CRUXEN, Edilson. Castelo Medieval: elementos simbólicos e representações. In: Reflexões Sobre o Medievo II, Prática e Saberes no Ocidente Medieval. / Organizado por Carlinda Maria Fischer Mattos, Edilson Bisso Cruxen e Igor Salomão Teixeira – São Leopoldo: Oikos, 2012, p.156. 26 Ibidem, p.156; 27 DEVIA, Cecília. Op.Cit., 2014, p.243; 28 Ibidem, p.243; 77 racionalidade. Existe razão nesta práticas. Compreender o esquema nos jogos de poder e qual o tipo de racionalidade envolvida, permite analisar se está ou não ligada à violência.29 A guerra santa surge, então, das definições que se manifestam nos desdobramentos da Paz e da Trégua de Deus? Na região da Gália e Catalunha sim. Cogitamos que estas assembleias tem papel determinante para a desproblematização da violência e seu redirecionamento para causas pias. Então é uma especificidade da região citada? A guerra santa não é especificidade de uma região da Cristandade, mas sim de toda a Cristandade latina e suas divisões regionais. Sendo assim, existem discursos e guerras santas específicas, com inimigos que também são específicos, mas que são colocados num quadro de exterioridade ao conjunto cristão. Talvez esta seja uma constante para a definição de uma guerra santa: ter como inimigo quem está fora da sociedade; além dos aspectos citados, como o contato e a defesa do sagrado, a proteção aos fiéis e a retomada de algo que foi tirado com violentia (O que caracteriza uma guerra justa). Doravante, quem está fora da sociedade é uma variável de acordo o local. A percepção de guerra santa que advém da Gália tem como variável, geralmente, o mau cristão. Notamos como o mau cristão é visto e caracterizado: promovendo invasões, contestando as propriedades da Igreja, represando o dizimo, assediando os peregrinos de algum santo ou santa etc. Se nos atentarmos, por exemplo, ao livro de milagres de São Privato de Mende,30 veremos que dos treze milagres relatados, oito falam sobre castigos aos invasores da terra do santo. Ou seja, era uma tônica que se pretendia combater na região de Mende mostrando as punições contra quem atacasse a propriedade. A Bellum Iustum é uma base importante de legitimação e identificação de uma guerra santa. Por exemplo, os critérios na identificação de uma guerra justa são a auctoritas (apenas uma autoridade reconhecida poderia declarar a guerra), a res (o objetivo do conflito deveria ser a reivindicação de alguma injúria do tipo recuperação de bens, propriedade etc), causa (somente a extrema necessidade poderia justificar a guerra), animus (nunca ódio ou cobiça deveria inspirar quem fosse ao conflito).31 Embora, muitas 29 COSTA, Helrison Silva. Poder e Violência no Pensamento de Michel Foucault. Sapere Aude, 9(17), 153- 170, 2018. https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2018v9n17p153-17. Acessado em 12/04/2021; 30 Les Miracles de Saint Privat. In : Colection de Textes. Publicado por BRUNEL, Clovis. Paris,Librairie Alphonse Picard et Fils, Libraire des Archives Nationales et de la Sociéte de l’École des Chartes, 1912; 31 GUIMARÃES, R.D. O papel da violência na ordem pública: estratégias discursivas eclesiásticas. BIBLOS, 22(1), 69–82. Disponível em: https://periodicos.furg.br/biblos/article/view/857 pp73-74. Acessado em 11/04/2021; https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2018v9n17p153-17 https://periodicos.furg.br/biblos/article/view/857%2520pp73-74 https://periodicos.furg.br/biblos/article/view/857%2520pp73-74 78 vezes, a motivação dos combatentes passe longe destas premissas. Geralmente, Agostinho é usado nestas justificações sendo adaptado ao momento, ao local e ao grupo de pessoas que serão combatidas. Talvez a justificativa mais latente utilizada e que reforce o discurso que se emprega, na legitimação, seja o livro primeiro da Cidade de Deus que pondera sobre os homicídios não considerados criminosos. No capítulo XXI Agostinho argumenta que “algumasvezes, seja como lei geral, seja por ordem temporária e particular, Deus ordena o homicídio”.32 O bispo disserta, ainda, a respeito de quem comete um homicídio e aponta o autor deste ato como um instrumento, “como a espada com que fere”.33 Deste modo, segundo Agostinho, “não infringiu o preceito quem, por ordem de Deus, fez guerra ou, no exercício do poder público e segundo as leis, quer dizer, segundo a vontade da razão mais justa puniu de morte criminosos”.34 Além disso, “Agostinho era o mais positivo quando escrevia a respeito da intenção correta que era exigida de quem autorizasse a violência e participasse dela. Essas pessoas deviam ser motivadas por amor, o que significa que a força só seria empregada na medida necessária”. 35 Esta força empregada nos séculos XI e XII não é vista como violentia. O discurso dispersa e regulariza. O discurso sobre guerra santa não se dá pela existência desta guerra em si, mas a guerra santa foi constituída como discurso pelo que se disse ao seu respeito. 36 Agostinho fala sobre uma guerra justa, não porque esta exista, mas porque ele fala sobre ela. Ou seja, o discurso produz um efeito de verdade e isto se dá como um processo histórico, relacionado ao seu tempo. A Igreja se apropria da guerra justa para a legitimação de sua guerra santa. O uso de Agostinho é adaptado pois, “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. 37 A teorização do assassinato autorizado e das guerras piedosas como praticas em favor de Deus cristalizam o ideal de combate santo e permitem aos laicos agradar aos céus dentro de suas possibilidades. Afinal, a partir do século XI, se vê uma mudança na espiritualidade leiga que dá à aristocracia guerreira a capacidade de agir no mundo pelo bem da Cristandade. “O sentimento cristão pode ter-se tornado mais vivo e mais exigente, 32 Agostinho de Hipona. A Cidade de Deus. Ed. Petrópolis, RJ; Vozes , 2002, p.70 33 Ibidem, p.70; 34 Ibidem, p.70; 35 RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.55; 36 Para uma melhor compreensão sobre dispersão e regularidade do discurso ver FOUCAULT, A arqueologia do saber; Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves – 3ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense –Universitária, 1987 37 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., 1970, p.26; 79 em toda a sociedade, devido à reforma que se desenrola na Europa ocidental entre 1049 e 1122”.38 Conforme Girolamo Arnaldi,39 esta “energia reformadora” da Cristandade estava presente inclusive nos leigos. Afinal, o item XXVII do Dictatus Papae autoriza “que por ordem e permissão sua seja lícito aos subordinados formular acusações”.40 A busca pelo retorno à Igreja primitiva era pedra de toque das reformas. Porém, essa noção de retorno para uma comunidade que seria mais pura encontra uma contradição em sua partida pois a moralização dos costumes hierarquiza a importância dos poderes e busca “submeter mais o clero ao papado e os laicos ao clero”.41 Geralmente o chamado espírito da reforma que atinge não apenas a Igreja, mas toda a sociedade, é associado a Cluny e o movimento resulta, inclusive, num papado monástico, tendo no trono de Pedro alguns papas vindos das fileiras monacais. Ponderemos sobre alguns autores clássicos como André Vauchez e Brenda Bolton. Bolton em seu livro intitulado A Reforma na Idade Média analisa a participação de Cluny no período como uma “atividade necessária para mudanças no papado e na hierarquia da Igreja, as quais viriam a se concretizar no tempo de Gregório VII”.42 Essa preocupação na contenção de um clero simoníaco e iletrado das Gálias geralmente é uma política muito associada ao movimento cluniacense. Nossa abordagem reconhece a importância de Cluny mas destacamos que não podemos generalizar o corpo eclesiástico da Gália como um clero rude, simoníaco e imerso num estilo de vida que perpetua o concubinato. Vauchez, aponta que a “Reforma Gregoriana” retoma as concepções de Cluny sobre a necessidade da pureza daqueles que são responsáveis pela eucaristia e a consagração da hóstia. 43 Precisamos matizar esta concepção. A importância de Cluny pode ser contrastada pela existência de concepções reformadoras em alguns bispados e leigos que ajudaram na promoção dos movimentos de paz. Alguns bispos eram rigorosos em sua visão de celibato e concordavam com a visão de cluniacense, embora não fossem alinhados com a Sé de Roma. Compartilhamos do panorama sobre os bispos da Gália não serem tão “indignos” quanto se acreditou por 38 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2010, p.290 39Cf. ARNALDI, Girolamo. Igreja e Papado In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (eds.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2006, 567-589; 40 Dictatus Papae. In: Documentos Históricos Selectos de La Edad Media. https://sourcebooks.fordham.edu/source/es-g7-dictpap.asp. 41 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, p.290; 42 BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Tradução de Maria da Luz Veloso. Edições 70, Lisboa, 1983, p.47; 43 VAUCHEZ, André. Op.Cit, 1995, p.46; 80 um tempo e que a chegada das reformas não foram o início de uma mudança brusca no comportamento do clero da região. Dominique Barthélemy afirma que os concílios de paz da Aquitânia eram obras de bispos “que se ocupavam, desde 1018 com a heresia simoníaca e, antes de 1038, com o concubinato dos padres”. Estes bispos prezam pelo comportamento do clero e “as iniciativas de seus concílios em favor dos pactos de paz, depois da trégua de Deus a partir de 1033, provam bem que eles levam seu papel a sério”. Alguns arcebispos44 serão vistos em conflito aberto com os legados papais durante o período da reforma. Os bispos aliados destes arcebispos serão acusados de práticas seculares. No entanto, as acusações envolvem o porte de armas. “Poucos são nicolaístas. Sua simonia não é sempre evidente ou fácil de detectar. [...] recai frequentemente sobre os prelados antirromanos a acusação de portarem as armas do século”.45 A guerra, como atividade da aristocracia, era responsável por uma socialização e a guerra santa promove coesão entre os iguais contra os que não pertencia à sociedade. “De um modo geral, a guerra medieval46 possuía esse caráter lúdico – pressupunha a existência de regras limitativas, e seus participantes consideravam-se uns aos outros como iguais”. 47 Pedro Lorenzo Cadarso48 analisa as principais formas de conflito social e destaca a guerra em seus aspectos fundamentais. O pesquisador recorta três pontos, dos quais destacamos dois para a nossa análise: primeiro: o caráter cultural da guerra. Ou seja, “a belicosidade humana e a forma que esta se canaliza se desenvolvem condicionadas por parâmetros infra estruturais e sociopolíticos”.49 O segundo aspecto é o caráter utilitário: “Se um grupo ataca outro é porque considera que tem recursos suficientes para obter a vitória e, com ela, benefícios que justifiquem o esforço”.50 Os parâmetros infra estruturais e sociopolíticos já tratamos anteriormente. Uma aristocracia guerreira que se movimentava pela honra no quadro das disputas senhoriais que se direcionavam, também, para a proteção da Igreja. Os ganhos que justifiquem os esforços em relação ao caráter utilitário pode ser entendido como ganhos espirituais, manutenção de um status e o butim. 44 Os referidos arcebispos são os de Narbona, Reims e Tours; 45 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit, 2010, p.262. 46 Guerra intrasocietária.; 47 COSTA, Ricardo da. A Guerra na Idade Média: um estudo da mentalidade de cruzada na Península Ibérica, 1998, pp.41-42; 48 CADARSO, Pedro Luís Lorenzo. Op.Cit., 2001; 49 Ibidem, p. 59; 50 Ibidem, p.60; 81 Nestes conflitos é possível a visualização de uma dupla face da violência. Por um lado é legítima quando estabelecida dentro das normas em circulação e pela própria Igreja. Por outro lado é ilegítima quando “se exerce individualmente de encontro às leis eà moral”. 51 A face ilegítima pode ser chamada de violentia. Hubert Carrier52 trabalha esta espécie de tipologia binária da violência entre aceita e reprovada. “Dentre os conceitos de violência que manejam os grandes, existe a dialética entre violência aceita e violência reprovada, que se relaciona estreitamente com um valor fundamental por excelência: a honra”. 53 A perpetuação desta honra está no âmago da aristocracia guerreira. O combate pela Igreja é uma condição da honra, pois Cristo é o maior dos senhores. O cristão que ataca a Cristo pratica uma felonia da fé. No discurso cristão se alguém está contra a Igreja, está contra a harmonia universal, justificando assim sua eliminação. Segundo o verbete “Guerra”, elaborado por Elizabeth Hallam no Dicionário da Idade Média,54 a teoria da “guerra justa”, desenvolvida pelos canonistas, estabeleceu que a guerra sustentar-se-ia através dos leigos, em prol de uma causa justa e necessária, que não pudesse ser vitoriosa por outros meios. A guerra é uma categoria da violência. Embora existam inúmeros autores dentro da sociologia, das relações internacionais e da antropologia que trabalhem as diferenças conceituais no tocante aos termos guerra e conflito, entendemos que ambas são fenômenos violentos que resultam de hostilidades entre coletividades. As duas ideias se relacionam, em nosso entendimento, com “os conflitos internos dentro de uma nação, tribo ou comunidade”.55 O termo “conflito, no sentido tradicional, é empregado de forma mais adequada pra uma luta por valores, poder, recursos materiais ou posição social”. Essa definiçao se aplica, também, para a guerra. Os objetivos de um conflito ou guerra, neste caso, geralmente visam “neutralizar, lesar ou destruir o “outro”: inimigo, rival, opositor”.56 O ambiente em que surge a noção de combates sagrados é este: conturbado, constante, paradoxal e tendo nas igrejas locais grandes canalizadoras em consonância e 51 MUCHEMBLED, Robert. Op.Cit., 2012, p.11; 52 CARRIER, Hubert, Les dénominations de Jean sans Peur: entre violence accepté et réprouvée, Foronda, François; Barralis, Christine; Sère, Bénédicte (Dirs.), Violences souveraines au Moyen Âge. Travaux d’une école historique, Paris, Presses Universitaire de France, 2010, pp. 113-122. 53 DEVIA, Cecília. Op. Cit., 2013, pp-170-171. 54 Dicionário da Idade Média / organizado por Henry R. Loyn; tradução, Álvaro Cabral; revisão técnica, Hilário Franco Júnior. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997; 55 VIEIRA, Isabel Maria de Carvalho. A violência e a guerra: uma abordagem sócio-psicanalítica. Tese de doutorado. Brasília: UnB, 2007, pp.36; 56 Ibidem, p.37; 82 discordância com o papado. No entanto, é possível detectar um fenômeno: a guerra santa. Na Gália, um movimento de paz se expande. Nesse processo, criam-se discursos adaptados da guerra justa em associação com uma espiritualidade combativa. Desta maneira, os leigos situam-se em duas frentes de batalha: os conflitos internos à sociedade, ou seja, aqueles embates entre senhores dos quais não se busca tanto derramamento do sangue adversário, pois este é visto como um “igual”. À estes embates se juntam os conflitos externos, destinados contra aqueles que atacam a Deus e colocam em perigo a Cristandade. Na Gália, onde surgem as assembleias de paz, o perigo é o mau cristão. Na Península Ibérica “o outro” não segue a Cristo, embora o respeite. Estes “outros” seguem Maomé. 2.2 As conquistas cristãs na Península Ibérica: a guerra santa hispânica A Trégua de Deus nasce na Catalunha e ao Oeste os embates entre cristãos e muçulmanos ocorrem em âmbitos variados. Entre 711 e 714 a Península Ibérica foi tomada pelas forças muçulmanas em pleno processo de expansão que ocupou parte do Ocidente. A monarquia visigótica pouco pôde resistir diante da onda expansionista. A partir daí se iniciou um processo de ocupação que só termina com a tomada de Granada em 1492. Este início genérico situa o que vamos analisar neste tópico: a Guerra Santa Hispânica. As guerras na ibéria tem um caráter tão diversificado que a dificuldade em identificá-las exige um exercício intenso de análise dos detalhes e contextos. A identificação do início desta guerra santa é quase tão problemática quanto a tentativa em situar o que por muito tempo se chamou (e ainda se chama) de Reconquista Cristã. Para García Fitz57 o termo Reconquista sofre de uma evidente contaminação, pois as batalhas e escaramuças do período são usadas como espelhos deformantes para tempos atuais. A utilização desta expressão tem relação com, primeiramente, uma historiografia positivista58 que via nas documentações do período que analisa uma fonte de verdades incontestáveis. Portanto, entravam na lógica do próprio documento, servindo como uma caixa de ressonância das doutrinas daquelas monarquias. Além disso, a Reconquista foi utilizada com forte tom nacionalista durante o período franquista na Espanha. Para Manuel González Jimenez a ideia de Reconquista é um mito criado e reforçado pelo 57 FITZ, García. Cruzados en la Reconquista. Madrid, Marcial Pons, 2015, p.24; 58 É o caso de SÁNCHEZ-ALBORNOZ. España um enigma histórico. Barcelona, Edhasa, 2000; 83 franquismo quando o fascismo espanhol visava impor um modelo estatal de pretensões “uniformizadoras, de forte carga católica e castelhana”. Esta ideia liga a Reconquista a Pelágio e Covadonga criando uma narrativa de um passado visigótico. O que não se sustenta historicamente.59 Embora grande parte da historiografia sobre o tema ainda use o termo de forma reconstruída, retirando-o das ideologias dos séculos XIX e XX, compreendemos que a ideia de reconquistar traz consigo uma lógica de pertencimento, como se as monarquias cristãs estivessem recuperando algo que lhes fosse de direito. Assim como houve a conquista muçulmana no século VIII, também ocorre a conquista cristã nos séculos posteriores. Outro ponto é que o uso de um conceito com características de unicidade para abarcar mais de oito séculos de história desconsidera os avanços e recuos dos diferentes poderes hispânicos e seus ideais muitas vezes conflitantes. Por exemplo, a expansão portucalense, embora cristã, tem uma lógica referente ao seu próprio contexto, diferindo de Leão e Castela. Na presente dissertação, portanto, utilizaremos outra nomenclatura na abordagem deste processo dos reinos cristãos peninsulares. Os nomes “expansões cristãs” ou “conquistas cristãs” talvez englobem mais as guerras efetuadas no bojo de certas características. Embora, nem sempre o discurso do embate santo seja a justificativa para alguns conflitos, é indubitável que as autoridades se constituíam como cristãs e não estavam reconquistando, mas efetuando um outro processo. Sendo assim, a abordagem numa ordem cronológica dos acontecimentos referentes à Península Ibérica parece ser a melhor maneira de iniciarmos este tópico. O solo peninsular tem um histórico de ocupações de diferentes povos em tempos distintos. Durante o domínio muçulmano, no século VIII, se desenha um período de tentativas de unidades e intensas fragmentações tanto por parte cristã quanto muçulmana. Os poderes centrais precisavam dos poderes locais e estes, muitas vezes, se legitimavam pela associação com o centro. Nas áreas de marca, haviam os poderes que não se associavam com nenhum lado e mantinham certo grau de independência. 60 Sendo assim, muitas 59 Para maiores detalhes ver MATTOSO, José & SOUZA, Armindo de. História de Portugal. Antes de Portugal. Lisboa: Editora Estampa, 1993; 60 José Mattoso ao analisar a fragmentação do Al-Andaluz.fala sobre a situação das fronteiras e como estas regiões não se ligavam a ninguém, promovendo a existência de caudilhos: “A realidade concreta implicava que o grau de sujeição ou de autonomia, e consequentemente, de fidelidade, para com as autoridades 84razias de fronteira tinham caráter de pilhagens com pouca ou nenhuma ligação em relação a combates que serão teorizados numa lógica sagrada. Dito isto, a busca pelo inicio do processo de avanço cristão, de fato, é um tema sem consenso pela historiografia correspondente. José Mattoso situa o começo desta expansão com Fernando, o Magno: “A verdadeira reconquista começa, afinal, propriamente, com as agressivas campanhas de Fernando, o Magno de que se resultou a ocupação definitiva de Coimbra”.61 Na visão de Mattoso, a “fronteira se deslocou de maneira decisiva para além do vale do Douro e se iniciaram expedições de grande envergadura com o propósito de ocupar definitivamente as primeiras cidades do território andaluz e os seus respectivos alfozes”.62 Portanto, a conquista de Coimbra em 1064 frente aos muçulmanos seria a partida de um movimento que durou por mais quatro séculos. Para Adeline Rucquoi com a “tomada de poder por Fernando há o princípio da reconquista”. 63 Esse processo de expansão começou em meados do século XI, quando o rei tomou “Lamego em 1057 e Viseu no ano seguinte; a seguir, Coimbra em 1064”.64 O movimento expansionista foi visto, em Fernando, como um deslocamento de cunho sagrado? Precisamos expender algumas nuances dentre as quais olhar em qual direção apontam os discursos sobre os feitos de Fernando. Em Orígenes y desarrollo de la Guerra Santa em la Península Ibérica65 no capítulo intitulado A Guerra contra os muçulmanos nos diplomas castelhano-leoneses – séculos XI-1126, a historiadora Hélène Sirantoine faz uma análise da noção de guerra santa no levantamento de setenta e seis diplomas régios de Fernando I. Destes, cinco fazem referências aos muçulmanos. Sendo políticas, variava na exacta medida do acordo que com elas se estabelecia. Ora esse acordo dependia enormemente dos poderes de caráter social ou econômico que se detinham no local. Havia Sempre uma concorrência entre estes poderes centrais e, consequentemente, um jogo de forças que nem sempre permitia aos segundos prevalecerem sobre os primeiros. Esta realidade explica a frequência com que se verifica o aparecimento de caudilhos procedentes do mundo árabe que se refugiam junto dos monarcas cristãos do Norte, ou o inverso, e de comunidades de fronteira que mantêm durante muitos anos um estatuto de independência.” Para maiores detalhes ver: Autonomias fronteiriças e formação nacional. In: MATTOSO, José. Autonomias fronteiriças e formação nacional. In: Naquele Tempo: ensaios de História Medieval. Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2009, pp.449-453. 61 MATTOSO, José & SOUZA, Armindo de. História de Portugal. Antes de Portugal. Lisboa: Editora Estampa, 1993, p.473; 62 Ibidem, p.473. 63 RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa: Estampa, 1995, p.162; 64 Ibidem, p.162; 65 AYALA MARTÍNEZ, Carlos de (dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y PALACIOS ONTALVA, J. Santiago (dir.). Orígenes y desarrollo de la guerra santa en la Península Ibérica: Palabras e imágenes para una legitimación (siglos X-XIV). Nueva edición [en línea]. Madrid: Casa de Velázquez, 2016; 85 que, dos cinco, três são falsificações elaboradas a posteriori. Sendo assim, dos dois que restam o que se percebe neles é o papel do rei como combatente dos muçulmanos. A tarefa monárquica neste combate se apresenta, por exemplo, num elogio ao período de Afonso V, representado como uma figura aguerrida que “ao longo de sua vida esteve decapitando aos muçulmanos, aumentando as igrejas e enriquecendo-as com todos os seus bens”. O referido diploma é datado por volta de 1046. Fernando “confirmou à igreja de Astorga a possessão da vila de Matanza”. Neste diploma há uma “larga exposição” que remete a Afonso V. O que se percebe é uma reflexão sobre as funções reais, dentre as quais o combate ao Islã e o auxílio à Igreja. “Assim pois, este diploma desenha uma espécie de retrato [...] onde a luta contra os muçulmanos e o amparo dos estabelecimentos religiosos são apresentados como missões fundamentais para o rei”.66 Aqui não se fala de contato com sagrado ou defesa de divindade, conforme o levantamento feito pela historiadora, embora o amparo às igrejas seja um amparo ao sagrado. O outro diploma abordado por Sirantoine, que data de 1059, é uma confirmação por parte de Fernando e Sancha “à igreja de Palencia de todas as possessões e direitos outorgados anteriormente por Sancho III de Navarra”. Esta confirmação de posses relata a chegada do Cristianismo à Península através de Tiago, apóstolo de Cristo. A restauração do Cristianismo na Ibéria está ligada, neste diploma, ao combate contra o muçulmano: “reinando o piedosíssimo Rei Afonso V, quem graças a Deus restaurou a Cristandade e destruiu o povo dos ismaelitas, os bispos vizinhos dividiram entre si por sorteio as dioceses Palentinas”. 67 No entanto, Hélène Sirantoine afirma que este último diploma também tende a ser uma possível falsificação com o intuito de legitimação das propriedades da igreja palenciana e que a maneira como se constrói a narrativa, praticamente como uma crônica, tem traços de uma retórica posterior, mais associada ao final do século XI e começo do XII. O discurso que caracteriza os muçulmanos como invasores e adversários da Cristandade está presente de forma constante e sólida após o reinado de Fernando I. “De fato, esta vinculação entre as lutas contra os muçulmanos e a restauração cristã 66 Ibidem, p.55. 67 FERRAN I, & BLANCO LOZANO, P. (1987). Colección diplomática de Fernando I, 1037-1065 . Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro.”; 86 corresponde melhor ao que vamos observar durante a época posterior”. 68 Nos cento e noventa e seis diplomas de Afonso VI (1065-1109), dezenove citam os muçulmanos e se percebe “uma sacralização da atividade guerreira do rei, ou pelo menos insistem na relação entre a guerra contra os sarracenos e a restauração cristã”. 69 Ao final do século XI a concepção de um embate sagrado se agudiza e entra no século XII sendo promovida como uma condição das monarquias que vão se constituindo. Condição que, com a reforma e a cruzada, fazem do conflito algo além do que vinha sendo realizado pelos cristãos do Norte. “A reforma gregoriana e o apelo à cruzada [...] iam, porém, mudar o sentido da reconquista, na medida em que a luta contra os infiéis se tornava prioritária e se sobrepunha a uma ‘proteção’ lucrativa”. 70 Afonso VI, rei de Leão e Castela é o responsável pela conquista de Toledo em 1085; a partir disto, se nota um recrudescimento do discurso. Cada vez mais a função real é combater o Islã e esse combate é relatado nos documentos como “remédio da alma” para que seja outorgado ao rei “neste século e no presente uma vida larga e vitória sobre os inimigos, os ismaelitas, e que no futuro o vejam sentado junto a Cristo”.71 Afonso VI se diz envergonhado de ver Toledo em mãos de infiéis e faz guerra para “devolver a cidade aos que honram a fé de Cristo”. 72 Esta referência demonstra um monarca lutando contra quem, conforme a narrativa, retirou algo de Cristo e, consequentemente, dos cristãos. Portanto, a luta empregada é colocada como uma luta para o Senhor. “Ademais, essa luta já não é simplesmente uma tarefa do rei cujo exercício o faz digno de sua função e sim uma missão sagrada”.73 O processo de um discurso que sacraliza a guerra na Península Ibérica é fruto, muitas vezes, dos interesses dos próprios poderes locais, em consonância com as contingências que se desenham no período supracitado. Abordamos os traços das 68Ibidem, p.56; 69Ibidem, p. 57; 70 RUCQUOI, Adeline. Op.Cit., 1995, p.162. 71 GAMBRA, Andres. Alfonso VI: Cancilleria, cúria e império. I Estudio, León, Centro San Isidoro, 1997, p.336. 72 Ibidem, p. 227. Ainda de acordo com este diploma, Hélène Sirantoine aborda em nota que “é certo que o diploma, datado de18 de dezembro de 1086, apresenta irregularidades que apontam para uma possível interpolação posterior.” Ainda de acordo com a autora: “Andrés Gambras sublinha, sem dúvida, que sua fisionomia externa se encaixa adequadamente aos originais do notário que o subscreveu. Assim, que haveria sido elaborado pela chancelaria real após 1086; Para maiores detalhes ver: SIRANTOINE, Hélène. La Guerra contra los Musulmanes em los Diplomas Castellanoleoneses. In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos de (dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y PALACIOS ONTALVA, J. Santiago (dir.). Orígenes y desarrollo de la guerra santa en la Península Ibérica: Palabras e imágenes para una legitimación (siglos X-XIV). Nueva edición [en línea]. Madrid: Casa de Velázquez, 2016 73SIRATOINE, Hélène. Op.Cit., 2016, pp.59-60. 87 reformas, mas estas chegam ao solo hispânico de maneira gradual e sofrem resistências significativas. A chegada de uma nova concepção de guerra para a região não deve ser vista, unicamente, como uma influência externa de um movimento “francês.” A reforma, na Península Ibérica, se dá com dificuldades e adaptando-se às possibilidades da região, negociando a todo momento as maneiras que vão se constituir. Uma das vias pela qual as ideias reformistas se instalam na Hispânia é pelas ordens monásticas e com estas, uma concepção sobre àqueles que se situam fora da Cristandade. Cluny tem um papel neste processo. A ordem cluniacense surge com a fundação de sua abadia em 910 na região da Borgonha. Cluny se liga ao papado na busca de sua isenção frente aos poderes dos bispos e dos leigos. Ou seja, Cluny busca sua libertas. A noção de libertas aqui referida se relaciona com a isenção, ou evadir-se ao máximo do regionalismo que proporciona aos senhores certa interferência nos assuntos da Igreja (inclusive mosteiros). Além da criação de uma espécie de comunidade, que segue uma regra própria, se estabelece um ideal de vida que busca o afastamento das coisas mundanas. Em 1080, no concílio de Roma, o papa Gregório VII “ratifica o privilégio e a autoridade da Sé apostólica em conceder plena e total imunidade aos monges cluniacenses”.74 Porém, se o objetivo era uma fuga do mundo, o que se vê, com o tempo, é Cluny como um elemento participativo do século, criando bases para posteriores críticas. Cluny cresce, da Borgonha se expande e com o tempo se torna “vítima” de sua expansão. Os mosteiros fundados e colocados em sua órbita estabelecem sua própria interpretação das regras. Por volta do século XI e, principalmente do XII, Cluny se depara com as dificuldades proporcionadas por esta expansão e “o vasto número de mosteiros que criara ou que se lhe tinham associado actuavam com independência, não só uns em relação aos outros, mas também relativamente a Cluny”. 75 Esta “independência” promove, em contextos locais, uma política de acordo com o momento. Para Brenda Bolton os mosteiros “tinham desenvolvido as suas próprias regras internas de acordo com as suas próprias circunstâncias externas”.76 As circunstâncias externas da Ibéria modificam as ações de Cluny na região quando ocorre a chegada do movimento por lá. Sinei Galli fala desta chegada no século 74 GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, p.25; 75 BOLTON, Brenda. Op.Cit., 1983, p.47; 76 Ibidem, p.47; 88 X com Sancho, o Grande (970-1035), que reuniu os reinos de Navarra, Castela e Aragão. Posteriormente, “aproximou-se de Guilherme – duque de Aquitânia, que, de pronto, o pôs em contato com o movimento religioso de Cluny”77. Sancho, então, “teria enviado o monge Paterne a Cluny para estudar a organização cluniacense”78 e trazê-la ao seu reino. Passado o tempo de estadia na abadia, o monge foi então “colocado à testa do convento de S. Juan de Peña, em Aragão, que foi dotado de privilégios análogos aos dos conventos cluniacenses”.79 Assim, os bispos de Aragão foram escolhidos entre os monges de S. Juan. “A penetração dos monges de Cluny, iniciada na região da Catalunha, atinge a abadia de S. Juan de Peña (Aragão), os conventos de Oña e Cardeña (Castela)”.80 Então, com o tempo os mosteiros da região “vão sendo absorvidos por essa ordem”. Todavia, tal absorção não é um ponto pacífico em todos os locais e interpretado da mesma forma. Existem conflitos, reinterpretações e variações. O que é destacável aqui é a chegada da noção de guerra santa através desta reforma à ibérica. A iniciativa de Sancho, porém, não foi determinante embora tenha, aparentemente, iniciado um processo. A doutrina expansionista de Cluny e sua concepção de guerra santa encontra um ambiente propício dentro de uma política igualmente expansionista visto que a monarquia estava, também, num processo cujo objetivo era encontrar legitimação semelhante em relação ao seu expansionismo. Sendo assim, embora Sancho o Grande, proporcione uma penetração cluniacense em terras hispânicas, é com Fernando I e Afonso VI que o movimento ganha força. As conquistas e os discursos sobre estas conquistas se sacralizam num encontro de interesses e não numa “influência francesa”, stricto sensu, na Península. Hilário Franco Jr. tratou dessas questões em Cluny e a Feudo-Clericalização de Castela.81 Para Franco Jr. uma “aliança castelhano-leonesa com Cluny começou com Fernando I” 82, e foi reforçada “por Afonso VI que precisava do apoio de Cluny para manter a soberania frente às reivindicações de Gregório VII, então senhor de Aragão, para enfrentar o perigo Almorávida e para superar a crise sucessória que se esboçava”.83 Notamos que Cluny, na Hispânia, é um processo que atende também 77 GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, p.40 78 Ibidem, p.40; 79 Ibidem, p.40; 80 Ibidem, p.40. 81 FRANCO JR, Hilário. Cluny e a Feudo-Clericalização de Castela,1985. Disponível em https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/36148/18992. Acessado em 11/04/2021; 82 Ibidem, p.10; 83 Ibidem, p.10; https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/36148/18992 89 aos interesses locais pois “entre 1054-1065 estaria o ponto crucial da história hispânica, pois então começava a expansão imperial castelhano-leonesa e nisso a aliança com Cluny revelou-se essencial”.84 A chegada de figuras em âmbito secular, também ligadas a Cluny, demonstra um movimento de inserção de uma cultura além-Pirineus na Hispânia. Houve uma “política casamenteira” que colocou a dinastia de Borgonha em solo ibérico: D. Raimundo, filho de Guilherme – conde de Borgonha e sobrinho do abade Hugo de Cluny casou-se com D.Urraca, filha legítima de D. Afonso VI, que lhe concedera o governo da Galiza e a parte Ocidental do Tejo (1094). Pela mesma época, D. Henrique, quarto filho de Henrique, neto de Roberto, rei da França, recebe como esposa D. Teresa ou Tarasia ou Tareja, filha bastarda de D. Afonso VI com uma nobre dama chamada Kimena Nunes ou Muniones.85 A presença borgonhesa se fez sentir em muitas instâncias sociais e nas políticas de aliança que se estabeleceram através de casamentos e da adoção de certas perspectivas cluniacenses. Para Mattoso, “os costumes religiosos da época criaram, com efeito, uma íntima união entre a nobreza local e os mosteiros que ela protegia”. Sendo assim, “o mosteiro desempenhava função de mediador social, de amplificador de interesses, no tempo e no espaço, de transmissor de ideias e noções culturais, do ponto de encontro entre diversas camadas sociais”. Dentre estas ideias e noções transmitidas pelos mosteiros e pela reforma em âmbito peninsular está a guerra santa destinada contra quem se encontra fora da Cristandade. O “outro”, na Hispânia, não é o “mau cristão”, mas quem pratica outra fé. Os príncipes que se embatiam na Península promoviam, segundo a Sé romana, um problema frente ao que seria a função primordial deles: o combate aos muçulmanos da região. As guerras entre os cristãos doNorte caracterizava uma fragmentação de forças que deveriam, na concepção papal, se unir. Veremos isso, posteriormente, com Afonso VII e suas pretensões imperialistas para a Hispânia e a relutância do papado no reconhecimento do reino de Afonso Henriques. De acordo com José Mattoso “a estratégia da Santa Sé consistiu sempre em procurar o fortalecimento do trono leonês, e não em criar forças autónomas, mesmo hipoteticamente mais agressivas”.86 84 Ibidem, p.10; 85 GALLI, Sidinei. Op. Cit., 1997, pp.27-28. 86 MATTOSO, José. Cluny, crúzios e cistercienses na formação de Portugal. In Actas do Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, Vol. V, Guimarães, 1982, pp. 288-294 1982, p.286; 90 A rivalidade entre os senhores cristãos precisava ser superada, principalmente, frente aos Almorávidas que haviam se instalado na região. Essa retórica de embate galga a necessidade da guerra diante de um poder que desestabiliza a Cristandade, de acordo com o discurso cristão. Frente às reformas, à presença de muçulmanos em antigos centros cristãos e à uma teorização do conflito intersocietário pôde se estabelecer um processo de expansão cristã na região. Os reis ibéricos, entre alianças e rivalidades, souberam suscitar a guerra cotidiana de suas fronteiras, frente ao papado, como uma luta cristã. A justificativa de guerra justa, como um dos pontos fundamentais da guerra santa, se desenha numa lógica que relaciona a Hispânia como local de evangelização por parte de Tiago e também com o mito do passado visigótico. De acordo com Carl Erdmann,87 para compreendermos uma guerra santa é preciso vê-la como um ato espiritual ou em relação direta com a sacralidade e a religião, pois é proclamada por uma autoridade espiritual ou por interesses espirituais”. As conquistas cristãs dos reinos ibéricos com caráter sagrado é uma construção que passa a ser perpetuada com esta dimensão na segunda metade do século XI quando “o interesse do papado por esta reconquista, depois de 1050 [...] contribuiu para reforçar seus traços de sacralização”. 88 Antes disso, as guerras não eram “suscitadas principalmente por motivos religiosos, pois os reis do Norte tiveram antes objetivos políticos e econômicos: 89afirmar seu domínio, acrescentar seus territórios, enriquecer com o butim tomado aos vizinhos muçulmanos”.90 Embora seja problemático definir exatamente o tom das razias, é possível detectar padrões anteriores e posteriores aos processos citados até aqui. Ao optar por transformar sua expansão num conflito sagrado, os reis buscam a superação das desavenças externas com o papado para seu fortalecimento interno e frente à própria Cristandade. Demonstrando que eram monarcas combatendo um inimigo, as expansões peninsulares foram um instrumento de legitimação condizente com o momento. Esta guerra feita pelos reis em favor de Cristo, no entanto, não envolve, necessariamente, o extermínio do outro. A “guerra total” era um problema para a expansão dos cristãos na região. A admissão das populações muçulmanas nos reinos 87 ERDMANN, Carl. The origin of the idea of crusade. Princeton, N.J. : Princeton University Press, 1977. 88 FLORI, Jean. Op.Cit., 2003, p.143; 89 A visão do outro, baseada na espiritualidade, poderia estar presente visto que atrelar funções puramente econômicas pode ser problemático. Porém, não tão intensa quanto o período da expansão cristã. 90 FLORI, Jean. Op.Cit., 2003, p.143. 91 conquistados é uma política destas monarquias cristãs da Península Ibérica, tanto que a tensão no uso de cruzados (que trazem uma outra concepção de guerra) se faz presente sempre que monarcas hispânicos recorrem às forças além-Pirineus. A guerra de dominação e conquista se faz com o discurso da guerra santa. Porém, a situação peninsular requer negociações com os muçulmanos, moçárabes e judeus que vão sendo dominados. Isso não significa tolerância. A assimilação de parte dos conquistados não demarca a ausência de violência. Muito pelo contrário e veremos com mais detalhes posteriormente. No percurso do século XII notamos uma presença maior de forças externas e de discursos que busquem a utilização da política de aproximação com o papa, visto a importância de uma aliança com esta figura naquele período. No entanto, não existe um fio condutor uniforme que nos demonstre uma constante permanência de elementos sagrados das guerras contra os muçulmanos. Elementos que, as vezes, surgem até mesmo antes do século XI, em prováveis manipulações posteriores, numa flagrante concepção de uma época distinta. Veja o caso de Sancho o Grande de Pamplona, que introduziu Cluny na região. Num diploma de Leyre91 há atribuição da ajuda de Deus na tomada do vale de Falces frente aos muçulmanos.92 Nesse combate houve a participação dos santos93 e orações dos servos de Deus. No entanto Fermín Miranda García94 analisa o diploma como uma manipulação a posteriori. Ainda, segundo o historiador essa “referência aos muçulmanos como bárbaros que introduz um matiz mais pejorativo que o de simples estrangeiros da etimologia latina e seguramente de caráter mais religioso, nos remete a textos posteriores”.95 A chegada de Cluny, as expansões Almorávidas e Almóadas, a presença das cruzadas na Cristandade latina, a importância em alianças com o papa e as pretensões imperiais dos reis de Leão e Castela de certa forma promovem uma mudança de perspectiva nas guerras entre cristãos e muçulmanos na Península Ibérica. A presença cluniacense perde força e possibilita a ascensão de um monasticismo renovado em terras ibéricas, que tem em Cister seu ponto de representação. Os 91CIRIZA, Luís Javiier Fortún. Documentacion medieval de Leire (siglos ix a xii), nº 17, año 1015; 92 Ad expellendam gentem barbaricam In: Ibidem; 93 Intercedentibus sanctis In: Ibidem; 94GARCÍA, Fermín Miranda. Memoria Verbal y Memoria Visual: El Lenguaje de la Guerra Santa em el Pirineo Occidental (siglos X-XIII) in: AYALA MARTÍNEZ, Carlos de (dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y PALACIOS ONTALVA, J. Santiago (dir.). Orígenes y desarrollo de la guerra santa en la Península Ibérica: Palabras e imágenes para una legitimación (siglos X-XIV). Nueva edición [en línea]. Madrid: Casa de Velázquez, 2016, p.284 95Ibidem, p.284; 92 cistercienses serão uma ponta de lança, junto com as ordens militares na colonização frente às conquistas cristãs e, em especial, no reino português que surgiria num desmembramento de Portucale, em relação a Castela. Portucale ficaria sob o comando de um borgonhês: o conde Henrique, pai de Afonso Henriques. A Guerra Santa Hispânica difere, então, na construção do inimigo. Embora as forças cristãs dos reinos peninsulares se acusem de maus cristãos e os conflitos se deem também, em alguns momentos, num discurso de bençãos ao vencedor destas tensões internas. A estratégia é deslegitimar para legitimar. Nas contendas que se vence existe a colaboração divina. Quando se perde se nota a busca por explicação de que forma o castigo de Deus serve como alerta para que se retorne ao caminho considerado correto. Após a correção do curso, a humilhação de uma derrota se torna a exaltação de uma vitória. Na Península Ibérica, a guerra contra os muçulmanos era uma função dos reis e estes se viram na iminência de transformar esta batalha num significado maior, em consonância com o poder da Sé que destinava parte de suas políticas no embate contra o islã e no estabelecimento da universalidade cristã, fazendo dos guerreiros os promotores desta expansão da Cristandade. Conforme Alexander Bronisch, “há diferentes formas de guerra santa”96 e estamos aqui tratando da guerra santa ibérica. Porém, o uso deste termo específico é necessário? Depende da análise que se busca. Na presente pesquisa, a distinção das guerras santas é uma apreensão que considermos necessária para a leitura dassimetrias e assimetrias em relação aos discursos empregados em algumas circunstâncias. A guerra santa que se apresenta na Gália adapta o tom perante àquele que se combate. A lógica aplica-se nas expansões cristãs na Península Ibérica. Sendo assim, quando Urbano II convoca a primeira cruzada, notaremos a retórica presente nos autores que colocam por escrito a chamada do papa de maneiras distintas, porém iguais. A cruzada como guerra santa tem sua legitimação baseada em elementos que analisamos e a utilização deles é uma das explicações que Marcus Bull 97 encontra para a fundamentação das mobilizações do fenômeno. 96 BRONISCH, Pierre Alexander, Op.Cit., 2016, p.29; 97 Cf. BULL, Marcus. View of Muslims and of Jerusalem in miracle stories, ca. 1000-ca. 1200: reflections on the study of first crusaders’ motivations. In: BULL, Marcus, e HOUSLEY, Norman (eds.), The experience of crusading.Western approaches, Cambridge: Cambridge University Press, 2004, Vol. I 93 Portanto, se analisamos as distintas guerras santas que interessam ao nosso recorte, direcionaremos nossa atenção para a mais santa de todas as guerras cristãs: a cruzada. 2.3 As cruzadas: a desmedida não condenada 1095 é, geralmente, o ponto inicial de investigação de um fenômeno que é visto como resposta de uma agressão sofrida pelos cristãos gregos, que a Cristandade latina visa redimir. Assim, exércitos e mais exércitos partiriam no ano seguinte (1096) para uma jornada que se repetiria outras vezes durante séculos. Esta linha sucessória de eventos que encontra em Clermont seu ponto de partida é tratada muitas vezes, como se refere Marcus Bull,98 de forma tão evenementiele quanto algumas Histórias do século XIX. O concílio de Clermont realizado por Urbano II foi representado por alguns contemporâneos que teriam presenciado as palavras do papa. Os relatos dos escritores presentes no momento do chamado apresentam uma reflexão sobre a diferença entre fazer cruzadas e escrever sobre as cruzadas. A distinção, que parece um truísmo, coloca um ponto de orientação importante para quem se debruça sobre o fenômeno: “a dinâmica entre a experiência sequencial vivida e a narrativa dessa experiência”. 99 Esse referencial destacado por Marcus Bull ainda carece, segundo o próprio historiador, de uma investigação aprofundada. As reflexões das crônicas elaboradas no bojo destas campanhas se organizam muitas vezes como tratados justificadores e legitimadores que apresentam uma sociabilidade marcada por certa homogeneidade, onde existe, na realidade, um ambiente cercado de tensões e significações distintas. Ou seja, na escrita das cruzadas ocorre uma tentativa de uniformidade de elementos dispersos que estão presentes na Cristandade. A ocultação das tensões por uma causa maior faz das narrativas destas campanhas uma linha sucessória de eventos correlacionados que acaba sendo repetido por muitos historiadores modernos. Afinal de contas, a enumeração das cruzadas de maneira sequencial não promove esta narrativização que faz de Clermont seu ponto de origem? Clermont seria, então, uma reunião de elementos que já figuravam numa sociedade estritamente belicosa, 98Ibidem; 99 Ibidem; 94 que responde ao apelo do papa para que se pratique no Leavante o que já se faz em conflitos feudais. Se a assertiva acima é tão simples necessitamos nos questionar porque, então, a maioria das pessoas não parte para a cruzada (embora os contingentes das primeiras tenham sido consideráveis). Outro questionamento é por qual motivo a chamada para a campanha tenha feito ecos em algumas regiões mais que em outras. O conceito aqui abordado é fruto de intensos debates por décadas e até séculos e o consenso acerca do fenômeno é reduzido, embora haja a identificação, por parte dos especialistas, 100 de determinadas escolas historiográficas: tradicionalistas, pluralistas e materialistas são três das mais destacadas vertentes e que Jonathan Riley-Smith aborda em seu livro Cruzadas: uma História. A primeira “limitava o movimento a um só teatro de operações – o Oriente Próximo – e a um só período da história – de 1097 a 1291 – foi formulada pelo historiador inglês Thomas Fuller”. 101 O livro The Historie of Holly Warre de 1639 traz esta perspectiva e que acabou sendo uma abordagem utilizada por Steve Runciman102 no início do século XX em obra de três volumes que aborda diversos aspectos quantitativos do fenômeno e pouca problematização. Para José Manuel García, 103 Runciman nos deixou “um livro muito ameno, rigoroso e cheio de dados, mas que não entra ao fundo do debate”. 104 Para Runciman, a convocação de 1095, resulta num episódio trágico e destrutivo.105 Este episódio é a única e verdadeira cruzada. Esta lógica tradicionalista teria como primeiros perpetuadores os pensadores iluministas do século XVIII dentre os quais David Hume, Diderot e Voltaire. A concepção do fenômeno é tão restrita que estes pesquisadores “restringiriam as cruzadas às campanhas para o Oriente e à Idade Média Central”.106 Jean Flori também faz parte deste grupo. A definição de Flori é quase sectária: “cruzada é uma guerra santa que tem por objetivo a libertação de Jerusalém”.107 100 Ver GARCÍA, José Manuel. Historíografia de las Cruzadas. In : Espacio, Tiempo y Forma, Serie III, H.» IVIedieval, t. 13, 2000; 101 RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.38 102 RUNCIMAN, Steven. História das Cruzadas. Rio de Janeiro: Imago, 2002 103 GARCÍA, José Manuel. Historíografia de las Cruzadas. In : Espacio, Tiempo y Forma, Serie III, H.» IVIedieval, t. 13, 2000; 104 Ibidem, p.361; 105 RUNCIMAN, Steven. Op.Cit; 2002; 106RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.39; 107 FLORI, Jean. Op.Cit., 2013, p.360; 95 A abordagem pluralista acaba sendo a mais utilizada e tem como vanguardista Carl Erdman, embora José Manuel García 108 aponte o inglês Giles Constable com o trabalho The Second Crusade as Seen by Contemporaries como um dos primeiros científicos da teoria pluralista. O iniciador é irrelevante. Esta visão foca na cruzada como uma categoria de guerra santa realizada em locais distintos e não apenas em Jerusalém ou como foco a proteção do local. A vinculação com o papa é um ponto crucial para os pluralistas. Para Erdman, a cruzada era qualquer guerra penitencial em nome de Deus. Ou seja, via o movimento como uma penitência. Segundo Erdman, há uma conexão entre os movimentos de paz, a Trégua de Deus, a reforma da Igreja, e o militarismo da aristocracia na explicação desta transformação da guerra defensiva na “guerra santa ofensiva que é a cruzada”. Paul Rousset desconsidera a cruzada como uma guerra santa e fala de protocruzadas quando analisa suas origens. Para Jonathan Riley-Smith, um dos expoentes desta categoria, é preciso ter em consideração menos os objetivos finais e mais alguns aspectos que comprovam o status de uma campanha como cruzada. Entre os ditos aspectos desta comprovação e identificação estão “a proclamação do papa em nome de Cristo, incluindo uma associação explícita com a libertação de Jerusalém ou da Terra Santa, mesmo quando o objetivo imediato era outro”.109 Além disso, se associa a esta primazia do papa “os votos de um tipo especial que eram feitos pelos combatentes, os quais, por conseguinte, desfrutavam de certos privilégios temporais e espirituais, em especial a indulgência”.110 A vertente materialista vê nas cruzadas uma espécie de protocolonialismo dos estados europeus que se lançam ao Levante para saciar sua sede de riquezas e butins. O livro Historia de las Cruzadas111 de Zavarob é um destes exemplos de uma historiografia marxista que atrela aspectos puramente socioeconômicos às campanhas. Para o autor, o século XI foi uma época de fortes tensões sociais tanto na classe senhorial quanto no campesinato. O gosto dos senhores pelo luxo teriam sido responsávelpor uma maior pressão por rendas e essa pressão criou diversos cenários no embate entre as classes. Além disso, a tensões intraclasse na aristocracia fez do aumento demográfico um problema em relação aos filhos secundogênitos que se entregaram às rapinas e violência, trazendo 108GARCÍA, José Manuel. Op.Cit., 2000, p.362; 109RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, pp.47-48; 110Ibidem, p.48; 111 ZAVAROB, M., Historia de las Cruzadas, Madrid; 1978; 96 problemas para a Igreja. Esta, então, direciona a cavalaria impetuosa para o combate contra o Islã. Para Zavarob, “a guerra seria orientada ao Oriente tanto por motivos econômicos (riquezas) como políticos (pelo controle da Igreja Oriental)”.112 Três vertentes, três abordagens distintas. A nossa ideia de cruzada é enxergar o fenômeno como um elemento que promove a violência intersocietária também associada como uma manifestação da espitirualidade. Em nossa visão, o caráter multifacetado do fenômeno proporciona uma leitura que não seja engessada. A cruzada, como um componente histórico, necessita de uma leitura complexa que, invariavelmente, torna certas investigações reducionistas e insatisfatórias. Um objetivo estritamente econômico das campanhas utiliza uma racionalidade moderna que se atrela ao pós revolução industrial e a uma falácia economicista já tratada por Karl Polanyi 113 como a universalização das relações em aspectos puramente econômicos a partir de uma ideia atrelada à lógica capitalista e transportada para períodos anteriores de forma pouco crítica. Portanto, a vertente materialista está descartada de nossa análise. O problema, em nossa visão, da vertente tradicionalista é o enrijecimento de um processo histórico ao atrelá-lo a condições muito específicas e presas em características que desconsideram a pluralidade das relações políticas do período. Se as campanhas para Jerusalém fossem as únicas a serem consideradas, ignoraríamos as menções presentes em documentos do século XIII, quando o termo em si passou a figurar, de fato, na escrita. Era uma tentativa de uniformização das guerras santas que se realizavam. O significado da palavra crozoada difere do termo moderno, que os historiadores utilizam, mas simboliza uma noção que vê as lutas em Jerusalém, no Báltico ou na Península Ibérica sob um mesmo prisma. No capítulo intitulado El Término Cruzada y sus Usos en la Idade Media: la Assimilación Linguistica como Processo de Legitimación114 Benjamin Weber trabalha o surgimento do termo crozoada e seu uso para a legitimação de um movimento que visa unificação. Para Benjamin o emprego da palavra a partir de uma determinada época serve para estabelecer, num mesmo patamar, diversas guerras realizadas e aproximar as 112 GARCÍA, José Manuel. Op.Cit., 2000, p.365; 113 Cf. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Trad. Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 2000 e POLANYI, Karl. Our obsolete market mentality. In: COMMENTARY, v. 3, Feb. 1947, p 109- 117. 114 WEBER, Benjamin. El Término Cruzada y sus Usos en la Idade Media: la Assimilación Linguistica como Processo de Legitimación. In: AYALA MARTÍNEZ, Carlos de (dir.) ; HENRIET, Patrick (dir.) ; y PALACIOS ONTALVA, J. Santiago (dir.). Op.Cit., 2016, pp.221-233; 97 conquistas dos reinos ibéricos das campanhas destinadas ao Levante. Portanto, “o termo foi um elemento de resposta. Não nasceu quando apareceu o que chamamos de cruzada e sim quando se diversificou esta realidade, quando se levantaram perguntas sobre as relações entre todas estas formas de guerra santa”. 115 A circulação da palavra crozoada nos anos 1200 aponta uma percepção sobre aquela guerra santa específica como a mais meritória, podendo ser realizada em diversos teatros de operações e não apenas tendo Jerusalém como destino. Embora seja uma construção (que sofria resistências) do século XIII a referência apontada demonstra a complexidade do fenômeno. Enquadrá-lo apenas numa região e, muitas vezes, numa perspectiva temporal reduzida, ignora também, a capacidade de mobilização das ligações que se estabelecem em séculos posteriores. Embora esse “espírito” da cruzada que possa ter sobrevivido já não tenha relação com nosso recorte. Portanto, a pesquisa aqui presente vai ao encontro da vertente pluralista, pois se relaciona de forma mais condizente com nossa percepção. A cruzada, como prolongamento da guerra santa (ancorada nesta), é a luta travada através da guerra contra aqueles que o discurso cristão vai construir como o outro. Esse “outro” insere-se numa lógica de embates travados contra àqueles colocados do lado de fora da sociedade. Ou seja, é uma violência intersocietária. A cruzada foi, então, uma guerra de vingança penitencial. Não tem relação com uma blood feud ou um conflito lúdico, cujo objetivo é a captura do adversário. O discurso cruzado não é de negociação, de convite a uma composição. Trata-se de uma violência aplicada em seus diversos âmbitos como uma impositiva de uma sociedade sobre outra. A partir de agora quando estivermos tratando destas campanhas precisamos compreendê-las numa lógica de recusa ao outro. Esta recusa atinge pontos tão extremos que a diferença entre homens, crianças, mulheres ou idosos passa desapercebida de tal forma que Steven Runciman se espanta com tamanha matança. Porém, compreender até onde o poder chega na busca por uniformização, na exclusão do outro e na imposição a este de uma imagem que perpetue aversão para alcançar seus intentos é uma chave no auxílio do desvendamento das mais diversas facetas deste mesmo poder. A busca por homogeneidade visa, inclusive, ignorar as tensões internas. Assim, se perdura uma causa que faça das pessoas que participam soldados atuantes da piedade divina e da honra cavaleiresca. 115 Ibidem, p.228; 98 Parte da Cristandade latina se lançou, a partir de 1096, em sucessivas campanhas ao Levante. O deslocamento destes contingentes era visto com aflição por parte dos cristãos gregos a ponto de Ana Comneno relatar na Alexíada o temor natural que sentia com “a chegada de inumeráveis exércitos francos” pois “se conhecia seu incontível ímpeto, seu instável e volúvel temperamento e [...] igualmente se sabia como se paralisavam pelo brilho do dinheiro”. 116 A ida até Bizâncio ocorre com o chamado de Urbano II, após o pedido de ajuda do próprio império bizantino. Depois de 1096, grandes hostes se deslocaram deixando estragos pelo caminho e praticando pogroms contra as comunidades judaicas que habitavam no império germânico. O historiador Nachman Falbel traduziu as crônicas hebraicas em seu livro Kidush Hashem: Crônicas Hebraicas sobre as Cruzadas.117 Falbel traça o rastro de mortes e violências deixadas por estes exércitos. Para o autor, a violência que se perpetuou naqueles ataques foi, além dos assassinatos, uma violação ao direito de reconhecimento por aqueles que eram atacados. “No morticínio em massa, a individualidade encontra-se ameaçada, mormente quando a mutilação, a queima dos corpos das vítimas dificulta a sua identificação”. Conforme Falbel, “[...] para o homem medieval a individualidade define- se pela alma e não pelo corpo material, o que é confirmado pela sua visão teológica monoteísta, e, sendo assim, a alma reclama a sepultura, o último repouso e a identificação de seu corpo”.118 Ainda segundo Nachman Falbel, na espiritualidade asquenaze “o mundo dos vivos e dos mortos não se encontram separados [...] o sonho é a ponte que liga ambos”.119 Em muitos sonhos, de acordo com tal espiritualidade, os mortos previnem os vivos, exigindo a perpetuação de seus nomes. Estes pogroms bem relatados e a negação de uma identificação causada pela pilha de corpos incendiados ou colocados em covas coletivas, onde a homenagem fúnebre se suspende, relaciona-se com a percepção de Johan Galtung 120 apresentadana primeira parte deste capítulo, que aponta essa violência cultural imposta. Na negação das necessidades básicas para a sobrevivência de uma sociedade ou um grupo de pessoas há a recusa da capacidade de existência partindo de 116 Ana Comnemo. La Alexiada. X, V, 1-10; X, VI, 1-7; X, VIII, 7-8; X, X, 6; XIV, 5-7, Trad. de E. Díaz Rolando, Editorial Universidad de Sevilla, 1989 117 FALBEL, Nachman. Kidush Hashem: Crônicas Hebraicas sobre as Cruzadas. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001; 118Ibidem, p.17; 119Ibidem, p.17 120 GALTUNG, Johan. Op.Cit. , 2003, p.262; 99 uma formulação fundamental que preserve aquela sociedade como tal. Para Galtung, um grupo que se auto identifique tem a necessidade de representação para a sua constituição e manutenção. Na composição de sua identidade, uma comunidade precisa reafirmá-la através de ritos, práticas e símbolos. Quando se nega essas maneiras de reafirmações e performances, verifica-se a prática da violência, pois no impedimento do acesso aos elementos de autoafirmação suscita-se um ato violento. As crônicas hebraicas tratam nominalmente muitos dos que foram mortos como maneira de reviver e honrar àqueles através da escrita de seus nomes. Direito negado nos morticínios gerados pelos cruzados e pelas documentações cristãs que narram os deslocamentos. Das três traduções feitas por Nachman em relação às campanhas de 1096 temos as perseguições de 1096 121 que há citações de cinquenta e cinco nomes distintos e que se repetem ao longo da narrativa. A crônica intitulada As Perseguições de 4856 122 traz referência a dezenove nomes diferentes. Por último, na crônica anônima ou Acontecimentos das Antigas Perseguições 123 constam vinte e nove nomes. “A recuperação do nome está associada à subjetividade e à sua inclusão no rol dos mártires (kedoshim), que o Memorbuch124 deve preservar”. 125 Para Falbel é justamente isto que fazem os cronistas, registrando nominalmente vários dos casos de Kidush Hashem. As comunidades judaicas pereceram diante das primeiras ondas que iam por terra até o império bizantino. As comunidades de Espira, Worms, Mogúncia, Colônia, Trier, Metz, Ratisbona, Veselí e Praga estão entre algumas das que mais sofreram com os 121 Reunida por R’ Salomão Bar Sansão. Conforme Nachman Falbel “Pouco se sabe a respeito da vida e da obra de Salomão Bar Sansão, a não ser pela Crônica, em 1140, de acordo com o que ouviu dos “mais velhos” que presenciaram os fatos por eles narrados em suas comunidades. A crônica que foi preservada omite os acontecimentos sucedidos em Worms e em Spira, que deveriam estar no início do texto, mas o autor volta a eles resumidamente. Certas passagens da Crônica levam à suposição de que o autor tenha também se utilizado de Crônicas ou narrativas latinas relativas à Primeira Cruzada.” In: FALBEL, Nachman. Op.Cit.,2001, p.73; 122 O autor desta crônica é o Rabi Eliezer Bar Nathan. “Rabi Eliezer bar Nathan foi o autor do livro Even Haezer (a pedra de fundação, ou de Escora), e viveu em Mogúncia. Além de autor de pyutin, escreveu essa Crônica baseado em testemunhos orais e apontamentos escritos. Os pyutin de sua autoria que acompanham essa Crônica também se referem aos acontecimentos da Primeira Cruzada. Neles, ele se dirige a Deus pedindo vingança pelo que aconteceu a Israel, ao mesmo tempo em que invoca a redenção de seu povo, retornando às suas recordações sobre as perseguições em forma poética (zulat e slichá).” In: Ibidem, p.126; 123 Para Nachman Falbel “esta crônica anônima sobre a Primeira Cruzada, segundo alguns estudiosos, parece ser anterior às outras duas, ainda que seja difícil estabelecer com certeza a ligação entre todos esses textos. Nada sabemos a respeito de seu autor, que provavelmente anotou impressões de testemunhos orais e, talvez, em parte, tenha usado documentos escritos.” Ainda de acordo com o historiador “o manuscrito é da Biblioteca Nacional de Darmstadt, Codex orientalis 25, fólio 17 coluna 2-fólio 22 colunas 1.” In: Ibidem, p.141. 124 Relação de nomes e lugares feitos em memória dos mártires no ritual asquenaze. 125 FALBEL, Nachman. Op.Cit.,2001, p.166; 100 ataques cruzados. No entanto, em Colônia, acontece uma dispersão visto as notícias dos acontecimentos que se anteciparam à chegada daquelas tropas. Pedro, o Eremita é um nome bem conhecido deste primeiro grupo. Jonathan Riley-Smith menciona o grupo de Pedro como integrante da primeira onda. Guibert de Nogent relata que os ataques começaram ainda em Rouen : os homens que, [...] tomaram a cruz [...] começaram a murmurar entre si nesses termos: nossa intenção é atacar os inimigos de Deus no Oriente [...] enquanto aqui mesmo, sob os nossos olhos, temos os judeus, e não pode haver raça mais hostil a Deus.126 Segundo o monge, os cruzados “colocaram a espada sobre eles, indistintamente, sem diferenciar sexo ou idade, deixando sair somente os que se submetiam ao Cristianismo sob a ameaça das espadas”. Independente dos ataques terem começado em Rouen ou posteriormente, a violência contra as comunidades judaicas foi promovida por esta primeira onda. O grupo comandado pelo conde Emicho de Flonheim, na região do Reno, parece ter sido o que mais causou danos por onde passou. Mesmo com a proibição estabelecida por Henrique IV no tocante as pilhagem das comunidades judaicas habitantes do império, Emicho não se viu compelido em atacar Espira em Maio de 1096. No mesmo mês espoliou a cidade de Worms e “matou todos os quinhentos judeus que lá se encontravam”. 127 Em Mogúncia, dois dias de massacres e incêndios de sinagogas resultaram, segundo Nachman Falbell, em cerca de mil e trezentos judeus mortos. Voltando para Colônia, o exército de Emicho massacrou “os judeus que se haviam refugiado em Neuss, Wevelinghofen, Eller e Xanten, conforme narram as Crônicas Hebraicas”.128 O mesmo Emicho, posteriormente, foi derrotado em Viselburgo, “onde após levar seis semanas para construir uma ponte sobre o rio em frente à cidade, seu primeiro ataque se dissolveu em pânico e fuga”.129 De acordo com a crônica de Salomão Bar Sansão o conde Emicho, em sua passagem pelo reino da Hungria, sofreu grande revés com seu exército: “e os gregos perseguiram-nos em todas as direções até o rio Donau (Danúbio), onde tentavam fugir pela ponte que Pedro, o Eremita havia construído. [...] E afogaram- 126 Guiber de Nogent. Autobiographie. Ed. e trad. de Edmond- René Labande, Paris, Les Classiques de 1ª Histoire de France au Moyen Âge, 1981, pp.246-248; 127 FALBEL, Nachman. Op.Cit., 2001, p.50; 128 Ibidem, p.51; 129 RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.96; 101 se milhares e milhares e muitas dezenas de milhares, ao ponto de se pisar sobre eles como se fosse sobre terra”.130 Um mito que se construiu sobre esta primeira onda é que era constituída, majoritariamente, por grupos de despossuídos que viam na cruzada a saída de uma vida sem possibilidades em sua terra de origem. Esta multidão, movida pela selvageria de pessoas pouco dadas aos bons modos, praticaram todo tipo de barbaridades. Tal narrativa não se mantém e é fruto de um estereótipo. Para Cecile Morrison131 “o apelo de Clermont recebeu também grande difusão entre as camadas populares”. A pregação popular movimentou diversos grupos que marcharam antes da data estipulada pelo papa e o que se viu foi “ao lado da cruzada dos barões hierarquizada e estruturada, que também incluía numerosos não-combatentes, surgiu uma espécie de cruzada selvagem”. Hilário Franco Jr.132 também escreveu sobre o fenômeno e abordou esta primeira onda como “bandos de franceses e alemães que, sem condições materiais adequadas, partiram separadamente para o Oriente”. Ainda de acordo com Franco Jr., “estes grupos de pequenos cavaleiros, camponeses, clérigos, aventureiros, maltrapilhos e desenraizadostinham dificuldades em obter previsões, e chegavam muitas vezes ao limite da fome, passando então a roubar e saquear”. As interpretações apresentadas acima necessitam de uma revisão. Primeiramente, haviam cavaleiros abastados que tomaram o caminho do Levante na primeira parcela de cruzados e estes não eram compostos unicamente por grandes grupos de despossuídos que, no limite do desespero material e de uma vida cercada de miséria, se entregaram aos saques. O saque no caminho era condição latente para exércitos em marchas tão longas quanto a jornada até Jerusalém. Sejam os barões, ou os despossuídos. Logo, as pilhagens não ocorrem porque os pobres são maioria nesta primeira onda. A ausência de suprimentos enfrentada por esse primeiro grupo tem relação com o período em que eles se lançam para a campanha. A data estipulada pelo papado, em acordo com os guerreiros, era Agosto de 1096. Ou seja, após a época da colheita. A primeira onda se moveu antes da colheita e, sendo assim, os recursos ficaram escassos e isso gerou desabastecimento constante, o que levou aos saques pelo caminho que muitas vezes fugiram do controle. Por isso, “uma das razões para as catástrofes que 130Salomão Bar Sansão. In: FALBEL, Nachman. Op.Cit., 200,1 p.122; 131 MORRISSON, Cecille. Cruzadas. Tradução de William Lagos, 2009, p.14; 132 FRANCO JR., Hilário. As Cruzadas, São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p.39; 102 acometeram essa primeira onda de cruzados foi que ela deixou a Europa antes da data estipulada pelo papa, 15 de Agosto de 1096”. 133 Ou seja, “antes da colheita maravilhosa daquele verão, os cruzados tinham pouca comida desde o princípio”.134 Outro ponto é a nomenclatura de “cruzada popular”. Ela só pode ser chamada assim se o nome for relacionado com o fato de ser realizado por pessoas. Pois, se não for assim, ela não atende ao epiteto. Muitas narrativas mostram poderosos condes participando do grupo inicial. Tomas de Marle estava presente nesta primeira onda, assim como o conde Emicho. Além disso, parte deste grupo se juntou a Hugo de Vermandois, irmão do rei francês. Outra questão é que os pogroms não foram realizados por pobres que praticaram um “fanatismo quase ingênuo”.135 O discurso antijudaico existia e era propagado por um clero letrado e consciente de suas palavras. Os assassinatos cometidos contra judeus por essa primeira onda estavam inseridos numa racionalidade que ligava necessidade material e doutrina belicosa contra o povo judaico. A existência destes “outros” que se situam fora da Cristandade e a elaboração do discurso sobre eles não é monolítico e nem sempre se encontra de forma nítida nos textos. O trato com o judeu é diversificado, complexo e, muitas vezes, atrelado aos interesses econômicos de determinada região. Embora a doutrina cristã estabeleça um papel importante aos judeus, não podemos enxergar isto como fruto de uma tolerância pacífica e inclusiva desta sociedade no seio cristão. “No final dos séculos XI e XII [...] a figura do judeu assume maior urgência. O número e a veemência dos tratados antijudaicos aumentam agudamente [...] novos elementos são adicionados”. 136 Sara Lipton cita a entrada em cena da imagem do “usurário judeu” e daqueles que provocaram o “sofrimento de Cristo [...] ou simplesmente permaneceram indiferentes à sua dor”. Ainda de acordo com a historiadora as “representações visuais e literárias de judeus exageraram sua provocação e hostilidade, e as narrativas de paixão atribuíram culpa coletiva e trans histórica” 137 aos judeus. Afinal, dentre os relatos que narram o discurso de Urbano II, em Clermont, o que se mostra é um papa que chama os cristãos à vingança: “precisamente à vocês (cristãos), porque Deus lhes conferiu sobre todos os povos pagãos [...] a insígnia da honra e das armas”. 133 RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.96; 134 Ibidem, pp.96-97. 135 FRANCO JR., Hilário. Op.Cit., 1981, p.39 136 LIPTON, Sara. Christianiy and Its Others: Jews, Muslims and Pagans. In: The Oxford Handbook of Medieval Christianity Edited by John H. Arnold. Oxford University Press, 2014, p.416; 137 Ibidem, p.417; 103 A mensagem do sacrifício de Cristo e seu sofrimento na cruz para a salvação dos cristãos está presente nos relatos de Clermont e mostra a obrigação que estes homens de armas tinham em atender ao chamado de auxílio e vingança contra quem atacava a Cristo. A mensagem recebida e o forte peso dado aos judeus como deicidas tinham a capacidade de estimular naqueles exércitos uma possibilidade de inclusão no ramo dos “infiéis” a serem combatidos não apenas os muçulmanos: “Se eles estavam sendo chamados, segundo entendiam, a vingar o dano à honra de Cristo pela perda de seu patrimônio para os muçulmanos, indagaram-se, não deveriam também vingar o dano à sua pessoa pela crucificação”. 138 Logo, a presença judaica entre comunidades cristãs coloca em questão como ocorrem as relações destas sociedades. Estas relações variavam, mas nunca em campo de igualdade. Nos pogroms das cruzadas, a exacerbação de uma visão que fez do judeus os assassinos de Cristo atinge níveis extremos provocando conversões forçadas, enorme quantidade de assassinatos e pilhagens desenfreadas. A primeira onda não durou muito e os exércitos se dissolveram no caminho ou quando atingiram Constantinopla e resolveram seguir sem o reforço da segunda onda, que era constituído por um grande número de cavaleiros. O movimento que se deu após 1096 ainda é um grande ponto inicial e de referência para o estudo das motivações e dos elementos característicos das cruzadas. Como dito anteriormente, Clermont é o ponto primário que deu a largada a um fenômeno que se prolongou por séculos. Porém, o concílio de 1095, surgiu em narrativas posteriores de alguns cronistas que inseriram em seus escritos pontos chaves para uma aguçada ilustração do contexto. Dentre estas narrativas, as mais antigas e próximas do concílio de Clermont fazem parte de uma primeira categoria, que envolve quatro autores: “se compõe dos quatro participantes da primeira cruzada que escreveram pessoalmente seus relatos em começos do século XII”.139 São estes Fulquério de Chartres, Raimundo de Aguillers, Pedro de Tudebode e o escritor anônimo da Gesta Francorum. A Gesta foi vista, por um tempo, como sendo a base para escritores posteriores. O alemão Heinrich Hagenmeyer “em sua edição de 1890 da Gesta Francorum [...] lançou a tese [...] que Pedro Tudebodo havia 138 RILEY-SMITH, Jonathan. Op.Cit., 2019, p.91; 139 SEFAMI, Daniel Paz. Fulquero de Chartres y Roberto el monje. Dois versiones del sermón de Urbano II em Clermont: um comentário de texto.México, Universidad Nacional Autónoma de México, Cordinácion de Estudios de Posgrado: Programa de Maestría y Doctorado em Letras, 2018, p.22; 104 copiado o anônimo”. A partir daí “a tendência geral é crer nisto”.140 Embora Jean Flori141 compreenda que tanto a Gesta quanto Pedro Tudebodo tenham utilizado um documento em comum e que tenha se perdido. Nestes quatro primeiros escritores citados, o único que aborda o sermão de Urbano II, de fato, é Fulquério. O autor anônimo e Pedro Tudebodo fazem uma referência ao concílio, mas não se aprofundam na chamada de Clermont como uma peça formalizada e teatral ao modo de Fulquério. Raimundo de Aguiller não faz menção ao ponto inicial de Clermont já que “sua obra começa com os padecimentos dos francos quando estes estão passando pelos Balcãs”.142 Raimundo acompanhou a comitiva do conde Raimundo de Tolosa. Existem, também, outros três autores que escreveram sobre a cruzada de 1095 e que tem em comum a característica de serem monges beneditinos. São eles Roberto, o monge, Guibert de Nogent e Baldrico de Bourgueil. Estes autores apresentam elementos possíveis de circunscrever num conjunto semelhante: “os três tem um prólogo em que se identificamcomo autores e criticam sua fonte. Os três escrevem desde seu centro religioso[...] e parecem tentar gerar uma versão oficial da cruzada, baseados na ideia de que é necessária uma compreensão verdadeira da empresa”.143 Os três trazem em suas narrativas o sermão de Urbano II de maneira estilizada. Todos esses autores citados são clérigos e escreveram suas crônicas temporalmente próximos. A crônica anônima foi escrita por volta de 1099 e reeditada entre 1105 e 1106. Hierosolymitano itinere de Pedro Tubebodo foi terminada antes de 1111; já a Historia Francorum qui Ceperunt Jerusalem escrita por Raimundo Aguilers foi elaborada em data próxima a 1105 e Fulquero de Chartres escreve também por volta deste ano. Roberto, o monge escreve sua Historia Iherosolimitana em torno de 1110. Baldrico de Bourgueil narra a campanha em Historia Ierosolimitana, feita em 1105 e por último, A Gesta Dei per Francos de Guibert de Nogent é composta entre 1104 e 1108, além de uma revisão realizada por volta de 1111.144 Conforme investigação de Jean Flori 140 Ibidem, p.23; 141 Cf. FLORI, Jean. Pedro El Ermitaño y el Origen de las Cruzadas. Barcelona/Buenos Aires: Edhasa, 2006; 142 SEFAMI, Daniel Paz. Op.Cit., 2018, p.24; 143 Ibidem, p.24; 144 EDGINTON, Susan. The First Crusade: Reviewing the evidence. Ed. J Philips. The First Crusade: Origins and Impact. Manchester/Nueva York: Manchester University Press, 1997, pp.55-57; FLORI, Jean. op.Cit., 2006; HIESTAND, Rudolf. Il cronista medievale e il suo publico: alcuini osservazioni in margine ala storiografia delle crociate. Anali della Facultá di lettere e Filosofia Universitá di Napoli 25 (1984), pp.207-227 ; RILEY-SMITH, Joanathan. The First Crusaders , 1095-1131. Cambridge: Cambridge 105 é Guibert de Nogent que usa o termo “guerras santas” (praelia sancta) de forma inédita em Dei Gesta Per Francos.145 No entanto, para o historiador francês a noção não era nova. O que ocorreu foi a nomeação de algo que já se conhecia a existência. A guerra santa “ganhava direito de cidadania entre os monges que, refletindo sobre a cruzada pouco depois de seu sucesso, elaboravam sua interpretação teológica”.146 A maneira como estes clérigos escrevem sobre o sermão de Urbano nos permite alguns apontamentos, dentre os quais a presença de temas recorrentes nessas descrições do concílio. Vejamos o discurso do papa na narrativa de Fulquero de Chartres: Oh, filhos de Deus! Pois se prometeste a Deus sustentar, de uma forma mais viril do que de costume, a paz, que deve ser mantida entre vós, e os direitos da Igreja, que devem ser fielmente preservados, então também é eminente agora, que acaba de ser revitalizadas pela emenda de Deus, para que voltem o poder de sua coragem para outro dever seu e de Deus [...] apressem a viagem e socorram a seus irmãos que estão no Oriente e que estão necessitados de seu auxílio, pelo qual clamam com frequência. Pois, tal como já se disse à maioria de vocês, os turcos, raça pérsica, que ocupando mais e mais terras dos cristãos [...] matando ou capturando a muitos, destruindo igrejas, devastando o reino de Deus. 147Por esta razão, com apelo suplicante, os exorto, não eu, e sim o Senhor, para que vocês, pregoeiros de Cristo, persuadam com frequentes decretos, a todos de qualquer ordem.148 Fracionando o discurso detectamos alguns temas que já trabalhamos nos liber miraculorum, por exemplo. Primeiramente, a introdução do concílio coloca-o na lógica dos juramentos da Paz de Deus. Clermont era uma assembleia com este intuito e, por mais que se pense que a Paz de Deus perde força no fim do século XI, ela ainda está presente em algumas regiões. Na convocação dos cristãos latinos para irem até Bizâncio em auxílio dos cristãos gregos há o tema recorrente da igreja violada (ecclesia subvertendo, regnum Dei vastando) e a sua profanação. Este assunto está presente aqui e em outras versões do sermão. A metodologia de análise das trigger words usada por Marcus Bull 149 estabelece a ligação entre as ideias transmitidas por estas narrativas de Clermont com os miracula. University Press, 2002; SWEETENHAM, Carol. Robert the Monk’s History of the First Crusade. Historia Iherosolimitana. Surrey/Vermont: Ashgate, 2011; RUNCIMAN, Steven. Historia de las cruzadas. Madrid: Alianza, 2008 145 Guiberto de Nogent. Dei Gesta Per Francos. RHC, Hist. Occ., IV, p.124; 146 FLORI, Jean. Op.Cit.,2013, p.334; 147 Multos occidendo vel captivando, ecclesias subvertendo, regnum Dei vastando. In: HAGENMEYER, Heinrich (ed.). Fulcheri Carnotensis historia Hierosolymitana (1095-1127). Heidelberg: Carl Winters, 1913, p.134; 148Ibidem, pp.132-134; 149 BULL, Marcus. Op.Cit., 2004; 106 Bull descreve estas “palavras-gatilho” como a durabilidade das imagens diretas e poderosas, que provocam respostas emocionais e associações das mais distintas quando se ouve certas palavras ou temas que despertam reações e sentimentos. Conforme George Lakoff 150 a utilização destes símbolos transporta as imagens visuais reais com efeitos emocionais e expressam, simultaneamente, valores, pressupostos culturais e processos mentais. 151 A ideia gatilho da igreja sendo devastada e ferida está presente, por exemplo, em muitas histórias de milagres já citadas e também é tema em Roberto, o monge que aponta o “povo dos persas derrubando as igrejas de Deus e utilizando-as para as suas cerimônias”.152 A convocação de Urbano II é de auxílio e de vingança, se utilizando de ideias e discursos em circulação que tivessem a capacidade de movimentar uma gama de processos internos adequados a responder aquele apelo. A cruzada aparece, então, como uma defesa da Igreja. Em muitas dessas oportunidades, notamos uma lógica semelhante com a proteção que deveria ser efetuada no âmbito das espoliações realizadas pelos maus cristãos durante a formação de exércitos protetores como o de Aimon de Bourges. Porém, aqui, talvez se encontre uma concepção nossa oposta à de Dominique Barthélemy. Concordamos com Barthélemy na referência ao apelo de Urbano ser uma chamada de vingança e em relação aos ataques sofridos por cristãos serem “exagerados por um tipo de cálculo”.153 No entanto, o historiador francês coloca esta guerra de vingança dentro do mesmo parâmetro das feuds internas. Para Barthélemy, os discursos “não são forçosamente compreendidos como chamados ao extermínio puro e simples do adversário, uma vez que, no mundo da vingança, primeiramente se inflama com grandes palavras, começa-se com atos de inimizade, mas logo se passa à arte da negociação e da transação”. A lógica da vingança interna presente na relação entre cristãos não é transferível para o embate contra o outro. O confronto é distinto, pois a guerra de vingança não é um convite de negociação. O trato com o “outro” é de apagamento, de exclusão e da negação 150 LAKOFF, George, e JOHNSON, Marc. Metaphors We Live By, Chicago: Chicago University Press, 2003; 151 “Metaphor is not just a matter of language, that is, of mere words [...]. The human conceptual system is metaphorically structured and defined. Metaphores as linguistic expressions are possible because there are metaphores in a person’s conceptual system. In: Ibidem, p.6; 152 Ecclesiasque Dei aut funditus everterit aut suorum ritui sacrorum mancipaverit. Altaria sui feditatibus inquinata subvertunt In: KEMPF, Damien and BULL, Marcus. (eds.) The Iherosolimitana of Robert the Monk. Woodbridge: The Boydell Press, 2013. Roberti Monachi historia Iherosolimitana, RHC Occ, III, pp.717-882; 153 BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, p.331; 107 ao direito de existência. Isto é perceptível nos massacres dos cruzados efetuados em Maara e Jerusalém. Os relatos cristãos não condenam. As condenações destes massacres contra os muçulmanos são mais exceção que regra e o próprio Dominique Barthélemy se questionasobre esse “Cristianismo do ano 1100 que fala em seguir a Cristo, que não impede semelhante massacre, e que não impõe penitência a seus autores”.154 As vendetas que se praticam em conflitos intrassocietários ocasionam mortes e, até certo ponto, descontrole (embora não seja o objetivo). No entanto, penitências são impostas e a própria partida para a cruzada é uma forma de absolvição dos exageros ocorridos em conflitos feudais. O público ao qual o papa se destina são os cavaleiros. A chamada da Cristandade para o auxílio de Bizâncio necessitava da utilização de imagens reconhecíveis e de símbolos que provocassem a reação pretendida. Estas “imagens universais” que provocam reações operam nas relações entre a imagem, o símbolo e o signo. Estes elementos, para Claude Dubois agem no imaginário, remetendo àqueles ouvintes às “ligações entre a experiência cotidianas e os sistemas metafóricos, baseando-se na experiência física, sendo definida em termos de imagens concretas”.155 Estas imagens, em forma de palavras estão presentes em Clermont e nos discursos convocatórios para a cruzada. Os milagres de São Privato de Mende são contemporâneos 156 aos relatos de Clermont feitos pelos clérigos que citamos. Vejamos como o tema da Igreja agredida está presente na maioria dos milagres. Todas as agressões às igrejas são punidas através da intercessão vingativa do santo. Toda violação às terras do santo é punida. Oito milagres 154 Ibidem, p.342 155 LAKOFF, George, e JOHNSON, Marc., Op.Cit.,2003, pp.40-45 156 “A suposta tumba de São Privat era, no entanto, um famoso local de peregrinação e milagres que aconteciam em Gevaudan, no século XI, o que engajou um autor anônimo em transmitir a história para a posteridade. Este autor fala de um milagre ocorrido em seu tempo, sob o episcopado de Adalberto e declara que fará saber de outro milagre da boca do mesmo bispo. Dois prelados com esse nome ocuparam a sé episcopal de Mende no século XI. Adalberto I, cujos vestígios podem ser encontrados ao longo dos anos de 1053 e 1095, e Adalberto II, sobrinho do anterior, que aparece em documentos de 1099 e 1109 [...] É de fato provável que o conselho de Mende realizado pela Paz de Deus, do qual o milagre corresponde ao encontro dos prelados ocorre entre 1102 e 1112 e relatado por Adalberto III em seu relato da invenção das relíquias de São Privat . Três arcebispos e dois bispos foram encontrados então em Mende, e tudo sugere que esta reunião importante era aquela que tinha por objetivo a Paz de Deus. Como o autor do miracula sobreviveu ao bispo Adalberto II, a composição desta história remonta provavelmente à primeira metade do século XII.” In: Introduction. Les Miracles de Saint Privat. Op.Cit., 1912, pp.XIX-XX; 108 fazem referência direta a este tema.157 O castigo para quem viola a igreja faz parte da retórica utilizada no sermão de Urbano II. Este e outros temas muito recorrentes em Clermont são, conforme Marcus Bull158, elementos “que se adequavam particularmente à internalização e à identificação empática” daquelas pessoas. As palavras de Urbano falaram alto a partir do uso destes temas e imagens em particular. Estes discursos teriam a capacidade de fomentar naqueles grupos uma reação, visto que eles estavam ambientados com os gatilhos difundidos pelos miracula. Além da utilização de uma “sequência de substantivos abstratos evocativos”, tais como “sujeira, poluição, perfídia, desonra, maldade, infâmia, luxúria, crueldade, tirania, violência, violação, destruição, opressão, paganismo [...]” 159 Por isso, a escrita das cruzadas para aqueles homens tinha como objetivo a criação de uma narrativa coerente, que precisasse de um ponto inicial e esse ponto é Clermont, em 1095. Situando as ideias que circulavam cria-se a possibilidade de se travar um combate santo com ganho espiritual e que possibilitou um movimento tão intenso de pessoas para Jerusalém. A análise da conquista de Lisboa vai tratar mais destas concepções utilizadas pelo autor da crônica dentro da política afonsina de aproximação com a cruzada. Nosso objetivo não é a descrição de todo o caminho percorrido pelos cruzados até a conquista de Jerusalém e as campanhas posteriores, mas sim a visualização das possibilidades e das ideias que mobilizaram o fenômeno para a reflexão da concepção de violência existente na Cristandade latina dos séculos XI e XII. Examinemos o relato de Guilbert de Nogent sobre o sermão a respeito da situação dos peregrinos: Se o que é dito nas escrituras não os impulsiona e nem nossas reflexões penetram em seus ânimos, ao menos que os impulsione a grande miséria daqueles que desejam ir aos lugares santos. Pensem naqueles que peregrinam e vão até lá pelo Mediterrâneo e, sem efeito, ficam mais ricos. A quantas cobranças, a quantas violências160 são submetidos, posto que quase a cada milha são obrigados a desembolsar pagamentos e tributos. Nas portas de cada cidade, nas entradas das igrejas e dos templos são obrigados a pagar recompensas; em cada peregrinar de um 157 Milagre 2 [fol. CLII vº.], pp.4-5; Milagre 3 [fol.8(m)], pp.5-8; Milagre 4, p.8; Milagre 5, pp.8-11; Milagre 8, p.16; Milagre 9, pp.16-18; Milagre 10, p.18; Milagre 11, pp.18-19. In: Les Miracles de Saint Privat. Op.Cit., 1912. 158 BULL, MARCUS. Op.Cit., 2003, p.23; 159 Ibidem, p.23; 160 Violentiis. In Guiberto de Nogent. Gesta Dei Per Francos, edita a venerabili Domno Guiberto, abbate monasterii Sanctae Mariae Novigenti, em Académie des Inscriptions et Belle-Lettres (ed.): Recueil des historiens des croisades: Historiens Occidentaux, V vols., Paris, 1844, pp.113-263; 109 lugar a outro, lhes impondo qualquer tipo de acusação, são empurrados a pagar recompensas [...] A crueldade dos nefastos é levada até as últimas consequências, de maneira que, pensando que os miseráveis ingeriram ouro ou prata lhes é dado escamonéia para beber até que vomitem ou mesmo são instados a extrair seus órgãos vitais com a espada, o que resulta mais nefasto, cortando o ventre, esticando as envolturas dos intestinos; abrem com um terrível incisão qualquer coisa que a natureza mantenha oculta.161 Independentemente do exagero do relato, Guibert narra os sofrimentos dos peregrinos diante dos muçulmanos; notamos neste trecho o tema do peregrino assediado. Embora alguns miracula que observamos sejam de um período após os relatos do concílio de 1095, a ideia de assédio ao peregrino é um tema constante, que evoca o auxílio dos cavaleiros na proteção destes despossuídos que marcham até Jerusalém. Estes homini viatores sofrem violentiis, que é o termo do plural dativo que significa o ato de dar alguma coisa. Ou seja, os peregrinos são submetidos pela violência muçulmana. Aqui, esta é encarada como cobranças excessivas de tributos ou a dilaceração pela espada. “Parece, entretanto, que houve algum exagero com respeito às dificuldades criadas pelos califas omíadas e abássidas à peregrinação para Jerusalém”.162 A proteção e a vingança contra os males que atingem essas pessoas que rumam a Jerusalém é uma tarefa piedosa que o bom cristão deve efetuar. Neste contexto, a marcha feita em auxílio aos peregrinos, aos bizantinos e para a conquista de Jerusalém é uma penitência sobre a qual Urbano discorre como uma maneira para que aqueles homens de armas sejam perdoados pelos males que proporcionam em suas terras. Dentre estes males, as batalhas contra outros cristãos, a incessante busca por riquezas e, posteriormente, a prática de se tornear. Sobre isso, Barthélemy em entrevista a professora Néri de Barros Almeida, aponta que os torneios, condenados pela Igreja, preparavam os cavaleiros para as cruzadas e ao mesmo tempo os fazia cair em pecado, necessitando, depois disso, partir em cruzada para se penitenciar.163 O beneditino Guibert prossegue com o relato do sermão de Urbano: “[...] queridos irmãos,devem se esforçar para que a santidade da cidade e glória do sepulcro, que é manchada com demasiada frequência pela presença dos gentis, seja purificada [...] Deus 161 Guiberto de Nogent. Dei gesta per Francos et cinq autres textes, éd. R. B. C. Huygens, Turnhoult: Brepols, [CCCM 127A], 1996, pp.139-140; 162 SOT, Michel. Peregrinação. In: Dicionário Analítico do Ocidente Medieval: volume 2/ Jacques Le Goff, Jean-Claude Schmitt (Orgs.); tradução coordenada por Hilário Franco Júnior. – São Paulo: Editora Unesp, 2017, p.398; 163 BARTHÉLEMY, Dominique, Op.Cit., 2011, p.174; 110 será seu guia e lutará por vocês”.164 A seguir, pede para que os cristãos interrompam suas matanças internas: “Até agora fizeram guerras indevidas, se voltaram para matanças mútuas [...] pela avidez ou soberba pela qual hão merecido morte eterna e a destruição segura da condenação”. 165 Assim, se destinariam às causas dignificantes: “Agora, em troca, te propomos guerras que em si mesma tenham a recompensa gloriosa do martírio166 [...] e o título do louvor eterno”.167 A retórica da guerra contra o outro é uma construção do “nós” (cristão) contra “eles” (muçulmanos). Esta busca pela identidade coloca no outro a diferença daquele que não participa da sociedade. Conforme Marcus Bull afirma, é preciso atenção na maneira como estes autores descrevem o sermão de chamada às cruzadas por parte do papa e como estes clamores estão ligados às ideias em circulação nas experiências proporcionadas e vinculadas nos miracula. Doravante, estas histórias de milagres “não são uma rota direta para a paisagem mental dos leigos e falam apenas sobre alguns aspectos de sua experiência vivida, mas os miracula nos aproximam o suficiente para vislumbrar operações de alguns valores e percepções culturais importantes”. 168 Dentre elas “ideias que podem estar relacionadas à motivação da cruzada”.169 Isso nos ajuda na explicação, inclusive, do porquê a grande maioria não foi. Devemos rever a ideia sobre as cruzadas movimentarem pessoas que estavam ali preparadas para isso, pois estas peregrinações armadas responderiam a todas as expectativas, políticas e sentimentos da Cristandade latina dos século XI e XII. As condições culturais e materiais auxiliaram, mas estas não encontraram na chamada de Urbano o ponto final de uma linha de acontecimentos cuja resposta óbvia seria a cruzada. Da mesma forma que estas mesmas cruzadas precisam ser pesquisadas e analisadas em outras possibilidades além de uma série de eventos numerados. A escrita da cruzada feita por beneditinos estabele o evento como parte da história que é guiada por Deus. Nesta lógica, a mão divina conduz os acontecimentos. Principalmente, a segunda onda na qual a conquista de Jerusalém se efetiva. Esta maneira de escrever a cruzada é “desenvolvida por uma segunda geração de comentadores, particularmente [...] Guibert de Nogent, Baldrico de Bourgueil e Roberto, o Monge, os quais, escrevendo dez anos mais tarde situaram a cruzada no contexto da história da 164 Guiberto de Nogent. Op.Cit., 1844, p.138 165Ibidem, p.138. 166 Gloriosum martyrii; 167 Guiberto de Nogent. Op.Cit, 1844, p.138. 168 BULL, Marcus. Op.Cit., 2003, p.31; 169 Ibidem, p.31; 111 providência”.170 Para estes escritores das passagens armadas “a ideia de cruzada como uma guerra por Cristo, a qual fora mal elaborada pelos próprios cruzados, ganhou uma expressão teológica própria”.171 Os votos de cruzado e os mais variados sentimentos acarretariam numa tendência na qual se transferia “as ideias e a linguagem extravagantes da cruzada para qualquer conflito pelo qual os promotores ou os participantes nutriam grandes sentimentos”.172 Nesse período é difícil diferenciar exatamente a peregrinação desarmada para as armadas, pois a documentação não é muito nítida a este respeito. Em 1105, Fulquerio de Chartres que estava em Jerusalém fala sobre o receio de uma invasão muçulmana vinda do Egito e justifica o seu medo da seguinte maneira: “porque nós éramos muito poucos e estávamos sem a ajuda dos peregrinos habituais”. 173 Além disso, o mesmo Fulquerio fala de exércitos cristãos crescendo com a chegada destes peregrinos. Após as três primeiras ondas e a tomada de Jerusalém, em 1099, 174 os movimentos prosseguiram em fluxo constante, mas de maneira diminuta e talvez menos armada.175 Assentamentos foram criados na região e as relações locais entre cristãos vindos do continente, os cristãos locais e os muçulmanos se deram das mais variadas formas. Haviam acordos de não-agressão, cobranças de taxas para o “outro” e distintas formas de impor pela força o domínio que se buscava exercer. A conquista de Edessa efetuada por Zengi, em 1144, foi o motivo usado pelo papa Eugênio III na convocação de um novo auxílio dos cavaleiros cristãos latinos. Eles partiram para o que ficou conhecido como segunda cruzada, realizada em 1147. Esta convocação contou com as pregações de Bernardo de Claraval. Porém, no caminho de parte destes cruzados haviam as negociatas e interesses de um infante que se pretendia 170 RILEY-SMITH. Op.Cit., 2019, p.124; 171 Ibidem, p.124; 172 Ibidem, p.212; 173 Fulquero de Chartres. Hagenmeyer, Heinrich (ed.) Fulcheri Carnotensis historia Hierosolymitana (1095-1127). Heildelberg: Carl Winters, 1913. Historia Iherosolymitana. Gesta Francorum Iherusalem expugnation, ab anno Domini MXCV, auctore Domno Fulcherio Carnotensi. pp.311-485; 174 A conquista de Jerusalém foi efetuada pela segunda onda de cruzados; 175 Jonathan Riley-Smith aborda que após a conquista de Jerusalém, para as pessoas do século XII, a peregrinação com intuitos menos belicosos parece ser uma tendência. Embora, ao completar o percurso, cujo a cidade santa era o ponto final, muitos destes viajantes, ajudava em conflitos no Oriente: “Assim, os peregrinos do século XII se comportaram de forma precisamente oposta àqueles primeiros cruzados que haviam conscientemente revertido a um estado sem armas uma vez que haviam liberado o Santo Sepulcro.” In: RILEY-SMITH, Ibidem, p.214; 112 rei diante da Cristandade. Esse Infante precisava da cruzada e a cruzada ampliava sua política de conflito, combatendo em outros teatros de operação. A sacralização dos combates fez parte da doutrina cristã. A lógica da guerra santa ascendeu na região da Gália com as igrejas estabelecendo discursos sobre a sua defesa e como esta causa convertia o combate efetuado pelos leigos num combate santo. Assim, num ambiente hostil, o clero usa de hostilidade para a manutenção de seus privilégios. O uso das doutrinas agostinianas, geralmente, são uma premissa para o estudo dos combates sagrados. Porém, o emprego do bispo de Hipona é ressignificado conforme a lógica local e temporal. Assim, a guerra santa também se adapta ao momento que é pregada. Os embates feudais, fruto da lógica expansionista do sistema atingiu a Igreja, que também detinha um poder senhorial. Ou seja, o efeito colateral do sistema senhorial colocou as duas aristocracias (laica e eclesiástica) em constante conflito. Tendo seus patrimônios e direitos cotestados, o clero da Gália desenvolve uma ideia de violentia. Para a sua proteção usaram da violência daqueles que estavam dipostos a defendê-los. É possível, inclusive, ver bispos pegando em armas para o resguardo de seus bens. Aqui, as condições materias são latentes. Embora, elas não esteja descoladas da religiosidade. Estes homens do clero viam na defesa dos bens sagrados, uma defesa a Deus. Assim, se difundiu a noção de embates sagrados. Estas guerras santas foram utilizadas e reapropriadas por algumas regiões da Cristandade de acordo com as necessidades circunscritas à lógica local. Um dos possíveis recortes para a guerra santa é a região da Península Ibérica, onde o processo de expansão cristã assume um caráter sagrado a partir do surgimento do fenômenocruzadístico. O recrudescimento do discurso hispânico é uma estratégia de legitimação das monarquias ibéricas, visto a importância, naquele momento, de uma aliança com o papa. Os reis hispânicos fizeram uso de seus atritos contra os muçulmanos, fruto da expansão feudal, para seu auto fortalecimento. Assim, no decorrer dos séculos XI e XII, a guerra na Península Ibérica se sacraliza de lado a lado. A cruzada é uma guerra santa e uma guerra de libertação. Com esta guerra era possível se penitenciar. O caminho, as provações e o combate ao muçulmano fazia da campanha um movimento que conjugava diversos elementos. A cruzada é, também, uma guerra de vingança e as pregações falam desta como uma forma de honrar à Cristo. Analisamos como as narrativas de chamadas da cruzada se utilizam das ideias presentes 113 nos miracula vislumbradas no primeiro capítulo. As ideias destes milagres, que estão na chamada da cruzada, também estão presentes em De Expugnatione Lysbonensi. Raul faz uso destas ideias, em nossa visão, por esse ser seu ambiente cultural 176 (Raul era anglo- normando) e, também, para transmitir uma imagem da expansão de Afonso Henriques que faça dele um rei cristão e defensor da Igreja. Assim, quando uma nova cruzada é convocada pelo papa em 1146, o líder do condado portucalense, em aliança com seu clero, entra em cena e movimenta coalizões com os cruzados para tornar sua expansão feudal num alargamento das fronteiras da Cristandade. Afonso presta homenagem vassálica ao papa, e este se vira para estas monarquias nascentes para seu próprio fortalecimento. Estes elementos apontam a importância da elaboração de uma memória referente aos feitos do duque que se pretendia rei e que veremos no capítulo a seguir. 176 As noções de violentia dos milagres se constroem no contexto das assembleias de paz e das espoliações sofridas pelas igrejas da Gália, região da qual Raul é oriundo. 114 Capítulo 3 Lisboa e a Cruzada: a Conquista de 1147 Nesse capítulo apresentaremos a conquista de Lisboa percebendo sua construção como uma tentativa de aproximar o expansionismo de Afonso I com a cruzada. A constituição da imagem dos muçulmanos como um “outro” e a maneira como são caracterizados na crônica tem por objetivo a justificativa da violência que se comete contra eles. Violência que está presente em sua amplitude e que não é vista como tal pelos cristãos. Esta violência que também se pauta pela edificação de uma identidade que tem em seu âmbito a busca no estabelecimento de um “diferente”, o outro. Conforme Jacques Derrida, este tipo de binarismo visa a hierarquização. Hierarquização que promove a violência. Para a apreensão desta proposta, iniciaremos a explanação através do processo expansionista portucalense com Afonso Henriques e como este encontra na aliança com o papa e seus projetos políticos (inclusive a cruzada) uma maneira de legitimação como rei frente aos outros monarcas peninsulares e à Cristandade no geral. Situando o contexto da formação portucalense, o próximo ponto será a investigação do ambiente de produção da crônica intitulada De Expugnatione Lysbonensi. A crônica é assinada por ‘R’ que seria um provável Raul, cruzado anglo-normando, que escreve a Osberno de Bawdsey com a intenção de relatar todos os acontecimentos daquela campanha. A tese que indica Raul como autor da narratva foi elaborada por Livermore, a qual explicaremos adiante, partindo de uma doação feita ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra por um homem que se diz participante do cerco de Lisboa. Feita a análise do ambiente de produção da crônica, buscaremos sua associação com a política afonsina dentro de uma tradição da literatura crúzia de exaltação do rei português, que constrói sua imagem como um monarca cristão que expande a Cristandade. As conquistas de Afonso I foram utilizadas como estratégia de legitimação frente ao papado. Assim, faremos uma investigação do fortalecimento afonsino em associação com o papa numa aliança de via dupla: o papa que busca aliados fora do conturbado ambiente da Península Itálica e Afonso Henriques que pretende sua legitimação a partir de sua vassalidade ao herdeiro de Pedro. A busca pelo reconhecimento como rei era uma forma 115 de estabelecimento perante as monarquias ibéricas e aos outros reinos da Cristandade. Logo, a conquista de Lisboa precisa ser analisada também sob este prisma. Após esse percurso, nosso propósito é detectar a violência existente na crônica. A busca de uma construção da identidade cristã em contraponto aos muçulmanos e as descrições destes permitem uma leitura inserida na lógica do binarismo hierarquizante. O uso da violência com o “outro” se liga à prática de situá-lo fora da sociedade. Sendo, assim, um perigo para a existência dos cristãos. O comportamento dos muçulmanos e a sua descrição é visto como justificativa para as diversas violências aplicadas na conquista de Lisboa. Violência que não é apenas a violência direta (embora esta esteja presente) mas também outras formas. Por isso, a teorização sobre o conceito realizado no primeiro capítulo nos permitirá uma verificação da crônica neste escopo. Por fim, na parte final do capítulo constataremos como De Expugnatione Lyxbonensi se conecta com a cruzada enquanto exalta a figura de Afonso. Lançando mão das trigger words comprovaremos que a crônica tem o objetivo de transmitir a imagem de uma guerra santa por excelência, estabelecendo um paralelo que faça da expansão afonsina um episódio agregador da Cristandade latina. Conjugando representações presentes nos relatos de milagres e nas convocações de cruzadas, o autor Raul se move nas razões existentes no período. 3.1 A construção afonsina: o rei e o reino O condado portucalense nasce de um desmembramento da Galiza com o intuito de proteção frente aos avanços islâmicos vindos do sul. Após as derrotas sofridas pelo conde D. Raimundo diante dos Almorávidas, o condado passa ao poder do conde D. Henrique da Borgonha, esposo de dona Teresa, filha bastarda de Afonso VI. Esse desmembramento não pode ser visto, mesmo com a posterior autonomia que vai adquirindo, como um esforço de uma suposta “identidade portuguesa” que advém de períodos recuados em demasia. O mito da identidade lusitana por trás de certas concepções historiográficas 1 que enxergam o domínio de Afonso Henriques, principalmente, como o desepertar de um sentimento português necessita ser rechaçado 1 Um dos clássicos casos é o de Oliveira Martins que coloca a conquista de Lisboa como o nascimento da nação portuguesa. In: OLIVEIRA MARTINS, J. P. História de Portugal. 10.ed. Lisboa: Parceria, 1920. v.I; 116 ou ao menos problematizado, acrescentando ao tema todas as possibilidades nocivas que tais concepções podem trazer. 2 Maria João Branco 3 analisa estas noções identitárias que pautam a história do reino portucalense. Para a historiadora, a constituição de uma identidade referente a Portugal é uma construção posterior e que não tem relação com um espírito presente em Afonso Henriques. “Um território para o qual se construiu uma identidade, para o qual foi construída uma identidade, num trabalho bem concertado e continuado”.4 Quer dizer que não existe uma noção de identificação no período? Até pode existir. Porém, era “a consciência de pertencer à Hispânia e não a um reino em particular. E, nesse contexto, não pode servir como base de reivindicação de particularismos que pudessem ter originado as diversas formações políticas que o século XII patenteia”.5 Ninguém no século XII pauta a formação do reino portucalense dentro de uma “lusitanidade” ou “portugalidade” que, tendo entendimento de suas particularidades culturais, busca sua “independência” de Castela. Não se pretendeu “associar o nascimento do reino de Portugal a um qualquer sentimentode identidade específica da população que habitava este fluído território, ele próprio, em permanente estado de mudança [...] ao sabor dos progressos da reconquista”.6 Não havia uma identidade portuguesa naquele momento. Podemos falar de identidade hispânica e, mais que isso, notamos uma busca por homogeneização do contingente cristão na maneira como Raul narra o ocorrido. Nota-se uma estratégia discursiva na criação da imagem do outro. O reino português visa sua legitimação como reino cristão, dentro de uma hispanidade que se associa com um passado que justifique 2 Certa narrativa histórica produzida no âmbito da Academia Portuguesa de História criada em 1936 tinha como função a releitura da história portuguesa com funções ufanistas de promover uma imagem nacionalista, atrelado ao regime ditatorial salazarista: “o ensino de História foi um dos instrumentos na caracterização das mitologias nacionais, incorporando diversos lugares comuns da história oficial. A glorificação das grandes figuras históricas – Afonso Henriques, Nuno Álvares, Camões, Antônio Vieira, Infante D. Henrique,, D. João IV, Alexandre Herculano etc – foi central no seio dessas narrativas. Estas figuras históricas foram usadas como modelos míticos, exemplos para o presente.” Cf. MATOS, Sérgio Campos. História, Mitologia, Imaginário Nacional: A História no Curso dos Liceus (1895-1939) ,Lisboa: Livros Horizonte, 1990, p. 166. Tratou-se da busca por uma lógica identitária no que seria a origem da fundação de Portugal a partir da imagem de Afonso Henriques, por exemplo. 3 BRANCO, Maria João. Elites eclesiásticas e construção de uma identidade: do rei ao reino (secs.XII e XIII). In: Nação e Identidades: Portugal, os portugueses e os outros. (orgs). FERNANDES, Hermegenildo; HENRIQUES, Isabel Castro; HORTA, José da Silva. MATOS, Sérgio Campos. Caleidoscópio, 2009, pp.135-155; 4 Ibidem, p.139; 5 Ibidem, p.143; 6 Ibidem, p.143. 117 também a guerra justa, visto que se pretende retomar algo que era preteritamente cristão. Afonso Henriques quer construir sua imagem como um rei cristão, assim como os reinos peninsulares vizinhos. Desta forma, estabelece uma aliança com seu corpo eclesiástico no intento da construção desta imagética. Com a ascensão de Afonso VII, primo de Afonso Henriques, como imperador da Hispânia, o condado portucalense busca a afirmação como região autônoma usando uma série de mecanismos que podemos colocar como a construção de um rei e sua imagem. Esta ascensão se deu na aliança entre senhores e clero, numa complexa rede de políticas entre monarquias, bispos, arcebispos, cônegos, monges e papas. Vejamos, por exemplo, o caso de Santa Cruz de Coimbra, mosteiro agostiniano fundado no ano de 1131. O fortalecimento desta instituição, com o apoio de Afonso Henriques e da ligação crúzia com o papado proporcionou ao jogo de interesses de todas estas instâncias uma cristalização de distintos objetivos em razão da perpetuação destes poderes. O mosteiro de Santa Cruz tem um papel significante na elaboração desta imagem do rei e do reino. Após assumir o controle do condado portucalense, Afonso Henriques se lança em campanhas de expansão. Estas campanhas contam com a elaboração de uma significativa cronística que constrói a imagem de um rei justo e cristão que expande a Cristandade. A importância da literatura crúzia7 demarca o crescimento da instituição e o mosteiro fica, inclusive, responsável pela chancelaria régia. Existe uma união de interesses por parte das três vias no estabelecimento do mosteiro como um importante centro de difusão cristã, visto que o mesmo tinha por objetivo seguir um referencial de vida apostólica e pastoral.8 Os cônegos não praticavam a fuga mundi. Deixando-se envolver no ambiente citadino, o programa crúzio era de ir ao encontro daqueles que habitavam a cidade, agindo de forma missionária, numa inspiração nos primeiros cristãos de Jerusalém. 9 A historiografia situa a fundação do mosteiro no ano de 1131. A ideia em si se baseia na narrativa encontrada na Vita Tellonis, de Pedro Alfardo. Nestes escritos consta: 7 Dentre algumas obras produzidas no âmbito crúzio podemos citar Annales Portugalenses Veteres, Vita Martini Sauriensis, Vita Tellonis, Vita Theotonii, De Expugnatione Scalabis e Analles Domni Alfonsi Portugallensium Regis. 8 A criação do mosteiro em ambiente urbano provocou contendas com a Sé de Coimbra pela obra pastoral que se desenvolvia no ambiente urbano. 9 Cf. MARTINS, Armando Alberto. O Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2003, pp.564-565; 118 “Foi assim, no ano de 1131 da incarnação do Senhor [...]. o Arcediago Telo, agregando a si uma falange de homens de primeiro plano em número igual ao dos doze apóstolos, começou a lançar os fundamentos do mosteiro de Santa Cruz nos arrebaldes de Coimbra”. 10 Neste mesmo ano Afonso Henriques transferie a sede administrativa da cidade de Guimarães para Coimbra. As associações a Afonso Henriques e ao papado permitiram ao mosteiro um fortalecimento considerável. Além disso, Santa Cruz de Coimbra recebe uma quantidade volumosa de doações das famílias abastadas da região e do próprio Afonso. Como estratégia de fundamentação da monarquia, a chancelaria do mosteiro produz, a partir da segunda metade do século XII, diversos textos apologéticos que apontam o rei como um instrumento divino e, portanto, autêntico. Os cônegos regrantes legitimam, discursivamente, o reino e mostram o apoio de Deus nas batalhas travadas por Afonso. No combate aos “inimigos” da Cristandade, o avanço feudal afonsino era visto como um avanço cristão. Notamos na Chronica Gottorum, escrita no âmbito crúzio em fins do século XII, a ajuda dos céus: [...] anotaremos a maneira como conquistou o reino, os castelos e as fortalezas que aí construiu e também as cidades e os castelos que aos Sarracenos tomou, porque ninguém podia descrever as batalhas que travou, pois foram muitas e inumeráveis não só com pagãos, mas também com Cristãos que, demasiado cobiçosos, lhe queriam arrebatar e invadir o reino, a todos sendo superior e sempre ficando vencedor, de todos triunfando sempre, ajudado da bondade divina.11 O trecho da crônica demonstra as batalhas de Afonso perante os “sarracenos” e também diante dos outros reis peninsulares. Ao apontar estes “cristãos demasiado cobiçosos” a Chronica Gottorum faz referência ao que parece ser o reino castelhano- leonês que em diversas oportunidades trava combate com os exércitos portucalenses.12 A 10 “Ab incamatione igitur Domini anno millesimo centesimo tricesimo primo [...], archidiaconus Tello, sibi adiuncta procerum iuxta apostolorum numerum duodenarium manu, monasterii Sancte Crucis in suburbio Colimbrie iacere adorsus est fundamentum.” VITA Tellonis. In: NASCIMENTO, Aires A. do. Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra: Vida de D. Telo, Vida de D. Teotónio, Vida de Martinho de Soure. Lisboa: Edições Colibri, 1998 - pp.54-56. 11 “Qualiter autem Regnu sit adeptus, castella, & munitiones quas ibi fecit, sed & ciuitates & castella quae à Sarracenis accepit breuiter annotabimus, nam praelia quae gessit nemo poterat annotare, fuerunt namque multa & innumerabilia non solum cum Paganis, sed etiam cum Christianis, qui nimium inuidentes ei uolebant diripere & inuadere Regnum eius, in omnibus quidem superans, & semper victor existens, & de omnibus triumphans diuina clemencia semper adiutus.”. CHRONICA Gottorvm. In: BRANDÃO, António. Monarquia Lusitana: parte III. Lisboa: Imprensa Nacional – casa da moeda, 1973. Parte III, f.272v-273r. 12 OLIVEIRA, Jonathas Ribeiro. A cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no século XII: reflexões sobre o priorado de D. Teotônio. In: Fato e versões- Revista de História, 2018; 119 função régia de combate aos muçulmanos estápresente na escrita desta literatura, assim como o rei que age em consonância com os desígnios de Deus, sempre auxiliado por ajuda divina. As reformas da Igreja nos séculos XI e XII dão a ela e ao papa as possibilidades que proporcionam a cruzada. Tal movimento ocorria simultaneamente a outro processo: o das conquistas dos reinos cristãos ibéricos frente aos territórios islâmicos. Embora dois processos distintos, notamos a tentativa de aproximação, por parte dos reinos hispânicos, com a cruzada e uma maior atenção do papado com essas monarquias em constante conflito contra os muçulmanos. A alargamento das fronteiras do condado portucalense, inicialmente com D. Henrique, e depois com seu filho, Afonso, se deu em lutas endêmicas contra os muçulmanos e as outras monarquias cristãs. A estabilidade do poder no condado dependia de um delicado equilíbrio nas relações locais e exteriores. Afonso Henriques, após a vitória sobre a sua mãe, Dona Teresa, na batalha de São Mamede é, posteriormente, reconhecido como rei por seu primo D. Afonso VII. Em 1143, ambos se reúnem num colóquio em Zamora e “o resultado deste colóquio foi o reconhecimento do título de rei pelo imperador Afonso VII a D. Afonso Henriques”.13 Esse reconhecimento ocorreu após duas batalhas que alçou a figura de Afonso como uma autoridade proeminente na região: a batalha contra a sua mãe em 1128, como dito acima, e a batalha contra os muçulmanos em Ourique no ano de 1139. A batalha de Ourique, principalmente, foi narrada cercada de elementos sagrados. Inclusive, teria ocorrido no dia de São Tiago de Compostela: 25 de julho. A construção da imagem afonsina segue fazendo deste rei uma figura mítica, pois existem algumas versões sobre o monarca. A que chegou até nós serve, ainda hoje, como base para muitos historiadores. A historiografia difundiu “apenas uma dessas correntes narrativas sob formas mais ou menos exaltadas, mas sempre altamente elogiosas, iluminando ora a faceta da santidade e de instrumento da providência divina [...], ora a faceta do guerreiro ousado e indomável ou de prudente, ora a sua capacidade de hábil político ou de genial herói”. 14 No entanto, José Mattoso escreve sobre as três faces de Afonso e aborda as outras duas que teriam sido colocadas no esquecimento. Estas outras 13A presença do cardeal Guido de Vico, legado do Papa Inocêncio III, deu importância ao acontecimento. No entanto, Afonso Henriques ainda não detinha o título de Rex pelo pontificado. Cf. GALLI, Sidinei. ibidem, p.34 14 MATTOSO, José. A nova face de Afonso Henriques. In: Naquele Tempo. Ensaios De História Medieval, Lisboa, 2000, p.460; 120 duas facetas são as dos companheiros de guerra de Coimbra e dos ricos-homens do Norte, oriundos da aristocracia da Galiza. A imagem do chefe de bando guerreiro era retratada em Gesta de Afonso Henriques. Esta face do rei é uma prosificação de um texto poético de caráter jogralesco que constituía numa apologia de Afonso Henriques. Nesta tradição, o monarca se apresenta como um senhor repleto de obrigações com seus vassalos. Nesta Gesta, era valorizada a imagem do chefe militar, que se exaltava e que era humano. Imagem esta que se difundiu além das fronteiras de seu reino. Na segunda metade do século XII, a crônica de Rogério de Hoveden demonstra como Afonso Henriques reage à intromissão de um legado papal em seu território: Neste mesmo ano o cardeal Jacinto então legado papal para toda a Hispânia, depôs muitos abades, quer por causa dos seus méritos quer pelo seu comportamento temerário. Querendo também destituir o Bispo de Coimbra, Afonso, Rei de Portugal, não permitiu que ele o destituísse. Pelo contrário, mandou que o dito cardeal abandonasse a sua terra imediatamente, porque de contrário cortar-lhe-a um pé. Ouvindo isto, esse legado regressou imediatamente a Roma, e o Bispo de Coimbra ficou com a sua diocese em paz.15 O trecho citado realça uma das imagens em divulgação na época. A imagem de um guerreiro que detinha intensa capacidade militar e, de acordo com José Mattoso, possuía “uma rude independência com os poderes clericais do que sobre-humanas virtudes morais que não lhe conheciam e uma submissão ao clero que não podiam aceitar”.16 A outra imagem é a tentativa de detração que se fazia construindo um rei fraco, passivo e submisso. Essa tradição vem dos livros de linhagens e, segundo José Mattoso, se explica pela baixa estima que os senhores do Norte tinham em relação a Afonso. Além disso, relatavam os casos incestuosos de sua mãe, Teresa, para demonstrar a índole de seus antepassados. Se os relatos são verdadeiros ou não, é o de menos. O que identificamos é a inimizade que os homens do Norte tinham com o futuro rei. Portanto, pelo menos três imagens de Afonso circulavam. “Afinal, cada uma deles à sua maneira traçava do primeiro rei de Portugal a imagem que convinha ao seu grupo e que, marcando uma posição face ao monarca, exprimia uma forma de identificação do próprio grupo [...]”.17 15 Chronica Magistri Rogeri de Hovedene (ed. William Strubbs), Rerum Britanincarum medii aevi scriptores, II, Londres, 1871, pp. 333-334. 16 MATTOSO, José. Op. Cit., 2000, p. 465; 17 Ibidem, p. 469; 121 Ao longo dos séculos se constrói uma origem baseada na sacralidade régia e virtuosidade de Afonso Henriques: “A nação precisava do mito que aquela tradição transmitia para se rever como protegida por Deus através da proteção que Ele concedera ao seu primeiro rei”. 18 Esta imagem transmitida pelos cônegos de Santa Cruz de Coimbra levou um tempo para ser tratada como a única, deixando as outras esquecidas. Parece ser no momento em que as funções de cronista-mor são entregues aos monges de Alcobaça, no início do século XVII, que a imagem “clerical de Afonso Henriques se impusesse como o único e verdadeiro e apagasse o que os outros grupos sociais dele tinham traçado quatro séculos antes”.19 Sendo assim, a expansão da Cristandade levada a cabo pelo monarca foi intensamente propagada por estes escritos feitos em âmbito crúzio. A intermediação do arcebispo de Braga, João Peculiar, em suas idas a Roma, também foi um aspecto importante: “Aquele que seria o personagem mais carismático da luta pelo reconhecimento de Afonso Henriques como rei, a nível diplomático, ascendeu ao arcebispado de Braga, em 1137, e parece ter começado, desde logo cedo, a procurar assessorar o futuro monarca nas suas tarefas [...]”20 A claves regni 21 buscava a transformação de Afonso em miles petri. De acordo com Maria João Branco “a oferta de enfeudamento e a intenção de integrar o rol dos reinos censitários da Santa Sé são argumentos a favor do caráter do rei e da finalidade do exercício da sua autoridade”.22 Ou seja, o texto da claves “é obra de pessoas que não só sabiam o que estavam fazendo, como estavam a fazer de forma deliberada e programada”.23 Para os escritos crúzios produzidos na segunda metade do século XII a figura do rei é a do “vitorioso rei cristão, ornado de piedade e sedento de justiça e sangue”.24 Os textos de Santa Cruz de Coimbra “projetam, em uníssono, uma imagem quase idêntica de um rei que em tudo se assemelha ao protótipo ideal”. 25 Um monarca que tem honra e busca, constantemente, reproduzi-la. Um rei que combate o outro. Um rei que 18 Ibidem, p .469; 19 Ibidem, pp.469-470; 20 BRANCO, Maria João. Op.Cit., 2009, p.146. 21 Carta datada de 13 de Dezembro de 1143 que busca a legitimação de Afonso Henriques como rei solicitando a Santa Sé a vassalidade do infante perante o papado; 22 BRANCO, Maria João. Op.Cit., 2009, p.147; 23 Ibidem, p.147; 24 Ibidem, p.147; 25 Ibidem, p.147; 122 expande a Cristandade e protege os cristãos guerreando contra o Islã e praticando o que a Igreja chama de atos piedosos. O processo de edificação da realeza se assenta na “ideia de um poder legitimadopela graça de Deus e [...] o entendimento de que o poder régio é uma incumbência divina faz parte da idealização da monarquia. A Igreja mediatizava o poder concedido aos monarcas por Deus”.26 A literatura feita em ambiente crúzio apresenta a monarquia portucalense da maneira que foi citada acima. Porém, o reconhecimento de Afonso Henriques como rei só se deu com a bula Manifestum Probatum, em 1179, e a produção literária de Santa Cruz de Coimbra a partir da segunda metade do século XII fica imbuída da propagação de uma imagem que se adeque aos interesses em questão. A importância das ordens religiosas na formação de Portugal já foi bem trabalhada por José Mattoso em Cluny, crúzios e cistercienses na formação de Portugal.27 A colaboração destas instituições se dá no processo de legitimação e elaboração de uma imagem monárquica. Além da colonização realizada ao sul peninsular conforme se avançava territorialmente as conquistas diante dos muçulmanos. A chegada de Cluny em terras hispânicas, sendo ressignificada em contexto local, acabou perdendo força, posteriormente, e a presença de Cister se tornou efetiva. No entanto, o recuo de Cluny não é condição sine qua non para a presença de Citeaux. Elas se dão em paralelo e de formas distintas. Os cistercienses tiveram um papel importante nas regiões de marca, conforme avançava a fronteira do reino português, além da promoção do caráter santo dos conflitos travados frente ao Islã. “A subida de Afonso Henriques ao trono deu ensejo a que os monges cistercienses interviessem nos assuntos portucalenses e se expandissem por terras lusitanas”. 28 Afonso Henriques é o rei peninsular que combate o “outro” muçulmano e assume este papel que está presente na retórica da Guerra Santa Hispânica como vimos anteriormente. A autoridade do monarca se exerce fazendo guerra e proporcionando ganhos aos seus companheiros de batalha. A sustentação desses instrumentos reforçam sua figura e as lutas contra os muçulmanos não eram mais proporcionada pelos cavaleiros borgonheses, mas pela organização militar-religiosa dos monges de Cister. Um dos 26 FREITAS, Judite Gonçalves Freitas. O Estado em Portugal (séculos XII-XVI). Modernidades Medievais. Alêtheia Editores, Lisboa, 2011, p.16. 27 MATTOSO, José. Cluny, crúzios e cistercienses na formação de Portugal. In: in Actas do Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, Vol. V, Guimarães, 1982, pp. 288-294 28 GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, p.45; 123 personagens proeminentes de Cister era Bernardo de Claraval, que também foi propagandista da ordem dos Templários. Bernardo e João Peculiar, arcebispo de Braga, farão intensas movimentações políticas com o objetivo de trazer a cruzada em auxílio de Afonso Henriques e promovê-lo perante o papado. De acordo com Sidinei Galli, no condado portucalense “as condições favoreceram o florescimento de Citeaux. Proteger os reinos cristãos contra o perigo mouro, defender as propriedades conquistadas nas guerras contínuas e ampliar o limes portugalense implicava necessidades militares”. 29 Constantes doações eram feitas a Cister para arroteamento, povoamento e proteção das áreas limites. As ligações feitas pelos mosteiros fundados aos cistercienses podem ser vistas em concessões de forais, como a que promoveu a construção do mosteiro de Alcobaça, fundado em 1153. Esta fundação foi feita em “carta de doação e couto de 8 de abril, concedida a São Bernardo, abade do Mosteiro de Claraval, a qual estabelecia que no território coutado fosse fundado um mosteiro cisterciense no lugar de Alcobaça, que promovesse o povoamento e o arroteamento das terras conquistadas aos muçulmanos.”30 Bernardo de Claraval “em nome da ordem de Cister, recebe de D. Afonso Henriques o foral de doação que dá origem ao mosteiro de Alcobaça, após o combate aos mouros em Santarém”. Conforme análise do códice Alcobacense feitas por Leite de Vasconcelos, o rei “em 1153, concedeu ao abade Bernardo de Clairvaux e aos seus monges cistercienses uma hereditas que possuía o locus de Alcobaça e no qual o mosteiro se edificou em honra da Virgem”. Os privilégios concedidos por Afonso aos cistercienses podem ser percebidos, por exemplo, através “da isenção do pagamento de portagem em todo o reino”, através de uma carta de couto - Vobis abati alcobatiae et monasterio vestro - . 31 A presença cada vez mais intensa de Cister a partir da década de quarenta do século XII 32 e o 29 Ibidem, p.47; 30 "Documentos Medievais Portugueses". Lisboa : Academia Portuguesa de História, 1958- . 2 vol.; 38 cm. v. 1, t. 1: "Documentos Régios: documentos dos Condes Portucalenses e de D. Afonso Henriques A.D. 1095-1185. 1962; 31 Cf. Documentos Medievais Portugueses". Lisboa : Academia Portuguesa de História, 1958-, Op.Cit. 1962; GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, pp.62-63; "Ordens religiosas em Portugal: das origens a Trento: guia histórico". Dir. Bernardo de Vasconcelos e Sousa. Lisboa: Livros Horizonte, 2005. ISBN 972-24-1433-X. p. 102-105; 32 Em Portugal existiram muitos agrupamentos erimíticos que acabaram se associando a Citeaux e estas relações acabaram confundindo quando da chegada de Cister e sua expansão. No entanto, de acordo com a perspectiva de Sinei Galli, se apoiando em Maur Cocheril (Les Abbayes Cistercienes Portugaises du XII Siècle), o ano de 1144 parece ser o mais provável. A base do argumento é “a clausula de doação de Afonso Henriques ao mosteiro de Tarouca, em 1144, gravada no eremitério de Santa Eulália – secundum ordinem 124 fortalecimento de Santa Cruz de Coimbra, coetaneamente, dá as bases do reino em sua promoção, em seu papel de combate e como pontes de ligação com o papado. A doutrina cisterciense da guerra santa encontra na associação com o reino português um campo frutífero aos interesses de ambos. De acordo com José Mattoso “os monges brancos estão constantemente presentes na orientação da cavalaria ao serviço da cristandade”. 33 Dentre os cistercienses, Bernardo de Claraval foi um dos grandes propagandistas da cruzada convocada em 1146 e do combate como uma causa pia. Teorizador da violência, o abade acabou concebendo uma nova maneira de atuação da cavalaria na escrita do De Laude Novae Militae, elaborando a imagem ideal da cavalaria cristã e transformando os assassinatos dos inimigos da cruz 34 em causas divinas. Segundo Bernardo, “o cristão se glorifica na morte35 de um pagão”36 pois “em vista disso, o justo se alegrará vendo a vingança ser executada nele”. As palavras desta figura controversa trazem ao combate travado contra o muçulmano uma causa justa de vingança. Para Bernardo de Claraval se o cristão mata “ele o faz a Jesus Cristo, porque [...] não leva em vão a espada ao lado, porque ele é ministro de Deus para vingar-se do mal e defender a virtude do bom”. 37 A caracterização do homicídio como malicídio é outra das estratégias discursivas deste propagandista da guerra santa. A ideia de movimentar os leigos dentro de suas funções para o combate por Cristo é um das estratégias presentes no discurso do cisterciense de Claraval. O discurso de Bernardo tem um lugar, como todo discurso de autoridade. Bernardo é um abade compromissado na pregação da cruzada. Discursa de cisterciensem deo servientibus. Esta é a primeira vez que Citeaux é mencionada em Portugal. Alguns outros autores apontam datas distintas. Fortunato de Almeida (História da Igreja em Portugal) aponta 1120, Antônio Saraiva (História da Cultura em Portugal) sustenta que a fundação de Tarouca ocorreu em 1139. Embora haja divergências, as primeiras décadas do século XII vê a chegada cisterciense na região. 33 MATTOSO, José. Op.Cit., 1982, p.296; 34 Inimicos Crucis. In: S. Bernardus Claraevallensis. Liber Ad Milites Templi de Laude Novae Militae (A.D. MCXXIX). Disponível em: https://www.thelatinlibrary.com/bernardclairvaux.shtml. Acessadoem 11/04/2021; 35 Aqui fica um questionamento sobre o termo “morte”. A morte tratada por Bernardo parece ser aquela causada em combate. No entanto, uma possibilidade também pode se referir à conversão de um pagão, pois a conversão pagã acarretaria no fim do paganismo e sua, sequente, morte. No entanto, ainda no elogio feito aos templários o abade de Claraval coloca da seguinte maneira: “é verdade que não se deve exterminar os pagãos se houver qualquer outro meio de impedir os maus tratos e opressão violenta exercida contra os cristãos.” A frase segue ambígua, mas partimos do pressuposto que a morte referida por Bernardo é aquela exercida pela violência que ele tanto prega como piedade. Pois segundo o mesmo Bernardo “é muito mais justo combate-los agora que não sofrer sempre a dominação dos pecadores sobre a cabeça dos justos para que os justos não cometam a iniquidade com eles”. A retórica é de guerra e de desproblematizar o uso da violência por parte dos cristãos. 36 Bernardo de Claraval. Elogio de la nueva milicia templaria. Madrid: Siruela, 2005 37 Ibidem; https://www.thelatinlibrary.com/bernardclairvaux.shtml 125 sua posição privilegiada de mentor de diversas figuras proeminentes (inclusive o papa), para imbuir os espíritos cristãos da doutrina de um monasticismo renovado e fala para uma Cristandade heterogênea visando incluir os guerreiros, em sua condição de leigos portadores de armas, na proteção e expansão do Cristianismo frente aos seus inimigos construídos. Porém, Bernardo de Claraval atende ao mesmo tempo às demandas da espiritualidade leiga. O entendimento deste aspecto é salutar, inclusive, para a interpretação de outros movimentos, como as reforma, pois conforme afirma Leandro Rust: “religião e sociedade penetravam-se mutuamente de maneira capilar”. 38 Leandro Duarte Rust em seu livro Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média Central,39 analisa as reformas do século XI e afirma que “longe de ter constituído uma matéria essencialmente clerical, as reformas medievais foram realidades de traçados anônimos, móveis e multifacetados; arranjos de práticas disseminadas por toda a sociedade senhorial [...]”.40 Partindo do raciocínio de Rust, podemos colocar que o discurso de Bernardo de Claraval também pode ser visto desta forma. Antes de enxergar sua teorização da violência como uma pedra fixa do eclesiástico, é preciso vislumbrar todo esse movimento como uma lógica que alimenta e, ao mesmo tempo, é alimentada pelo social. As ideias de Bernardo não penetram de cima para baixo no interior das pessoas. Estas pessoas significam e reproduzem esse ideal Bernaditino, muitas vezes, fora dos próprios planos do abade.41 Porém, o ideal assumido pela posição que o cisterciense ocupa permite ao discurso deste, inserido numa lógica de autoridade, a construção da sua verdade. Verdade que se impõe na negação ao acesso de outros ao discurso. Esta interação, promovida pelo discurso, cria e proporciona a capacidade de reconhecimento entre aqueles que se identificam como “iguais” e, ao mesmo tempo, promove o reconhecimento das diferenças. Analisar os elementos de dispersão e de regularidade é trabalhar, conforme Foucault aborda, de maneira arqueológica. No entanto, análise dos discursos não deve se 38 VIOLANTE, Cinzio. Chiesa Feudale e Riforme in Occidente: introduzione a un tema storiografico. Spoleto. 1999, p.45; 39 RUST, Leandro Duarte. Colunas de São Pedro: a Política Papal na Idade Média Central. São Paulo: Annablume, 2011. 40 Ibidem, p.150; 41 Um exemplo é a crítica que Bernardo de Claraval faz aos pogroms realizados contra os judeus; 126 fechar no próprio discurso, mas ao contrário, compreender o acontecimento não discursivo. Desta maneira, busca-se estabelecer uma relação com acontecimentos de outras ordens sejam elas sociais, políticas, econômicas e técnicas. A compreensão do que está ao redor do discurso e o entendimento deste “em torno” nos permite a visualização da forma como o poder tem a capacidade de exclusão, inclusão, propagação, significação e promoção de sua doutrina de controle social. Controle efetuado pela capacidade de dominação do discurso, que diferentemente do fato, promove uma imagem distinta deste. A imagem promovida se reproduz e é aceita como verdade. Afinal de contas, a violência cultural está presente, também, no consenso que, ignorando as tensões sociais promovidas por desigualdades de acesso às instâncias abaastadas, se corporificam as vontades das camadas privilegiadas da sociedade. Inclusive, em muitas ideias transmitidas pelas formações discursivas. Dentre elas, a própria concepção de violência. Fundador da abadia de Claraval, Bernardo exerce papel fundamental em Cister e na Cristandade neste momento. “De um simples monge, transformou-se num conselheiro e censor de prelados e príncipes; árbitros dos concílios, guardião da doutrina, artífice dos papas e oráculo de toda a Igreja. Será o mesmo Bernardo que, junto ao papa, advoga a independência de Portugal”.42 O papel do abade cisterciense nas ligações pelo reconhecimento de Afonso Henriques é notável. As vinculações entre Cister, o rei e o mosteiro de Santa Cruz tecem uma teia importante para compreendermos, por exemplo, como foi necessário a criação de uma memória de todos estes elementos em movimento. Esta memória esteve a cargo dos eclesiásticos aliados ao futuro rei portucalense. Memória que está no bojo da literatura crúzia,43 que vamos nos ater para perceber a produção da crônica da conquista de Lisboa. “O ar de grandeza é um dos atributos da figura de D.Afonso Henriques que mais é 42 GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, pp.52-53; 43 Foi um instrumento legitimador importante. Porém, há outros locais de produção memorialística acerca da monarquia. Aires de Nascimento ao analisar a gesta da conquista de Santarém aponta que a Sé de Coimbra também tinha interesse em celebrar as ações do rei, visto os embates que esta Sé tinha em relação aos cônegos Regrantes de Santa Cruz de Coimbra. Para maiores detalhes ver: NASCIMENTO, Aires. O Júbilo da Vitória: Celebração da Tomada de Santarém aos Mouros (A.D.1147). In: Actes del X Congrés Internacional de l'Associació Hispánica de Literatura Medieval / edició a cura de Rafael Alemany, Josep Lluis Martos i Josep Miquel Manzanaro. - Alacant : Institut Interuniversitari de Filologia Valenciana, 2005. 127 retomado pela historiografia portuguesa , o que, de certa forma, remonta a cronística medieval sobre esse rei”.44 Conforme Kátia Michelan, podemos falar de uma espécie de trilogia apologética do rei que se atrela a Santa Cruz de Coimbra. Estas produções são o Annalis Domini Alfonsi Portugallensium Regis, a Vita Sancti Theotonii e De Expugnatione Scallabis. No entanto, outras produções podem ser deste ambiente e ainda precisam de investigação. O que se sabe é que esta tríade foi produzida na segunda metade do século XII e mostram Afonso de maneira similar: um rei cristão honrado e constantemente auxiliado por Deus para seus feitos. 3.2 Vassalo da Sé Romana: o rei, o papa e as alianças Em 1143 o legado apostólico Guido de Vico esteve na Hispânia e participou do tratado de Zamora. 45 Neste mesmo tempo recebeu de Afonso Henriques uma carta direcionada ao papa Inocêncio. Conhecendo que as chaves do reino dos céus foram concedidas por Nosso Senhor Jesus Cristo ao Bem-Aventurado Pedro [...] Eu, Afonso, rei portugalense pela graça de Deus, por mão do senhor Guido [...] Legado da Sé Apostólica, fiz homenagem ao senhor e meu pai o papa [Inocêncio]. Submeto minha terra ao Bem-Aventurado Pedro e a Santa Igreja Romana, sob um censo de quatro onças de ouro.46 O trecho citado é parte de uma das traduções da Claves Regni na qual Afonso Henriques, em 1143, oferece seu reino e sua pessoa a Sé de Roma. No encerramento da carta o monarcacita que “como cavaleiro que sou do Bem-Aventurado Pedro e do Pontífice Romano, [...] tanto em mim próprio quanto na minha terra, ou nas coisas que concernem à dignidade e à honra da minha terra, tenha a defesa e a consolação da Sé Apostólica [...]”.47 O documento tem como testemunhas João Peculiar, arcebispo de Braga e Pedro, bispo do Porto. Ambos são personagens de relevo na crônica da conquista 44 MICHELAN, Kátia Brasilino. Um rei em três versões: a construção da história de D. Afonso Henriques pelos cronistas medievais portugueses. 1ª Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p.86; 45 Tratado assinado nos dias 4 e 5 de outubro de 1143 onde se buscava conter as tensões entre Afonso Henriques e Afonso VII. O legado Guido foi testemunha do acordo representando o papa. No presente tratado Afonso VII reconhecia Afonso como rei, mas o conde portucalense ainda seria vassalo do soberano de Leão e Castela, pois ficou ligado à este através de Astorga. Além disso, Afonso VII era o imperador da Hispânia; 46 MONUMENTA HENRICINA, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, vol. I, Coimbra, Com. Executiva das Comem. do V Cent. da Morte do Inf. D. Henrique, 1960, pp. 1 e 2; 47 Ibidem; 128 de Lisboa. Qual o motivo da aliança com a Sé Apostólica neste momento? Antes de nos atermos ao tema, demarcamos que havia um interesse recíproco do papado na busca de aliados. Principalmente, ao estar situado num ambiente de intensos conflitos, onde o trono de Pedro se via constantemente cercado por interesses das aristocracias locais. Dito isto, ter como aliado o papa, naquele momento, era uma fonte de legitimação considerável visto o fortalecimento do poder pontifício e sua capacidade de lidimar forças de âmbito regional. O fortalecimento tem relação com as reformas iniciadas no século XI e que se chama genericamente de Reforma Gregoriana? De certa maneira sim. Porém, o fortalecimento 48 não parece uma imposição estritamente vertical de um clero, supostamente purificado, cansados dos desmandos leigos e da corrupção dos simoníacos, que se coloca como o bastião da salvação da Igreja. Leandro Duarte Rust em seu livro A Reforma Papal (1050-1150) resume a tradicional visão deste período: Durante os séculos XI e XII o papado tornou-se o centro difusor de uma nova atitude perante o mundo. A novidade estava no objetivo assumido: corrigir, de modo rigoroso e integral, os comportamentos que diariamente violavam os preceitos da religião cristã. Algo de grande envergadura histórica teria se passado em Roma, onde alguns homens do clero teriam decidido tomar as rédeas do poder e fundar um governo eclesiástico que regesse a sociedade, já que sua capacidade de influenciar os reis e instruir os nobres encontrava-se reduzida. Era preciso regê-los, corrigi-los, limitar-lhes o raio de ação, fazê-los obedecer diretamente à voz eclesiástica, sem intermediários ou barganhas.49 Talvez grande parte da historiografia50 ainda beba, de certa forma, desta visão, inteiramente ou em partes. As armadilhas da documentação legada pela parcela supostamente reformista e vencedora é responsável pelos tropeços de alguns historiadores que entram na lógica de quem legou esta memória. A imagem de Afonso Henriques trilhou caminho semelhante, visto que a mais perpetuada ainda segue sendo a do rei honrado, fundador da “nação portuguesa” e defensor da Igreja. Portanto, a visão clássica é que contra um clero corrupto, simoníaco e mergulhado nas coisas mundanas surge uma ala guardiã de um Cristianismo puro, que via a função clerical bem delineada, livre de 48 Chamado comumente de centralismo papal; 49 RUST, Leandro Duarte. A Reforma Papal (1050-1150): Trajetórias e Críticas de uma História. Mato Grosso. EdUFMT, 2013, p.19; 50Cf. FLICHE, Augustin. La Réforme Grégorienne: la formation des idées grégoriennes. Louvain: Spicilegium Sacrum Lovaniense, 1924; BARROS, José D’ Assunção. Papas, imperadores e hereges na Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012; ARNALDI, Girolamo. Igreja e Papado In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (eds.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC 567-589; 129 corrupção, intolerante quanto à simonia e ao nicolaísmo.51 Nesta concepção, Cluny foi a ponta de lança da moralização da cúpula apostólica. Esta visão tradicional exclui um ponto crucial: estas duas parcelas antagônicas se consideravam inseridas no que entendiam por ortodoxia. Ou seja, de acordo com cada segmento, a outra parte era considerada corrupta, simoníaca e desviante. A imputação de um crime deste porte era uma das formas de deslegitimação conforme a contenda. Logo, o discurso dos gregorianos acabou se difundindo e se mantendo com o tempo e criando um antes e depois, que a historiografia acabou reproduzindo com a criação de termos como Reforma Gregoriana. O discurso do “antes” que os gregorianos estabelecem tem relação com moralidade. Porém, existe um “antes” que observamos por um aspecto mais objetivo e ligado às buscas por estabelecimentos senhoriais na Península Itálica. Qual seria o aspecto objetivo do “antes e depois” referido acima? Primeiro, um desligamento do papado da órbita dos poderes das aristocracias da região do Lácio. A busca na desvinculação das famílias locais promove uma reconfiguração do alto escalão clerical que serviria de suporte e apoio ao papado “estrangeiro” que se estabeleceria. As questões envolviam acerca de quem girava em torno de quais alianças políticas. Alianças que tinham suas próprias convicções de estarem mantendo a pureza da Igreja e defendendo-a dos maus clérigos, além da manutenção de privilégios que compunha uma rede de relações envolvidas nos arranjos peninsulares. A liberdade da Igreja tão visada pelos gregorianos envolvia um fator que, muitas vezes, é obliterado das análises: o domínio territorial e a capacidade de exercer um direito latente numa sociedade mergulhada em relações feudais.52 Algumas leituras criam uma característica antifeudal 51 Tal clero vem de uma tradição fortemente marcada pelo monasticismo cluniacense; 52 A lógica senhorial que se dá no fenômeno do encelulamento ou incastellamento. Esses fenômenos foram trabalhados por vários historiadores, dos quais destacamos Robert Fossier, Jeróme Baschet, Georges Duby e Jacques Le Goff. As células principais deste fenômeno, segundo Le Goff, são o castelo, o senhorio, a paróquia e a aldeia.) Na concepção de Baschet, o sistema senhorial que se estabelece demonstra mesmo ser uma ordem social notavelmente eficaz. Articulado à estruturação da rede paroquial e a formação das comunidades aldeãs, ele se beneficia de um enquadramento tão estrito dos dominados que o chamamos “encelulamento”, e o controle assim exercido sobre os produtores pode ser medido pelo excepcional crescimento dos séculos XI e XII. Este controle se trata do dominium, exercido pelo dominus. Com a fragmentação, o dominus deixa de ser uma nomenclatura destinada apenas ao rei, bispo ou Deus e passa a ser usada pelo senhor local, que agora detém tal potestas. O dominium é a relação de dominação exercida sobre o homem e as terras. Tal dominação é legitimada pela Igreja. Apesar da fragmentação de poderes locais, a unidade existe a partir do universalismo cristão. Portanto, não podemos desvincular essas relações do Cristianismo. Para Baschet, a rede paroquial é um fundamento indispensável para a afirmação do poder sacerdotal e uma das engrenagens principais do encelulamento. Para Le goff, o senhorio designa o território dominado pelo castelo e engloba as terras e os camponeses. Ou seja, o senhorio compreende, portanto, as terras, os homens, as rendas, ao mesmo tempo que a exploração das terras e a produção dos camponeses, e também um conjunto de direitos que o senhor exerce em virtude de seu direito sobre o corpo da nobreza 130 da chamadaReforma. Pelo contrário, é necessário a compreensão dos variados elementos que compunham a Cristandade do período, além do exercício de poderes e a busca em mantê-los dentro dos quadros circunstanciais. Sendo assim, os confrontos pela moralização do clero, pelo domínio do trono pontifício e pela primazia no seio da Cristandade movimentou os séculos XI, XII e XIII. A guinada “estrangeira” se dá quando Henrique III intervém nas lutas internas das aristocracias romanas e impõe Suidger de Bamber, que se torna Clemente II (1046-1047). Com isso, inicia-se uma era de papas vindos de fora do Lácio. A interferência do imperador não significou, naquele momento, uma transferência do papado para a órbita do império. Para José Orlandis, os papas instituídos por Henrique “prepararam o caminho para a Reforma Gregoriana”.53 De acordo com Orlandis, é com Leão IX (1049-1054) que ocorre um “programa de saneamento do clero, depondo os prelados simoníacos e impondo a lei do celibato”.54 Não questionamos a importância destes personagens, e sim a maneira como se construiu a ideia de um programa revolucionário por parte dos gregorianos. Esse clero “saneador” do qual trata Orlandis também pode ser visto por outro prisma: uma alteração nas relações de poderes locais. Ou seja, a incorporação de figuras de fora da região modifica uma lógica local. O centro busca descentralização. A partir de Leão IX houve “uma necessidade de projetar suas ações para fora do Lácio”.55 Para isso, “proeminentes postos de poder eclesiástico eram reservados para homens vindos de fora”. 56 Papas antisimoníacos já podem ser percebidos anteriormente 57 e não é exclusividade desta política de meados do XI. A diferença do período é o predomínio de uma cúpula papal vinda do exterior após décadas de um domínio exercido por forças feudal. Tais relações de dominium (termo utilizado por Alain Guerreau) e a violência das pilhagens internas são responsáveis por movimentos como os da “paz de Deus”. Cf. BASCHET, Jérome. A Civilização Feudal: do ano mil à colonização da América. Tradução de Marcelo Rede. Rio de Janeiro: Globo. 2006; DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1982; FOSSIER, Robert. In: Schmitt Jean-Claude. Robert Fossier, Enfance de l'Europe (Xe-XIIe siècle. Aspects économiques et sociaux, I. : L'homme et son espace ; II : Structures et problèmes. In: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 38ᵉ année, N. 1, 1983; LE GOFF, Jacques. As Raízes Medievais da Europa. Petrópolis/RJ: Vozes, 2007. 53 ORLANDIS, José. El Pontificado Romano em la Historia. Madrid: Palabra, 1999; p.116; 54 Ibidem, p.116; 55 RUST, Leandro. Op.Cit., 2011, p. 168; 56 Ibidem, p.167; 57 Cf. BARTHÉLEMY, Dominique. Op.Cit., 2010, p.290; “A preocupação de reformar os mosteiros e a Igreja secular, desde o bispo com seus cônegos até o padre da paróquia rural, era já bastante viva nos tempos carolíngios”. O historiador francês tece uma crítica aos “velhos manuais” sobre a ideia de uma Igreja preocupada com a simonia, concubinato e corrupções do clero, principalmente, com as reformas do século XI; 131 locais. O discurso de saneamento com estes “reformadores” é parte da propaganda gregoriana a posteriori. Os simoníacos, inclusive, estavam dos dois lados, e os que bradavam contra a simonia também. A moralização e a exigência de uma atitude “condizente” com as posições dos prelados vinham de todos os partidos em disputa. A questão gira em torno de qual poder submete o outro. O poder espiritual sobre o temporal ou o temporal sobre o espiritual? 58A divergência colocou alas eclesiásticas em confronto e o ápice deste embate foi a dupla excomunhão: Gregório VII excomunga Henrique IV e o imperador repete o gesto, destinando ao papa. Embora Gregório VII tenha sido deposto posteriormente e terminado seus dias no exílio, geralmente, há a ideia que suas doutrinas venceram. 59 As reformas da Igreja avançaram e o papado buscou alianças fora da Península Itálica para a sua proteção, utilizando forças atuantes na defesa do herdeiro de Pedro. Neste sentido, os legados papais tiveram uma importância considerável na política pontifícia. Eram estes personagens que se moviam pela Cristandade Latina com o intuito de promover alianças e transmitir a voz papal nas contendas regionais. Além do reforço na manutenção do contato pontifício com os reis, príncipes e distintos poderes no Oeste cristão. Conforme Orlandis afirma “os legados percorreram o Ocidente reunindo sínodos e concílios onde se impuseram os princípios reformistas”.60 A questão do “princípio reformista” nessas viagens, como característica principal, precisa ser conectada com uma outra necessidade objetiva: “a consolidação de uma correlação de forças pautadas na identificação do bispo romano com círculos senhoriais exteriores”. Um dos exemplos é a luta pela imposição do rito romano na Península Ibérica e que encontrou resistência das populações locais, ambientadas no rito moçárabe.61 Os reis hispânicos reconheciam a primazia papal, inclusive, como forma de legitimação própria. Eles reconheciam o poder ao qual recorriam para seu fortalecimento particular. Os acordos são multilaterais e o reconhecimento alimenta o fortalecimento do outro, e vice-versa. Para Leandro Rust 58 O que não impede que, em muitos momentos, o papa reconheça que em certos lugares a dominação secular se sobrepunha ao sagrado e busque arranjos condizentes com o contexto político; 59 Cf. BARTHÉLEMY, Dominique. A cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII; Tradução: Néri de Barros Almeida e Carolina Gual da Silva. Campinas: Editora da Unicamp, 2010; FLORI, Jean. Guerra Santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão / Jean Flori; tradução: Ivone Benedetti; Campinas: Editora da Unicamp, 2013; ORLANDIS, José. El Pontificado Romano em la Historia. Madrid: Palabra, 1999; 60 ORLANDIS, José. Op.Cit.,p.122; 61 O legado Hugo Cândido foi um dos responsáveis pela implantação do ritual romano em Aragão. “Entre 1077 e 1080, sendo Gregório VII o papa e com o apoio de Afonso VI, a liturgia romana, pese a resistência popular, foi introduzida em Castela e Leão”. Cf. ORLANDIS, José. Ibidem; 132 em meados do século XI, o bispo de Roma passou a manter laços clientelares com interesses que existiam do outro lado dos Alpes. Isso aconteceu precisamente na época em que tais relações eram cada vez mais percebidas não somente como laços de prestígio, mas como garantias suficientes para o exercício de certos direitos feudais e a conservação da estabilidade patrimonial dos poderes senhoriais.62 Guido de Vico foi um legado que esteve na Península Ibérica e reconheceu os acordos, sendo a voz do papa, estabelecidos entre Afonso Henriques e seu primo Afonso VII. “O resultado deste colóquio foi o reconhecimento do título de rei pelo imperador Afonso VII a D. Afonso Henriques e a permanência da vassalagem do soberano português, ao receber o senhorio de Astorga”.63 A presença do papa, através do legado, fortalecia as políticas assumidas por Afonso I desde sua assunção para o comando do condado portucalense. Para Leandro Rust “aos olhos dos próprios contemporâneos, os legados continham o pontífice em si”.64 A presença da voz pontifícia 65 em Zamora reforçou o poder afonsino na Hispânia. Porém, a resposta da Claves Regni dada por Lúcio II (1144- 1145) refere-se a Afonso como dux portugalensis, e não como rex. Lúcio, Bispo, servo dos servos de Deus. Ao dilecto filho em Cristo, Afonso, ilustre duque, deseja saúde [...] dedicado à expugnação dos pagãos e ocupado com os muitos negócios seculares não podias visitar os limiares dos Apóstolos, por mão do nosso dilecto filho Guido, Cardeal diácono, então legado da Sede Apostólica nessas partes, fizestes homenagem com louvável devoção ao nosso predecessor de feliz memória,o Papa Inocêncio, ofereceste a terra que Deus te confiou ao bem-aventurado Pedro e humildemente entregaste a tua pessoa e a tua própria terra ao patrocínio de Pedro, príncipe dos Apóstolos.66 Inúmeras possibilidades podem ser levantadas sobre o motivo do papa não ter se referido a Afonso Henriques como rei naquele momento e apontamos alguns anteriormente. 67 A manutenção de boas relações com Afonso VII também seria uma explicação para não se reconhecer o condado portucalense como reino. A política de reconhecimento poderia ser recebida com desagrado por Leão e Castela. Os príncipes normandos já tinham prestado homenagem ao papado na época de Nicolau II (1059-1061), demonstrando a rede de alianças que vinha se estabelecendo na cúria e sua expansão de cunho igualmente feudal. O papado estava descentralizado na sua 62 RUST, Leandro. Op.Cit., 2011, p. 158; 63 GALLI, Sidinei. Op.Cit., 1997, p.34; 64 RUST, Leandro. Op.Cit., 2011, p.190; 65 No entanto, é preciso considerar que entre o papa e os legados nem sempre existia concordância das ideias. O que não impede que a presença dos legados fosse vista como a voz papal nos ambientes; 66 Bula Devotionem Tuam. Tradução de AMARAL, Diogo Freitas. In: Em que momento se tornou Portugal um País Independente. In 2º Congresso Histórico de Guimarães: A política portuguesa e as suas relações com o exterior. Guimarães: Município de Guimarães, 1996. Vol. 2, 139-181. Disponível em https://www.amap.pt/p/hist-afonso-henriques-dux-que-se-fez-rei; Acessado em 14/02/2022; 67 Ver p.103 desta dissertação; https://www.amap.pt/p/hist-afonso-henriques-dux-que-se-fez-rei 133 região e a aliança além-Alpes era uma política de sobrevivência. As relações vassálicas abarcavam essa rede estabelecida pelo poder pontifício. Para Rust, no Lácio surgiu uma “realidade que muitos estudiosos consideram incomum para o século XI: Roma tornou- se uma igreja privada de ancoragem senhorial, alheia às principais reservas locais de proteção militar e sustentação material”.68 Em 1046 o papado sai da órbita das famílias romanas após um período de dominação,69 custando àquelas aristocracias um corte em sua “identificação com a igreja local”. 70 O “antes” e “depois” da versão gregoriana se forma com a representação de um papado, a partir de então, reformador. Nesta visão, os papas restaurariam a ecclesia e estabeleceriam a sacralidade perdida após anos de dominação secular. 71 Nada mais que retórica dos gregorianos. O objetivo não é a negação dos movimentos do período, que agitaram, de certa forma, a Cristandade Latina, mas a compreensão da complexa rede de interesses em torno do poder pontifício. Os conflitos na Sé Apostólica na Idade Média Central não se resumiram na dicotomia entre quem era a favor da reforma e um clero reacionário e corrupto. Identificando esta política papal de alianças e fortalecimentos, podemos retomar o caso específico de Afonso Henriques e seu círculo de apoio clerical. Primeiro, a busca pela primazia de Toledo sobre as outras sés da Península Ibérica criou um ambiente de conflitos, especialmente com a arquidiocese de Braga, restaurada em 1071. “Braga estava fortemente projetada pela ascensão ao condado portucalense do conde borgonhês D. Henrique e posteriormente por Afonso Henriques”.72 Para Maria João Branco, Afonso se interessava em “encontrar um metropolita cabeça da província eclesiástica que o pudesse apoiar e proporcionar-lhes os serviços e o prestígio de que necessitava”.73 Braga recebe de Afonso Henriques, inclusive, o direito de cunhagem e uma chancelaria própria. Eram forças internas que se alimentavam e se direcionavam para Roma, na busca de uma teia de relações favoráveis para todos. João Peculiar, arcebispo de Braga entre 1139 e 1175, é uma figura de atividades intensas em prol destas alianças: 68 RUST, Leandro. Op.Cit., 2011, p.156; 69 Período ao qual havia um controle de famílias romanas sobre a Sé Apostólica. Podemos citar a alternância entre Crescenzi e os Tusculanos no trono petrino. Entre 1003 e 1046 havia uma tradição de papas locais. Cf. RUST, Leandro Duarte. Ibidem; 70 Ibidem, p151; 71 Visão difundida pelos gregorianos e que grande parte da historiografia ainda utiliza, partindo das concepções de Augustin Fliche. Cf. FLICHE, Augustin. La Réforme Grégorienne. Louvain: Spicilegium S. Lovaniense, 3 vol, 1937; 72 BRANCO, Maria João. Op.Cit., 2018, p.19; 73 Ibidem, p.22; 134 A forma como João Peculiar, no futuro, havia de apresentar as reivindicações do seu rei e da sua arquidiocese junto à Santa Sé, quase sempre na dupla qualidade de arcebispo e emissário do rei, testemunha essa forma de conceber o seu papel. Na agenda das suas visitas a Roma, às questões eclesiásticas parecem sempre estar apensas manobras diplomáticas, tal como parece ser o caso das deslocações cujo calendário se pode quase sobrepor ao ritmo dos sucessos régios na guerra de reconquista.74 A conquista de Lisboa é um destes sucessos que apresenta os esforços de Afonso e João Peculiar na dilatação da Cristandade diante do outro. O papa sempre via nas nascentes monarquias hispânicas uma possibilidade de proteção e fortalecimento, afinal um vassalo protege seu senhor (ou assim deveria) e os monarcas peninsulares se tornavam homens do papa. Portanto, no caso afonsino a estratégia seguida basear-se-ia muito mais na tentativa de alicerçar as bases para um reconhecimento pontifício na prossecução vitoriosa de uma luta de conquista bem sucedida, que serviria os interesses da monarquia nascente, porque lhe conferia uma legitimidade inquestionável, e serviria também os interesses do papado, que necessitava de afirmar a sua superioridade sobre os poderes temporais.75 Portanto, esses são os elementos que também estão presentes na conquista de Lisboa e na sua escrita. Afonso Henriques estabelecia movimentações políticas que permitissem o seu reconhecimento, contando com parte de seu corpo eclesiástico como aliado. Estes aliados queriam, igualmente, sua desvinculação do domínio que Toledo pretendia como primaz da Hispânia. A busca pelo apoio papal foi uma possibilidade naquele momento, visto o movimento que a Sé de Roma faz para fora do Lácio. Este movimento era uma tentativa de fortalecimento do papa perante as forças romanas. Com o tempo, esta descentralização papal se transformou, no discurso gregoriano, num intenso combate pela recuperação da sacralidade pontifícia e da moralização do clero que resultaria na monarquia papal, onde o sumo pontífice vira um centro de difusão da reforma. No entanto, necessitamos a compreensão que estes conflitos, alianças e discursos da sacralização se insere na esfera das relações feudais. A lógica de aliança papal e afonsina, revestidas pelo sagrado, nada mais é que um dos elementos destas sociedades baseadas em laços senhoriais. 74 Ibidem, p.25; 75 Ibidem, p. 27; 135 3.3 Lisboa à vista: a violência cristã na conquista Após assumir o domínio do condado portucalense, ao longo dos anos 30 do século XII, Afonso Henriques se lança em campanhas de expansão e assume seu papel de rei conquistador para a Cristandade. Não só assume como faz conhecer suas campanhas. A expansão das fronteiras cristãs é algo que se quis propagandear. A política na busca por reconhecimento de seu poder fez o movimento expansionista estabelecer associações destas campanhas com elementos em voga na Cristandade de então. Quais elementos? Os que trabalhamos até aqui: guerra santa, guerra santa hispânica e cruzadas. Fenômenos que utilizam da violência em sua reprodução. Em 1146, o papa Eugênio III chamou os guerreiros cristãos às armas novamente. O motivo? Edessa havia sido conquistada pelos muçulmanos. A comoção desta ocasião movimentou um grande número de combatentes que se colocou em marcha. Assim como em 1096, houve uma divisãoem distintos contingentes, que partiram por caminhos diferentes. Um dos grupos, formado por homens do Norte, sai de Dartmouth, conforme nos relata a crônica De Expugnatione Lyxbonensi: “No porto de Dartmouth reuniram-se, pois, uns cento e sessenta e quatro navios com homens de diversas nacionalidades, costumes e línguas”. 76A crônica é assinada por R. e muito se discutiu e ainda se discute sobre a autoria deste relato. Ainda é aceito que o assinante é Raul, cruzado anglo- normando, ligado ao ciclo dos Glanville,77 visto sua maior proximidade e afeição a Hervey de Glanville, um cruzado encarregado pelos homens de Norfolk. 78 A tese de R. como Raul é de H. V. Livermore79 que acaba sendo corroborada por Maria João Branco e outros historiadores. 80 Livermore aponta que R. é o mesmo que doa, em 1148, ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, suas possessões adquiridas após ter participado da conquista da cidade de Lisboa no ano anterior. Segundo esta doação, logo em seu início, há a apresentação do doador como “Eu, Raul, sacerdote, juntamente com meus companheiros, ao tomar parte 76 A Conquista de Lisboa aos mouros. Relato de um cruzado, Ed. Aires A. Nascimento, 2ª ed., Lisboa, Nova Vega, 3ª Edição, 2018, p.57 77 Em nota explicativa da tradução da crônica Aires Nascimento afirma que o nome dos Glanville provém de uma povoação na Normandia: “Relacionado com esta família parece estar o presumível autor da crônica, cujo pai seria homónimo do comandante do contingente inglês dos cruzados”. In: Ibidem, p.155. Aires Nascimento se baseia no estudo de Charles W. David. Cf. De Expugnatione Lyxbonensi, The conquest of Lisbon, ed. Charles Wendell David, Columbia University Press, N. Y., 1936. 78 Cf. A Conquista de Lisboa aos mouros. Relato de um cruzado. Op.Cit, 2018, p.57; 79 LIVERMORE, Harold. The ‘Conquest of Lisbon’ and its Author. In: Portuguese Studies, 6 (1990) 1-16. 80 Além do próprio Aires Nascimento In: Ibidem; WILSON, Jonathan. Op.Cit., 2016; COSTA, Ricardo da. Op.Cit., 1998; 136 no cerco de Lisboa, ao tempo em que a cidade com todo o seu território ainda se encontrava na posse dos sarracenos [...]”. 81 Este Raul que se coloca como um dos participantes da conquista é, de acordo com Livermore, o autor da narrativa que apresenta a campanha desde a saída dos portos do Norte. Porém, se considerou a possibilidade de tal doação ser uma falsificação dado os escassos documentos 82 e vestígios da Lisboa logo após a conquista e nos anos que se seguiram à esta. No entanto, partindo da concepção de Livermore e de Maria João Branco, a tese de R. sendo Raul ainda é verossímil e tem sentido se considerarmos os apontamentos feitos por Branco em sua introdução da versão da crônica traduzida por Aires Nascimento. Maria João Branco coloca cinco pontos de análise que corroboram a autoria da crônica a Raul. Primeiro ponto: a doação feita a Santa Cruz de Coimbra tem um preâmbulo pouco comum em documentos deste tipo. Este preâmbulo da identificação pormenorizada do doador seria uma demonstração do falseamento, pois foca-se mais em quem doa do que no bem doado ou a quem se doa. De acordo com Maria João Branco, este argumento não é válido pois “a documentação anglo-francesa dos séculos XI e XII está povoada de cartas de doação com essas características, e os preâmbulos narrativos longos são especialmente comuns na documentação do Oeste da França”.83 Ou seja, é marca de sua cultura. 84 Segundo ponto: existem duas formas de escrita na doação, o que apontaria um indício de falsificação “pouco cuidadosa”. No entanto, não é um argumento sólido visto que este elemento pode “derivar apenas do simples fato de o documento ter sido elaborado por uma pessoa e sancionado por outra, tendo em vista que de fato a mão da autenticação e penalidades é diferente da que escreveu todo o resto”.85 Ainda de acordo com Branco, a segunda mão na escrita se referia à “validação por um conhecido notário de Santa Cruz, 81 Doação do cruzado Raul a Santa Cruz de Coimbra. In: A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um Cruzado. Op.Cit., 2018, p.203; 82 Cf. BRANCO, Maria João. A conquista de Lisboa revisitada. “A ausência quase total de documentação entre 1147 e a década de setenta do mesmo século, tem dado origem a teorias que tomam essa ausência como sinal de erradicação de todas as estruturas de produção e de devastação para lá do imaginável, assumindo a Lisboa de 1147 como uma cidade desertificada, despovoada e desmoronada por cinco meses de cerco destruidor. Cinco meses de cerco que, a acreditar na narrativa do cruzado, teriam feito alguns danos nos arrabaldes, mas não tinham conseguido senão derruir um pano de muralha importante e tinham apenas levado a que a empresa terminasse, não numa vitória estrondosa, mas numa rendição com condições... No entanto, a tese da ruptura total não parece resistir face a uma análise mais aturada da escassa documentação, e do que sabemos da restruturação da cidade logo após a sua conquista. 83 BRANCO, Maria João. A Conquista de Lisboa na estratégia de um poder que se consolida. In: A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um Cruzado. Op.Cit., 2018, p.35. 84 Assim como as concepções de Raul acerca da violência vir da região que citamos nos miracula e correspondem ao local demarcado por Maria João Branco. 85 Ibidem, p.35; 137 atestado nessa época, serviria assim para conceder os elementos de autenticação de que a primeira forma carecia”.86 Portanto, o fato de duas pessoas distintas elaborarem a escrita da doação, por si só, não comprova a falsificação. O terceiro ponto é o fato de um bem régio estar na posse de um cruzado, algo demasiado estravagante se considerarmos o pacto estabelecido entre o rei e os cruzados, pelo qual o monarca ficaria com a totalidade do território conquistado e os cruzados com os espólios e os saques. Porém, era política afonsina doar propriedades não só às ordens militares como aos que tomassem parte em suas campanhas, como fica demonstrado nesta doação em si. O patrimônio régio em posse de um anglo-normando não contraria ou ofende a lógica régia, mas se trata da política do próprio monarca e da lógica feudal. Não é estranho que “numa situação extraordinária como era a do cerco de Lisboa, alguns dos cruzados se pudessem ter apossado de territórios”.87 A situação em si explicaria certas questões pois “mesmo que tal prática fosse demasiado ofensiva dos direitos régios sobre os territórios conquistados muitas das situações reais, são sempre mais flexíveis que na teoria”.88 O quarto ponto é a probabilidade de ligações entre Raul e Santa Cruz de Coimbra a ponto de o clérigo anglo-normando doar algo para a instituição, visto a possibilidade de rivalidades entre os regrantes e a Sé de Lisboa, da qual poderia ter se vinculado Raul visto sua terra de origem e o bispado restaurado da cidade ficar a cargo de Gilberto de Hastings. Porém “as relações entre os cruzados e os crúzios parecem vir já de longe e terem sido cimentadas por uma ação comum, em Lisboa”.89 O quinto e último ponto não é exatamente uma teoria fundamentada, mas, de certa maneira, é factível. Não é comum um a existência de um documento de 1148 ligado à Lisboa (visto a escassa presença documental desta época). Porém, isso não é garantia de falsificação. De acordo com Maria João Branco: “Temos de aceitar a possibilidade de que um capricho do acaso tenha permitido que, na estranha voragem que suprimiu todos os vestígios de Lisboa dos anos 40 e 50, um desses testemunhos tenha escapado incólume”.90 Portanto, compartilhamos da hipótese de Raul ser o autor da crônica que narra a campanha de Afonso Henriques em acordo com os cruzados. A conquista de Lisboa parece ter estado no radar do monarca, pelo menos, desde o início da década de 1140, 86 Ibidem, p.35; 87 Ibidem, p.36; 88 Ibidem, p.36. 89 Ibidem, p.36; 90 Ibidem, p.36;138 visto a primeira tentativa que não obteve êxito em torno de 1142. Além da diferença entre estas duas campanhas de Lisboa,91 houve também, em ambas, acordos com tropas de além-Pirineus. O acordo de 1147 resultou na tomada da cidade que, prontamente, foi documentada e valorizada. Muito se especula sobre a participação destes homens que rumavam ao Levante e os motivos de sua presença na campanha afonsina. O documento original não tinha título e, posteriormente, foi chamado De Expugnatione Lyxbonensi92 por William Stubbs. A única cópia da versão original se encontra no Corpus Christi College de Cambridge. 93 O manuscrito foi estudado por Charles David, que afirmou que este não era um texto produzido no âmbito da conquista em si. A carta era um escrito corrigido da segunda metade do século XII. Conforme Ruy de Azevedo, “David fez um profundo estudo do MS. nos seus aspectos externos e internos” 94 e com “base nas características paleográficas, o MS. deve atribuir-se à 2ª metade de século XII”.95 Porém, Charles David também aponta que é um ponto sensível e que não se pode descartar a possibilidade de que o documento seja uma produção in loco.96 Portanto, a crônica data deste tempo: entre a data da conquista e a metade final do século XII. Além disso, se tem conhecimento de outras seis edições: A primeira é uma cópia feita por Alexandre Herculano e publicada nos Portugaliae Monumenta Historica, 97 em 1856. Posteriormente, José Augusto de Oliveira elabora uma cópia em português direto do latim, em 1935. A tradução de José Augusto ainda foi publicada anos depois, em 1982 e 1989, por Alfredo Pimenta e José da Felicidade Alves, respectivamente. 98 Na pesquisa aqui apresentada utilizaremos a versão bilingue traduzida direto do latim por Aires Nascimento que está presente em A Conquista de Lisboa aos Mouros: Relato de um Cruzado, edição de 2018.99 91 A de 1142 falha e a de 1147 logra êxito; 92 A partir de agora, cada vez que houver referência à crônica a sigla DEL será utilizada; 93 Ms.470, fols.125r-146r; 94 AZEVEDO, Ruy de. A Carta ou memória do cruzado inglês para Osberto de Bawdsey sobre a conquista de Lisboa em 1147. In: In: Revista Portuguesa de História. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1957, p.344; 95 Ibidem, p.344; 96 Para Aires Nascimento, a redação da narrativa foi elaborada ainda em Lisboa logo após sua conquista. Provavelmente durante o inverno. Cf. A Conquista de Lisboa aos mouros. Relato de um cruzado, Ed. Aires A. Nascimento, 2ª ed., Lisboa, Nova Vega, 3ª Edição, 2018; 97 http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/pt/investigacao/varia/foral-afonsino/lisboa-em-1147; 98 Cf. AZEVEDO, Ruy de.Op.Cit., 1954; 99 A Conquista de Lisboa aos mouros. Relato de um cruzado, Ed. Aires A. Nascimento, 2ª ed., Lisboa, Nova Vega, 3ª Edição, 2018; 139 3.3.1 A função socializadora da violência O que a crônica nos mostra é uma miscelânea de elementos que dialogam e, ao mesmo tempo, parecem contrários. Afonso Henriques provavelmente tinha noção da instabilidade que a ajuda dos cruzados geraria em sua empreitada, pois a inconstância de um grupo repleto de rivalidades regionais e, muitas vezes, cheios de motivos pouco condizentes com as políticas papais tinha a capacidade de atrapalhar mais que colaborar. De acordo com Jonathan Wilson “o reforço dos cruzados atendia aos interesses de Afonso Henriques. No entanto, os cruzados do Norte podiam ser brutais e indisciplinados, portanto, a sua contribuição para a reconquista portuguesa teve de ser, na medida do possível, controlada”. 100 O combate aos muçulmanos era costume monárquico e uma luta endêmica, pois eram guerras travadas de acordo com os avanços e recuos das fronteiras portucalenses. A crônica demarca esta constância quando em fala atribuída a Afonso o mesmo coloca que “quem vive permanentemente inquieto por causa dos mouros nunca tem oportunidade de juntar dinheiro”.101 Além disso, na chegada dos cruzados, a ausência do rei em recebê- los se deve ao fato de ele estar “com seu exército, a enfrentar os mouros”.102 O texto que relata a fundação do mosteiro de São Vicente de Lisboa também coloca, em seu início, o costume das campanhas constantes contra os muçulmanos: “No ano, pois, da Encarnação do Senhor de 1147, o cristianíssimo rei de Portugal, Afonso [...], extraordinário e decidido exterminador dos inimigos da cruz de Cristo [...] reuniu o seu exército contra os sarracenos, como era seu costume todos os anos [...]”.103 Aqui notamos a imagem de Afonso Henriques como um rei que combate o muçulmano, tal qual os antigos reis hispânicos desde que a conquista dos reinos ibéricos ganhou o caráter de sacralidade. A própria entrada de Afonso em Lisboa após a conquista coloca a relação dele com os símbolos sagrados e a celebração litúrgica que cerca a tomada simbólica do espaço: À frente, pois, ia o arcebispo e os outros bispos com a bandeira da Cruz do Senhor e a seguir entram os nossos chefes juntamente com o rei e os que para este efeito tinham sido escolhidos. Oh! Quanta não foi a alegria de todos! Oh! Quanta não foi a honra especial que todos sentiam! Oh! Quantas não foram as lágrimas que afluíam em testemunho de alegria e de piedade, quando todos viram colocar no mais alto da fortaleza o estandarte da Cruz salvífica em sinal de sujeição 100 WILSON, Jonathan. Op.Cit.,2016; 101DEL. Op.Cit, 2018, p.85; 102 Ibidem, p.63. 103 Notícia da Fundação do Mosteiro de S. Vicente de Lisboa. In: A Conquista de Lisboa aos mouros. Relato de um cruzado. Op.Cit, 2018, p.179; 140 da cidade, para louvor e glória de Deus e da Santíssima Virgem Maria. O arcebispo e os bispos com o clero e todos os outros, não sem lágrimas de júbilo, cantavam o Te Deum laudamus com o Asperges me e orações de devoção.104 Vejamos alguns pontos: a utilização dos símbolos sagrados, especificamente da cruz, na tomada do espaço. Não parece ser ao acaso a vinculação da imagem do rei junto do corpo eclesiástico na entrada da cidade. Assim como também não é ao acaso que esta entrada solene e sagrada se contraponha à dos flamengos e colonienses (desordenada e sangrenta) da qual falaremos adiante. A figura do rei está associada aos elementos sagrados e também a honradez guerreira. Se relaciona com o papel que um rei ibérico desempenha (ou deveria) na luta contra aqueles construídos como inimigos da Cristandade. Um rei justo e moderado, dentro do que se considera como tal no período. Isso faz da entrada destes homens algo plácido e sem violência? Não. A tomada simbólica é repleta de violência. Notamos um ritual com “caráter de júbilo e de purificação, sendo isso expresso nos cantos que se entoam”.105 A cidade está submetida à novos senhores. Senhores cristãos que impõem o símbolo da cruz. Para Jean Chevalier, a bandeira da cruz simboliza a vitória de Cristo ressuscitado. O símbolo elevado cria uma conexão e apresentava uma Lisboa ressuscitando para a Cristandade. A cruz vencia os inimigos, Cristo triunfava e seus seguidores gozariam dos espólios daquela campanha. A presença destes símbolos, adentrando pela parte dianteira da cidade, transmite a ideia de domínio, de sujeição e, ao mesmo tempo, de sacralidade. A espiritualidade traz consigo aspectos duros e suaves.106 O Cristianismo seria, então, portador de concepções brandas e duras. Uma concepção predomina mais que outra conforme o contexto político- social. A violência cultural e simbólica encontra na imposição dos símbolos um campo de manifestação. As linguagens perpetuam esta manifestação da violência e a presença da cruz e dos cânticos na tomada simbólica da cidade aponta tal aspecto. A violência simbólica está presente “no uso de bandeiras e outros símbolos de poder, nos alardes das tropas para impressionar o inimigo, em cativeiros de personagens destacados [...], na presença de Deus nas batalhas”.107A violência também pode ser utilizada para a construção de uma unidade. A sociabilidade através da junção de alguns elementos que possibilitem uma união em torno 104DEL. Op.Cit, 2018, pp.139-141 105 Nota de Aires de Nascimento In: A Conquista de Lisboa aos mouros: Relato de um Cruzado. Op.Cit., 2018, p.173; 106Cf. GALTUNG, Johan. Op.Cit., 2003; Galtung relata sobre estes aspectos ao analisar a violência cultural relacionada às doutrinas religiosas 107 DEVIA, Cecília. Op.Cit., 2014, p.243; 141 do uso da violência. Nos deteremos no tema mais pausadamente no próximo capítulo a respeito de uma análise inserida na construção da identidade e da diferença. Porém, a função socializadora pode ser previamente colocada para auxílio no entendimento da campanha de Lisboa. Os símbolos são elementos que possibilitam esta investigação. Estes símbolos tem a capacidade da promoção de uma violência que submete o outro lado do conflito, enquanto une quem os utiliza para benefício próprio. Notemos o caso da cruz, expressão máxima da salvação para os cristãos. Cristo foi crucificado e pagou pelos pecados da humanidade na cruz. Símbolo da redenção, da promessa e da proteção. Capaz de unir nas piores provações. Raul a utiliza para a construção da união dos cruzados com Afonso Henriques. O elemento que é capaz de romper com as animosidades e que promove a união. Somente com esta união seria possível a derrota dos muçulmanos. Um exemplo é o uso da cruz feita com a mesma madeira da cruz na qual Cristo foi crucificado. Um símbolo semelhante motivou os cruzados na primeira campanha, em fins do século XI. A cruz que promove a união antes do conflito. A união interna que fomenta a violência externa. Eis, meus irmãos, eis o Lenho da Cruz do Senhor! De Joelhos em terra, mantende-vos inclinados, batei no peito como réus e invocai o auxílio do Senhor. Ele virá, de facto, sim, virá. Vereis o auxílio do Senhor a vir sobre nós. Adorai o Cristo Senhor que nesse salvífico Lenho da Cruz estende as mãos e os pés para a vossa salvação e glória. Com esta bandeira, não hesiteis um só momento, vencereis. Pois mesmo que aconteça que alguém venha a morrer assinalado com ela, segundo acreditamos, não lhe será tirada a vida, mas não duvidamos de que será mudada para melhor. Viver aqui, pois, é motivo de glória e morrer é um ganho.108 A fala acima foi proferida por João Peculiar, numa missa campal, antes da invasão de Lisboa. Após o sermão do arcebispo de Braga, de acordo com a crônica, “todos caíram de bruços com gemidos e lágrimas nos seus rostos”.109 Passada a catarse “todos se levantaram e foram abençoados pela venerada relíquia da Cruz do Senhor, 110em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”.111 Após a vitória e domínio da cidade, a cruz adentra o ambiente com os líderes daquela campanha numa demonstração de união cristã. 108 DEL, Op.Cit., 2018, p.125; 109 Ibidem, p.127; 110 A relíquia com os fragmentos da cruz de Cristo se espalhou pela Cristandade desde que Helena, mãe de Constantino empreendeu a busca de elementos sagrados. Na primeira cruzada é possível ver o apelo às relíquias ligadas à Cristo (como a santa lança). Antes da conquista de Lisboa, a cruz do santo lenho é usada como símbolo de motivação para os cruzados. Para maiores detalhes ver: COSTA, Ricado da. A Guerra na Idade Média: estudo da mentalidade de cruzada na Península Ibérica, 1998; 111 DEL. Op.Cit., 2018, p.127; 142 À entrada vitoriosa da cruz somamos alguns aspectos presentes na narrativa da conquista em que este mesmo símbolo é vilipendiado pelos muçulmanos, conforme afirma o autor da crônica. Os adversários da cruz, que zombaram da cruz, foram dominados por esta mesma cruz. Esta linearidade que parece causa e efeito, traz uma lição que Raul quer transmitir através do castigo perpetuado contra quem se coloca contra um símbolo sagrado. Vejamos como durante o cerco, um grupo de anglo-normandos é provocado pelos guerreiros muçulmanos que guardam a muralha da cidade: Em gracejos, por palavras injuriosas e torpezas, afrontavam sem cessar Santa Maria, a mãe do Senhor, amesquinhando-nos por venerarmos com tanto respeito, como se fosse Deus, o filho de uma pobre mulher, e por dizermos que Ele é Deus e Filho de Deus, quando é sabido que Deus há só um [...] Além disso, com grande irrisão, alçavam para os nossos o sinal da cruz e cuspindo-lhe limpavam com ele as partes traseiras de sua fealdade e, por fim, urinando sobre ela , em gesto de opróbrio, arremessavam-nos a nossa cruz. Para nós , isso parecia-nos que era Cristo estar de novo a ser blasfemado em nossos dias por incrédulos, saudado com genuflexões falsas, molhado com cuspidelas de malvados , apertado com cordas, zurzido com açoites, pregado no opróbrio da cruz. Sentindo tudo isto, como nos competia, mais acirrados nos tornávamos contra os adversários da cruz. 112 Na descrição acima notamos como a cruz, ofendida, se associa às ofensas sofridas pelo próprio Cristo na sua crucificação. A cruz que, posteriormente, adentra vitoriosa à cidade. A cruz que derrota os adversários da cruz. O termo adversários da cruz é empregado em De Expgunatione Lyxbonensi em quatro oportunidades 113 e esses adversários que são vencidos, podem ser, inclusive, os mesmos que pedem perdão à cruz após a cidade ser dominada enquanto reconhecem a bondade de Maria, que também foi alvo de injúrias, de acordo com a citação acima. Os muçulmanos, assolados pela peste abraçavam-se ao sinal da cruz e beijavam-no, confessavam que Maria, cheia de bondade, é a bem-aventurada Mãe de Deus, de tal modo que em tudo que fazem ou dizem, mesmo nos momentos extremos, misturam invocações à Maria boa, boa Maria e lhe dirigem apelos angustiados.114 Esta conversão instantânea pode ser vista sob dois prismas. Um deles é abordado por Aires Nascimento em nota explicativa em sua tradução da crônica, que coloca a possibilidade de serem moçárabes que não relutaram em abraçar suas confissões cristãs. De acordo com Aires “não é possível dirimir se este comportamento pertence apenas a cristãos moçárabes que se encontravam na cidade ou se é assumido também por outros”. 112 Ibidem, p.107; 113 Adversariis Crucis, p.72; Crucis adversários, p.106; Crucis adversários, p.108; Crucis adversários, p.144; In: Ibidem; 114 Ibidem, pp.143-145; 143 115 A segunda possibilidade é que se tratavam de muçulmanos que in extremis não viram outra possibilidade senão a adesão ao Cristianismo. Antônio Borges Coelho116 não admite que fossem comunidades moçárabes. O autor aponta que “uma boa parte eram muçulmanos de conversão não muito antiga, falantes de língua árabe, e que partilhavam ou pelo menos usavam expressões da língua galaico-portuguesa. Arrastados pela necessidade extrema, inclinavam-se, como sempre acontece, perante o gládio vencedor”. 117 A conversão forçada118 não era permitida embora a prática cruzada não se alinhasse à esta teoria. Sabe-se de conversões forçadas nos pogroms e não seria estranho o mesmo modus operandi na conquista de Lisboa. 3.3.2 A conquista de Lisboa como uma guerra de vingança Portanto, as ofensas que foram proferidas, conforme o narrador, foram revidadas dentro de uma lógica reativa, pois o ataque foi respondido frente a um comportamento considerado aviltante. Os adversários que ofendem o símbolo são vencidos por ele e também perdoados, ao se converterem. A cruz também é utilizada como um símbolo de união, de sociabilidade e aqueles que combatem sob este signo se enxergam num quadro de pertencimento. A intenção é a demonstração que a cruz, aqui, é a marca de uma imposição e da sacralidade que confere uma coerção simbólica àqueles que são derrotados por ela. O recado pode ter certa variação, mas geralmente, promove adesão ou recusa. Independente da escolha daqueles (não-cristãos) que se encontram diantede tal símbolo não qualificamos como algo pacífico ou de livre escolha. O momento é extremo. O abandono da fé é a única saída para a sobrevivência. A maneira como esse caso é colocado pode ser analisado dentro, também, de uma concepção de vingança? Em nossa perspectiva sim. A ofensa sofrida pela cruz foi respondida. Susanna A. Throop escreve sobre como a vingança pode ser inserida num contexto cronológico pois, segundo a historiadora, “um ato de vingança nunca é o início da história, sempre se segue a pelo menos um outro evento”. 119 Ou seja, “para descrever 115 Ibidem, p.174; 116 COELHO, Antônio Borges. Lisboa nos Primeiros Séculos Após a Reconquista. In: Lisboa, Encruzilhada de Muçulmanos, Judeus e Cristãos. Actas do Colóquio. Porto: Edições Afrontamento, 2001, pp.235-242; 117 Ibidem, p.235; 118 O cânone 57 do IV Concílio de Toledo, de 633, proibia as conversões forçadas. Cf. NASCIMENTO, Aires. Op.Cit., 2018, p.167; 119 THROOP, Susanna A. Crusading as an Act of Vengeance, 1095-1216. Ashgate, 2011, pp.13-16; 144 um ato como vingança era preciso se questionar ‘vingança porquê?”.120 A vingança contra aqueles que estão fora da Cristandade se efetua como um ato de justiça divina121 e piedade. Afinal de contas, a vingança vem para a correção de algo considerado injusto. Sendo assim, a violência se reveste de vingança e justiça. A vingança com o emprego da violência não condenada difere daquelas blood feuds internas que buscam, muitas vezes, a composição. Portanto, temos um paralelo de comparação se atentarmos para a análise realizada anteriormente. A busca pela resolução, muitas vezes através de composições, pelas partes envolvidas numa vendeta tem como lógica a participação destas partes numa sociedade. No caso aqui analisado, a sociedade é a Cristandade. Porém, isso não impede, necessariamente, que desmedidas sejam cometidas e muitas situações saiam do controle, gerando mortes que serão condenadas pela Igreja. Sendo assim, caso a vendeta fuja do controle ou as batalhas entre príncipes gerem mortes em demasia, há a necessidade da penitência. Aqui está um contraponto para os ataques aos muçulmanos e os homicídios perpetuados contra eles: não há imposição de penitências. Por isso, a guerra de vingança (intersocietária) é uma característica marcante no discurso da crônica. As “regras” de uma vendeta interna não se aplicam na conquista de Lisboa, pois como coloca o professor Ricardo da Costa “no caso específico da reconquista se travou um tipo de guerra que excluiu o caráter lúdico do belicismo cavaleiresco [...] a guerra medieval pressuponha a existência de regras limitativas, e seus participantes consideravam-se uns aos outros como iguais”.122 Não era o caso de como o muçulmano era vislumbrado. Eles são relatados na narrativa como “homicidas e salteadores”,123 “embusteiros”, 124 “antigo inimigo”125 e “perversos”.126 Porém, a designação de pagão 120 Ibidem, p.13. 121 O cruzado Raul relata, ainda, que a obstinação dos mouros era um ato de justiça (iusticia) divina para que a desonra dos adversários da cruz fosse demonstrada através de homens de pouco valor. Deus os manteve daquela forma para que se presenciasse a justiça (vingança) que se efetuaria através dos cruzados. No entanto, fica a dúvida acerca de quem se trata os “homens de pouco valor”: Denota um caráter de humildade atribuído aos anglo-normandos ou se trata de desprezo pela condição do mouro? Ou seja, o castigo destinado aos adversários da cruz seria demonstrado através dos mouros, chamados de homens de pouco valor. Trata-se de uma parte confusa do autor. Para Marcus Bull, o termo utilizado (homunciis) não se tratava de expressão de humildade. Cf.BULL, Marcus. Eyewitness and the Crusade Narrative. Perception and narration in accounts of the second, third and fourth crusade, Woodbridge: The Boydell Press, 2018, p. 137; 122 COSTA, Ricardo. Op.Cit., 1998, pp.41-42. 123Homicidae et raptores; In: A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um Cruzado. Op.Cit., 2018, p.70; 124 Ibidem; Veteratores, p.132; 125 Ibidem; Hostis antiquus, p.132; 126 Ibidem; Perversos, p.144; 145 talvez seja a demonstração mais latente acerca do caráter que se impunha ao outro. A violência é utilizada como instrumento de união, pois numa campanha como a de Lisboa existe a ideia sobre quem é o inimigo e contra quem se deve lutar. Ora, essa violência destinada contra àquele que está fora, a partir de semelhanças e diferenças, será melhor analisada no próximo capítulo, mas a socialização de um determinado grupo através da violência pode ser notada em diversos momentos na escrita de Raul: “Entre estes povos de tantas línguas trocam-se garantias da mais firme concórdia e amizade; mais que isso, estabelecem-se decisões das mais estritas, como a de morte por morte, dente por dente”.127 A referência à lei de talião coloca que as ofensas recebidas seriam respondidas num quadro de reciprocidade. Afinal de contas, justiça e violência se combinam no exercício de sua aplicabilidade. A concepção de justiça aqui se trata da resposta dada em decorrência do uso da força contra outrem. A narrativa da campanha de Lisboa já parte de uma concepção racionalizada acerca da utilização da violência pois, a necessidade de se retomar algo que foi usurpado pelos muçulmanos já torna esta guerra uma guerra justa, portanto, com sua razão. Lembrando: a violência é racional e a justificativa para o emprego desta comprova a razão que instrumentaliza o seu uso. O discurso de Pedro Pitões, que recebe os cruzados e os convida a participar da conquista, pode ser colocado como um verdadeiro chamado à guerra santa, repleto das ideias de cruzada: “Cremos que já ouvistes dizer em vossas regiões de origem que o castigo divino feriu com a ponta da espada a Espanha128 inteira com a invasão dos mouros e moabitas, deixando nela bem poucos cristãos e em cidades, sob um pesadíssimo jugo de servidão”.129 A referência ao Islã como invasor já coloca um ponto: a ofensiva seria uma resposta. Jean Flori 130 aponta que “a guerra assume valor moral desde que decorra da necessidade de restabelecer pela violência a justiça e a paz rompidas pelo inimigo que assim cometeu uma injustiça, uma falta, um delito”. 131 Flori afirma ainda que desta maneira “ele legitima não só a recuperação de terras e bens espoliados, mas também a punição dos povos culpados de injustiça [...]”. 132 A retórica da guerra justa é colocada em ambiente ibérico de uma maneira que se faz compreensível por homens de distintas 127 Ibidem, p.57; 128 Hyspaniam, p.68; 129 Ibidem, p.69; 130 FLORI, Jean. Guerra Santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão / Jean Flori; tradução: Ivone Benedetti; Campinas: Editora da Unicamp, 2013; 131 Ibidem, pp.272-273; 132 Ibidem, p.273; 146 localidades que partiam para a cruzada. Como se conjuga tais elementos? Pedro Pitões circula nestes discursos: Que infelicidade! Em toda a Galécia e no reino de Aragão e Numância, de entre tantas cidades, castelos e aldeias e assentamentos de santos varões, mal se notam já outros sinais que não sejam de ruínas e vestígios de uma desolação já consumada. Mesmo a nossa cidade que estais a ver, em tempos posta entre as célebres, agora está reduzida a um pequeno povoado, e foi, segundo as nossas memórias, muitas vezes saqueada pelos mouros. De verdade, ainda há uns sete anos, foi de tal modo fustigada por eles que da igreja de Santa Maria, a que sirvo por graça de Deus, levaram eles os sinos, os paramentos, os vasos e todos os ornamentos da igreja, depois de terem feito correr o sangue de nossos fidalgos, e tudo o mais passando a ferro e fogo. Que há efetivamente no litoral hispânico que tenha surpreendido o vosso olhar e que não demonstre senão traços de memória e sua devastação e vestígios da derrocada? Quantos destroços de cidades